O Pensamento Complexo de Edgar Morin e a conjugação …



O Pensamento Complexo de Edgar Morin

e a conjugação verbal em LDs de PLE

Linei Matzenbacher ZAMPIETRO (USP, São Paulo - Brasil)

1. Introdução

O paradigma complexo pretende-se uma ciência-tronco da qual partem os diversos princípios de um pensar complexo, princípios esses suportes a indivíduos autônomos e capazes de formular e de testar teorias em busca do conhecimento da língua.

Descreveremos estes princípios da forma como Edgar Morin os apresenta, ao mesmo tempo em que tentaremos aplicá-los a sugestões de como a introdução e a sedimentação da conjugação verbal em LDs de PLE poderiam ser feitas de forma a facilitar a aquisição tanto da forma quanto do uso dessas estruturas.

2. A escolha do pensamento complexo ou do paradigma complexo para analisar a conjugação verbal em LDs de PLE deve-se em parte por esse novo paradigma partir da hipótese de que, em um mundo globalizado como o de hoje, o indivíduo-aprendiz de língua estrangeira possui um conhecimento de mundo muito mais abrangente do que em tempos idos, além de possuir a capacidade de criar e testar teorias durante sua aquisição do Português Língua Estrangeira, ou de qualquer outra língua. Trata-se de um indivíduo múltiplo, já que está inserido em um contexto histórico-social e político determinado, contexto esse permeado por valores e atitudes baseadas nesses valores, além de já dominar uma língua pelo menos (a língua materna ou LM), o que, até o ponto de realmente acontecer a aquisição do português, proporciona ao indivíduo-aprendiz a sua noção de identidade e de pertencimento a um grupo.[1]

Outro ponto a favor do pensamento complexo é o fato de ele partir da teoria de que o conhecimento é um processo, é muito mais um ‘vir-a-ser’ do que ser: estamos sempre construindo nosso conhecimento, este sempre inacabado e sujeito a reconstruções, dependente do meio externo (da sociedade, da cultura, dos meios de adquiri-lo) ao mesmo tempo em que é autônomo, pois se auto-organiza durante sua construção perene.

Além disso, o pensamento complexo se pauta na Multidisciplinaridade, já que parte do pressuposto de que estudar o indivíduo, tão complexo, e a aquisição por ele de uma língua estrangeira é praticamente impossível se esse estudo não dispuser de mais de uma disciplina, seja da Lingüística, da Lingüística Aplicada, da Sociologia, da Pedagogia, da Didática, enfim, de quantas forem necessárias para que uma compreensão mais abrangente do processo de aquisição torne-se possível.

Até bem pouco tempo atrás, falava-se muito em interdisciplinaridade, processo esse que se utiliza de pontos de vista diferentes das diversas disciplinas para estudar um mesmo objeto, alcançando muitas vezes um resultado multifacetado demais, sem utilização prática. A Multidisciplinaridade, ao contrário, repensa a epistemologia que divide uma disciplina da outra – é possível ‘viajar’ a cada uma delas para se resolver um problema da prática, em sentido oposto ao comumente adotado pelas ciências (da teoria para o objeto de estudo).

Tal ‘viagem’ só é realmente produtiva, segundo o paradigma complexo, se determinados princípios forem seguidos. Esses princípios são expostos a seguir com algumas exemplificações de como eles poderiam ser seguidos durante a elaboração de materiais didáticos de PLE no que diz respeito à introdução e sedimentação da conjugação verbal, item da gramática que, a nosso ver, é dos mais complexos especialmente quando comparada à conjugação verbal de línguas anglo-saxônicas ou mesmo à conjugação inexistente de certas línguas orientais.

3. Princípios para um pensar complexo

1) Princípio Sistêmico ou Organizacional – religa o conhecimento das partes com o conhecimento do todo e vice-versa. O todo é sempre mais e menos que a soma das partes, já que algumas das qualidades das partes podem ser inibidas ou amplificadas pelo efeito do todo sobre elas ou das partes sobre outras partes.

