Julgamento mediático gera duplo impacto



Julgamento mediático gera duplo impacto

ZAMBEZE em apuros, imprensa intimidada

Por Armando Nenane e Raul Senda

 

O julgamento dos jornalistas do semanário ZAMBEZE, designadamente Fernando Veloso, Luís Nhachote e Alvarito de Carvalho, acusados pelo Ministério Público de terem cometido um crime de difamação e contra a segurança do Estado devido a um artigo publicado no dia 1 de Maio questionando a nacionalidade da Primeira Ministra, Luisa Diogo, continua a alimentar calorosos debates no seio da opinião pública.

 

A sentença do caso está marcada para o dia 29 de Agosto.

Alguns sectores da opinião pública consideram mesmo que os três jornalistas nem sequer deviam ter sido pronunciados, uma vez que a acusação foi feita na base de uma lei já ultrapassada pela actual constituição, assim como por uma série de tratados internacionais ratificados pelo Estado moçambicano.

Enquanto se aguarda pela sentença, cada cabeça vai fazendo a sua sentença, construindo-se assim uma opinião pública que para efeitos de registo vale a pena tê-la em conta. Na sequência do referido julgamento, realizado à «porta fechada» na 1ª Secção do Tribunal Distrital Urbano Nº1, presidido pelo juiz João Paulo Peixoto, o SAVANA confrontou algumas sensibilidades, tendo chegado à conclusão de que existe algum consenso em torno do qual se considera «estranho» o facto de se ter elevado ao estatuto de «crime contra a segurança do Estado» um acto que, embora possa eventualmente se consubstanciar como um crime de imprensa –  injúria, calúnia ou difamação –, somente se enquadra no âmbito de um crime particular e não necessariamente de um crime público, tal como acusou o Ministério Público. E, conforme referiram fontes abalizadas, como um crime particular e não público, a acusação devia ter sido feita pela pessoa supostamente lesada ou através do seu assistente particular e não pelo Ministério Público, que representa o Estado.

Para além de se referir que não parece ter havido da parte de quem acusa a manifestação do interesse público em assegurar uma adequada defesa do direito à informação e das liberdades de imprensa e de expressão, aponta-se que no lugar de proteger a honra das pessoas, a imputação por crimes de calúnia e injúria contra figuras da arena política começa a ser utilizada para atacar ou silenciar todo o discurso que se considera crítico da administração pública.

Fontes bem posicionadas no governo referiram que o processo instaurado contra o ZAMBEZE por crime contra a segurança do Estado não agradou o Presidente da  República, Armando Guebuza, assim como os restantes membros do governo, o que dá a entender que poderá se tratar de uma situação da inteira responsabilidade da Primeira Ministra, Luisa Diogo.   

Do mesmo modo, juristas, académicos e jornalistas admiram a «celeridade» com que o processo foi acusado, instruído, pronunciado e julgado – isto é, em três meses – uma velocidade processual que não tem sido comum na justiça moçambicana, incluindo mesmo quando se trata dos chamados crimes de imprensa, em relação aos quais a lei estabelece que os mesmos terão sempre «natureza urgente», ainda que não haja réus presos, assim como que os memos têm «prioridade» sobre todos os demais processos, ainda que urgentes – art. 56, Lei 18/91 de 10 de Agosto.

Para alguns dos nossos entrevistados, o Ministério Público acusou os jornalistas Fernando Veloso, Luis Nhachote e Alvarito de Carvalho com base numa lei desajustada (Lei de 16 de Agosto de 1991), anterior à actual Constituição da República de Moçambique – 2004 , uma lei que, a avaliar pelo costume jurídico, não tem sido usada. Aponta-se ainda que a referida lei devia já estar em processo de revisão com vista à sua actualização à realidade vigente, à semelhança do que tem vindo a acontecer com a Lei de Imprensa (Lei 18/91 de 10 de Agosto). Neste aspecto, alguns juristas referiram que o Estado moçambicano ratificou acordos internacionais, incluindo a Convenção de Windhoek sobre Liberdade de Imprensa. Algumas dessas convenções, como referiram, constituem uma «revogação tácita» à lei de 1991, reconhecendo-se que os titulares dos órgãos do Estado estão expostos a um maior escrutínio da opinião pública em Estados de Direito e Democráticos como Moçambique.

O art. 46 da Lei de Imprensa, no capítulo referente à «Consumação e Agravação» dos crimes de imprensa, refere, de forma especial, que os crimes de injúria, difamação, ameaça, ultraje ou provocação contra o Presidente da República, membros do Governo, deputados da Assembleia da República, magistrados e demais autoridades públicas ou contra o Chefe de Estado ou membros de Governo Estrangeiro, ou contra qualquer representante diplomático acreditado em Moçambique consumam-se com a publicação em que se verifiquem tais ofensas e que consideram-se sempre cometidos por causa do exercício das respectivas funções.

