De: Sandra Amaral - ISCTE



PRIMEIRA ENTREVISTA: Osvaldo (Caboverdeano)

Local e data da entrevista:

Tipo de contacto: Formal

***

Portanto, é aquilo que eu tinha explicado da outra vez que nos encontrámos... e nesta primeira entrevista o que eu quero saber é: quando eu digo a palavra justiça o que é que lhe vem logo à cabeça? Pensa logo em quê?

Justiça....eu não tenho conhecimento sobre a justiça mas... aqui em Portugal o sistema judicial não tem estado a trabalhar no terreno, mais concretamente para os imigrantes africanos, imigrantes em geral. Têm surgido vários problemas, de imigrantes aqui... eles têm tratado mal os imigrantes, os africanos...

Eles quem? Estamos a falar de...

Estou a falar do sistema judicial. Têm surgido uns casos pontuais, nomeadamente quando se estava a iniciar a construção da Ponte 25 de... Vasco da Gama... morreram três crianças e o processo anda a arrastar-se, a arrasta-se, a arrastar-se. Não se apuram as causas. Portanto, é o que eu posso dizer sobre os imigrantes. E ficar na margem... de que não conseguem resolver os problemas dos imigrantes aqui em Portugal. De resto...

Portanto, quando pensa em justiça pensa logo justiça em termos de tribunais e de leis...

Sim. Não sei, não digo racismo mas penso que é um bocado isso para os imigrantes aqui em Portugal. O problema judicial é que o sistema judicial aqui em Portugal deverá ser revisto porque arrastam processos em tribunais, vários anos, vários anos e nunca mais se resolve isso, portanto, o governo devia de pensar nisso e reestruturar o sistema judicial.

Mas o problema vem do... vem de... desde cima, ou seja, vem desde leis? As leis estão desfasadas com a realidade ou as leis estão bem construídas mas são mal aplicadas ou não são aplicadas ou...

Bom, eu sobre leis...

Ou são as duas coisas?

Eu sobre leis não, não percebo muito de leis, não é? Agora eu penso que nos tempos de hoje devia de rever o sistema judicial e fazer algumas correcções, algumas mudanças. Porque como se costuma dizer, “Muda-se os tempos, muda-se os costumes”. Portanto, devia ser revisto o sistema judicial para melhorar na prática. Não é? Agora penso que o sistema judicial está um bocado... estão a fazer um bom trabalho, nomeadamente, no caso da Casa Pia. Eles têm tratado das coisas, penso que eles estão a trabalhar nesse aspecto.

Portanto, há duas justiças?

Não. Eu não acho nada que há duas justiças, penso que só há uma justiça, só que eles estão a trabalhar... devagar e deveriam acelerar ainda mais, é o que eu acho, para poder resolver o problema judicial em Portugal.

E essa percepção que tem de justiça é também... está há quantos anos em Portugal?

Estou há oito anos aqui em Portugal.

Há oito anos... veio sozinho?

Sim. Vim sozinho.

Veio para estudar?

Vim para estudar numa escola profissional, em Leiria. Vim inicialmente com mais três colegas e acabei o curso profissional e depois deram-me bolsa, prolongaram-me a bolsa a estudos superiores, no Instituto Politécnico em Leiria, e depois acabei o bacharel em Leiria nesses três anos e tinha mais dois anos para continuar a Licenciatura. Entretanto, como escolhi o ramo de Telecomunicações que estava dentro do curso de Engenheira electrotécnica... e não sabia quando escolhi esse ramo, tinha que mudar de cidade para continuar a licenciatura. Entretanto optei por Lisboa, preferi vir para Lisboa e fiz aqui o estágio numa empresa de telecomunicações e agora consegui entrar no ISEG para acabar a licenciatura.

E pensa em voltar? É de Cabo-Verde, não é?

Sim, sou de Cabo Verde. Primeiramente, gostaria de ganhar experiências profissionais aqui e depois voltar para Cabo-Verde, como qualquer cabo-verdiano, qualquer imigrante pretende voltar para a terra para ajudar na construção, no desenvolvimento da sua própria terra.

Então e voltando um bocadinho atrás aos imigrantes... eles sentem essa discriminação? Quando pedem ajuda ou quando têm de recorrer de alguma maneira aos tribunais?

Sim....

Sentem que são discriminados?

Sentem, sentem, sentem muito que são discriminados. Porque eles não têm apoio, não têm apoio e eu falo porque conheci um rapaz, que conhece um amigo meu que estava a trabalhar numa empresa, depois passado quase um ano foi despedido porque não tinha documentos e só passado um ano é que eles... que foi despedido e meteu o caso no tribunal e demorou para aí três, quatro anos a ser resolvido e deram razão a ele e indeminizaram-o mas a indemnização não foi....

Não chegou para compensar esse tempo...

Não, não compensou. Deu-lhe muito mais trabalho. E não tem apoio e teve de arranjar advogados e não tem dinheiro para pagar advogado, tem de ser...

Então, mas não acha que esse aspecto da burocracia... não equivale para todos? Seja negro ou branco? Portanto....

Sim. Eu acho que...

Mas, os brancos têm uma rede de apoio que a comunidade imigrante não tem e por isso é que se fará essa distinção? Ou...

Portanto, o problema de burocracia é global, é global. Mas na comunidade imigrante é muito mais acentuada porque não tem apoio, eles não sabem, eles não sabem onde ir e portanto é.... acentua-se muito na parte dos imigrantes. Acho que é muito mais acentuada na parte dos imigrantes do que propriamente nos portugueses.

Estamos a falar então de injustiça? Judicial?

De uma certa forma, sim, de injustiça judicial, de uma certa forma sim. Isso é um problema muito difícil, não se consegue resolver isto. Isto é preciso um debate, explicar às pessoas a situação, sobretudo, para poder resolver isto, é muito complicado. É muito.

E acha que se consegue passar dessa... quando uma pessoa precisa de ajuda ou apresenta uma queixa ou vai ao tribunal e demora e.... acha que, da sua experiência que tem e das pessoas que vêm cá e... eles conseguem extrapolar, ou seja, conseguem sentir que aquela injustiça e depois globalizam e dizem que a sociedade portuguesa é injusta em termos gerais ou fica sempre só circunscrito à parte judicial?

Eu não conheço...no caso, vamos lá ver uma coisa, de pessoas vem para aqui...

Nunca houve?

Nunca. Eles vêm para aqui navegar na Internet e não conheço praticamente pessoas que estão na justiça... é pelo o que eu leio no jornal... das coisas que os imigrantes são um bocado, são mais prejudicados nesse aspecto, portanto, poderiam fazer muito mais para aliciar também os imigrantes que estão aqui a trabalhar, para ver se arranjam... os problemas deles e mandar dinheiro para a terra, portanto, dar mais apoio a eles aqui.

E que aspecto... que tipo de apoio é que poderia ser?

