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O Pôrto contra Junot

(Continuação)

N

O dia 14 o Corregedor da Comarca entrega à Camará o seguinte oficio recebido de Lisboa:

— «Em consequência das ordens do Illustrissimo e Excelentissimo Senhor General em Chefe do Exercito de Purtugal participo a V. m.ce que ficando S. Excelencia sumamente satisfeito da conducta dos Habitantes na ocazião da sahida da Tropa Espanhola que se achava nessa Cidade, em a firmeza das intençoins dos mesmos habitantes, manifestados pela tranquilidade que entre si conservarão e conservam, me ordenou que significasse a v. m.ce o referido para o fazer prezente à Illustrissima Camara dessa Cidade e que igualmente lhe louvam o zelo e actividade, com que procedeu esperando sua Excelencia que se porá em pratica todos aqueles meios, e providencias, que possam concurrer para que nem. na mais piquena parte se altere o sucego Publico, em execução das ordens que se tem expedido por este Governo, e que devem ser constantemente observadas; ficando na Inte ligencia de que quais quer propoziçoins, proferidas pelos Espanhoes não podem ter outro objecto e fim que não seja perturbar a tranquilidade que o Governo com tão efficazes providencias mantem em beneficio geral, e pro-judicar a felicidade dos Povos. E participo igualmente,

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para também o fazer prezente na Camara, que emidiata-mente parte para essa Cidade hum General com Tropa suficiente para manter a sigurança publica dessa mesma Cidade e suas dependências, prevenindo-ce para este efeito de antemão as acomodaçoins necessarias para a receber na forma do costume e fazendo-se linpar os quarteis publicos, de maneira que se posa seryir delles sem o perigo de qualquer contagio que as Tropas Espanholas posão ter deixado. De sGo.de a v. m.ce, Secretario de Estado dos Negocios do Interior em onze de Junho de mil oitocentos e oito. Francisco Antonio Herman— Senhor Joze Teixeira de Souza (1).

Estas notícias vieram dar novo alento aos partidários dos franceses, mas lançaram os seus adversários na maior inquietação. O momento era para êstes decisivo—angustioso! Como haviam de resistir aos soldados de Junot, eles que não tinham exércitos, nem armas, nem dinheiro?!

No mesmo dia começa a constar que Trás-

-os-Montes se havia revoltado. De facto toda aquela provincia, sacudida pela voz do senil Manoel Jorge Gomes de Sepulveda, aclamava a Casa de Bragança (2). E, contudo, o Pôrto, que soltou o primeiro brado pelo Príncipe Regente, não ousa declarar-se de novo contra Napoleão!

(1) Liv. 98 das Ver. cit. fls. 40.

(2) V. Editaes e Ordens do General Sepulveda os

primeiros que promoveram a Revolução, a pag. 212 e

seg. do opúsculo Demonstração analítica dos inau-

ditos procedimentos para a usurpação do trono da

Casa de Bragança—Lisboa, 1810. .

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Mas a efervescência dos ânimos vai cres-

cendo. Os editais de Junot continuam a ser

rasgados misteriosamente. Na, sombra traba-

lha-se peta Libertação da Pátria, sem que a

jacobinagem deixe de procurar, por todas as

formas, contrariar o movimento. A corrente

maçónica, subordinada aos interesses france-

ses, era intensa no Pôrto. Já, em 1795, Pina

Manique o havia notado (1). E os seus adeptos,

numa falsa compreensão de patriotismo, prefe-

riam a dominação de Junot ao restabelecimento

do governo legítimo. Fazendo o jôgo dêstes

estavam os que, por medo ou comodismo, não

apoiavam a sublevação.

Chega o dia do Corpo de Deus—16 de Junho. O Governador das Armas tinha determinado que na procissão figurassem as águias francesas em logar da bandeira nacional. A indignação que tal ordem produzira era geral. Os soldados negaram-se a obedecer: não saíram com as bandeiras portuguesas, todavia também não levaram as águias imperiais (2). Nesse mesmo dia o desembargador José Feliciano da Rocha Ga-meiro fez distribuir uma Proclamação patriótica incitando as massas à revolta.

(1) Schaeffer—Hist. de Port.— continuada por Agos-

tinho de Campos—Vol. VI, pag. 9, nota.

(2) Soriano, ob. e t. cit., pág. 254. Parece que havia um plano de sublevação em todo o pais para aquele dia (Schaeffer ob. cit. vol. V. pág. 375 e Thiebault, ob. cit. pág. 124); em Lisboa, em Olhão (Obs. Port. cit., pág. 330

e seg.) chegou a esboçar-se o movimento.

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Não cessavam de circular os mais tétricos boatos: —As tropas que Junot prometera enviar, para manter a segurança pública, não tinham Outra missão do que castigar a cidade pela atronta da prisão de Quesnel e pelos desacatos à autoridade imperial; o sangue correria a jorros; as praças iam ficar cheias de guilhotinas; os jacobinos já tinham preparadas as listas das pessoas que seriam decapitadas, etc., etc. E havia quem se gabasse de que breve «jogaria a bola com as cabeças dos portugueses». No Pôrto vivia-se, por todas estas razões, numa tensão nervosa extraordinária.

Mas os acontecimentos precipitam-se. No dia 18, das 6 para as 7 horas da tarde, nos Armazens do Assento (1), ao pé do rio Douro, arma-se um motim popular. Dava-se como certo que, nessa noite, viria ficar aos Carvalhos (a pouco mais de duas léguas do Pôrto), uma coluna francesa, e que, no citado Assento, havia ordem para aprontar 3.000 rações (2). Ao ver os preparativos dos víveres para os inimigos um artilheiro português indignado comenta: só para os portugueses não ha pão... A isto um francês, dos poucos que haviam

(1) Os Armazéns do Assento eram equivalentes às modernas Padarias Militares. O fornecimento de pão ao Exército era dado em arrematação. Os arrematantes chamavam-se assentistas. A casa do Assento estava situada no Cais dos Guindais, defronte da Serra do Pilar. Sousa Reis, ob. cit. vol. II, fl. 451 a 455. v.

(2) Fr. Joaquim Soares, op. cit. pág. 29.

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escapado à caça dos espanhóis, replica com demasiada insolência (1); o artilheiro atira-

-lhe à cara uma coronhada, e o motim popular estala e alastra. Quantos franceses se encontram pela cidade são metidos a ferros.

Pela mesma hora, na Praça dos Quarteis a Santo Ovídio, a artilharia começa a movimentar-se. O povo que aí se encontra olha para tudo, assustado, sem compreender. Mas, em dado momento, sai do Quartel o capitão de artilharia João Manoel de Mariz, «escoltado de alguns soldados, a toque de caixa», e revela as intenções das tropas soltando o seguinte brado: «Viva o Principe de Portugal!» «Esta voz» foi logo «repetida com tanta valentia e prazer que parecia que todo aquele pôvo estava de acordo a pronunciá-la». Como por efeito de uma corrente eléctrica tudo desata aos vivas. Á muda ansiedade sucede uma ruidosa alegria, pois Mariz fora ao encontro das aspirações patrióticas das massas. O Pôrto definiu, nessa altura, a sua situação: declarava-se abertamente pela Pátria contra o Invasôr.

