João de Deus: Método de leitura com sentido

Originalmente publicado em: Actas do VI Encontro Nacional (IV Internacional) de Investiga??o em Leitura, Literatura Infantil e Ilustra??o. Braga: Universidade do Minho, Outubro de 2006.

Jo?o de Deus: M?todo de leitura com sentido

Isabel Ruivo*

RESUMO

Esta comunica??o pretende divulgar a tem?tica da inicia??o ? leitura, atrav?s da metodologia que Jo?o de Deus apresenta em 1876, quando ap?s dez anos de trabalho no projecto de cria??o de um m?todo de leitura, foi editada, em 1876, a Cartilha Maternal, livro que suportava, num s? manual, as li??es para os alunos e o Guia Pr?tico para o professor. O objectivo era que o ensino fosse feito pelas m?es, da? o nome Cartilha Maternal. O M?todo de Leitura de Jo?o de Deus apresenta de uma forma progressiva e correcta do ponto de vista pedag?gico, as dificuldades da l?ngua portuguesa. A crian?a, desde a primeira li??o, ? convidada e estimulada a ser ?analista da linguagem?, porque as dificuldades s?o explicadas por regras que satisfazem o racioc?nio e o pensamento l?gico do aluno. O uso de mnem?nicas na forma??o tempor?ria das consoantes ?incertas? e a apresenta??o das palavras segmentadas silabicamente (recorrendo ao uso do preto/cinzento), sem quebrar a unidade gr?fica, s?o duas das principais linhas de for?a que caracterizam o M?todo. A metodologia Jo?o de Deus insere-se nos modelos interaccionistas, porque utiliza simultaneamente e em interac??o estrat?gias do tipo bottom-up em sinergia com estrat?gias do tipo top-down.

1. Enquadramento hist?rico do M?todo e do autor

Jo?o de Deus, poeta e pedagogo, nasceu em S?o Bartolomeu de Messines (Algarve ? Portugal) a 8 de Mar?o de 1830. Em 1849, foi estudar Direito na Universidade de Coimbra. Ap?s a conclus?o do curso permaneceu naquela cidade at? 1862, dedicando-se ao Jornalismo e ? tradu??o de obras liter?rias francesas. Entre 1862 e 1868 viveu no Alentejo onde trabalhou como jornalista. Em 1869 foi eleito deputado, o que levou o poeta a fixar resid?ncia em Lisboa, local onde foram editadas duas colect?neas de poemas seus. Nesse mesmo ano casa com Dona Guilhermina de Battaglia Ramos, de quem teve quatro filhos.

Sens?vel aos problemas sociais da sua ?poca, denuncia atrav?s da poesia a fome, a pobreza, a falta de habita??o, a doen?a e o analfabetismo... Para Jo?o de Deus, ?Ser homem ? saber ler. E nada mais importante, nada mais essencial que essa modesta e humilde coisa chamada ? primeiras letras.? (Deus, 1877, p. 15)

Em 1865 aceita o convite do Senhor Rover, gerente da editora Rolland, em Lisboa, para criar um M?todo de Leitura. Apesar da editora ter falido antes de concluir o projecto, Jo?o de Deus, que j? estava muito entusiasmado, n?o desistiu e acabou por publicar, em 1876, a Cartilha Maternal (C.M.) pela Livraria Universal de Magalh?es & Moniz.

*Escola Superior de Educa??o Jo?o de Deus.

| 1 |

ABZ da Leitura | Orienta??es Te?ricas

O aparecimento deste novo M?todo de Leitura suscitou muita pol?mica. Muito se escreveu nos jornais da altura sobre este fen?meno que viria a fazer uma verdadeira revolu??o no ensino, destruindo os velhos m?todos. Para ele, a unidade principal do discurso ? a palavra.