Portanto, o apoio eu... que eu, primeiramente, é a legalização desses imigrantes para poder entrar no sistema daqui e trabalhar, adaptação, as dificuldades de adaptação, poder trabalhar e... segurança social e apoios para beneficiar desses descontos mais tarde, não é? Para poder trabalhar com mais tranquilidade e dar formação profissional aos imigrantes para poderem produzir mais ... e trabalhar com consciência e depois, eles ganham muito mais, não é?

Mas... falou aí de um grupo de imigrantes que vem e que é uma mão de obra, uma mão de... trabalho não especializado, de mão de obra não especializada, e temos, por exemplo, o seu caso que veio para cá, que foi para a faculdade. É um privilegiado?

Não, acho que não. Apesar de ter sido difícil no começo quando andei à procura de trabalho, não sou privilegiado.

Mas, quer dizer, saiu com... é outro tipo de imigração que fez?

Sim , de uma certa forma é. Vim para aqui para estudar.... depois, a adaptação foi boa no meu caso...

Não sofreu, não sentiu ...

Não. Não senti, não senti em Leiria, não... agora aqui em Lisboa não é isso que tem acontecido porque, na faculdade onde estou agora... as pessoas são muito mais individualistas e lá em Leiria as coisas não eram assim, sobretudo no início quando cheguei, as pessoas, todas as pessoas davam-nos apoio e até tratavam de maneira diferente, como uns príncipes entre aspas... e ajudaram-nos na adaptação, tudo, e mostraram-nos lugares, conviviam connosco...

Os seus colegas?

Os meus colegas angolanos, estou a falar dos colegas portugueses, porque vivia com mais colegas caboverdeanos, lá. Portanto, achei que a adaptação foi espectacular, até porque perdi a bolsa para o ensino superior. E gostei de Leiria, foi uma cidade que gostei muito e... é calmo para estudar, portanto, acho que é uma cidade espectacular. Aqui em Lisboa não tem acontecido isso porque as pessoas também estão a estudar, parte no regime nocturno, não é? E.... as pessoas, a maior parte, são trabalhadores e não têm tempo, portanto, estou a notar um certo individualismo nas pessoas e quando se vai fazer uma frequência, um exame cada um por si e Deus por todos, digamos assim. Portanto... é muito mais difícil do que em Leiria.

Mas pronto, vindo com esse intuito, alguma vez sentiu que necessitava dos apoios que há bocado referiu? De uma maior integração?

Sim, é...esse apoio é importante porque... só falo no meu caso, quando chegámos ao início, a mudança do clima, a... a distância de não estar no nosso país, com os nossos familiares... esse apoio é importante para poder integrar na sociedade, não é? E sobretudo porque quando estive na faculdade... quando entrei para a faculdade pela primeira vez... sentia que precisava de apoio por parte dos outros colegas que já estavam lá antes para me informar do que é que se passava, como é que funcionava o sistema, essas coisas todas. É preciso o apoio para poder integrar, para ter uma boa integração na sociedade.

E nessa altura contactou com colegas seus cabo-verdianos ou de outro sítio, de outros países que estivessem cá há mais tempo?

Em Leiria?

Sim ou em Lisboa...

Sim, eu quando cheguei...

E que houvesse ali uma troca de visões que eles dissessem, “Isto não presta ou presta ou...

Sim, eu quando cheguei na altura estava limitado a esses colegas, a esses três colegas cabo-verdeanos que viviam comigo em Leiria. Depois, passado uns tempos, vim para Lisboa passar as férias... e contactava com vários estudantes que já cá estavam há mais tempo. O que eu notava que eles não... já estavam, digamos, entre aspas, fartos de estar aqui. Também estavam ligados aos estudos, e eles estavam fartos do sistema, que iam voltar para a terra, que isto aqui nada funcionava...

O quê? O sistema educativo ou o sistema social em geral?

Penso que nos casos dos estudantes que estudavam em várias cidades, era as duas coisas. A opção era juntá-los e havia problemas de racismo com eles, outro era o sistema educativo, não é? Também se calhar...

O sistema educativo também pode ser racista...

Sim, sim. Sim, isso é um outro aspecto importante. Uma coisa engraçada que surgiu em Leria, quando entrei para a faculdade tinha três estudantes, depois entretanto chegaram mais, não é? Estavam a estudar na cidade de Tomar e foram para Leiria estudar, e a bolsa era camarária, da Câmara de Ourém e como mudou de cidade a Câmara não pôde suportar os estudos, não pôde suportar, portanto, eles tiveram de estudar por conta própria. Entretanto, foram para lá e pediram bolsa ao Sistema de Acção Social de Leiria para poderem continuar os estudos. E primeiramente, pediram uma série de papéis para entregar e esses estudantes nunca, nunca tinham... não sabiam porque não viviam aqui. E depois o sistema em Cabo Verde é totalmente diferente daqui. Tem IVA, IRS e essas coisas. E... e não tinham, não tinham como tirar esses papéis e pediram esses papéis e a Segurança Social de Leiria disse que não tendo esses papéis não podem beneficiar da bolsa... da bolsa que lhes permitia estudar. E eles ficaram sem bolsa, não conseguiram a bolsa e começaram a estudar mas com a nossa ajuda – nós ajudamo-nos uns aos outros- e não foram atribuídas qualquer tipo de ajuda para poderem continuar os estudos. Um teve que abandonar, foi para Cabo Verde, outro lá se conseguiu, trabalhando ali e acolá para se sustentar. Eu acho que eles deviam de ver isso porque até há estudantes portugueses que têm muito mais condições, que vão todos os dias para a faculdade de carro, os pais ...

E têm bolsa.

E têm bolsa. A um dos colegas meus foi atribuída a bolsa mas cinco contos por mês. Não é nada! E os que tinham condições, sessenta contos... está a ver a discrepância? Portanto, e isso devia ser revisto. Outros funcionários julgavam que eles são estudantes mas de outro país, portanto, não tinham qualquer tipo de direito... e eu acho que... que isso é mentira, porque um estudante numa escola tem os mesmos direitos que os outros... colegas e isso é motivo de racismo, digamos assim, do sistema educativo aqui em Portugal.

Portanto, quando eu lhe perguntei... quando eu dizia a palavra justiça o que é que se lembrava, disse logo que era a justiça judicial. Depois dentro da justiça judicial falámos de injustiça?

Sim.

E depois passámos para o sistema educativo e falámos da injustiça no sistema educativo, não é? Portanto, a justiça poderá ser assim um conceito, uma noção do que é justo ou não é? Ou só consegue ver a justiça em termos de Aparelho, de Estado, dos tribunais?

Sim, eu penso que a justiça também tem o seu lado positivo, não é? O lado bom estamos a ver isso agora no caso... no caso da Casa Pia em que eles estão a tentar desvendar os segredos todos para procurar as causas e condenar as pessoas responsáveis por isso, portanto, eu acho que apoio isso.

Mas acha que nesse aspecto a justiça então só funciona... porque é assim, está a haver uma grande pressão sobre... por exemplo, este caso da Casa Pia...

Sim.