Aos franceses! Aos franceses!

Da Praça de S.to Ovídio o povo e os soldados descem para o centro da cidade. E a multidão, engrossando sempre, corre aos Arsenais e Armazens, onde lhe distribuem o escasso armamento e munições que lá existem. «Em pouco mais de hora e meia se armou tudo (excepto

(1) Soriano, ob. e vol. cit. pág. 255.

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personagem, que não apareceu nenhum)» (l). Os sinos tocam desabaladamente a rebate. Os tambores rufam pelas ruas. Vivas alegres ao Príncipe de Portugal e à Santa Religião ecoam pela cidade. Raimundo José Pinheiro surge do seu esconderijo e anda, como um doido, berrando:

—Viva o Príncipe Regente! Vamos sobre o inimigo, que aí vem os Espanhois ajudar-nos! (2). Mentia; mas neste caso os fins justificam os meios. As tropas, os frades e o povo, presos do mesms entusiasmo, misturam-se num revolver confuso.

Aos franceses! Aos franceses!

Correm como quem vai «ao mais alegre festim». Tudo berra: Vamos acabar com estes diabos!

Á passagem das hostes exaltadas os jacobinos escondem-se aterrados. Logo nesta tarde muitos desaparecem da cidade. Luís de Oliveira da Costa, mal visto do povo, é das primeiras pessoas que fogem; mas, poucos dias depois, é preso em S.to Tirso e remetido às Cadeias da Relação.

«È a hora em que a névoa transforma a ci-dade: o burgo augmenta e torna-se revolto, com negrumes cahoticos, borrões compactos de escuridão. No céu destaca-se a torre esguia, a casaria acastelada e no fundo, a velha ponte de barcos oscilante, o rio cheio de clamores, entre

1) Fr. Joaq. Soares, op. cit. pág. 30.

2) Obs. Port. pág. 326.

3) 94 REVISTA DE ESTUDOS HISTÓRICOS

duas chapadas monstruosas de tinta. Ao clarão dos archotes, entre os novelos da fumaça, dis-tingue-se sempre o vulto rancoroso do frade, os seus gestos de cólera, e o remexer da massa obscura. Depois peor: o negrume anonymo, de onde irrompem chuços nos gadanhos crispadas. . .» (1) Na ponte e em Santo Ovídio da Bandeira (Gaia) a turba, ansiosa, espera...

Mas cai a noite por completo. É tarde já. Os franceses não vieram... Tanto entusiasmo, tanta ansiedade para nada! «Toda a coragem... se tornou então num grande dissabor e raiva» (2) e, tristes como se tivessem perdido uma batalha, regressam os portuenses à cidade.

Cedo se comprendeu que urgia estabelecer-se um governo. Na «Casinha da Ponte onde se cobram as passagens», das duas para as três da madrugada de 19, reunem-se o bacharel António de Sousa Ferreira e alguns oficiais de Milícias e Artilharia e, por iniciativa daquele, orga-nizão uma lista das pessoas que deverão constituir a Junta Governativa. Fazem logo avisar os eleitos e, às seis da manhã (não havia tempo a perder—os franceses podiam chegar dum momento para o outro), marchavam todos com «o Regimento da Maia, Artilharia, imenso povo, Estandarte Real desenrolado, com duas peças de campanha» (3), seguindo à frente o infatigável

(l) Raul Brandão, El-Rei Junot, Pôrto, 1919, 2.a ed., pág. 369.

(2) Obs. Port. pág. 326. (3) Obs. Port. pág. 326.

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Raimundo José Pinheiro, para o Paço Episcopal. Apresentam-se ao Bispo, dizem-lhe ao que vão. Dealbava o dia glorioso de 19 de Junho.

Pouco depois, na sala do docel do referido Paço, começavam os trabalhos para a constituição da Junta Provisional do Supremo Governo (1).

«No dia dezenove de Junho de mil oitocentos e oito annos, nesta Cidade do Porto, e no Paço Episcopal, em Congresso convocado pelo Corpo Militar, estando presente a Camara da Cidade, o Desembargador Estanisláo José Brandão, que no impedimento do Chanceller da Relação serve o seu lugar, e de Governador Interino das Justiças, e outros Magistrados, e bem assim os Representantes do Estado Ecclesiastico, e o Corpo Militar; representado pelas primeiras Patentes da sua Officialidade, e bem assim o Procurador, e Escrivão do Povo, e alguns Negociantes da Cidade: Foi proposto da parte do Corpo Militar pelo Capitão Commandante da Brigada de Arti-Iheria, João Manuel de Mariz Sarmento, o seguinte = A Corporação Militar que restaurou o Porto, e deo os passos mais importantes para a conservação e defeza do Estado, tendo eleito seis dos seus Membros para huma Junta Provisional do Governo, que supra a falta de representação legitima da Authoridade Soberana, pede ao Excellentissimo Senhor Bispo do Pôrto, e às demais Au-thoridades Constituidas, queirão nomear dois Membros da Corporação Ecclesiastica, dois da Magistratura, e dois da do Commercio para completarem, e constituirem esta Junta Provisional do Governo, que só dependerá do PRINCIPE REGENTE de Portugal, e a quem só respon-

(l ) Agostinho de Campos, ob. cit. pág. 39 e nota,

diz que provavelmente esta designação fora escolhida por sugestões misteriosas da maçonaria. «A prestigiosa palavra supremo já então corria como sagrada».

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derá do uso que fizer da Authoridade Soberana, de que circunstancias imperiosas a obrigão a apossar-se, e que exercerá em quanto na Capital, actualmente bloqueada pelas forças inimigas, não fôr restituido o Governo, instituido por S. A. R.. E mandando Sua Excellencia Reverendissima, que se proposesse a votos a proposta acima, foi decidido por unanime consentimento de todos os Representantes, que se instituisse huma Junta Superior, e Interina do Governo Geral, com todos os Direitos da Soberania que será composta por dois Membros do Corpo Ecclesiastico, dois do da Magistratura, dois do Corpo Militar, e dois da classe dos Cidadãos, de que será Presidente Sua Excellencia Reverendissima, e que se convocará nas Segundas e Sabados neste Paço Episcopal e alem disso todas as vezes que for necessário: a qual Junta segundo as Leis deste Reino, usos, costumes, e privilegios delle, deliberará, e mandará tudo o que for ne-cessario: entendida a Authoridade, e Responsabilidade da Junta na forma proposta: e que a Authoridade, e exercicio desta Junta cessará inteiramente logo que se restituir na Capital o legitimo poder instituido por S. A. R. Assentou-se mais, que recahindo o Governo das Armas no Coronel de Infanteria José Cardoso de Menezes Sotto Maior, haja mais huma Junta particular Militar para o Governo, e direcção de todas as operações tendentes ao Ataque, e Defeza da Nação, e que esta Junta se componha de cinco Membros tirados dos cinco Ramos do Corpo Militar, a saber: do Corpo de Engenharia, da Artilharia, da Infanteria de Linha, da Cavallaria, e da Infanteria Miliciana, servindo nella sempre de Presidente, quem tiver o Governo das Armas, e na sua falta a Patente maior, ou, na concorrência de duas, ou mais iguais, a de maior antiguidade entre ellas.