Dos intelectuais que na altura se manifestaram a favor do M?todo, salientamos Dona Carolina Michaelis de Vasconcelos, que escreveu o seguinte, no jornal do Col?gio Portuense O Ensino, em 1877:

?[...] com a Cartilha do Senhor Jo?o de Deus entramos num mundo novo; tudo mudou de aspecto, tudo se tornou simples, l?dico, transparente. O novo pedagogo vai guiando o disc?pulo passo a passo; n?o o mete num labirinto; apresenta-lhe um plano disposto na melhor ordem e assenta no seu lugar, uma a uma, as pedras do edif?cio, que s?o os elementos da l?ngua. D? a conhecer as letras uma por uma, assim como a sua aplica??o e s? no fim constitui a cadeia do alfabeto, ligando estes seus elos; n?o desmembra as palavras em s?labas, as s?labas em letras, apresenta ? crian?a a flor intacta.?

Mais recentemente, ainda muitas s?o as disserta??es que alguns intelectuais fazem acerca do M?todo. Registamos a opini?o de Ana Maria Mira, psic?loga que colaborou na elabora??o do Guia Pr?tico da Cartilha:

?[...] A Cartilha Maternal foi publicada h? mais de um s?culo, em 1876. Talvez por isso muitos esp?ritos apressados caiam facilmente na tenta??o de sobranceiramente a relegarem para o rol das velharias. Inadequada porque do s?culo passado? Ou porque, talvez, esses esp?ritos n?o disponham de conhecimentos suficientes para compreenderem a modernidade dos seus postulados? A Cartilha Maternal, analisada ? luz do saber actual, demonstra uma riqueza surpreendente de intui??es cient?ficas, confirmadas posteriormente, que s? um pensamento e uma sensibilidade excepcionais poderiam conceber.? (1997, p. 16)

2. O M?todo Jo?o de Deus ? Enquadramento te?rico

Jo?o de Deus (1876) afirma, referindo-se ao m?todo por ele criado, que a primeira condi??o para ensinar por este m?todo ? o estudo da fala. Encontramos uma afirma??o id?ntica, bem mais recente, de Golbert (1988), quando afirma peremptoriamente que ?uma boa parte das dificuldades existentes na escola ser?o superadas se as metodologias de ensino considerarem os princ?pios b?sicos que dirigem a linguagem oral? (p. 110).

Jo?o de Deus diz que o seu m?todo, ao contr?rio de outros existentes ? referindo-se essencialmente a Feliciano Castilho, cujo m?todo de leitura tinha sido criado em 1853 ? ?funda-se na l?ngua viva? (C.M., p. 7), apresentando apenas um abeced?rio do tipo mais frequente, ?e n?o todo, mas por partes, indo logo combinando esses elementos conhecidos em palavras que se digam, que se ou?am, que se entendam, que se expliquem; de modo que em vez do principiante apurar a paci?ncia numa repeti??o n?scia, se familiarize com as letras e os seus valores na leitura animada de palavras intelig?veis? (C.M., p. 7).

| 2 |

ABZ da Leitura | Orienta??es Te?ricas

Jo?o de Deus tamb?m foi inovador no que diz respeito aos aspectos visuais. Esta ? uma das caracter?sticas do m?todo que ainda n?o encontrou concorr?ncia na actualidade. Ele prop?s a divis?o sil?bica das palavras sem quebrar a sua unidade gr?fica (e sonora). Para isso recorre ? estrat?gia do preto/cinzento, recusando desta forma tratar as s?labas independentemente das palavras em que est?o inseridas, permitindo ensinar o c?digo alfab?tico num contexto de leitura com significado.

