NO CALOR DA ESCRITA: OS PROFESSORES INDÍGENAS DE …



Textualidades indígenas

(I)

Uma poética da tradução

Maria Inês de Almeida[1]

Fazer livros com os professores indígenas tem sido uma experiência que está transformando nossa concepção de literatura – prática que desde o século XVIII se insere na disciplina estética e se relaciona com o livro.

A nova compreensão desse fenômeno cultural chamado livro, num país em que este pouco circula, leva ao objeto, ao corpo do texto, à sua vitalidade útil. Fazer livro, projeto em que algumas comunidades indígenas tanto se empenham atualmente, seria então um processo de ocupação do território, projeção, lançamento de uma forma de pensar que não separa a vida da obra. A experiência literária em questão se baseia na singularidade, na diferença, mas o que se vai imprimir é o que há de mais comum a todos, ou seja, a littera, a própria experiência.

Ouvir, transcrever, desenhar, traduzir, editar. A cada livro produzido, tomamos o caminho da literatura brasileira, não como sistema, mas como multiplicidade de vozes. A cada vez, o gesto escritural inaugura o diverso e aponta para as inúmeras traduções que ainda transformarão o texto, reescreverão, para que, no papel ou na web, o texto encontre o mesmo valor que o fez permanecer na tradição oral.

Todos os povos indígenas contatados e em contato com a civilização do “branco” querem escrever e publicar livros. Por que, dentre todas as possibilidades de relação, a experiência da escrita é tão premente? Talvez tenha a ver com o poder da escrita na história, e a grande história que agora quer se contar é a da dominação européia sobre as terras americanas. A fina compreensão política do momento das relações humanas em geral, e, em particular, no Brasil, seria uma explicação para o empenho dos “indígenas” em colocarem no papel suas línguas. Não apenas para as registrarem, mas também para, com elas, entabularem o diálogo de formas que fundará, por exemplo, uma escola brasileira de qualidade, capaz de formar inclusive suas crianças e jovens. Por isso o esforço maior é pela tradução, pelo trânsito, e não podemos simplificar as coisas.

Não é mais questão de se pensar a literatura apenas do ponto de vista da crítica especializada, ou mesmo das disciplinas que compõem os currículos de Letras. Na concretude da palavra literária dos índios, como tem sido colocada nos livros, temos que pensar com eles na terra. E somos levados também aos espíritos que sopram vitalidade nas coisas. Espírito, por exemplo, como o que Walter Benjamin percebeu na tradução, e chamou de “a língua pura”[2]. Ouvir uma história contada pelo mais velho, e torná-la legível para um homem branco, ainda que em língua estranha, leva o escritor indígena à depuração da linguagem, na configuração de uma página, em que se imprimirá o ouvido e o sonhado, a palavra e o desenho. Assim, mesmo sem o sentido da razão, o leitor vê e escuta.

Derrida, em Gramatologia[3], contestando algumas teses de Lévi-Strauss, relativas ao encontro dos Nambikwara com a escrita alfabética[4], quando o etnólogo acredita ser esse um povo mais primitivo, ou mais inocente, porque não conhece a escrita, lembra-nos que “um povo que acede ao desenho genealógico acede efetivamente à escritura no sentido corrente. Esta passagem... não é uma passagem da fala à escritura, dá-se no interior da escritura em geral. A relação genealógica e a classificação social são o ponto de sutura da arquiescritura, condição da língua (dita oral), e da escritura no sentido comum”.[5]

Os povos, quando contam suas histórias, já estão escrevendo. Por isso, sabemos que o ritual antropofágico é o ponto em que claramente podemos ver como a escrita já está lá, no momento em que alguém ouve, para transmitir, a genealogia. É, portanto, justamente a morte do sujeito que fará com que a história passe a existir[6]. Esse puro devir das histórias nos explica, até certo ponto, porque os índios se entregam tão prontamente à tarefa de fazer livros, como se a escrita, ou mais, a impressão, lhes fosse a coisa mais natural do mundo.