E passando logo a votar nas Pessoas de que se hão compôr as duas Juntas, sahirão eleitos por unanimidade de votos para a Junta Superior, e Geral, de que he Presidente Sua Excellencia Reverendissima, a saber: o Re-verendo Manoel Lopes Loureiro, Provisor do Bispado, o Reverendo José Dias de Oliveira, Vigário Geral, o De-

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sembargador de Aggravos Luiz de Sequeira da Gama Ayalla, o Desembargador Juiz da Coroa José de Mello Freire, o Capitão Commandante da Brigada de Artilhe-ria, João Manoel de Mariz Sarmento, o Sargento Mor de Infantaria, António da Silva Pinto, António Matheus Freire de Andrade, e António Ribeiro Braga: e para a Junta particular Militar de Ataque, e Defeza, o Tenente Coronel de Engenharia Luiz Candido Cordeiro, o Tenente Coronel de Artilharia, Manoel Ribeiro de Araujo, o Sargento Mor de Infanteria de Linha, João da Cunha de Araujo, o Tenente de Cavallaria Luiz Paulino de Oliveira Pinto, e o Tenente Coronel de Infanteria Miliciana Domingos Ribeiro de Freitas. E para constar a todo o tempo, se fez este Assento assignado, pelos Representantes Vo-gaes, os quaes mandão que elle se imprima, e publique: e eu José de Mello Freire, Desembargador Juiz da Coroa, que o escrevi e assignei. =José de Mello Freire. Bispo Presidente. Estanisláo José Brandão. José Cardozo de Menezes. Luiz Candido Cordeiro Pinheiro Furtado de Mendonça. João Manoel de Mariz Sarmento, Capitão Commandante da Brigada de Artilheria. João da Cunha Araújo Porto Carreiro, Sargento Mor de Linha. Luiz Paulino de Oliveira Pinto de França. António da Silva Pinto. Manoel Ribeiro de Araújo. António de Araujo Vasques, Alferes. António de Almeida Carvalhaes, Tenente. Faustino Salustiano da Costa e Sá. António Caetano de Castro Moraes. Rodrigo Xavier de Sousa da Silva Alcoforado. Domingos Ribeiro de Freitas. Gonçalo António Teixeira Coelho de Mello. Raymundo José Pinheiro. José Candido de Pina de Mello. Manoel Caetano Machado Pereira da Silva Rocha, Sargento Mór. António de Sequeira Almeida Carvalhaes, Capitão. José Augusto Leite Pereira de Mello, Coronel. Joaquim de Brito Coutinho Araujo, Capitão. João Joaquim Pereira do Lago, Alferes. José Bernardo Pereira Barrozo, Alferes. Manoel Joaquim Freire de Andrade Pinto, Capitão de Caçadores. Manoel Luiz Correa, Tenente. João Lourenço de Meirelles, Tenente Coronel. Sebastião Gomes de Oliveira, Tenente. Florido Telles de Menezes. José Cardozo Pinto de Madu-

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reira Vasconcellos, Capitão Mór de Penafiel. Joaquim de Magalhães de Menezes Brito, Alferes. Manoel Lopes Loureiro. José Dias de Oliveira. Thomaz da Rocha Pinto Chantre. Antonio Jorge de Meirelles, Arcediago do Porto. Francisco Januário Valle. Thomaz Aquino de Lima. O Arcipreste Pedro Antonio Virgollino. Luiz de Sequeira da Gama Ayalla. Alexandre Barboza de Albuquerque. João de Almeida Coutinho Vieira. Luiz de Barboza Mendonça. Joaquim de Vasconcellos Cardozo e Menezes. Bernardo de Mello Vieira e Sousa de Menezes. Thomaz da Silva Ferraz. Antonio Matheus Freire de Andrade Coutinho Bandeira. Manoel Felix Correa Maya. Rodrigo Freire de Andrade Pinto. Procurador do Povo na falta do Juiz, Ignacio Vieira Soares. Escrivão do Povo, João de Almeida Ribeiro.» (1)

Sôbre as suas espadas os oficiais presentes juraram vencer ou morrer!

Costituídas as duas Juntas, o novo Governo expede os primeiros decretos:

Em nome do PRINCIPE REGENTE de Portugal: A Junta do Supremo Governo da Cidade do Porto; Faz saber a todos os Vassallos do dito Senhor, que o Governo Fran-cez se acha inteiramente abolido, e exterminado deste Paiz, e restituida nelle a Real Authoridade do Nosso Legitimo Soberano, a qual será exercitada plena, e inde-pendentemente pela sobredita Junta, em quanto não for restituido o Governo instituido neste Reino por S. A. R. Em consequência do que, Ordena a mesma Junta, que o mesmo Real Senhor seja Acclamado, e as suas Reaes Armas descobertas, e Respeitadas, como sempre o forão, e hão de ser; e que todas as Authoridades constituídas

(1) Na Collecção de Legislação Portuguesa... de 1802 a 1810. Antonio Delgado da Silva —Lisboa, 1826 — pág. 524 e seguintes.

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obrem nesta conformidade, expedindo-se todas as Ordens no Real nome do dito Senhor.

Porto, 19 de Junho de 1808.—Bispo, Presidente Governador (1).

Do Paço dirigem-se todos à Sé Catedral onde, entre «lagrimas e suspiros», imploram o Auxilio Divino.

Das janelas da Camara os vereadores, agitando a Bandeira Real da cidade, aclamam o Príncipe Regente. A multidão, no largo fronteiro, corresponde com delírio. Pela cidade inteira ouvem-se os repiques dos sinos, os vivas, os regosijos da população. Á noite muitas casas aparecem irisadas de luminárias.

E vão começando as vinganças, o explodir dos ódios, as perseguições. Na estrada real de Lisboa prendem um homem que levava a Junot uma carta de José Cardoso, coronel de infantaria 6, nomeado, como vimos, pela Junta Governador das Armas do Partido do Pôrto. Nessa carta participava José Cardoso o seu cargo e a constituição do novo governo. O povo acusa-o de traidor, vai em sua procura, prende-o, e, depois dos maiores insultos e maus tratos, mete-o na enxovia de Matosinhos. O cargo vago é logo provido no Coronel Francisco Guedes da Costa (2).

(1) No Livro 19 das Propias da Camara M. do Pôrto, fls. 14, encontra-se um original deste decreto com

a assinatura do Bispo. A fls. 15 outro análogo.

(2) Sousa Reis, ob. cit., vol. II, fl. 304 v.