Nos jornais, nas televisões e as pessoas comentam ... acha que a justiça em último caso só funciona se houver assim uma pressão na sociedade sobre um determinado caso?

Para esses casos maiores, penso que sim. Nesses casos mais importantes, neste caso, o caso da Casa Pia, como havia pessoas importantes ligadas a esse caso, ligadas a esse caso, portanto, se não fosse a pressão da comunicação social, nunca, nunca viria...

Estou a perguntar isso porque as pessoas, por exemplo, logo ao início estavam muito chocadas porque o Carlos Cruz estava em prisão preventiva já há muito tempo mas também não tinha culpa formada... mas é assim, pessoas em prisão preventiva há muitas neste país, não é? E ninguém nestas alturas questiona. Portanto, acha que há duas medidas para a indignação das pessoas ou para fazer a justiça? Ou seja, neste caso, é só porque a pessoa é conhecida e há uma pressão, se a pessoa é desconhecida as pessoas já não ligam e...

Pois, isso neste caso é. Nesse caso é. Porque o Carlos Cruz é conhecido há muita pressão, e o Zé da Esquina não lhe é dado qualquer tipo de importância. Por tanto, eu acho que isso verifica-se muito nesse caso. Portanto, eu acho que devia, seja lá quem for, devia ser tratado da mesma maneira, não é? Isso poderia ser melhorado, revisto no sistema judicial aqui em Portugal.

E esse melhorar vai de quê: mais pessoas a trabalhar? Mais dinheiro? Uma revisão de tudo?

Eu penso que uma revisão de tudo.

De tudo.

De tudo, sim. Não é só meter lá mais pessoas a trabalhar. É rever, rever... desse sector, portanto... debates, fazer debates para poder melhorar isso. Meter mais pessoas a funcionar, não funciona, a trabalhar não funciona.

Isso vai aumentar mais a burocracia?

Vai, vai aumentar muito mais a burocracia, sim. (pausa muito longa)

Portanto, palavra justiça é logo tribunais?

Numa primeira fase remete para tribunais, sim.

E os tribunais nem sempre são justos?

E os tribunais... nem sempre são justos. Eu acho que nem sempre são justos. Há alguns que ficam prejudicados e outros que ficam beneficiados, mas não sei...

E normalmente quem é que fica prejudicado e quem é que fica beneficiado?

Penso que os que ficam prejudicados os que devem precisar do sistema quando é preciso o advogado, de vez em quando, o advogado que é melhor...

Portanto, uma pessoa tem menos dinheiro ou tem menos possibilidades...

Desequilibra-se tudo isto. Portanto, uma pessoa que contratar um bom advogado leva vantagem do que aquele que contratar um advogado assim... mais ou menos. (pausa)

E... para além dos tribunais, que outro... que outro, estamos a falar de instituições, vê mais alguma instituição que tenha o poder, ou que faça justiça ou que tenha a obrigação de fazer justiça?

Outra instituição... (pausa longa)

Lembra-se é sempre dos tribunais?’

Sim, por acaso é dos tribunais. Outra instituição... (pausa) a polícia judiciária está ligada...

Ao sistema judicial.

Ao sistema judicial. A Procuradoria Geral da República, também. Penso que só tem competência os tribunais para fazer justiça.

E tem esperança que a situação melhore?

Eu acho que sim. Acho que gora com esta pressão toda, eu penso que a situação vai melhorar o sistema judicial. Penso que sim. Daqui a pouco tempo , creio que o sistema judicial está melhor do que tínhamos à dez ou quinze anos atrás. Está a melhorar consideravelmente, acho eu.

Se tivesse algum problema recorreria aos tribunais?

Sim... por acaso nunca tive nenhum problema até agora, nem como testemunha, nem com réu. Nunca fui.

Estou a perguntar porque às vezes as pessoas dizem, “Demora-se muito tempo, gasta-se muito dinheiro, não adianta de nada, deixa lá estar...”

Certo, certo. A burocracia que se tem verificado muito nos tribunais, uma pessoa apresenta um caso e passado uns três anos depois é que se vai resolver o caso, portanto ... chegas aos três anos acho que pode arrepender-se e não querer mais ...

Pois, como o caso daquele seu conhecido de que falou..

Sim, sim.

Se calhar ele gastou muito mais dinheiro do que aquele que ganhou na indemnização.

Gastou. Gastou muito mais, de certeza. Para além de incómodos pessoais... perde, por exemplo, está a trabalhar e tem de faltar para ir a uma reunião ou para ir ao tribunal... isso é incómodo para qualquer tipo de pessoa, não é? Eles deviam de resolver o assunto logo, não digo... um ano se calhar...

Então, ele se calhar para a próxima já pensa duas vezes?

Muitas pessoas já fazem isso. Antes de apresentar uma queixa, pensa duas, três vezes antes de lá ir. Conheço pessoas que nem chegam a ir apresentar queixa. Há que rever isso, esse aspecto.

E acha que esse receio... ou essa... de não apresentar queixa, acha que varia da população imigrante para portugueses?

Sim, sim.

Eu quero é a sua opinião, não é? Eu sei que não....

Sim. Os portugueses para já conhecem o sistema melhor que um imigrante e têm muito mais apoios e muitas mais facilidades de apresentar uma queixa. Os imigrantes, sobretudo aqueles que não têm nenhum tipo de formação... ou às vezes nos casos mais, mais... portanto, resolvem... pessoalmente, não é? Com vários tipos de crimes, matar pessoas e coisas assim do género.

A chamada justiça pelas próprias mãos?

Pelas próprias mãos. Do que estar a ir no tribunal que às vezes o resultado nem sempre é a favor deles, não é? Portanto, há que resolver e fazer justiça pelas suas próprias mãos.

Isso é outro tipo de justiça?

Isso é outro tipo de justiça mais grave... é injustiça.

Considera que seja justiça?

Depende do ponto de vista...

Claro , quem está a fazer acha que está a fazer justiça. Do seu.

Quem está a fazer isso acha que fez uma boa justiça, mas para mim, na minha opinião pessoal, acho que não, que só vem prejudicar mais a pessoa em vez de estar a esperar um ou dois ou três, sei lá...

Até porque por aí não... quer dizer, não houve provas, não... aquela pessoa é que disse “Ah, foste tu...”

Sim, tenta fazer justiça com as próprias mãos e depois vem... daí surge a consequência para ele.

Mas isso não é específico da comunidade imigrante?

Isso não é específico da comunidade imigrante mas verifica-se mais...

Mas verifica-se mais. Mas será por uma questão cultural ou...

É uma questão cultural...

Ou é o desespero?

Mas os africanos em si por natureza são violentos. Isso é uma das coisas que eu achava que deviam pensar para tentar minimizar esse problema. São violentos por natureza.

Mas como? Temperamentais? Não...

Sim, eles...

Não conseguem manter a calma?

Não conseguem manter a calma, sobretudo, os que não têm nenhum tipo de formação e são muito mais violentos do que... os que estão a estudar. Portanto, isso é mesmo grave e eles deviam pensar muito nisso.