Esse princípio vê a língua e sua aquisição como um sistema de sistemas, ou seja, a língua como um todo (sistema), é formada por subsistemas (texto, frases, morfologia, fonologia) interdependentes: dependendo da intenção do interlocutor, a escolha de determinados vocábulos e determinadas entoações será privilegiada.

Quanto à aquisição lingüística, adotamos aqui o modelo fractal de aquisição de Menezes (s/d), em que a aquisição em si seria o todo, cujos subsistemas seriam o tipo de input (formal, informal, controlado, livre), biocognitivo (idade, língua materna, gênero/identidade, personalidade, estilo cognitivo, estratégias de aprendizagem); contexto sócio-histórico (sala de aula, ambiente natural, estímulo, feedback, cultura do grupo, os falantes, a oportunidade, o tempo, o espaço); afetivo (crenças, ansiedade, medo, atitude, auto-estima, história de aprendizagem, autonomia, tipos de motivação integrativa); para citar somente alguns.

Cada subsistema estaria interligado, um interagindo sobre o outro, na direção do caos criativo, do momento mais propício em que a abertura à aquisição é plena. Menezes dá um exemplo sobre essa interligação sistêmica entre as partes quando fala de uma experiência negativa do aluno ao adquirir uma língua estrangeira (subsistema do contexto sócio-histórico) que interferiria em sua crença (subsistema afetivo) na possibilidade de adquirir uma nova língua.

Em termos de livro didático e da introdução e sedimentação da conjugação verbal, vale lembrar que a contextualização é indispensável – o todo seria o contexto em que cada verbo ou sua forma em determinados usos devem ser aprendidos, seja por meio de diálogos, de role-plays, de textos, de contextualização por meio de fotos, etc. Um exemplo seria a introdução do verbo ‘ser’ que precisa vir associado aos seus diversos usos (estado mais permanete: estado civil, nacionalidade, profissão, religião, características de personalidade, entre outros) para que, mais tarde, ao se introduzir o ‘estar’, os dois não sejam fonte de confusão especialmente por parte de falantes de línguas nas quais a distinção entre ‘ser’ e ‘estar’ não existe (inglês e alemão, por exemplo).

2) Princípio Hologramático – cada parte contém praticamente a totalidade da informação do objeto representado - é o que Morin (1997) chama de ‘operador hologramático’, no qual cada célula contém o nosso patrimônio genético. Sua máxima é ‘a parte está no todo, e o todo está na parte’: a sociedade e a cultura estão presentes enquanto ‘todo’ no conhecimento e nos espíritos cognoscitivos. As partes podem ser eventualmente capazes de regenerar o todo e podem ser dotadas de autonomia relativa, podem estabelecer comunicações entre elas e realizar trocas organizadoras.

No livro didático, oportunidades de uma interlocução mais simétrica, na qual o aluno tem o papel de interlocutor real e não mero receptor de informações de um professor, precisam ser oferecidas ao se introduzir e sedimentar a conjugação verbal. Temos um exemplo de Júdice (2001) quanto aos usos do Pretérito Imperfeito e do Pretérito Perfeito do Indicativo por meio de uma atividade em que cada aluno conta uma lenda de seu país, comparativamente a uma lenda brasileira trabalhada em sala. O aluno (indivíduo/parte) como parte de uma cultura terá a oportunidade, assim, de expressar sua cultura (o todo) na língua-alvo em sala de aula, ao mesmo tempo em que subconscientemente, até onde é possível, adquire as estruturas e os usos dos tempos verbais em foco.