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E os franceses? Os receios da sua chegada a todo o momento aumentavam.

A 20, pelo meio dia, novamente constou que o inimigo estava já perto de Gaia. Os sinos freneticamente voltam a badalar. De todas as ruas e vielas acodem homens munidos das mais variadas armas e, dentro em breve, um povo imenso corre para o logar da Bandeira e estrada dos Carvalhos. «Cada qual quer ser o primeiro a arrostar-se com o inimigo.» (1) Como sempre salientam-se os frades. No convento de S. Domingos um dos religiosos começa, na Portaria, a organizar um batalhão com a gente que tinha vindo. Mas faltava o estandarte. José Augusto Leite Pereira de Melo, coronel de Regimento de Milícias da Maia, e o Capitão Manoel Velho, passam por ali à frente de um magote de populares e de soldados. Levavam duas bandeiras. Um dos frades apodera-se de uma delas, arvora-a num pau e tudo —sempre a mesma massa de tropas, povo e frades—sob o comando do coronel Leite, se põe em marcha ao encontro dos franceses. Vários clérigos e religiosos de diversas Ordens se vão juntando. A coluna avoluma-se a cada passo andado. Quàsi toda a população válida está nas ruas. Em casa só ficam os velhos, as mulheres—nem todas—as crianças... os jacobinos e os comodistas. A multidão ululante parece delirar. O borborinho e a algazarra, nas

(1) Fr. Joaquim Soares, op. cit. pág. 36.

REVISTA DE ESTUDOS HISTÓRICOS .101

ruas baixas da cidade, não se descrevem. O bispo desce do seu Palácio. Segue com a onda de «guerreiros indiciplinados mas atrevidos», procurando com a sua presença infundir um pouco de ordem naquele exército de melodrama (1).

Desde a Ribeira até Santo Ovídio em Gaia, estão as estradas coalhadas de gente armada. Em casa as mulheres fervem água para despejar sobre o inimigo (2).

Mas passam as horas. Anoitece. Mais uma vez... nada de franceses. Num grande desapontamento recolhe tudo à cidade. Acompanham o

Bispo ao Paço, fazem-lhe as continências devidas

a um chefe, e deixam-no «entregue ao descanso temporário que tanto ambicionava.» (3)

Seguem-se ainda outros rebates falsos de aproximação do inimigo, que, aumentando a agitação, fazem andar as turbas numa roda-viva.

Loison, o enviado de Junot, que, de facto, sairá de Almeida, a 17 de Junho, acompanhado dê 2.500 homens, com destino ao Pôrto, não passára de Mesão-Frio. Batera em retirada para a Régua, atravessara a 22 o rio Douro, e tudo em tal precipitação e desordem que perdera muito material de guerra, muita bagagem e até a sua secretaria particular. E vai fugindo diante de velhos arcabuzes, de ferrugentas espadas, de

1) Ibidem e Sousa Reis, ob. cit. vol. II fl. 273 e seg.

2) Fr. Joaquim Soares, op. cit. pág. 37.

3) Sousa Reis, ob. cit. vol. II, fl. 277 v.

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paus, chuços, forcados e espetos. Perseguem-no denodados patriotas, frades e homens do povo. Loison regressa ao ponto de partida—incendiando e assassinando, segundo o seu costume (1).

O nosso Marfiro Cândido celebra a reti-rada do sinistro Maneta nesta portuguesíssima linguagem:

Á face das Lusas Quinas

He qualquer hum novo Marte

Que o diga Loison fugindo

E os seus Soldados no Douro

Que em vão tentão passa-lo

Pois lhe hião chegando ao couro.

O movimento toma, de momento a momento, um caracter de sublevação nacional. Já todo o Norte aclama o Príncipe Regente. Umas terras após outras se vão revoltando.

No dia 22 a Câmara portuense recebe um

ofício da de Viana do Castelo, participando que,

no dia 19, a nobreza e povo da cidade, reunidos

em câmara, haviam organizado um «govêrno

interino para restabelecer o governo do Nosso

(1) Celebrisou-se, nesta passagem, um Religioso Dominicano, Fr. José de Jesus Maria Ascenção, que, por espaço de 5 a 6 leguas, perseguiu Loison, fazendo-lhe grande estrago. Dizia-se que este general fizera todo o empenho de apanhar vivo o valente frade para o mandar a Napoleão, a fim deste ver o que era um trasmon-tano. Breve Relação etc. cit. pág. 79 nota.

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Augusto Soberano e o bem da Pátria», e pedindo a adesão do Pôrto:

«Não devem hesitar hum momento em se unirem à Causa geral . . . . para vermos regenerada a Nação Portuguesa, Ludibriada por modos exquisitos.» (l)

Mas a Câmara do Pôrto, sem disfarçar uma ponta de orgulho, responde:

«Acabamos de receber transportados do maior gosto e satisfação a carta de V. S.a de 19 do corrente mes de Junho... tendo-nos nós antecipado a esta louvavel dilli-gencia própria de Vassallos Fieis Portugueses no dia sabado 18 do corrente mes, e no dia 19 nos juntamos no Paço Episcopal... elegendo-se uma Junta Suprema... que dirige os meios da nossa defeza em que fica esta cidade prompta a derramar a ultima gotta do seu Sangue pelo seu Principe e pela sua Patria: Conte V. S.a com quanto estiver da nossa parte para ajudar tão louvavel acção confiando, nós da parte de V. S.a tudo quanto contribuir p.a a felicidade futura.» (2)

O frémito da liberdade estende-se a todo o país: «no Sul há também isolados movimentos de rebelião. Por toda a parte se formam Juntas Governativas, mas as do Norte submetem-se, sem relutância à do Pôrto.

«Foi tal a mania das Juntas em Alem-Tejo,» diz a Relação breve, já várias vezes citada, «que

(1) Livro 19 das Propias da C. M. P., fls. 7. Juntamente veio o Auto referente à reunião mencionada. Ibi-dem, fls. 8 e seg..

(2) Ibidem, fls. 12.

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até as mais pequenas Aldeãs de 15 e 20 visinhos, que sempre se governarão com um Juiz de Vintena, tinhão uma junta composta do Padre Cura, e varios trabalhadores de enchada, com o Tratamento de Senhoria. A Provincia hia a perder-se em huma Anarquia horrenda, se a Providencia não apressasse a nossa feliz Restauração.» (1)

No Sul as duas principais juntas eram as de Beja e Évora, mas, como não se entendiam, não poderam organizar uma defesa eficaz.

Junot, surpreendido com as proporções que ia assumindo a revolta, proclama com mal fingida serenidade e comiseração:

«Portugueses! Qual he o vosso delírio? Em que abysmo de males vos ide» mergulhar? ... Que podeis vós esperar contra hum Exercito numeroso, valente, e aguerrido, diante do qual sereis dispersados como as áreas do Deserto pelo sôppro impetuoso dos ventos do Meio-Dia?» (2)

As letras são gordas mas as tretas são finíssimas. É a última proclamação de ameaça de Junot pois conhece que prega no Deserto (3).