E será que é porque também têm, por exemplo, um sentido de família diferente? Por exemplo, estou a pensar se há alguma coisa que acontece a uma filha ou... está a perceber o que eu estou a dizer?

Sim...

Por exemplo, estava a dizer, são temperamentais e violentos, mas isso é para todo o tipo de crime? Mesmo que seja para todo... por exemplo, há um senhor que lhe fazem qualquer coisa e ele vai ou... quando é para ele ou... normalmente essa violência salta mais ao de cima quando é, quando são coisas que acontecem a pessoas de quem essa pessoa gosta? Por exemplo, eu estou a lembrar-me do ciganos, não é? São muito unidos, têm aquele sentido de comunidade e se fazem qualquer coisa a um primo vem logo a família atrás... não é por aí?

Não, na comunidade africana não é assim.

Portanto, pode ser acontece-lhe uma coisa a si e vai...

Acontece e eles tentam resolver o problema logo. Se acontece qualquer coisa comigo, eu é que vou...

Ah, exacto.

Falar com essa pessoa para saber o que é que se passa, mas se acontecer alguma coisa com um amigo meu...

Aí não.

Pode chegar ali mas não é sempre, não é? É diferente da comunidade cigana.

Mas isso é assim... já é em África, quer dizer, esse tipo de justiça pelas próprias mãos já as pessoas faziam ou poderiam fazer no seu país de origem? Não é uma coisa que se veja...

Exacto, eles transportam aquilo para outro país, não é? Estou a falar do caso de Cabo Verde, porque em geral, eles falta-lhes habilitação, o sistema judicial não funciona bem, as pessoas cometem o crime e depois não são julgadas e eles levam isso para outro país, pensando que noutro país também poderiam fazer a mesma coisa. Por isso é que...

Portanto, como os tribunais não funcionam ou funcionam...

Muito pouco.

Muito mal as pessoas sentem que têm de ser elas a fazer a Justiça...

A Justiça... exactamente.

Como não podem confiar na justiça do Tribunal...

Tribunal que demora muito tempo, nem sempre traz vantagem para uma pessoa, portanto, pensam que poderiam fazer justiça com as próprias mãos e fazem e cometem o crime sem saber da justiça, quer dizer, eles sabem o que estão a fazer...

Mas depois, mesmo, por exemplo, em Cabo Verde quando fazem isso depois são presos ou...

São presos, são presos. Alguns não são descobertos, não é? Não sabem quem é cometeu o crime...

A comunidade protege?

A comunidade às vezes protege mas também a comunidade também às vezes não sabe quem é...também falta de recursos, para falar um bocado do continente africano. Falta de recursos, poucas pessoas a trabalhar e não têm os meios adequados para trabalhar, tratar dos casos e que leva ao aumento da criminalidade, sobretudo em Cabo-Verde agora têm–se verificado muito porque... têm aumentado o número de repatriados nos Estados Unidos... eles estão habituados a cometer o crime e depois vão para lá, aquilo... o país é pequeno... não há recursos decentes. Portanto, provêm dessa...

Pois. Cá passa-se o mesmo com os açoreanos. Existem muitos açoreanos agora a voltar para os Açores...

Exactamente.

Porque cometeram crimes. O que é uma violência para a pessoa, não é? Porque a pessoa vai para aquele país e às vezes já nem sabe falar a língua...

Sim, o sistema é diferente e depois não se adaptam... à cultura e portanto...

E isso faz surgir a criminalidade?

E de que maneira. Portanto, essas pessoas repatriadas deveriam de ter apoio da sociedade e do Governo para poder minimizar a criminalidade nesses locais.

E o aparelho judicial em Cabo Verde...

Agora, agora tem estado a melhorar, tem estado a melhorar. Eles estão a meter mais pessoas, estão a formar as pessoas na... Judiciária, de modo a diminuir a criminalidade. A criminalidade em Cabo-Verde também é proveniente da droga e tem aumentado muito em Cabo-Verde, até surgiu uma reportagem engraçada - “Droga vira banana”. Porque em Cabo Verde fabrica-se muitas bananas, as pessoas vendem bananas nas ruas.....

E isso é tão comum...

É tão comum, exactamente. Portanto, eles têm lutado muito para acabar com isso.

E... vê-se no julgamentos e no... em Cabo-Verde e no sistema judicial, existe também algum tipo de discriminação?

Concretamente em Cabo-Verde não sei nem dizer , até porque já estou...

Está fora à muito tempo?

Fora há oito anos. Não tenho acompanhado muito Cabo-Verde, mas eu penso que há em Cabo-Verde, não é racismo, não é? Mas diferenças de riqueza entre as pessoas e portanto, isso é natural que haja em Cabo-Verde também.

Pois. E também é lento o sistema?

O sistema judicial é muito lento. Eles podiam ver isso porque... porque demoram anos e anos, anos a resolver. Em Portugal, a justiça demora mas não falha, portanto, eles deviam de ver essa situação para não demorar assim tanto tempo que é incómodo para as pessoas... de se esperar tanto tempo a resolver uma situação.

Pensa mais alguma coisa?

Não. (Pausa longa)

É sempre o que lhe vem....

A justiça.

A justiça.

Pois!

A justiça judicial.

A justiça judicial. Rever o Sistema Judicial, as leis... para minimizar as causas...

Não há nenhum sistema perfeito? Quer cá quer em Cabo-Verde?

Não há, nem haverá.

Nem nunca haverá?

O sistema perfeito não... até porque somos humanos, não é? Não há sistema perfeito. Infelizmente não... (Pausa longa)

Pois. Está bom.

***

SEGUNDA ENTREVISTA

Data e local de realização:

***

Nesta segunda entrevista, o que eu propunha que nós falássemos ou... que o Osvaldo falasse era sobre, portanto... o Osvaldo quando falou da questão da justiça, do que lhe fazia lembrar, falou da justiça dos tribunais. Alguma vez pensou de maneira diferente? Ou seja... nós ao trabalharmos, ao estarmos a fazer esta entrevista especificamente a pessoas que imigraram, a transição de um país para o outro, pode ser que nessa transição a ideia tenha mudado por passar a estar em contacto com uma realidade...

Diferente.

Diferente, nova... porque pode não ter sido muito bem recebido e então essa recepção boa ou má tê-lo feito pensado no assunto. Ou podemos mesmo falar da altura... é de Cabo-Verde? Em que ainda estava em Cabo Verde, se houve assim alguns momentos da sua vida que o fizeram pensar neste assunto? Ou... é difícil uma pessoa identificar quando é que começou a pensar em justiça ou quando começou a identificar a justiça com os tribunais, não é? Mas tem assim alguma memória... de ter pensado nisso? Ou não?

Quer dizer, eu penso em justiça, não é? Eu nunca fiz nada de errado, acho eu, até ao momento...

Nunca teve experiências com a justiça? Nem amigos seus, familiares?