Neste aspecto, alguns dos nossos inquiridos insistiram que o processo de revisão e actualização da Lei de Imprensa visa também ultrapassar essas questões, uma vez que, como referiram, não faz muito sentido que se tratando de uma figura pública, que é suposto conhecer melhor os meios que deve seguir para a reposição da sua imagem, tenha que recorrer imediatamente aos tribunais, não fazendo uso do direito de resposta que a lei confere.

O facto de não ter havido recurso ao direito de resposta, aliado à “velocidade estonteante” com que o processo foi tramitado e a realização do respectivo julgamento à «porta fechada», dá vazão a interpretações várias, havendo os que resumem que o caso que agora coloca em apuros o jornal ZAMBEZE poderá ser apenas o prelúdio de um processo intimidativo que ainda levará a uma situação de total restrição ao exercício do direito à informação, assim como das liberdades de imprensa e de expressão, direitos que, aliás, são constitucionalmente consagrados.

A indemnização que o Ministério Público pede aos réus, avaliada em 10 milhões de meticais, adensa ainda mais o sentimento de que se está perante um acto jurídico cujo alcance vai muito além da pretensão aparente. A este propósito, um reputado jurista – que, invariavelmente, falou na condição de anonimato – explicou que delitos contra a honra de pessoas, cometidos através dos meios de comunicação, não são castigados com penas de prisão justamente para não se prejudicar a liberdade de imprensa, o direito do público à informação e para evitar a auto-censura. “À semelhança das penas de prisão, os 10 milhões que se pedem, em última análise, apenas prejudicam a liberdade de imprensa”, referiu o jurista.

 

“Expediente retaliatório”

Fazendo um juízo das acusações apresentadas contra os jornalistas do ZAMBEZE, o jurista e jornalista José Machicane, correspondente da Agência Lusa em Moçambique, considerou o julgamento como sendo «bizarro». “É bizarro porque as acusações que se fazem aos jornalistas são semelhantes às que se podem fazer a um capitão que comanda um Golpe de Estado ou uma insurreição”, disse Machicane. A fonte considera que “não me parece que a imputação de um crime contra a segurança do Estado possa se provar, pois se trata de um acto que faz parte do exercício da actividade jornalística em que os articulistas reuniram provas para produzirem o referido artigo”.

“É claro que o Ministério Público poderá ter uma melhor prova para sustentar a acusação, mas não pretendia aqui discutir isso. Penso que nos últimos tempos tem havido demonstrações de que o próprio Ministério Público e os tribunais abandonaram essa lei que sugere a existência de crimes contra a segurança do Estado supostamente decorrentes de calúnia e difamação contra altos funcionários do Estado, pois, se formos a reparar, a imprensa já questionou os negócios do próprio Chefe do Estado, assim como as suas dívidas ao Tesouro e nunca houve esse tipo de acção. Mesmo o Presidente da Assembleia da República já foi questionado sobre os fundos parlamentares de que supostamente estaria a fazer um uso indevido em seu benefício”, elucidou o jornalista, acrescentando que o Estado moçambicano ratificou tratados internacionais – como a Convenção de Windhoek sobre Liberdade de Imprensa – que, em última análise, revogam, ainda que de forma tácita, a referida lei. “As figuras públicas estão expostas a um maior escrutínio público que se impõe ao exercício das suas atribuições”, disse a fonte.

Sobre a indemnização que se pede, Machicane considerou que a mesma parece consubstanciar a ideia avançada por algumas pessoas de que todo o processo parece ser um “expediente retaliatório”. “A tese de vingança terá a ver com um aparente ajuste de contas, uma vez que o jornal em causa há muito que anda em atritos com o próprio Procurador Geral da República, assim como com o casal Albano Silva e Luisa Diogo. É verdade que a indemnização que o MP pediu não é vinculativa, pois o juiz, no âmbito do seu poder discricionário, deverá decidir o montante indemnizatório mediante uma série de requisitos, como o referente à condição económica do arguido, aos danos causados, entre outros”, referiu.

Para o académico e deputado da Assembleia da República pela bancada da Renamo União Eleitoral, Ismael Mussá, a lei de que o MP se serviu para imputar responsabilidade criminal ao semanário ZAMBEZE foi aprovada no período de transição do regime monopartidário para o regime multipartidário. De lá a esta parte, segundo Mussá, o  país registou um conjunto de transformações sócio-políticas que culminaram com uma série de mudanças no ordenamento jurídico nacional.