No entretanto a Junta Provisional do Governo Supremo tomava as primeiras medidas para levar a bom termo o movimento iniciado.

No dia 20 a Câmara do Pôrto reúne em ve-

1) Rel. breve cit., pág. 103, nota.

2) Procl. de 26 de Junho de 1808 —no Obs. Port.,

pág. 317 a 320.

3) Obs. Part., pág. 320.

4) REVISTA DE ESTUDOS HISTÓRICOS 105

reação extraordinária. Do seu Livro de Actas consta:

«Nesta sessão por ser intimada a ordem bocal da Junta do Supremo governo desta Cidade ao Veriador Bernardo de Mello Vieira da Silva Menezes para se armar e por em acsão toda a Ordenança de que este Senado hé Capitão Mor se detreminòu expediremce logo ordens como efectivamente se expedirão sem perda de tempo a todos os Sargentos Mores e Capitaens respectivos para se porem emidiatamente em armas, e prontos para toda a utelidade comtra os Francezes, detreminando-se que se acendecem os Fachos, e se participa-ce quaisquer noticias da chegada do Inemigo para se lhe sair ao incontro.» (l)

Pelos dois editais de 20 de Junho, pelos de 25 e 27 do mesmo mês, pelos de 11, 12 e 13 de Julho, e outros, foram convidados os cidadãos a alistarem-se, a auxiliarem a Junta com dinheiro, géneros, cavalos, munições. Os soldos das praças são aumentados. Aos desertores que recolherem aos seus Corpos dentro de determinado praso, perdoam-se-lhes as penas (2). «Não só os soldados antigos mas milhares de novos voluntários, correm contentes, e a tocar em violas, a alistar-se debaixo das Reais Bandeiras» (3).

Bernardim Freire de Andrade é chamado para o cargo de Governador das Armas que lhe pertencia já antes da invasão, mas que abando-

1) Liv. das Ver. n.° 98, cit. fls. 42, v.

Editais da Junta do Pôrto, de 20 e 25 de Junho

de 1808. Legislação cit., pág. 526 e 528.

(3) Fr. Joaq. Soares, op. cit., pág. 42.

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nara por não querer servir sob os franceses. D. Miguel Pereira Forjaz é nomeado seu ajudante. É-lhes confiada a organização das forças do exército, missão dificílima porque tudo faltava. Não havia armamento, nem munições, nem fardamentos. Faltava tudo — menos a mais firme vontade de vencer.

Todas as classes sociais se aprontam para a luta. O próprio Clero empunha as armas, formando um Corpo destinado a guarnecer a cidade, na ausência das tropas seculares, e a guardar o Palácio do Governo ou Paço Episcopal.

Em Inglaterra, logo que foi conhecido o levantamento do País, começou a organizar-se a Leal Legião Lusitana, com uns 800 portugueses que estavam emigrados em Plymouth, onde aguardavam o prometido transporte para o Brasil; (só muito mais tarde, em Setembro, chegaram ao Pôrto sob o comando do distinto oficial britânico Sir Robert Wilson.)

Em 29 de Junho, o Chanceler Governador das Justiças do Pôrto, Dr. Manuel Magno de Moura, ordena que todos os «Ministros» da «Casa e Relação do Porto, Oficiais de Justiça e mais Previ-legiados da mesma» estejam sempre «prontos com suas Armas, para saírem em qualquer ocasião que a Urgência Publica o exigir.»

Havia sido criada no Pôrto, mais de dois séculos antes, uma Companhia de Cidadãos, chamada Guarda Cívica, da qual só poderiam fazer parte os indivíduos que tivessem servido os principais cargos públicos do govêrno da cidade.

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A Câmara resolve, em 24 de Junho, fazer a convocação desta Companhia, e, no dia imediato, reunidos os seus membros nos Paços do Concelho, foram escolhidos o Capitão e os Cabos que a haviam de comandar. Para capitão interino, na ausência do Vereador mais velho, a quem de direito pertencia o cargo, foi nomeado José de Melo Pereira Correia Coelho; para cabos João António Monteiro de Azevedo, José Tomás da Fonseca e Sousa, António Xavier Pinto do Amaral e António Soares de Azevedo (1). No dia 26 a Guarda Cívica apresentou-se ao Governo Supremo, no Paço Episcopal (2), e, alguns dias mais tarde, pedia que lhe fosse concedido um fardamento especial «para as suas acções se conhecerem com distinção».

Illustricimo Senado Cappitão Mor (3). = Dizem os Cidadaons desta Cidade abaixo assignados, que se achão promptos, e com ardentes dezejos de servirem com as Armas para expolsarem os Inemigos, e para as suas accoens se conhecerem com distinção pretendem fardar-se à sua custa e que para isso se lhe dé uniforme e que ninguem mais possa uzar do mesmo que se lhe decretar sem se legitimar perente o Capp.am com doc.mto por onde mostrem que gozão de pervilegio como Cidadaons. digo com documentos por onde gozem do provi-legio como Cidadaons. Para Vossa Senhoria Illustricima

(!) Liv. Ver. cit., fls. 43 e seg.

(2) Id,, fls. 44.

(3) O Senado da Câmara do Pôrto tinha o cargo

de capitão mor das Ordenanças do Pôrto, da Maia, de

Gondomar...

108 REVISTA DE ESTUDOS HISTÓRICOS

lhe facão a Requerida Graça em vista do exposto E receberá Merçe.

Joze Joaquim Egico de Barboza = Joze Ribeiro da Costa = Francisco Gomes Vellozo de Azevedo = Joze Ribeiro da Costa Junior = Custodio Gonçalves Sedo = Joze Belens de Lima=Joze Ignacio da Cunha = Antonio Francisco Maya=Manoel Antonio da Costa Guimariins=An- tonio Simoens Duarte = Francisco Luis de Miranda = Joze Luis de Sousa Monteiro = Antonio Joaquim Sequeira Felim = Manoel Joaquim Duarte Souza = Joze Vicente de Freitas da Silva=João da Costa Santiago = Joze Francisco Bernardes = e seu filho Manoel Joze Bernardes = Manoel Joze Brandão = Manoel Joaquim Lombrout=Joze Joaquim Pereira = Antonio Joze Pereira = Joaquim Joze Pereira=João Pedro Gomes de Abreu=Domingos Alve-res Maciel = Antonio Luis da Fonceqa=Manoel da Cunha Azevedo = e seu filho Joaquim Manoel da Cunha Valle =

Bento Joze Rodriges—Joaquim Teixeira Duarte=Joze de Payya Ribeiro = Joze da Costa Santiago = João Antonio Valenca=Joze Carneiro Machado = Carllos Vieira de Figueiredo = Francisco de Souza Monteiro = Vicente Francisco de Guimarains = Antonio Francisco Silva Gui-marains=João Ribeiro Viana Junior = Antonio Duarte de Moura = seu filho Domingos Duarte de Moura = Jero-nimo Preira Leite=Joze Thomaz da Fonceca e Souza = Francisco Jorge Ferreira == Antonio Xavier Pinto de Amaral = Joaquim Joze Fernandes da Silva = Joze Fernandes da Silva=Joze Pedro Antunes Pereira=Antonio Marques de Souza=Joze Pereira Ferras Araujo Ribeiro= João de Santa Anna Neves de Sousa = Custodio Joze Sequeira Tedim=João Antonio Monteiro e Azevedo=João Baptista da Silva = Bento Joze Dourado = Thomaz de Preira Pinto.