Não é apenas a compreensão do poder da escrita, dos documentos dos brancos, o que move as comunidades indígenas a buscarem a escrita de suas línguas. Podemos dizer que os move também a possibilidade de repetirem, no gesto da escrita, na ação de confeccionar livros, o ritual antropofágico. A inserção no plano simbólico se dá de tal forma que finalmente uma prática do mundo dos brancos – a escrita da história – passa a franquear a vivência mais ancestral, aquela que funda a própria sociedade, a marca da etnia, a vida em comum, que só pode ser compreendida por nós como letra.

Daí que podemos recorrer a outro autor, se quisermos refletir sobre como a escrita alfabética, e, mais que isso, a criação literária e a confecção de livros, são adequadas ao modo de ser dos grupos indígenas com os quais trabalhamos: Michel Foucault. Em O pensamento do exterior, Foucault afirma que, na literatura, a linguagem está fora do pessoal. O eu que ali fala não representa o sujeito, mas o ser da linguagem, a pura exterioridade.

No século XX, a literatura ocidental compreendeu essa condição do literário, e, no Brasil, alguns poetas modernistas manifestaram essa compreensão sobre o ato criativo como bricolagem. Nas sociedades chamadas tradicionais, de cultura oral, a presença do texto não causa estranhamento, e agora nós estamos percebendo, porque elas sempre viveram sob essa outra lógica, que não é a cartesiana. Ou seja, o penso, logo existo, não faz sentido. E, no caso das comunidades indígenas com as quais fazemos livros, podemos dizer que a fórmula cartesiana seria substituída por um falo, logo, serei ele. Portanto, as histórias contadas encontram sua forma no papel, naturalmente.

Assim, o ser da linguagem, na experiência literária de escritores índios e não índios, na contemporaneidade brasileira, torna-se elisão do sujeito, da reflexão, da memória, fugindo da representação clássica e se tornando passagem para fora, dispersão, despossessão, fazendo aparecer o espaço, a aldeia, a etnia, através de uma linguagem que se quer neutra, anônima. Quando um chefe, ou um xamã, fala, o que fala nele não é um sujeito, ou um cogito, mas um neutro que ele chamaria de povo, antigamente, antepassados, “tronco véi”, no dizer xacriabá.

Esse caminho de investigação teórica talvez nos leve a uma melhor compreensão do fenômeno literário da produção de livros indígenas. Autoria coletiva, escuta das narrativas orais, produção, circulação. Seria proveitoso pensar esses processos a partir da prática tradutória. Nossa aposta metodológica, enquanto professores de literatura, seria na produção de textos em diversas mídias e formas, por grupos cada vez mais heterogêneos (formados em geral de universitários e indígenas de diversos níveis de escolaridade, portanto, domínios diversos das técnicas e das línguas), o que resultaria em híbridos culturais, hipertextos, textualidades, que chamaríamos orgulhosamente de indígenas.

A grafia indígena substitui finalmente a etnografia, principalmente no momento em que os índios participam da vida social brasileira. Com a escrita alfabética, e a cultura do impresso, os povos indígenas entraram no debate epistemológico, porque o domínio tecnológico, na história da humanidade, produziu sempre grandes passagens:

Je suis depuis longtemps convaincu que l’ethnologie, pour suivivre, devra se transformer um histoire ês idées, philologie, création artistique exercées dans et sur chaque culture par ês propres membres Qui la rédécouvriront et lui insuffleront une vie nouvelle; um peu comme ês savants, penseurs et artistes de la Renaissance vis-à-vis de leur héritage gréco-romain. [7]

Esta é uma dimensão que o próprio Lévi-Strauss negligenciou quando refletiu sobre a escrita por ele levada aos Nambikwara. Ele não pensou, por ser europeu, em termos antropofágicos. Talvez devêssemos ler mais Florestan Fernandes, sobre a educação entre os tupinambás, para entender melhor os modos de pensar ameríndios.