Não. Amigos... amigos.. amigos, há com certeza... problemas com a justiça. Já disse o caso dum colega meu que trabalhava na fábrica... que tinha problemas... o problema não era propriamente com a justiça mas com a fábrica. Mas como a justiça demorava... essas coisas do género. Mas eu, nunca, nunca fui na esquadra nem como réu nem como testemunha. Não penso, não penso propriamente na justiça mas leio coisas no jornal, sei o que está mal, o que é que fizeram de grave, principalmente a cultura judicial devia de ser mudada. Está aqui no jornal a dizer que desde os anos 90 que nada se mudou na justiça, que eles deviam mudar, e que agora ... o Bastonário da Ordem dos Advogados está a pensar... falou com a Provedora da Casa Pia sobre um assunto relacionado com a Casa Pia, e com o Senhor ministro e com... com outro membro da Ordem do Bastonário, e que essa notícia saiu estampada no jornal. O teor da conversa e deveriam fazer coisas para mudar a justiça e coisas do género que eu leio, portanto e que me levam a concluir que a justiça... eles deviam de ver e o sistema judicial e fazer as mudanças necessárias.

Portanto, sempre que... desde que se lembra de pensar em justiça está relacionado com as coisas que lê no... nos jornais?

Nos jornais e notícias que eu oiço na...

Na televisão e isso?

Na televisão.

E são notícias que estão sempre relacionadas com a parte institucional? Com a parte dos tribunais? Ou da polícia?

Sim a maior parte, a maior parte dos casos são.

Portanto, não... mas é assim, quando... quer dizer, já lia jornais quando estava ainda em Cabo-Verde? É que também...

Muito pouco.

Ah! Começou a ler mais por causa da... e saíram notícias destas também em Cabo-Verde?

Sai, sai com certeza que sai notícias. Os problemas que acontecem aqui são os mesmos que acontecem em Cabo-Verde e saem notícias nos jornais a chamar a atenção das pessoas, a dar indicações... e é mesmo assim. Eu já estou um bocado desligado da realidade cabo-verdeana mas penso que é, que é idêntico daqui, portanto, são as mesmas coisas que saem aqui... não com tanta gravidade com supostamente que sai lá mas...

Cá é mais grave as coisas que acontecem?

Não. Penso que aqui é menos grave.

Ah! lá é mais grave...

Pois. A realidade é outra. A civilização é diferente, e portanto, eu acho que aqui é menos grave do que lá.

Então tendo em conta que a gravidade dos escândalos, digamos, ou das coisas que saem nos jornais... a mudança de país afectou a sua visão de justiça? Ou...

Afectou a minha visão de justiça e não só. Mudou-me completamente. Comecei a interessar-me mais em ver noticiários, a ler notícias... porque estou a viver sozinho e quero saber o que é que se passa no mundo... portanto, isso... mesmo para aprender português. No português sou péssimo. Tenho estado a afazer um esforço imenso para conseguir aprender português, baralho muito com o plural e... feminino e masculino, isso é uma confusão para mim. Já fiz os esforços possíveis para melhorar o português mas...

Está a falar bem, não se preocupe.

Mas eu sei que tenho esse problema. Tenho de fazer relatórios na faculdade e os professores chamavam-me à atenção. Agora de facto os colegas chamam a atenção nisso mas faço esforço para isso para melhorar isso mas é uma confusão para mim. Portanto, de modo que eu...

E em que é que mudou? Estava a dizer que tinha mudado, quando eu perguntei se tinha mudado e você disse que sim. Mudou em quê? Portanto, a visão que tinha da... pela via indirecta, porque já disse que nunca teve um relacionamento directo com as esquadras ou... nem coma polícia, nem tribunais nem nada disso.

Felizmente.

Infelizmente?

Felizmente.

Ah, felizmente. Há gostos para tudo!

Não, não...

Pensei que pudesse ser um sonho seu!

Felizmente, felizmente!

E depois veio para cá e o que lê, também de novo indirectamente, são coisas distintas. Em que é que afectou? Disse-me que tinha afectado mas afectou em quê?

Comecei, eu penso, a ver melhor do que em Cabo-Verde, o sistema judicial, a ficar a par das coisas... ver quem é que tinha razão, quem é que não tinha razão, tirar as minhas conclusões... e passar a ter uma visão mais clara da justiça. No fundo, é isso que toda a gente quer...

Portanto, começou a pensar mais?

Sim.

Ou... a ter uma opinião ...

Problemas da vida e ...

Sobre os problemas da vida.

Isso que toda a gente pensa e....

Mas os problemas da vida não passam pelos tribunais? Ás vezes...

Não passa, não passa pelos tribunais mas com isso ajuda-nos a pensar duas vezes, o que vamos fazer e com quem falar, o que devemos falar e o que não devemos falar, essas coisas do género. Com um amigo podemos falar... a pessoa não ir à justiça, essa coisa...

Começou-se a proteger mais? Foi isso?

Exacto. Exactamente. Proteger-me mais porque hoje em dia... as coisas estavam complicadas e não nos podemos meter em confusões.

Então e as coisas estão complicadas para todos? Ou essa necessidade de se querer proteger e terem atenção o que dizia ou com quem falava vinha do facto de ser imigrante?

Sim, mas isso não tem a ver com o imigrante. Penso que a crise está a prejudicar não tem a ver com pessoa imigrante. Para todas as pessoas. Falar e cultivar muito mais, aprender e para se poder safar hoje em dia. Isso tanto faz. Preocupo-me com ler notícias nos jornais... para saber o que é que se passa no dia a dia e....

Pois. E é filho único?

Não, não.

Tem mais irmãos?

Tenho mais cinco irmãos.

Mais cinco irmãos. Estão todos em Cabo-Verde?

Todos estão em Cabo-Verde. Saí de Cabo Verde com dezanove anos, vim para aqui estudar, para a Escola Profissional de Leiria... mas já estava a habituado um pouco em Cabo-Verde, porque Cabo Verde é constituído por ilhas, por dez ilhas. Eu não estudava na minha ilha, estudava noutra ilha, de modo a que já estava habituado...

A estar fora de casa.

A separar... a distância. Quando vim para aqui, a adaptação foi mais ou menos. Porque eu já estava habituado, mas tinha problemas de frio... era diferente, a realidade era diferente, a alimentação era totalmente diferente e eu não estava habituado. O português foi uma grande confusão, não há dúvida. Se bem que a língua oficial de Cabo-Verde é o português, mas a maior parte das pessoas...

Vocês falam o crioulo.

Falam crioulo mesmo nas aulas. Os professores tentam a todo custo que os alunos falem português, mas nós...

Em que condições é que acha que vinha para cá? Foi uma decisão sua?