A Câmara não se pronunciou sobre este pedido e despachou, com data de seis de Julho, que requeressem à Junta.

REVISTA DE ESTUDOS HISTÓRICOS 109

REQUERIMENTO

Senhor: Dizem os Cidadaens desta Cidade que elles tem hua Companhia com seu Cappitão e Cavo distinta, e separada das das Ordenanças naqual só entrão aquellas pessoas que tem servido os empregos publicos do governo da Cidade como Veriadores Procuradores da Cidade Thezoureiros e Almotaces Companhia esta criada pello Senhor Cardial Dão Henrique Rey no anuo de mil e cinhentos e quinze (l) e destinada para a Guarda das chaves da Cidade chamada a Companhia Civica ou da Cidade. Athe agora não teve fardamento que distinguice esta Companhia, e estão promptos os Suplicantes afar-darçe a sua Custa com distinção das mais Companhias datropa de linha Meliciana da Marinha, Tezouraria, Ordenanças e porque requerendo requerendo (sic) seu uniforme ao Senado da Camara desta Cidade lhe não deferio remetendo os Suplicantes a Junta deste Supremo Governo como Consta da Suplica e despacho incluzo e por tanto pertendem que Vossa Alteza Real lhe dezigne o uniforme do seu fardamento com adeviza que deve ter o seu Capitão e os Cavos tendo em vista que o dito uniforme admite o lustre Correspondente agravidade da Companhia e das Pessoas que a compoem Para Vossa Alteza Real se digene deferir a este justo requerimento authorizando com uniforme hua Companhia taão honrada e decente ao Estado, e ao Real Serviço para que foi destinada E Receberá Mercé.

DESPACHO

Elejão os Suplicantes o uniforme, de que querem uzar, na forma, que requerem prezentando primeiro a estampa delle para lhe ser aprovado. Porto .... de Julho quinze de mil e oito centos e oito com três Rubricas (2).

1) Evidentemente, há engano de data.

2) Livro 17 do Registo da Câmara —fls. 37 a 38, v.

3) 110 REVISTA DE ESTUDOS HISTÓRICOS

Feita e aprovada a estampa por todos os membros da Companhia, foi enviada à Junta Suprema que, finalmente, despachou que fosse esse o uniforme adoptado (22 de Julho) (1).

De quinze dias foi o prazo outorgado aos indivíduos que deviam pertencer à Guarda Cívica, para se fardarem.

Mas, em 17 de setembro, cincoenta e um deles ainda não o tinham feito (2). Uns porque se encontravam impedidos noutros serviços, outros velhos, outros doentes, outros inválidos. Um estava velho, trôpego.e incapaz de servir, outro muito doente e vertiginoso, outro estuporado (3).

Se é certo que, entre as classes superiores, havia algumas pessoas, cujo entusiasmo pela luta, era fraco ou fingido, já outro tanto se não dava com a grande massa da população. Pensava-se ver renovadas as cruzadas—diz um contemporâneo. «Os Mosteiros das Religiosas se occuparão em fazer de graça muita parte das mochilas. Os Funileiros fizerão sem paga do seu trabalho os frascos de folha, e muita parte desta foi também dada» (4). Não faltavam entusiasmos

Livro 17 ao Registo da Câmara —fls. 38, v.—

V. a estampa no Livro das Próprias, cit. fls. 39. .

2) Liv. 19 das Próp. fls. 28, of. de 17 de Set.

Ibidem a fls. 29, Lista dos que se não fardaram.

«Desta mesma Companhia he que mais ao diante se for-

marão os Voluntários Reaes que existirão uniformisados

até pouco mais ou menos o anno de 1820.» Sousa Reis,

ob. cit., vol. II, fls. 378.

4) Fr. Joaq. Soares, op. cit., pág. 42.

5) REVISTA DE ESTUDOS HISTÓRICOS 11 l

sinceros. Uma dama portuense publicou uma proclamação incitando o seu sexo a sacrificar-se pela Pátria.

«Proclamação de huma Dama Portuense, fiel à Nação, e amadora do Príncipe.

DAMAS PORTUENSES

A Consoladora, e viva emoção, que sinto ao lêr os heroicos procedimentos, virtuosos esforços, e prodigiosa constancia das Damas Hespanholas, desperta de novo toda a minha sensibilidade para com o meu caro sexo ...Não serão as DAMAS PORTUENSES susceptiveis de huma igual gloria, de huma igual grandeza? Terminão-se acaso ao redor do berço os nossos officios? Cumprem-se

os deveres em toda a extensão dentro do recinto da casa?...... Conheça pois Portugal, e o Mundo todo, que

existem entre nós Porcias zelosas da independencia, e liberdade da Nação; Joannas d'Arco, que sabem reanimar sobresaltados Exércitos, e esmorecidos Reis. Conheça, e trema a impia França, que as DAMAS PORTUENSES, indifferentes para os males, e para a morte, o não serão para o infame estado da escravidão. Tudo se perde, perdendo a liberdade. A honra periga; os bens são usupa-dos; a Religião manchada; a virtude affroxa; o Thálamo nupcial não está seguro.»

E, depois de lembrar que as mulheres devem animar os homens para a luta, dar as suas riquezas, as suas jóias, as suas alfaias em prol do bem público, e até os seus cabelos para cordas a exemplo das Matronas Romanas, depois de exortar as mulheres a cuidarem dos feridos, conclui:

«Todos os soccorros, tanto da Natureza, como da Religião, sempre promptos ao lado do moribundo, con-

112 REVISTA DE ESTUDOS HISTÓRICOS

firmarão a máxima da sociedade = Que os homens no principio, e fim da vida precisão sobremaneira dos importantes serviços das mulheres. = Deste modo preenchemos, DAMAS PORTUENSES, os deveres da caridade: desempenhamos o titulo de SEXO DEVOTO: defendemos à própria causa: praticamos o que Deos ordena, e a sociedade de nos pede. Agora, em desabafo dos nossos sentimentos, digamos com alegria: VIVA O PRINCIPE REGENTE DE PORTUGAL: Floreca a RELIGIÃO: Salve-se a PÁTRIA: Morrão os TYRANNOS.»

No final da Proclamação, em tipo mais miúdo, vem o seguinte curioso

AVISO

«Na mesma officina se vende o Livro Apologia das Mulheres, ou Discurso em que se mostra com exemplos extrahidos da Historia, tanto antiga como moderna, que ellas são susceptíveis de virtudes Religiosas, Políticas, Guerreiras, Literárias, e Sociais no grão mais eminente, e que, conformando-se ao espirito predominante dos seculos, conseguirão, não poucas vezes a gloria de dominarem nelles, &.c. Traduzida por uma DAM A NACIONAL.