3) Princípio de Retroatividade (ou do círculo retroativo) – com este conceito, rompemos com a causalidade linear, já que o efeito retroage informacionalmente sobre a causa, permitindo a autonomia organizacional do sistema (a autonomia térmica de um ser vivo em relação ao mundo exterior, por exemplo, quando a geração de mais calor (efeito) retroage sobre a perda deste calor para o ambiente (causa)). Este princípio destrói a ilusão de linearidade na aquisição do conhecimento (os conhecimentos não se somam linearmente, mas retroagem sobre conhecimentos anteriores repensando-os em novos contextos).

4) Princípio da Recursividade (ou do círculo recursivo) – vai além da retroatividade, pois traz dinâmica autoprodutiva e auto-organizacional (seus produtos são necessários para a própria produção do processo, os estados finais são necessários para a geração dos estados iniciais), desde que alimentada por um fluxo exterior: como Morin & Le Moigne afirmam, “os indivíduos humanos produzem a sociedade em e pelas interações sociais, mas a sociedade, enquanto emergente, produz a humanidade desses indivíduos, trazendo-lhes a linguagem e a cultura” (MORIN & LE MOIGNE, 2000, p. 210).

Esses dois princípios podem ser observados ao se retomar o input (informação) já introduzida pelo LD de várias formas e em vários momentos nesse mesmo LD, para que esse input, no caso, a conjugação verbal tanto em sua forma quanto em seu uso, possa ser repensado por diversas vezes, em contextos diferentes, para que suas diversas nuances possam ser adquiridas.

Um bom exemplo seria a conjugação do verbo ‘dar’, introduzida nas unidades iniciais do LD e retomada diversas vezes, seja vista em novos tempos verbais, seja em novos usos como nas expressões idiomáticas ‘dar para’ (ser possível, ser suficiente, localização, talento), ‘dar zebra’, ‘dar em nada’, ‘dar-se bem’, ‘dar um susto’, entre outras.

5) Princípio Dialógico – associação complexa de instâncias aparentemente opostas, porém conjuntamente necessárias à existência, ao funcionamento e ao desenvolvimento de um fenômeno organizado. Esse princípio ajuda a pensar lógicas que se contrariam e se complementam em um sistema dinâmico sem excluírem ou anularem umas às outras (ordem/desordem/organização; autonomia/dependência; indivíduo/totalidade social; vida/morte segundo a máxima de Heráclito: ‘viver da morte, morrer da vida’, trazendo a idéia de regeneração permanete a partir da morte das próprias células; etc.).

Tal princípio em um LD trabalharia, por exemplo, os diversos códigos ou níveis de linguagem (formal e informal), sem privilegiar um nível em detrimento de outro, já que, por experiência como falante nativo, percebemos a grande diferença entre língua escrita (geralmente mais formal) e língua falada (geralmente um coloquial culto ou a linguagem das ruas). Nada impede que, logo após introduzir e sedimentar o verbo ‘estar’, o seu uso no coloquial seja apontado: nenhum falante, seja das classes mais intelectualizadas, seja das classes mais populares, vê-se desprestigiado quando, em vez de dizer ‘você está bem’, diz ‘cê tá bem’, e isso precisa ser esclarecido para o aluno.

6) Princípio de Dependência das condições iniciais – permitimo-nos acrescentar esse princípio apontado por Gleick (1989), aos levantados por Morin (acima), já que, segundo Gleick, não se trata de um conceito novo, mas que faz parte da cultura: “Sabe-se muito bem, tanto na ciência como na vida, que uma cadeia de acontecimentos pode ter um ponto de crise que aumente pequenas mudanças. Mas o caos significava que tais pontos estavam por toda a parte” (GLEICK, 1989, p. 20). Gleick descreve aqui o efeito borboleta – dependendo das condições meteorológicas na Amazônia, o bater das asas de uma simples borboleta poderia (ou não) provocar tempestades na Califórnia. Tal princípio diz respeito à história de aprendizagem do aluno e às condições de aquisição oferecidas, tanto em sala de aula quanto pelo livro didático. Este precisa oferecer oportunidades de interação e de baixa ansiedade, já que geralmente alunos adultos ou jovens vêm à aula de português depois de um dia de trabalho ou de pressões internas e externas quanto a resultados em seus estudos, em seu trabalho, em sua aquisição da língua.

