A Arte da Palavra - Prefeitura de São Paulo



A Arte da Palavra

Gabriel Perissé

Muitas vezes as pessoas procuram professores de redação escolar, de redação criativa ou de redação empresarial à espera de fórmulas prontas que facilitem a obtenção de uma boa nota, a consecução de um bom romance ou um bom desempenho profissional. Essa atitude denuncia uma grande falta de coragem. Seria preferível que houvesse aqui um pouco de revolta contra os modelos, contra as regras e dogmas que nos dizem o que é escrever corretamente.

Escrever bem é necessário em várias profissões e tarefas:

O pesquisador que precisa escrever uma tese ou um ensaio;

O médico que precisa escrever um artigo sobre sua especialidade;

O advogado que precisa escrever uma petição;

O empresário que precisa escrever um relatório ou um parecer;

Você, quando vai redigir uma carta, um e.mail, quando vai relatar sua experiência amorosa, suas memórias, quando vai explicar por escrito suas concepções políticas, filosóficas, religiosas e, claro, quando vai escrever um romance, contos, poemas, letras musicais, ensaios, etc. – você precisa escrever bem.

Escrever é apaixonar-se pelas palavras. É conhecê-las a fundo, lidar com elas diariamente (com força e carinho, sem violentá-las), é respirá-las, é saboreá-las, ser um artista da palavra.

Escrever é conhecer-nos porque escrever é ampliar a consciência que temos de nós, do mundo, e de nós dentro do mundo. Podemos descobrir que somos superficiais, se o que escrevemos é superficial. Que somos desorganizados, ou emotivos, ou fleumáticos, ou imaginativos, ou intuitivos, ou práticos, ou irônicos, ou misantropos, ou cruéis, ou amorfos, ou coléricos, ou fanáticos, ou céticos, ou cínicos, ou altruístas.

Quem escreve precisa ter muitos livros, sem dúvida. É ótimo, por exemplo, colecionar dicionários da nossa e de outras línguas, pesquisar a etimologia de certas palavras.

O dicionário é pai dos inteligentes.

O dicionário é fonte de inspiração, reflexão e ampliação da nossa consciência dentro desse “país” lingüístico, cujas fronteiras estão nas almas mais do que nos mapas.

A leitura é um modo de ver, e uma forma de viver. Nós, animais insatisfeitos e robôs rebeldes, encontramos nas palavras um microscópio para captar o minúsculo, um telescópio para intuir o longínquo, um periscópio para ver ao redor, um estetoscópio para investigar o profundo.

Reler é um verbo insistente, que não tem medo de repetição. O próprio verbo reler é um duplo ler, pois se eu leio reler de trás para frente ele fica exatamente igual: é reler para cá...reler para lá...

Mas quem relê lê o diferente no igual. Nunca lerá a mesma coisa que, no entanto, está no mesmo texto.

Os releitores são os alfabetizados para as entrelinhas.

E é o escritor que provoca a releitura, na medida em que cura o leitor da superficialidade e da indecisão.

O leitor que relê foi cativado.

O leitor deve sair diferente de uma leitura.

Por mais prosaico que seja o texto que precisamos escrever, por mais objetiva que seja a necessidade de uma carta ou e.mail, temos de levantar essas pontes com nossas palavras, com nossa personalidade, e fazer delas um caminho vivo para a comunicação interpessoal. E essa comunicação precisa ser original.

Carlos Drummond de Andrade ensinava, ironicamente, que o desenvolvimento da originalidade possui algumas etapas, a primeira das quais é imitar os modelos clássicos, e a última...imitar a si mesmo até a morte!

Uma pessoa original é aquela que traz a marca da evolução contínua, da insatisfação consigo mesma, e da busca de maneiras novas de dizer o que todos já sabiam.