Porto: Na Typographia de Antonio Alvarez Ribeiro.»

E a Junta Provisional vai governando. Em 20 de Junho manda levantar o sequestro dos bens dos ingleses e dá ordem de fazer o dos franceses. Por outro edital da mesma data determina «que o Capitão de Cavalleria José Monteiro Guedes Vasconcellos Mourão, tome à sua conta o Governo Militar de toda a Comarca de Penafiel, Sobre-Tamega e Amarante.» Em 24 ordena que sejam suspensas as remessas de dinheiro para Lisboa.

REVISTA DE ESTUDOS HISTÓRICOS l13

A Junta havia mandado organizar, no Convento de Santo António da Cidade, um Depósito para as tropas, onde se recolhessem todos os móveis utilizados pelos francesses e espanhóis. Em 22 de Julho ordena que lhe seja dado um Mapa de tudo quanto ali existe.

«Tendo-se determinado no Convento de Santo Antonio da Cidade recolher todos os Moveis e Utencilios, e Camas necessarias para o alojamento das Tropas, nomearão para esta Casa de Deposito por Administrador a Manoel Joze Dias Ferreira, e pr seu Escrivão a Joze Antonio Ferreira, com Livros de receita e despeza por onde constasse o que entrasse, e por esta se recom-

menda ao dito Administrador para receber com toda a brevidade de todos os Capitães das Companhias desta Cidade tudo quanto tivessem per-tencente ao dito alojamento, ou fosse do que ficasse da evacuação das Tropas Hespanholas, e não esteja agora occupado ou seja do que de novo alcançassem pella sua Louvavel deligencia, e Zelo, e o dito Admenistrador com a mesma brevidade nos aprezentará o Mappa athé terça feira o mais tardar de tudo quanto existe no Depozito para sobre o que faltar rezolvermos o que parecer mais justo. Porto em Camara 22 de Julho de 1808. Ferraz, Mello, Cardozo, Pamplona» (1). José de Sousa Melo, vereador da Câmara do Pôrto, e Manuel Felix Correia Maia, Procurador

(l) Livro do Cofre da C. M. do Pôrto, do ano de 1809, n.º 131.

114 REVISTA DE ESTUDOS HISTÓRICOS

da Cidade, haviam desaparecido «desde o glorioso dia da tarde de dezoto» de Junho. Por ordem da Junta Provisional, de 30 do mesmo mes, são supridas as suas vagas. José Pamplona Carneiro Rangel e João Antonio da Rosa de Figueiredo são eleitos pela Câmara e confirmados pela Junta para aqueles cargos (1), dos quais, após o juramento, tomam posse no dia 4 de Julho (2).

Em 30 de Junho a Junta determina que «a Corporação da Casa dos Vinte e Quatro, estando completa de todos os seus Membros, e, quando não esteja, completando-se primeiro dos que faltarem, proceda á eleição do Juiz do Povo, que zele, proponha e assista aos seus interesses»— e recomenda que deve ser escolhido para este cargo «o mais digno, prudente, zeloso e abonado», qualidades que muito se requerem «nas presentes circunstancias, em que todos devem concorrer unidos para a segurança Publica, e repulsa do commum inimigo» (3).

Neste mesmo dia foi criada a Junta do Tesouro Público no Pôrto, sendo nomeados para o lugar de tesoureiro-mór Domingos Martins Gonçalves, para o de contador Manuel Francisco Guimarães, para o de secretário o Desembargador Manuel Joaquim Lopes Pereira Negrão.

O processo de todas as causas fora mandado sustar. A Câmara requer e obtém que sejam ex-

1) Liv. 19 das Próprias, cit. fls. 17 e 18 e Liv. 17

do Reg. cit. fl. 33, v.

2) Liv. das Ver. cit. (n.º 98) fl. 43.

3) Legislação cit. pág. 554.

4) REVISTA DE ESTUDOS HISTÓRICOS l l5

ceptuadas as execuções das suas Rendas, porque está em grandes dificuldades financeiras(1).

A 7 de Julho o Bispo oficia para Londres a D. Domingos António de Sousa Coutinho, nosso ministro naquela corte, pedindo que, pela sua influência, consiga do governo inglês a remessa de dinheiro, armas, pólvora, fardamentos, mantimentos, 6000 homens de tropas inglesas e alguma cavalaria (2).

A contribuição de guerra dos 40 milhões, imposta por Junot, é abolida. É aberta outra patriótica e voluntária (12 de Julho).

Em 20 de Julho é lançado o imposto de 9.600 rs. por cada pipa de azeite, e 4.800 por cada pipa de vinho que se exportarem. Outros decretos se publicam, como este, tendentes a angariar receitas.

Em 29 de Julho é aberto no Reino um empréstimo de dois milhões de cruzados. A fim de negociarem um outro empréstimo em Inglaterra partem para Londres o Visconde de Balsernão, Luís Maximino Pinto, e o Desembargador Mar-tens da Silva Ferrão (8).

Em Valença haviam sido concentradas, cêrca de um mês antes, algumas forças militares do

1) Livro 17 do Reg. da C. M. P. fl. 34, v.

2) Soriano, ob. cit., 2.a Ep., vol. I, pág. 313.

Este empréstimo de Londres e o do Pôrto, foram

mais tarde reconhecidos pela Regência «como dividas

contraidas pelo Erário Real, debaixo da hipoteca e con-

signação do novo Imposto sobre o vinho e azeite esta-

belecido para a mesma hipoteca e consignação». Legisl.

cit., pág. 647, Carta Régia de 12 de Nov. 1808.

116 REVISTA DE ESTUDOS HISTÓRICOS

reino vizinho. Começaram logo a circular notícias tendenciosas sobre as intenções da Espanha, mas Nicolau Mahy, do Quartel General em Tuy, a 28 de Junho, tranqüilisava os portugueses:

«A Hespanha só aspira a restablecer em seu Throno ao seu amado FERNANDO VII, assim como em Portugal ao seu Legitimo SOBERANO D. JOÃO VI. Deponde pois, nobres portugueses, toda a suspeita, e crede que a Hespanha não pensa em mais, que em deitar fora do seu seio as Víboras etc., etc.»

Em Home do Reino da Galiza, passados alguns dias, Januário Figueirôa, Brigadeiro dos Reais Exércitos de Espanha:

«Convida, pede, insta..... aos Magistrados Portu-

guezes, que depondo toda a desconfiança alheia do talento Portuguêz e da lealdade Hespanhola, desconfiança porem que a Logica dos Usurpadores pretenderá sugge-rir pela conta que lhes faria a desunião d'ambas as Nações, obrem de maneira que as duas ditas Provincias de Portugal (Entre Douro e Minho e Traz os Montes) firmem um novo, e interino pacto com o Reino da GALLIZA pelo qual em breves clausulas se restituão ambos os Paizes confinantes às correlacções do trato, e amizade, que antes havia, e que não ha mister indi-viduar, acrescentando só o artigo da alliança offensiva, e defensiva para a defeza commum» (1).