“ A lei invocada pelo MP não só contraria a actual Constituição da República como choca também com o Código Penal e o Código Civil”, precisou Mussá, dando como exemplos disso o art. 407  do Código Penal, conjugado com o artigo 70 e seguintes do Código Civil, que refere que “a violação dos direitos à integridade moral, ao bom nome, imagem e reputação só podem ter como destinatários pessoas físicas e não pessoas colectivas, em virtude daqueles especiais direitos serem direitos de personalidade”.

Mussá ajuntou ainda que a ofensa materializada através do crime de difamação não afecta  o órgão em si – neste caso o cargo de Primeira Ministra – mas sim o titular desse cargo.

No entender daquele académico, sendo a acusação deduzida pelo órgão PM, desacompanhado do titular desse órgão, neste caso a pessoa visada pela prática da infracção, existe, «flagrantemente», a excepção da ilegitimidade.

Sublinha que se o titular do cargo do PM não veio ao processo deduzir a acusação ou solicitar indemnização por alegada prática de actos atentatórios da sua honra, bom nome e imagem, então não estão reunidos os pressupostos para que o processo pudesse ter sido julgado, porque, nas suas palavras, quem teria o direito de apresentar a devida queixa não o fez, não existindo por esse singular facto, então não houve crime.

 

Jus ao questionamento do ZAMBEZE

O questionamento que o jornal ZAMBEZE levantou sobre a nacionalidade da Primeira Ministra e que motivou o surgimento do meditático processo de que temos vindo a falar, foi várias vezes aflorado pelos nossos entrevistados, os quais defenderam que sob o ponto de vista jornalístico não existe qualquer problema no artigo assinado pelos três jornalistas, pois, como referiram, o mesmo baseou-se em provas documentais.

“Sem querer dizer que haja veracidade no referido artigo, penso que as consequências políticas da eventualidade de um membro do governo não ser moçambicano podem ser graves, uma vez que a Constituição, já desde 1990, interdita cidadãos não nacionais de serem membros do governo”, disse José Machicane.

No mesmo diapasão alinha o deputado Ismael Mussá, para quem a Lei da Nacionalidade de 1975 dizia claramente, no seu artigo 12, que “a naturalização será concedida por portaria do Ministério do Interior, a requerimento do interessado e depois de cumpridos os processos em termos que serão regulamentados”.

A questão que Mussá coloca é de que o visado – neste caso, Albano Silva – tendo cumprido com os requisitos acima citados, terá requerido a cidadania moçambicana, mas em que momento isso aconteceu. “Caso tenha feito isso, então em que Boletim da República foi publicado?”, indagou o parlamentar.

Mussá citou igualmente o art. 14 da mesma lei, sobre a perda da nacionalidade, que diz: “Perde a nacionalidade a mulher moçambicana que após a independência contrair casamento com um cidadão estrangeiro”.

Sublinhou que, no artigo publicado pelo ZAMBEZE, consta a cópia de uma certidão de nascimento e no canto superior esquerdo da referida certidão vem averbada a referência do seu casamento, mas não aparece que Albano Silva tenha renunciado à sua nacionalidade. Ou seja, explicou Mussá, Albano Silva averbou apenas a certidão de casamento e não a renúncia da nacionalidade portuguesa.

Para o académico, todas estas questões deviam preocupar os ministérios do Interior e da Justiça de forma a virem a prestar um esclarecimento à sociedade moçambicana.

“Em caso de dúvida, estes órgãos deviam procurar a pessoa que era responsável pela Administração Interna, que é, neste caso, o actual Presidente da República, Armando Guebuza”, reforçou Mussá.

Um outro jurista afirmou que um crime de difamação pressupõe que se viole a reputação e o bom nome da pessoa. Contudo, o mesmo jurista disse não entender como é que se fala de um crime de calúnia e difamação quando se questiona a nacionalidade de alguém. “O ZAMBEZE não questionou a nacionalidade da Primeira Ministra, mas sim da cidadã Luisa Diogo. Também não disse que Luisa Diogo não é moçambicana”, disse o referido jurista.

O nosso interlocutor entende que uma das funções do Ministério Público é representar o Estado junto dos tribunais e defender os interesses que a lei determina. Acrescentou que neste suposto crime não parece que haja algo que atenta contra o Estado, mas sim contra a cidadã Luisa Diogo. “Ela devia mover o dispositivo legal, recorrendo ao direito de resposta que a lei lhe confere a fim de mover uma acção criminal caso sinta que foi prejudicada”, disse aquele jurista.

Referiu ainda que o MP devia estar satisfeito por causa desta denúncia e, em condições normais, devia-se preocupar com o seu esclarecimento em vez de intimidações.

SAVANA – 22.08.2008

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