O plágio criativo é uma imitação inteligente de versos e metáforas, de idéias e frases, de resultados e conclusões de outros autores, e, devo esclarecer, esse processo criativo é utilizadíssimo pelos grandes escritores, que são ao mesmo tempo grandes leitores e descobriram o óbvio: nada existe de novo sob o sol...frase que o autor do Eclesiastes deve ter copiado de algum outro escritor.

A criatividade está relacionada com o bom humor, com o gosto musical, com a nossa capacidade de interpretar os próprios sonhos, de observarmos os detalhes do que acontece ao nosso redor, de olharmos com empatia para o rosto diferente da pessoa que não fala a nossa língua, que não reza segundo o nosso credo e que não pensa conforme o nosso manual de instruções.

Catão, no século I a.C., dava o conselho preciso e precioso: “Rem tene, verba sequentur” – esteja familiarizado com um assunto, sinta-se seguro com relação a algum tema, e as palavras virão a seguir, naturalmente.

Num sermão ideal dos bem-informados, gostaria de que subíssemos a montanha da reflexão, para desenhar diante de nós as pessoas que queremos ser:

Bem-informados os que lêem todos os dias as páginas dos jornais, sabendo filtrar ideologias, polêmicas vazias e outras magias.

Bem-informados os que assistem à televisão todos os dias, selecionando os canais e os programas realmente informativos e educativos.

Bem-informados os que folheiam as revistas certas, escapando da fofoca, do boato, da ilusão, adquirindo verdadeiro conhecimento e entretenimento.

Bem-informados os que, informatizados, navegam na Internet, procurando os sites do saber e do lazer, numa verdadeira pesquisa e não por mera curiosidade.

Bem-informados os que participam de chats e listas de discussão virtuais, e transformam o superficial em encontro humano.

Bem-informados os que freqüentam o cinema (e as videolocadoras), e se deixam seduzir pelos efeitos especiais, sem esquecer o que é mais especial ainda: a imagem eloqüente.

Bem-informados os que amam o teatro, e interpretam o papel insubstituível daquele que se desoprima na catarse, na voz ao vivo, no corpo em chamas.

Bem-informados os que ouvem rádio, e se deliciam com as estações da boa musica, da entrevista bem feita, inteligente, da notícia objetiva, mas não acrítica.

Bem-informados os que vão aos museus e cortejam as musas que cantam nos quadros, sussurram nas esculturas e passeiam nas instalações.

Bem-informados os que prestigiam a arte onde quer que a encontrem, no salão ou na salinha, na avenida ou na pracinha, e rendem seu culto a cada cintilação da beleza.

Bem-informados os que vêem na arquitetura contemporânea a inspiração dos antigos templos e o mistério das pirâmides.

Bem-informados os que lêem os livros capazes de, em suas asas, levar-nos para dentro de nós mesmos, sem desprezar o mundo.

Bem-informados os que lêem os livros novos, com a condição de que não sejam descartáveis.

Bem-informados os que lêem os livros antigos, com a condição de que sejam renovadores.

Bem-informados os que lêem os livros de poemas, e dão à poesia um lugar de honra no mundo dos cálculos inescrupulosos.

Bem-informados os que lêem os livros que falam de outros livros, e, nessa busca dentro da busca, encontram o prazer de ler elevado à quinta potência.

Bem-informados os que têm sede e fome de verdade, e realmente a procuram nos caminhos e descaminhos da Idade Mídia.

Bem-informados seremos se soubermos, com critério e bom senso, exercitar a arte da palavra e da leitura, distinguindo para apreciar, e divulgando nosso amor à cultura sem perder o bom humor.

Jamais.

Trechos extraídos do livro

A arte da palavra De Gabriel Perissé

Editora Manole 1ª edição

2003 – São Paulo

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A Arte da Palavra, em sua essência, é um livro que acredita no talento oculto de cada um dos seus leitores e que faz com que cada um de nós acredite também na possibilidade de redigir melhor.

Prof.Dr. Jean Lauand

Prof. Titular da Faculdade de Educação da USP

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