Sim. Para começar, queria sair de Cabo Verde e... disse que queria sair de Cabo Verde mas estava a estudar no 11º ano. Depois surgiu essa proposta... surgiu a notícia de bolsas de estudo a alunos, para Portugal, um protocolo entre a Câmara Municipal de Leiria e a Câmara Municipal da Ilha do Fogo... fui-me candidatar como outras pessoas. Não eram muitas pessoas, quarenta alunos penso eu. Depois, tive a felicidade de estar entre os três e vim aqui parar. Depois, quando tive em Leiria, o esforço foi enorme. Estudava todos os dias... estudava todos os dias, dormia pouco. Os outros colegas, infelizmente, um ficou pelo caminho, o outro...

Voltou para lá?

Não, está em Leiria. Ele gosta mais da área da música. Era DJ em Cabo Verde e ficou nessa área a trabalhar lá em Leiria. O outro conseguiu safar-se também e está a tirar Relações Humanas, Comunicação no Trabalho, mas ainda não acabou o bacharel. Está na quinta matrícula e ainda faltam-lhe cadeiras... cadeiras ainda para fazer.

E... qual é a percepção dos ... os seus pais ainda estão vivos?

Estão, estão.

É para não cometer aquelas gaffes, de perguntar e dizer, “Ah, não, os meus pais já morreram”.

Os meus pais estão vivos, os meus avós estão e a minha bisavó também.

A sério? Bem.

Ainda não conheço a minha bisavó porque ela vive nos Estados Unidos.

A bisavó nos Estados Unidos... é curioso, mas imigrou para lá quando?

A maior parte, não sei se sabe, a maior parte dos caboverdeanos estão todos nos Estados Unidos.

Não, não sabia.

E em Cabo Verde.

Ai é?

Muito mais. Costuma-se dizer que Boston é a primeira cidade de Cabo verde, a Amadora é a segunda e Praia terceira cidade.

Eu não sabia... mas já foi para lá há muitos anos?

Já, já. Não me lembro...

Pois. Que piada! Qual foi, qual é a imagem, se sabe porque às vezes não... mas... que os seus pais têm de Portugal? Eles ainda apanharam o período colonialista, não?

Por acaso não sei. Nunca, nunca falei sobre...

Nunca falaram sobre isso?

Nunca nesse aspecto. Mas quer dizer, eles têm uma imagem positiva de Portugal. Pelo menos agora, como eu estou aqui. Nunca aconteceu nada comigo.

Porque quando o Osvaldo nasceu já tudo tinha terminado, não é?

Sim, eu penso...

Mas os seus pais ainda não?

Eu (incompreensão) em 76...

Pois, exacto, já tinha terminado.

Ou em 75, acho eu...

Sim. Os seus pais ainda apanharam?

Apanharam.

E os seus... .é o mais novo?

Eu? Sou o mais velho.

Ah, é o mais velho! Ia dizer que, pronto, se fosse o mais novo, os seus irmãos também tinham apanhado.

Não, não.

E então e... mas esse período nunca foi comentado lá em casa? Como histórias? Memórias de algum familiar?

Não, não foi comentado, não foi comentado. Nunca tivemos necessidade de falar nisso e nós éramos... também são pessoas que... não frequentaram muito... as escolas...

Os seus pais?

A minha mãe, a minha mãe se foi só foi até à 4ª classe, o meu pai... penso 2º ano do ciclo de antigamente e... nunca, sinceramente, nunca falaram nisso. Estavam mais ligados aos Estados Unidos naquela altura e... não sei, nunca falámos nisso.

Nunca... não há memórias desse período?

Eu por acaso, por acaso está-me a fazer essa pergunta, já sinto a necessidade de perguntar (risos) a eles como é que foi naqueles tempos mas nunca, sinceramente, nunca.

Nunca se falou?

Nunca.

Portanto, trabalharam, levavam a sua vida familiar normal...

Sim. E nunca...

E nunca... nunca se falou sobre isso. O que é que podemos falar mais? Já disse que começou a tomar muito mais atenção às injustiças quando chegou cá. Começou a se interessar mais, começou a ler, a ver o noticiário... e que a sua noção de justiça, ou de injustiça, tinha-se alterado e falou da questão da percepção e isso. Acha que esta sociedade portuguesa é mais individualista que a Cabo Verdeana? E... também foi afectado por esse individualismo agora que se protege mais?

Isso é verdade. Nas sociedades industrializadas são muito mais individualistas do que no caso das sociedades africanas. Mas é muito mais acentuado aqui em Portugal. Em Cabo Verde, Cabo Verde não só, África, as pessoas são livres, são alegres e preocupam-se muito mais com bens espirituais do que materiais e aqui, as pessoas preocupam-se muito mais com bens materiais e... costuma-se dizer “Cada um por si e Deus por todos”, não é? De maneira que, para uma pessoa para ultrapassar os problemas da vida é preciso muito esforço. Lá em Cabo Verde ou em qualquer país de África, as pessoas ajudam-se uns aos outros, portanto, aqui viver custa, custa muito viver aqui. Até para arranjar emprego e coisas do género...

Então mas acha que é mais injusto... é difícil fazer a comparação entre os dois países mas pode-se fazer, acha que é mais injusto a sociedade portuguesa ou é outro tipo de injustiça?

Não, eu não diria que é mais injusto. Não é mais injusto... penso que é outro tipo de injustiça que fazem aqui, agora injusto não sei, não sei se é mais injusto.

Estou a falar em relação àquilo, àquilo que vê, às coisas que... às coisas que ouve. Quer dizer, quando estou a perguntar não estou a falar em termos de leis porque, pronto, nós não temos conhecimento, não é? Estou a falar daquilo, daquilo que sente. Quer casos que vê na televisão ou lê no jornal, casos reais, ou do contacto que as pessoas têm consigo ou com pessoas que o Osvaldo conhece...

A injustiça que eu poderia falar é... um caso de um africano ou um imigrante for procurar emprego e... falavam português, também foi procurar emprego juntamente com esse... imigrante, provavelmente o português trabalha e o imigrante não, independentemente da capacidade do imigrante que poderá ter mais capacidades mas, por injustiça, não sei, ou outra coisa... é recusado o que dá, agora isso de injustiça é o que eu poderei falar.

E se fosse um branco a chegar a Cabo Verde?

É completamente diferente.

É diferente? É bem recebido?

É, é muito bem recebido. Eu, aliás, falo de mim. Fui passar férias agora a Cabo Verde depois de oito anos, fui quinze dias...

Teve oito anos sem ir a Cabo Verde?

Oito anos e fui agora no Natal passar quinze dias e... vinha para aqui, vim juntamente com um português que está a investir em Cabo Verde e o senhor disse-me assim “Gosto muito de Cabo Verde! Gosto muito de Cabo Verde! As pessoas... isso não têm nada a ver com tribalismo que tem noutros países de África, nomeadamente, na Guiné. Tribalismo... Cabo Verde não tem nada a ver. Cultura europeia, cultura americana e... é totalmente diferente e as pessoas ajudam-se, estão sempre dispostas e isso reflecte muito os caboverdeanos são totalmente diferentes dos outros países de África e... não há o individualismo, as pessoas ajudam-se uns aos outros e... as pessoas que vêm de fora sentem muito mais isso. Vão habituados daqui o individualismo, quando chegam lá é totalmente livre. Isso é bom. De modo que esse senhor penso que passa muito mais tempo em Cabo Verde do que aqui, cá em Portugal. Mesmo o cantor, penso que é Paulo de Carvalho, ele diz e tem uma casa em Cabo Verde, passa muito mais tempo lá do que aqui. Está muito mais à vontade lá do que aqui.