D. Januário Figueirôa vem em seguida ao Pôrto, munido de plenos poderes, assinar o tratado referido (2).

1) Proclamação do Reino da Galiza ao de Por-

tugal—Porto, 5 de Julho de 1808.

1) Soriano, ob. cit., t. l.º, pág. 312.

2) REVISTA DE ESTUDOS HISTÓRICOS . 117

Entretanto o rastilho vai pegando o fogo da revolta às populações das mais recônditas aldeias. A toda a parte vai chegando o frémito da Independência. Mas tudo se faz desordenadamente. O povo anda fora de si, numa exaltação inconcebível.

De Espanha passa, para o Algarve, todos os dias armamento. Olhão notabilizou-se não só pela sua atitude decidida, mas também por serem alguns intrépidos olhanenses que, «num frágil esquife», ousaram «affrontar as procellosas vagas do Atlântico», para levar ao Brasil a feliz nova do que no Sul se passava (1). D. João VI, mais tarde, concedeu aos «habitadores» de Olhão a graça de usarem «de huma Medalha, na qual esteja gravada a letra = O = com a legenda=Viva a Restauração, e o PRINCIPE REGENTE Nosso Senhor.» Pelo mesmo Alvará o Lugar de Olhão, à data pequena povoação de pescadores, foi elevado à categoria de Vila, e mudado o seu nome para Vila do Olhão da Restauração (2).

A Junta do Pôrto, para activar o movimento enviou para o sul do Douro, como delegados, José Pedro Cardoso e Silva, Custódio José Rodrigues Maia, Domingos António Pereira e Domingos do Pôrto. Em Ovar, Feira,

(1) Verdadeira Vida de Bonaparte. Lisboa, 1808.

Pág. 123.

(2) Alvará do Rio de Janeiro em 15 de Nov. de 1808.

Leg. Cit., pág. 648.

118 REVISTA DE ESTUDOS HISTÓRICOS

Aveiro, Sardão, Águeda e em Coimbra no dia de S. João, arvoraram estes patriotas «o Estandarte da Liberdade» (1). Os quarenta e quatro franceses, aprisionados nesta última cidade, foram logo conduzidos para o Pôrto. Os académicos e os lentes da Universidade formaram corpos de voluntários. O laboratório de química foi transformado em fábrica de pólvora e de outros materiais de guerra, sob a direcção do lente Dr. Tomé Rodrigues Sobral (2). Em outros laboratórios também patrióticamente se trabalhava para a defesa. Minerva oferecia «rudes mas agradáveis presentes ao belicoso Marte.»

Coimbra foi, como o Pôrto, por várias vezes sobressaltada por falsos rebates de aproximação das tropas de Loison, e curiosissimas precauções se tomaram.

A Minerva Lusitana, periódico que ali se publicava, no seu n.º 6, dizia:

.«O dia de Domingo 26 de Junho, será hum dia memorável nos fastos de Coimbra. Recebeo-se noticia d'Officio de ter Loison entrado no dia 25 de tarde na Cidade de Vizeu, e que se encaminhava para Coimbra. As almas fortes, e generosas se reunirão junto do Excellentissimo Senhor Governador, e se tomarão grandes medidas de defeza. Mandarão-se pôr em armas todos os povos, que bordão a estrada de Mortagoa para Coimbra, e igualmente os que habitão desde a Ponte da Morcella até a mesma Cidade; e se repartio com elles alguma pólvora. Ordenou-se, que se abrissem grandes fossos em ambas

1) Fr. Joaq. Soares, op. cit., pág. 43.

2) Mineira Lusitana, 11.° n.º7, 1808.

0. REVISTA DE ESTUDOS HISTÓRICOS 119

as estradas, que se cortassem os pinheiros, e outras grandes arvores, que as entulhassem, em fim, que as tornassem impracticaveis por todos os meios possíveis. Mandarão-se vir todas as Ordenanças da Comarca, e já na segunda-feira entrarão mais de 8$ armados de piques, e roçadouras, e de muitas espingardas, que tinhão escapado á ordem dos nossos cobardes oppressores, que as tinhão mandado entregar. Deitou-se um bando, para que todos os Moradores se munissem com muitas pedras, cal viva, e lume acceso para terem pronta agoa a ferver, para que se o inimigo podesse escapar aos ataques exteriores, morresse dentro da Cidade. Mandou-se igualmente, que se fizessem entrincheiramentos com barricas, cadeiras, estacas, etc., nas bocas das ruas, por onde o inimigo podia entrar. Confiou-se esse trabalho aos moradores de cada rua; mas huma reflexão mais socegada lembrou, que em outras iguais circunstancias se devem incumbir taes entrincheiramentos a huma companhia de homens, e que se dê hum Chefe, que fique responsavel pela execução das ordens. Mandárão-se pôr luminárias para que se visse o que se fazia pelas ruas, e para que em caso de algum rebate falso os Portuguezes não atacassem uns aos outros. Mas he evidente que, no caso de chegar o inimigo, as luminárias se devião apagar, pois lhe erão muito mais úteis, do que aos próprios moradores, que não poderiam combate-lo tanto a coberto das portas, das janellas, e dos telhados; quanto mais o inimigo certamente não havia de tentar a entrada de noite. Determinou-se em fim, que as mulheres, e crianças se recolhessem a suas cazas; e que o sinal do rebate verdadeiro seria dado pelos sinos da.Universidade, e sendo de noite, seria acompanhado de um farol posto na sua torre.»

Muitas das pequenas guarnições francesas das povoações próximas desta cidade vão-se rendendo aos bravos rapazes dos batalhões

120 REVISTA DE ESTUDOS HISTÓRICOS

académicos. Os prisioneiros são remetidos para o Pôrto, onde o povo os recebe com gritos de raiva, imprecações, ameaças e insultos.

Um dia a população de Coimbra assistiu a um curioso espectáculo, por ocasião da entrada dum grupo de prisioneiros inimigos. Vinha à frente, abrindo a marcha, a música instrumental da Universidade e um esquadrão de cavalaria. Depois, montado em magnífico corcel, um estudante levava o Real Estandarte Português; a bandeira francesa ia de rastos, mordendo o pó, atada à cauda do cavalo... Logo atrás vinham os prisioneiros, formados em coluna de dois de frente, descobertos, escoltados pelos

estudantes vencedores; cavalgando um mísero jumento acompanhava-os o comandante francês, de chapéu na mão. O préstito fechava por um batalhão académico e outro esquadrão de cavalaria da Universidade. Um verdadeiro cortejo triunfal, a que não faltaram os vivas, as palmas e as flores (1).

(Conclui no próximo número).

artur de magalhães basto.

(1) Relação breve, cit. pág. 98, nota.

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