Como nos diz Viana (2002):

?desde a primeira li??o, a crian?a ? convidada e estimulada a ser analista da linguagem. Desde a primeira li??o a crian?a tem um papel activo na descoberta de que a posi??o da letra na palavra determina o seu valor sonoro. As letras consoantes s?o ordenadas em fun??o do seu n?mero de valores, sendo ensinadas primeiro as que correspondem foneticamente a constritivas fricativas (os ?nicos fonemas conson?nticos que podem, em portugu?s, ser pronunciados isoladamente, isto ?, sem sons voc?licos). Seguindo este princ?pio as primeiras letras consoantes apresentadas s?o o v e o f. V?rios estudos (Treiman & Baron, 1981; Content, Kolinsky, Morais & Bertelson, 1986) indicam que estes sons s?o mais f?ceis de identificar no in?cio de uma palavra do que as oclusivas (por onde, estranhamente, come?am a maioria dos manuais escolares actuais). Conhecedor da mente infantil, Jo?o de Deus d? nomes a cada figura do alfabeto. Na sua metodologia est?, no entanto, bem patente a diferencia??o entre o plano f?nico e o plano gr?fico. Por um lado, as unidades s? existem em conjunto, e por outro, cada figura ou diacr?tico pode ser identificado independentemente das figuras vizinhas (o que lhes permite terem um nome). Em 1876, como hoje, h? a necessidade de fazer distin??o entre o nome e o valor da letra. Os valores das letras designam os fonemas, ou as combina??es de fonemas a que correspondem. Ao dar inicialmente ? letra /s/, por exemplo, o nome cez?xe evita o que Elkonin (1973) considera o pior dos h?bitos, que ? o de colocar em conjunto o nome das letras sem proceder ? sua fus?o, pelo que o conhecimento do nome das letras pode ser motivo acrescido de confus?o. Assim, se dissermos que o /v/ se chama v? e estiver um /i/ a seguir, o aluno ler? v? i. N?o faz sentido, mas se dissermos que o /v/ se l? com o l?bio de baixo nos dentes de cima ? ponto de articula??o das consoantes labiodentais ? e voz prolongando o som vvvv... o aluno ler? vi. A atribui??o de um nome ? mnem?nica ? d? const?ncia ? letra, const?ncia esta necess?ria para perceber que pode receber diferentes pron?ncias em fun??o das letras que tem por vizinhas.? (p. 117)

O uso de um livro grande na sala de aula ? uma ideia original de Jo?o de Deus e permite que a crian?a tenha uma maior e mais activa participa??o no acto de ler em voz alta, desenvolvendo-lhe o conceito de leitura e habilidades pr?-leitoras.

Desenvolvendo um m?todo que permitia ?massificar? o acesso ? leitura, Jo?o de Deus n?o esqueceu a crian?a na sua individualidade e, por isso, com necessidades

| 3 |

ABZ da Leitura | Orienta??es Te?ricas

educativas particulares. Desta forma, cada crian?a segue a Cartilha a seu ritmo pr?prio (e n?o ao ritmo da classe).

3. Linhas de for?a que caracterizam o M?todo Jo?o de Deus

3.1. O M?todo ? considerado interaccionista

Utiliza estrat?gias de leitura do tipo bottom-up em sinergia com estrat?gias do tipo top-down.

3.2. Estimula as capacidades metacognitivas

A crian?a ? levada a entrar num jogo, do qual vai aprendendo regras e vai evoluindo, construindo conhecimento. O processo inicia-se com a vis?o das letras, seguindo-se os sons correspondentes, a leitura de palavras e a pronuncia??o destas como entidades globais com significado pr?prio. No discurso com a professora a crian?a insere conhecimentos seus na aprendizagem, desenvolvendo o vocabul?rio e a constru??o fr?sica de uma forma l?dica.

Depois de apresentar as vogais, sem as quais n?o h? palavras, as primeiras letras consoantes que se ensinam s?o V, F, J, cujo valor se pode proferir e prolongar.

3.3. Respeita o ritmo individual de cada crian?a

? atrav?s do uso de um gr?fico de leitura que o educador/professor se apercebe do ritmo de cada aluno. No gr?fico, o educador/professor regista diariamente a li??o que a crian?a aprende, para que tamb?m ao n?vel dos trabalhos individuais tenha actividades adequadas ? sua capacidade de trabalho e desenvolva as compet?ncias necess?rias ao prosseguimento das aprendizagens na leitura e em outros dom?nios.