Portanto, nessa situação de irem duas pessoas para o local de trabalho está a sentir, ou sente, discriminação... lá se isso acontecesse já não aconteceria?

Já não aconteceria. Aliás, penso que nunca aconteceu e muito menos agora. Lá, por exemplo, há muitas pessoas estrangeiras a desempenhar cargos importantes e aqui não se vê isso. Não se vê isso. E as pessoas são discriminadas aqui. Não têm aquela confiança de meter as pessoas não sei porquê... claro que não diz nada... têm essa cultura ainda, infelizmente.

E os seus amigos? Não estou a falar daqueles que vieram consigo. Estou a falar daqueles que foi ganhando. A sua namorada, ou a pessoa que mora consigo também é cabo-verdeana?

Também é cabo-verdeana.

Essas pessoas com quem o Osvaldo tem mais contacto, sabe ou... qual é a percepção que eles têm de Portugal?

A maior parte das pessoas...

Não sei se conversam sobre isso?

Sim, a maior parte...

Quais são as suas conversas?

A maior parte das pessoas que estão aqui... pretendem acabar o curso e voltar para Cabo-Verde. Trabalhar em Cabo-Verde. Identificam-se mais com Cabo Verde e querem voltar. Algumas querem ficar aqui e ganhar experiência, no meu caso, e mais tarde, possivelmente, voltar para Cabo Verde. É a opinião que a maior parte das pessoas tem de Portugal é que isto está... tem estado a desenvolver-se, devido à integração na União Europeia. O sistema judicial aqui tem feito grande esforço, nomeadamente tem-se verificado corrupção aqui em Portugal, tem-se notado isso e estão a fazer esforços para que o país desenvolva e vá para a frente. Penso que eles têm uma opinião positiva, sobretudo agora. As coisas não estão como estavam antigamente. Penso que estão a melhorar consideravelmente.

E acha que nessa experiência da transição de... a experiência de imigrante, acha que o que faz com que uma pessoa tenha uma imagem positiva ou negativa ou que faz com que uma pessoa considere os portugueses ou a sociedade portuguesa como uma sociedade justa ou injusta, estou a falar deles enquanto imigrantes, com o facto de como essas pessoas são recebidas no início? Ou é assim uma coisa de percurso?

Não, eu...

Porque o Osvaldo quando chegou foi para Leiria ou para Tomar, já não me lembro.

Para Leiria.

Leiria, foi muito bem recebido, era tratado como um príncipe... se calhar se tivesse chegado em Leiria e se as coisas tivessem corrido mal ao início, acha que tinha...

Sim, mas... isso... as pessoas aqui em Portugal têm uma cultura também imposta pelos imigrantes aqui. Porque muitas vezes os imigrantes fazem asneiras, e isso eu condeno e dou razão às pessoas que... as pessoas cometem crimes e as pessoas ficam naturalmente com medo, não é? Agora isso são acidentes de percurso, não tem a ver com o facto de chegar logo ao início e ter barreiras e perante a pessoa disse, “Acabou”. Não é nada disso, são acidentes de percurso. E mesmo os imigrantes que fazem muitas asneiras aqui e cometem crimes e já é altura de eles mesmo pensarem nisso e...

E por que é que cometem crimes? Tem alguma ideia sobre isso?

Por natureza, já disse que...

São violentos.

Os africanos são mesmo violentos... e... gostam de festa e juntam tudo... bebem um copito e pronto a violência surge daí. E outra coisa é a integração, também...

Está a falar de pessoas que nasceram cá?

Que nasceram cá e que não estão totalmente integradas. E os imigrantes, a maior parte deles não tem qualquer tipo de formação e... não se comportam como deveriam de se comportar e levam tudo na violência e isso é que origina a...

É uma maneira de chamar à atenção porque não se sentem integrados?

A maior parte das vezes é para chamar à atenção. Portanto, uma coisa que eu acho que está errado, na minha opinião, é que um filho de um imigrante que nasce aqui em Portugal, imigrante que está aqui com documentos, residenciado aqui, o filho só lhe é possível obter aos...

Aos dezoito anos, não é?

Não, aos dezoito anos de idade.

O quê? A nacionalidade?

A nacionalidade. Ou o documento... que é português ou que nasceu cá em Portugal, aos dezoito anos de idade, isso não... eu acho que na minha opinião acho que está mal...

Isso dá-lhes um sentimento de que não pertencem a lado nenhum, não é?

De revolta.

Não são, sei lá, por exemplo, da Guiné ou de Cabo Verde, nem são de Portugal.

Pois. Não se sentem identificados e tem de chamar a atenção, não é? O Estado devia de dar mais atenção...

Como é que o Estado poderia dar mais atenção?

Falando com as pessoas, com os representantes das comunidades, saber a opinião deles e tentar resolver essa situação.

Esses representantes das comunidade é o quê? É um...

As associações locais.

Ah! As associações...

Associação de Cabo Verde, Associações Angolanas... vários, vários tipos de associações e mesmo pessoas ligadas às Embaixadas, poderem falar e... os representantes do Alto Comissariado também e... várias pessoas ligadas às comunidades e...falarem, tentarem chegar a um consenso para que diminuir a criminalidade e a criminalidade também não é só dessas pessoas, não é?

Claro!

Ás vezes também é a provocação de outros lados...

Porquê? Porque se formam os gangs... está-se a referir a isso?

Exactamente. As pessoas, as pessoas... eu li há pouco tempo um livro que falava sobre racismo e que os jovens, um jovem português e no livro referia sempre os negros “Vão para a terra deles, vão para a terra deles”, e que contavam coisas que fez, encontrava na rua com pessoas negras e estavam organizados em grupos e batiam nessas pessoas, essas coisas do género.

E isso é devido a quê?

É simplesmente por não gostarem dos negros.

Sim. A minha pergunta é, e esse sentimento vem de onde? Ou seja, onde eu quero chegar é, por exemplo, esses grupos de criminosos mas neste caso brancos, skinheads ou isso, também não têm, em lados opostos, problemas de integração?

Eles provavelmente sim. É assim, repare uma coisa, as pessoas, estou a falar dos skinhaeds que pensam assim, a maior parte deles não tem qualquer tipo de formação e reagem dessa maneira. As pessoas que já têm formação, que sabem minimamente, reagem de outra maneira. Portanto, eles também não estão bem integrados.

Também querem chamar a atenção?

Exacto e querem chamar a atenção. Não é por caso que surgem conflitos desse tipo.

Mas já esteve envolvido...

Não, por acaso...

Ou já viu algum conflito?

Não, ver, ver nunca. Mas já na televisão...