Se as pessoas Nambikwara não revelam seus nomes a estranhos, como nos conta o etnólogo belga, talvez seja porque a genealogia, ou a história, assim como o passar do tempo, ou a narrativa, estejam gravados em algum lugar sagrado.

O que desejamos ler dos índios, e que chamamos pensamento, não estaria há muito gravado em algum espaço que, de certa forma, se apresenta nos rituais? Por já estar escrito, é que seria natural. Lévi-Strauss na época de Os tristes trópicos talvez ainda pensasse que a natureza não é, sobretudo, uma forma de escrita, por isso Derrida o critica.

Nesse sentido, autores como Oswald de Andrade, Haroldo de Campos, Florestan Fernandes, Viveiros de Castro, têm muito a informar ao leitor brasileiro. Eles apontam, afinal, o caminho para uma compreensão de nossa cultura, como diferença, diferente, inclusive, de si mesma.

Os grupos indígenas já escreviam de inúmeras formas suas genealogias. Os maxakalis, por exemplo, podem ler para nós o pau-de-religião porque lá está a história escrita de como eles se tornam pessoas. Hoje muitos povos continuam praticando seus rituais e transitando de um espaço a outro: o corpo, o papel, o computador, para que suas diferentes formas de escrever se realizem.

(II)

NO CALOR DA ESCRITA: OS PROFESSORES INDÍGENAS DE RONDÔNIA

Betty Mindlin

Com a publicação da narrativa Zoró “Ikul–Di Pané”, “O Gavião Real”, comemoramos um feito recente dos povos indígenas de Rondônia: conquistaram a escrita, em suas línguas e em português, criaram uma ortografia, estão escrevendo com fluência e muito entusiasmo. No final de 2004, cento e vinte professores de mais de vinte povos concluíram sua formação no segundo grau, depois de cinco anos de cursos organizados pelo Projeto Açaí, na Secretária de Educação do Governo do Estado. Alguns, entre os quais dois Zoró, vão cursar a universidade. Se pensarmos que o primeiro contato dos Zoró, do qual participou o povo que até então fora seu inimigo, os Suruí, foi feito em 1978, é espantoso. Os Zoró, que somam hoje cerca de quatrocentas pessoas, sofreram a invasão de madeireiras, de posseiros, até mesmo uma cidadezinha chegou a instalar-se em suas terras, sendo retirada nos anos 80. Estão próximos dos Cinta Larga e da exploração de diamantes, têm a experiência das relações mercantis da fronteira do país, e ainda assim, contam com pajés da era da floresta e expressam-se com veemência sobre o próprio mundo.

Essa história foi escrita durante um curso de literatura de uma semana, numa turma da qual participavam também os Suruí, os Gavião-Ikolen, os Cinta Larga e os Arara. O conjunto de narrativas bilíngües deve ser publicado pelo MEC, com ilustrações dos autores – por enquanto, o livro se chama Açaí, a palmeira das palavras. Cada povo trabalhou à sua moda. Alguns ouviam gravações antigas na língua, registravam por escrito e recriavam, outros escreviam individualmente, outros liam narrativas já publicadas em português e faziam novas versões em língua indígena.

Há vários livros de mitos indígenas de Rondônia publicados em português, usados nas escolas. São o resultado de pesquisa conjunta com narradores, com registros contados e gravados na língua indígena, traduzidos para o português[8]. Mas nos últimos anos, a geração mais jovem começou a escrever de próprio punho, vem traduzindo e gravando. Há uma passagem do oral para a escrita que ainda não foi muito analisada, nem há muita consciência das transformações que acarreta, como pensamento, estilo, expressão. Estamos observando uma época especial, seguindo os primeiros passos de escritores originários de um repertório oral.