Variedade e adequação de temas precisam ser oferecidos pelo LD, assim como adequação ao nível de conhecimentos do aluno. Testes constantes no final de cada unidade, por exemplo, não contribuem em nada para que o filtro afetivo do aluno seja baixado, fator teoricamente imprescindível para que mais aquisição ocorra.

Esses são alguns dos princípios que guiam as marchas cognitivas do pensamento complexo. Marcha ou caminhada em direção ao conhecimento da língua, que consiste em fazer um ir e vir incessante entre as certezas e as incertezas, entre o elementar e o global, entre o separável e o inseparável, já que nunca estamos certos se nossas boas intenções vão gerar boas ações.

É por isso que a resposta a essa incerteza se encontra ao mesmo tempo na aposta e na estratégia. Na aposta, pois não temos absolutamente certeza de conseguir os resultados que queremos; na estratégia, que permite corrigir nossa ação, se vemos que ela deriva e vai para outro caminho (MORIN, 1997, p.23).

4. Conclusão

Como o próprio Edgar Morin reconhece, o pensamento complexo ainda não tem uma epistemologia concluída, já que se pretende um processo que envolve diversos tipos de pensamento e que admite teorias aparentemente contrárias entre si, mas que em sua interação geram possibilidades bastante interessantes para o estudo da aquisição de língua estrangeira.

Vimos a descrição dos diversos princípios que norteiam um pensar complexo, oferecendo a quem se dedica à pesquisa em aquisição lingüística uma base bastante sólida para passar de uma disciplina a outra quando a primeira já não dá conta do problema prático a ser resolvido.

Este texto em si traz contribuições de inúmeras áreas, a começar pela Filosofia, origem da adaptação da Ciência do Caos da Física à área da Educação. Vera Menezes fez também sua adaptação e conseqüente contribuição ao caminho do conhecimento sobre como um indivíduo autônomo, histórico-social e político, com senso estético e com um conhecimento de mundo bastante global, adquire a língua-alvo a que se dedica. Nossa contribuição seria então a aplicação do modelo fractal de aquisição, bem como dos princípios do pensamento complexo, à elaboração de materiais que auxiliem mais eficazmente o ensino da conjugação verbal do Português para estrangeiros, assunto esse, segundo nossa experiência, deveras complexo tanto pela forma quanto pelo uso de cada tempo verbal.

Acreditamos que os princípios do pensamento complexo em muito têm a contribuir tanto para a elaboração desses materiais quanto à compreensão da maneira como a aquisição das formas e usos verbais acontece.

Referências Bibliográficas

Gleick, James Caos – a criação de uma nova ciência. Rio de Janeiro: Elsevier, 1989.

Júdice, Norimar Quem conta um conto? A sala de aula de PLE como ponto de encontro entre culturas. In Almeida Filho, J.C.P. de Português para Estrangeiros Interface com o Espanhol. Campinas, SP: Pontes, 2001. Pág. 65 – 76.

menezes, Vera Modelo fractal de aquisição de línguas. Disponível no site , s/d. Acesso em: 2 ago. 2004.

MORIN, Edgard Complexidade e ética da solidariedade. In Castro, G. et al Ensaios de complexidade. Porto Alegre: Sulina, 1997. Pág. 15 – 24.

_______________ & Le Moigne, Jean-Louis A inteligência da complexidade. São Paulo: Peirópolis, 2000.

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[1] A partir do momento em que a aquisição do português ou de qualquer outra língua acontece, a identidade do indivíduo passa a ser também a de indivíduo, além de outras coisas, falante do português ou da outra língua estrangeira e de certa forma pertencente à cultura dessa outra língua que já não é mais outra, porque agora é sua também.

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