É uma coisa que o assusta? Quer dizer, em Cabo Verde não havia skinheads. Acho eu.

Cabo Verde não havia e penso que não há skinheads mas também quando eu fui estudar na outra ilha que é a capital de Cabo Verde já se falava dos grupos que havia aí...

Aqui?

Lá em Cabo Verde, que atacavam as pessoas e sempre a roubar...

Mas esses grupos eram pessoas brancas?

Não.

Ou negras?

Não, são pessoas mesmo...

Pronto, exacto. Mas isso é aquela criminalidade.... do roubo ou do assalto, não é?

Exactamente. Sentir medo...

Mas eu estou a falar de um tipo de injustiça que ao fim ao cabo é isso, não é? E que eu nunca experimentei, que é uma pessoa ir para outro país e por causa do meu tom de pele e há um grupo ou existem vários grupos, não é, que hipoteticamente se um dia eu saio à noite ou se vou a um bar ou a uma discoteca podem-me encontrar e... já houve casos de morte.

Sim. Eu não penso.

Esse tipo de injustiça racial. Foi sempre uma coisa que o preocupou, porque em Cabo Verde não havia?

Preocupa-me, preocupa-me. Porque quando estava em Cabo Verde não sabia... já ouvia coisas de racismo, mas não sabia concretamente o que era aquilo. E quando cheguei aqui, comecei a perceber muito mais o que era o racismo, não por ter acontecido comigo mas por ler as notícias, ler o jornais e comecei a sentir realmente o que é o racismo mas de resto nunca aconteceu comigo e não ando com medo na rua. Se acontecer alguma coisa comigo..

Mora cá em Lisboa?

Sim, agora actualmente, não estou a morar aqui propriamente em Lisboa. É Póvoa de StªIria.

Ali para a zona de Loures?

Não, não, Alverca.

Ah, sim, sim.

Isso é Póvoa de Sto Andrião, penso eu. Pois. Portanto, ando na rua, normalmente, não ando com medo e evito, evito estar na rua de madrugada ou coisa do género.

Portanto...

Eu realmente sou africano e gosto de ir a discotecas africanas e mesmo cá não tenho ido muito precisamente para evitar confusões. E quando vou, vou ao Beleza, que não sei se sabe...

Sei. Costumo ir.

Por acaso, a sua cara, parece-me uma cara.... e vou ao Beleza, estão lá muitas pessoas de mais idade e não são, por natureza, violentas e evito muitas vezes de ir a discotecas como o Mussulo e coisas do género, exactamente para evitar essas confusões.

E essa mudança de comportamento deixa-o revoltado? Do género, “Eu tenho liberdade, eu estou cá, tenho os meus direitos, eu tenho liberdade de ir para onde quiser, a que horas for”... mas pronto, deixa-se de fazer determinadas coisas por isso, quer dizer, não serão muitas, mas isso deixa-o revoltado?

Não!

Porque em Cabo Verde não...

Não, não me deixa revoltado. É por opção própria. Optei por ir mais ao Beleza do que ir às outras discotecas vou. Mas em qualquer altura se me apetecer ir a outras discotecas, vou, não sinto medo e vou a qualquer tipo... como aconteceu à pouco tempo no “Luanda”, que incendiaram aquilo. Fui lá... na semana seguinte, ou duas semanas depois, fui lá.

Isso é que é coragem.

E eu estava para ir no dia mesmo.

Ai que horror.

Ainda estudava em Leiria e vim de fim-de-semana a Lisboa e um colega meu disse para a gente ir, para irmos lá à discoteca “Luanda” que ele costumava ir lá muitas vezes. só que eu estava cansado nesse dia, e não fui. Fiquei em casa a dormir. E ele saiu sozinho, mas como foi sozinho, não foi lá também. Foi a sorte.

Pois. A sorte. Pois aquilo foi horroroso de facto.

Pois foi. E, portanto, eu evito ir a esse tipo de discotecas. São juventudes e...

Há confusão?

Há muito mais confusão do que no Beleza.

Antes de vir para Portugal, portanto, naquela altura em que foi seleccionado e foi um dos três, deve ter começado a imaginar coisas, a criar sonhos e expectativas... agora olhando para trás, o resultado é positivo é mais ou menos ou é negativo?

Eu penso que o resultado é extremamente positivo, não é? Para já por ter saído de Cabo Verde e ter contacto com outras realidades diferentes de Cabo Verde e fazer novos amigos e... para além de continuar os estudos. Penso que era diferente se eu ficasse em Cabo Verde. Um motivo pelo qual eu gostava mesmo muito de sair de cabo Verde é pelo facto de os jovens caboverdeanos não terem trabalho, a maior parte, noventa, não direi noventa por cento, mas setenta e cinco por cento dos jovens em Cabo Verde não trabalham.

O desemprego é...

O desemprego é na camada da juventude é...

É devido a quê?

Não há trabalho.

Não há mesmo.

Não há trabalho.

Mas isso deve-se ao Governo ou...

Não é o mau governo é a falta de recursos, não há...

Não há indústrias, não há fábricas e...

Não há como...

Só há turismo?

É isso. Eles apostam mais no turismo e de modo que essas pessoas, não há trabalho, não fazem nada e andam sempre a beber bebidas alcoólicas, no caso especial de Cabo Verde, o Grogue.... e eu não gostava mesmo e disse que tinha que sair de Cabo Verde. Se bem que eu estudava em Cabo Verde, poderia dar aulas, tirar um curso à distância mas.... aquele ambiente, eu queria mudar, conhecer outras paragens, outras aragens, como se costuma dizer e de modo a acontecer, vim para aqui. O balanço é extremamente positivo.

Mas mesmo assim gostava de voltar?

Sim, gostava de voltar, sinto-me mais identificado com Cabo Verde e sinto-me mais à vontade lá e gostava de voltar.

Mas num futuro próximo ou...

Não num futuro próximo, daqui a uns tempos.

Só quando for reformado?

Não, não.

Estou a pensar isso, porque, pronto, mais cedo ou mais tarde vêm os filhos... como é que é? Depois é complicado...

Está a falar depois de ... quando...

Não, agora está a estudar, não é? Estou a dizer, pretende voltar neste período de juventude, pronto ou... é que depois quando tiver trinta quarenta anos, normalmente já se filhos... e depois como é que é? Leva os filhos consigo ou... depois é ao contrário, eles sentem-se muito mais identificados com Portugal do que com Cabo Verde.

Sim, eu gostava de voltar para Cabo Verde. Primeiro gostava de ganhar experiência profissional aqui e depois voltar... também um colega meu disse lá, que é Engenheiro lá, disse-me que se pudesse ele também viria para aqui ganhar experiências profissionais e só depois voltar, portanto... estou a pensar seriamente ficar aqui uns tempos e depois voltar para lá. Se entretanto arranjar a minha vida aqui e as coisas correrem bem... continuo aqui. Não há problema nenhum. Com estes tempos de crise, não sei...

Está bem Osvaldo, muito obrigado!

De nada.

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