O núcleo da narrativa do Ikul-di Pané, Gavião Real, é central na mitologia indígena. Ficou famoso com Lévi-Strauss, em O cru e o cozido, o primeiro volume da mitológicas, graças a vários mitos Kayapó, Bororo, Apinajé, Xerente, que ele analisa exaustivamente. Em seu livro, a história, por vezes designada em português pelo termo não muito elegante de “desaninhador de passarinhos”, tem como personagem não o gavião, mas sim filhotes de arara. Mas nela está presente, como entre os Zoró, o motivo do ciúme, da competição por uma mulher casada, e de um homem que é salvo por pássaros, convive com eles e consegue vingar-se ao se transformar em ave. Como costuma acontecer com os mitos, em cada caso outros fios aparecem, nesses de Lévi-Strauss, por exemplo, o roubo do fogo, o incesto, a avó protetora. Quem ler o conjunto, irá atrás das semelhanças e diferenças, tão intrigantes quanto um livro de detetive, e quando ler ou ouvir uma dessas histórias, certamente se lembrará das outras. Os mitos passam a ligar-se todos entre si, com coincidências mínimas ou muito vastas.

Em Rondônia, o mito Suruí do Ikorni conta com gravações originais, de narradores anteriores ao contato (Gakaman e Dikboba), que a geração atual está ouvindo – um deles já faleceu. Uma figura curiosa é a da mãe gavião, que chega das caçadas queixosa, dizendo “Olá, minha gente! Cheguei, o gavião branco! Sou uma mulher cansada de tanto caçar! Amanhã, outra vez, vou me esforçar no mato, agüentar a fome, caçar até cansar bastante!” [9] A narrativa tem um ritmo nada usual, o herói, que é o homem abandonado no alto da árvore entre os gaviões, tem que vencer provas difíceis, é auxiliado por animais, como num conto de fadas. E acaba por matar seu benfeitor-gavião (que planejava deixar de ser protetor e matá-lo).

Há também uma gravação dos Gavião-Ikolen na língua, publicada em português[10]. É muito semelhante à dos Zoró ou dos Suruí. Várias vezes foi escrita pelos professores durante os cursos, nos primeiros anos de sua formação.

Ainda em Rondônia, nos Jabuti, o personagem ofendido por um rival, abandonado no alto da árvore, resolve transformar-se em gavião, esfregando-se em cinzas vegetais. Seu compadre, “wirá”, vem buscá-lo, mas ele não quer mais viver entre os humanos. Metamorfoseado em gavião, devora o homem que lhe roubou a mulher; e em seguida, quando defeca, cada pedacinho de dejeto, os restos do morto, vira um novo gaviãozinho, como se ele tivesse ficado grávido de sua vingança, e parido filhotes-gavião. Foi um pajé já falecido, Alonso Erowé, que gravou o mito, e o tradutor foi um professor indígena, Armando Moero Jabuti, que agora está escrevendo com arte.[11]

Entre as centenas de mitos do “desaninhador”de pássaros (ou seja, o mito do ciúme, da transformação em ave, da cabeça decepada do ofensor, da gravidez masculina, do sentido das fezes), espalhados por povos indígenas de todas as Américas, o mais impressionante é o dos Yamanas ou Yaghans da Terra do Fogo, povo praticamente extinto[12]. Nesse, os rivais são irmãos. O mais velho, o marido traído, vai lentamente se transformando em ave de rapina, o carancho, escarnecido pela mulher infiel e seu amante, que copulam no chão, para que ele veja lá do alto. Mas a vingança não se faz esperar: marido-pássaro destroça um e outro, devora-os no ninho. Deles só restam, engatados, os órgãos sexuais, pinguelos, que o vingador leva nas garras e faz cair dos ares na aldeia, para serem examinados por todo o povo horrorizado.[13]

Com a descoberta da literatura e dos livros que produzem, vão os jovens escritores índios fazendo brotar para todos o manancial imaginário até agora submerso, ou restrito a cada língua. Representantes de povos distintos, reunidos como companheiros na mesma sala, tecem para espectadores maravilhados uma literatura ou mitologia comparada, múltipla, oriunda de zonas ignotas do ser, agora urdida em palavras no papel. No momento, seu principal interesse está nessa prospecção – mais adiante, certamente vão querer experimentar outras vertentes da criação literária.