3.4. Fomenta na crian?a a autocorrec??o

A crian?a, que em todo o processo de aprendizagem ? estimulada a ser analista da linguagem, consegue, atrav?s da explicita??o das regras aprendidas, autocorrigir-se.

3.5. O exerc?cio de leitura ? din?mico, interactivo e promove a rela??o entre as palavras lidas e a viv?ncia da crian?a, dando a no??o de que a palavra ? o elemento principal do discurso

Jo?o de Deus n?o usa frases soltas, preferindo dar ao leitor o instrumento lingu?stico que ? a palavra e lev?-lo a us?-la dentro do seu mundo e dos seus interesses.

| 4 |

ABZ da Leitura | Orienta??es Te?ricas

Fazer integrar a palavra lida numa frase, ? fazer o leitor/aluno compreender o valor da linguagem.

3.6. Nunca ler de cor

A originalidade do m?todo ? o acesso directo ? leitura corrente, sem rectifica??es intermedi?rias e sem a sobrecarga de mem?ria resultante de um n?mero excessivo de associa??es b?sicas. No entanto, h? a salientar que o uso do racioc?nio e da mem?ria facilitam a aprendizagem da leitura.

3.7. As letras s?o estudadas no seu papel din?mico e nas suas diversas leituras

As dificuldades s?o explicadas por regras que satisfazem o racioc?nio e o pensamento l?gico do aluno, facilitando uma leitura bem compreendida que favorece tamb?m a ortografia. A leitura torna-se assim um exerc?cio mental de grande valor, e de uma forma l?dica, o aluno acede ao c?digo lingu?stico.

3.8. Uso de mnem?nicas na forma??o tempor?ria dos nomes das consoantes incertas para facilitar a aprendizagem

A partir da 15? li??o aparecem as consoantes, a que Jo?o de Deus chamou de ?incertas?, ou seja, aquelas que t?m mais de um valor ou leitura. Assim: o /c/ chama-se cek?xe porque tem o valor de [s] quando tem ? frente um /e/ (cedo) ou um /i/ (cidade) ou por baixo uma cedilha, (caba?a); tem o valor de [k] quando ? frente n?o tem /e/ (caldo), n?o tem /i/ (caco), nem tem cedilha; que se l? [] quando vem junto do /h/ (ch?) ? tem tr?s valores.

O /g/ chama-se j?gue porque tem o valor de [] quando tem ? frente um /e/ (gelo) ou um /i/ (girafa); tem o valor de [g] quando ? frente n?o tem /e/ (galo), n?o tem /i/ (gola). Ainda sobre o j?gue se diz que quando ? frente vem um /u/ e a seguir um /e/ ou um /i/, o /u/ geralmente n?o se l? ? tem dois valores.

O /r/ chama-se r?re porque tem o valor de [R] quando est? no princ?pio da palavra (rato) ou est?o dois juntos (carro); tem o valor de [r] quando n?o est? no princ?pio das palavras (furo) nem est?o dois juntos (carta) ? tem dois valores.

O /z/ chama-se z?xe porque tem o valor de [z] quando est? no princ?pio da palavra (zelo) ou no princ?pio de s?laba (azeite); tem o valor de [] quando est? no fim da palavra (rapaz) ou no fim de s?laba (felizmente) ? tem dois valores.

O /s/ chama-se cez?xe porque tem o valor de [s] quando est? no princ?pio da palavra (sapato), quando est?o dois juntos (tosse), e ?s vezes quando est? entre uma consoante e uma vogal (valsa); tem o valor de [z] quando est? entre vogais (casa); ainda se l? [] quando est? no fim da palavra (botas) ou no fim de s?laba (foste) ? tem tr?s valores.

O /x/ chama-se kcecez?xe porque tem quatro valores, ou seja, pode ler-se com quatro sons, quatro leituras diferentes: l?-se [ks] em palavras como fixo, crucifixo, sexo;

| 5 |

ABZ da Leitura | Orienta??es Te?ricas

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download