(III)

HISTÓRIA DO GAVIÃO REAL (IKUL-DI)

Jair Betara Saiat Zoró

Francisco Embusã Zoró

Marcelo Xipabeonzap Zoró

Celso Xajyp Zoró

Edmilson Iterandu Zoró

Fernando Xinepukujkap Zoró[14]

Um homem levou o irmão para pegar o filhote de gavião. Então ele falou para o irmão dele:

- Achei um ninho de gavião real para nós pegarmos.

O irmão respondeu:

- Então vamos pegar - mas ele queria ficar com a mulher do irmão.

Daí eles foram para lá e chegaram onde estava o ninho do gavião.

Assim que eles chegaram no lugar, começaram a fazer uma escada para o irmão mais velho subir, ele começou a subir na escada e chegou no galho da castanheira.

Foi assim que ele subiu, chegou e sentou no galho da castanheira. Quando viu que seu irmão estava cortando a escada feita para subir, perguntou:

- Por que você faz isso comigo? Foi para isso que você me trouxe aqui?

- Sim, é assim que eu queria fazer contigo.

E, de lá, ele veio embora, deixou seu irmão em cima do galho da castanheira.

Ele gritava, gritava tanto e ninguém respondia. De repente o gavião chegou no ninho dele e ele estava lá. Gavião falou para ele:

- O que você está fazendo aqui?

Ele disse para o gavião:

-Meu irmão cortou a escada que dava aqui, por isso eu estou aqui em cima. Queríamos roubar seu filhote - disse ele ao gavião.-Você não poderia me ajudar?

O gavião respondeu:

- Não tenho como fazer nada por ti, portanto vamos dormir por aqui mesmo.

De repente escureceu, o gavião disse para ele dormir junto com seu filhote. O gavião dormiu em cima dele.

Logo amanheceu, e de manhã, o gavião perguntou para ele:

- O que você vai fazer?

Ele respondeu com muita tristeza e mágoa:

- Não tenho nada para fazer para ir embora daqui.

A família dele procurava por ele, gritava e ninguém respondia. De repente ele ouviu uma voz chamando por ele, mas estava em cima do galho da castanheira. Quando ele ouviu, ele respondeu.

Era sua mãe e seu pai que estavam chamando por ele.

Assim que seus pais chegaram no lugar onde ele estava, viram que ele estava em cima da castanheira, e pediram para ele descer.

Quando ele falou isso para eles, o pai e a mãe e os outros parentes, todos começaram a chorar.

Perguntaram o motivo pelo qual ele estava ali, e também porque não podia descer. Depois disso eles foram embora.

O gavião perguntou para ele:

- Por que você não se vinga do seu irmão que roubou sua mulher?

Ele respondeu:

- Não tenho como me vingar, pois estou aqui em cima da castanheira, não posso fazer nada.

- Vou tentar fazer cocô em cima de ti – disse o gavião.

Logo depois o gavião sentou no galho que estava em cima do homem,e fez cocô nele.

Depois que o gavião fez cocô em cima dele, começaram a nascer as penas nele. Quando os pais e a família foram ver de novo onde ele estava, ele já tinha as penas cobrindo o corpo. Assim que seus parentes chegaram, ele desceu onde estavam seus parentes. Ficaram emocionados de novo com ele. Ele disse:

- Não sou mais aquela pessoa que vocês conheciam, já perdi nossos costumes.

Quando ele estava conversando com o pai, ele perguntou sobre o plantio que havia deixado – era sobre a roça de amendoim que ele perguntava.

- Já está maduro o amendoim?

O pai respondeu:

-Sim filho, seu amendoim está maduro.

-Pai, traga para mim então.

-Está bem meu filho, eu vou trazer para ti.

Logo depois ele perguntou sobre seu irmão. Perguntou se o irmão estava morando com sua mulher, se estavam morando juntos, perguntou para o pai.

O pai respondeu que estavam morando juntos sim. E insistiu de novo:

- Você não quer ir embora mesmo para sua casa?

Ao invés de responder sobre esse assunto, ele perguntou sobre o amendoim, se o amendoim todo estava maduro, e orientou:

- Se estiver todo maduro, pai, reúna as famílias que estão lá e façam a colheita.

Os seus pais foram embora de novo. Antes de sair seu pai respondeu:

- Tudo bem, vou juntar as pessoas da aldeia para colher seu amendoim.

Ele perguntou para o gavião:

- Como posso me vingar?

O gavião respondeu:

- Tente tirar aquele cacho de babaçu, e traga para mim.

Ao invés de ir onde o gavião estava, deixou o babaçu cair no chão .

O gavião deu um estalo com a língua, pois ele tinha achado ruim, pelo fato de ele ter deixado o cacho de babaçu cair no chão.

O gavião falou para ele que não era para ter deixado cair o cacho de babaçu no chão, pois isso era uma falha que não podia acontecer com ele. Em seguida o gavião pediu para ele tirar um cacho de andanawã. Ele conseguiu cortar e trazer o cacho de andanawã no lugar onde estava o ninho. O gavião agradeceu a ele por ter trazido o cacho de andanawã, onde ele estava.

O pai veio avisar a ele que tinham começado a fazer a colheita do seu amendoim. Ele disse ao seu pai:

-Avise a todos para não levarem armas como: arco, flechas.

Falou para seu pai levar todas as pessoas de manhã. Orientou seu pai para colocar seu irmão no meio do plantio, o que tinha tomado sua mulher.

Logo amanheceu. Daí foram para a roça fazer colheita. E ele foi vê-los como ikulin (gaviãozinho) ainda e de repente ele virou ikuldi (gavião real), pegou o irmão pelas costas e levou. Ele gritava “Socorro! Socorro! O gavião está me comendo”. Todos ficaram preocupados , sem saber como reagir, e de repente um deles viu um arco do menino, foi e tirou o arco do menino da mãe e entregou na mão do Buxam que era o mais famoso dos caçadores. O caçador Buxam acertou no meio da asa do Ikuldi. Assim que Buxam acertou a asa do Ikuldi, ele deixou cair no chão, e ele ficou baleado, todo ferido, e Ikuldi continuou o treinamento que ele fazia antes de se vingar de seu irmão. Nesse treinamento não tinha falhas, ele trouxe todos os cachos par o ninho.

O gavião ficou emocionado que ele não tinha deixado o cacho cair no chão. No outro dia o pai dele foi ver onde estava o filho, sempre no mesmo lugar. Assim que o pai chegou no lugar, rapidamente ele perguntou pelo irmão que tinha se acidentado, se ele estava sentindo dor. O pai respondeu:

- Sim, ele está sentindo.

Ele, Ikuldi, pediu para o pai juntar-se à turma, para ir no lugar onde faziam sempre as flechas. E todas as pessoas foram fazer as flechas no lugar onde tinham combinado. Ele tinha pedido para ninguém levar seus arcos e flechas.

Quando eles estavam no lugar onde tinham combinado, o baleado pediu para a mulher que tinha roubado de seu irmão:

- Você poderia me dar um banho no quintal.

A mulher respondeu que sim.

Pediu para a mulher dele procurar o gavião que o tinha agarrado. A mulher procurava-o, mas não achou nenhum gavião, ela falou para ele que só tinha anu no quintal. E ele saiu no quintal para um banho. A mulher tinha esquecido um pente dentro de casa. Aproveitou que ele estava tomando banho, foi pegar o pente que tinha esquecido. Quando ela estava pegando, o Ikuldi pegou ele e foi embora com ele.

As mulheres gritavam, gritavam para os maridos, mas quando eles chegaram, o gavião já tinha levado ele para muito alto. Eles flecharam Ikuldi, mas nada de acertar, pois ele tinha voado muito alto, ele rodava, rodava, cada vez mais alto.

Já que estava muito alto, eles ficaram só olhando. Os anus falavam, manzyra, manzyra, que quer dizer: meu fígado, mas os anus estavam ajudando também o Ikuldi, para matar o irmão de quem iam comer o fígado.

Ikuldi sumiu com ele, ninguém sabe onde foi, acho que foi para o céu. Depois de um mês eles fizeram uma festa. Iam começar a festa. Um dos festantes foi para fora fazer xixi, e de repente eles ouviram, zoando, zoando, que vinha de cima.

Ele perguntou para a mulher dele o que estava zoando, e foram avisar os festantes, disseram:

- Oh pessoal, vamos parar um pouco, ouvi um barulho que está vindo do céu. Logo eles aceitaram. Assim que eles escutaram, eles diziam que ia acabar o mundo. Um deles falou que estava caindo a cabeça que Ikuldi tinha comido. Cada vez mais chegava a zoada mais perto, e caiu no meio do pátio da aldeia. Ficaram muito curiosos, e foram ver e falaram:

- O que é isso?

Não podiam chegar perto porque estava escuro, todos tateavam com as mãos. Quando eles estavam procurando, de repente um nambu preto voou no meio de quem estava procurando, o que tinha caído no meio da escuridão. Era a cabeça de seu irmão que Ikuldi tinha comido. Logo em seguida o nambu preto assobiava (syn, syná),era a cabeça que Ikuldi tinha comido.

É assim que caiu a cabeça que Ikuldi tinha comido, transformada em nambu preto.

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[1] Pesquisa a literatura indígena com o grupo Literaterras: escrita, leitura, traduções e leciona na Faculdade de Letras da UFMG.

[2] Cf. o famoso ensaio de Benjamin, traduzido por Haroldo de Campos: “A tarefa do tradutor”.

[3] DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Trad. de Mirian Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 1999.

[4] LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Trad. 1979, p.290

[5] DERRIDA, op. cit. p.154.

[6] CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosak & Naif, 2002.

[7] LÉVI-STRAUSS, Claude. Paris, 23 de junho de 1998. (Correspondência inédita) Estou convencido há tempos de que a etnologia, para sobreviver, deverá se transformar em história das idéias, filologia, criação artística exercidas dentro e em cada cultura por seus próprios membros, que a redescobrirão e nela insuflarão uma vida nova; um pouco como os eruditos, pensadores e artistas da Renascença face a sua herança greco-romana. (Trad. minha)

[8] As pesquisas que fiz em conjunto com os narradores resultaram nos seguintes livros, em co-autoria com eles: Tuparis e Tarupás, IAMÁ/Edusp/Brasiliense, 1994, Vozes da origem, Ática, 1996, Moqueca de maridos, Record, 1997, Terra grávida, Record, 1997 e Couro dos espíritos, Senac, 2001.

[9] Vozes da origem, pp 35-42.

[10] Couro dos espiritos, pp57-60

[11] Terra grávida, pp.141-145

[12] “The revenge of the gerfalcon”, in Johannes Wilbert (editor) Folk literature of the Yamana Indians. Martin Gusinde’s Collection of Yamana Narratives. Los Angeles, University of California Press, 1977, pp 81-85

[13] A etimologia da palavra carancho apresentada no dicionário de Houaiss poderia fazer dele o símbolo de escritor: a palavra viria de kara’i em tupi, arranhar, dilacerar com as unhas – imagem a ser usada para a escrita em seus primórdios, inscrição, fenda na pedra..

[14] Narradores e escritores Zoró, de Rondônia.

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