A chegada da TV e suas influências na comunidade isolada:



A chegada da TV e suas influências na comunidade isolada:

Estudo de caso da comunidade Barra de Aroeira no Tocantins

Autor: Carlos Fernando Martins Franco

Instituição: Universidade Federal do Tocantins – UFT

Cargo: Professor Assistente

Resumo:

Em 2003, a Prefeitura de Santa Teresa-TO, município vizinho a Palmas instalou um aparelho receptor de TV e uma antena parabólica no distrito de Barra de Aroeira, onde reside uma cominidade quilombola descendente de ex-escravos que lutaram na Guerra do Paraguai. De lá para cá, o comportamento, o modo de falar e a rotina da simplória população mudaram. Trata-se de uma pesquisa qualitativa que resultou na produção do documentário “Caixa Mágica” e no artigo que apresentaremos a posteriori.

Foram cerca de oito meses de pesquisa, com aplicação de questionários, nos quais levantamos as mudanças no cotidiano provocadas pela instalação do aparelho.

Palavras-chave: televisão, cultura, costumes, comunidade, quilombola.

Introdução:

O que nos motivou a produção do presente artigo foi o fato de tratar-se de um grupo social sui-generis. Em plena rediscussão de paradigmas, como o da segmentação de público (HOEINF, 2004), tivemos a oportunidade de vislumbrar um lugar que, apesar de já ter tido contatos com a mídia eletrônica, pois há rádios lá; a televisão apresenta-se como uma novidade.

A influência da TV naquela comunidade, como muitos já podem estar tentando adivinhar, não se faz como um processo arrasador de deculturação. O que pudemos observar, num primeiro momento, foi que a instalação do aparelho se mostrou apenas como mais uma opção de lazer para as frias e monótonas noites do lugarejo.

Fizemos uma pesquisa do tipo ex-post-facto, motivados pela oportunidade quase inédita de estudar uma comunidade em pleno século XXI, que nunca teve contato com a televisão e suas influências nos sujeitos.

Vamos procurar identificar, em nossa reflexão, quais os aspectos mais marcantes da chegada de uma nova mídia àquele local. Tentaremos articular a realidade social através de pesquisa quantitativa e, principalmente, cultural, no que tange a costumes de vida, observando como a forma e os conteúdos veiculados na TV puderam modificar hábitos e costumes. Lançamos um olhar de profissional da mídia e do mercado sobre os potenciais espectadores, num momento embrionário.

Vamos discutir o conceito de local, localismo e distanciamento. Serão realmente as sociedades “fechadas” e, principalmente, resistentes à interação realmente tão distantes de nossa realidade urbana? Acerca disto, Mike Featherstone diz que:

Na tradição sociológica, o termo local e seus derivados localidade e localismo, geralmente têm associados ao conceito de um espaço determinado, limitado, com seu conjunto de relacionamentos sociais estreitos, baseados em fortes laços de parentesco e tempo de duração da residência. (...) Nesse sentido,, presumia-se que os membros de uma localidade formavam uma comunidade distinta, com cultura própria, única, algo que transforma a localização de suas interações cotidianas, que deixa de ser um espaço físico para ser um “lugar” (FEATHERSTONE, 1995: pg 145)

A realidade social de Barra de Aroeira

Barra de Aroeira foi um quilombo, fundado por Félix Rodrigues ao retornar da Guerra do Paraguai e receber como prêmio terras localizadas na antiga província do Tocantins, no Governo Imperial. Na emancipação do Estado do Tocantins, em 1989, a localidade passou a fazer parte do município de Novo Acordo, passando, posteriormente, a ser distrito de Santa Tereza.

A comunidade em si sempre se comportou de forma fechada a influências externas. Tanto que pudemos observar diversos problemas de ordem patológica, provocados por casamentos co-sangüíneos. A resistência a mudanças é uma constante. Tanto que, segundo relatos do ex-prefeito, somente em 2003 a Prefeitura pôde ingressar na localidade com programas sociais, como reforma da escola e, foco de nossa análise, instalação do aparelho de TV.

As casas são de adobe, não há, evidentemente, saneamento básico. Sendo assim, a água provém de poços “rasos” com pouco mais de quatro metros de profundidade. Tal precariedade faz da verminose uma constante tanto em crianças como em adultos.

A alimentação é baseada em leite e carne de vaca e frango, farinha – produzida localmente -, além de arroz, feijão e fubá, proveniente de cestas básicas doadas pela Prefeitura ou por campanhas de arrecadação.

Na comunidade há uma escola em boas condições. Os profissionais que nela trabalham são da própria localidade. Além de uma Igreja Católica ainda em construção.

Como atividades de lazer há um bar onde é servida a tradicional pinga dos finais de semana. Existe o hábito de escutar rádio, principalmente emissoras de outros Estados, pois as do Tocantins são relativamente fracas e o sinal raramente penetra na acidentada região; apenas a Rádio Tocantins de Porto Nacional é ouvida durante o dia. A comunidade não é totalmente desconhecedora de mídia, nem tampouco totalmente desatualizada. Vimos o rádio como grande meio de prestação de serviço e informação, mostrando a realização da realidade vislumbrada por Roquette Pinto: a real grande penetração e baixo custo, como afirmam diversos autores, tais como Emílio Prado, Celso Santos Filho e Sônia Virgínia Moreira.

Os membros da comunidade são fervorosamente religiosos. Predomina o catolicismo com influências africanas, com rituais peculiares como os de enterrar as crianças no que eles chamam de “campo dos anjos”.

Não podemos deixar de destacar um elemento cultural forte. As mulheres trabalham mais do que os homens. São o alicerce laborativo. Vão à roça todas as manhãs, preparam as refeições, tomam conta das crianças, enquanto os homens são vistos perambulando em pequenos grupos ou carregando gaiolas com pássaros. Raramente vemos algum representante do sexo masculino trabalhando. Há apenas exceções como o professor da escola ou alguns artesãos.

Barra de Aroeira em números:

Moradores: 242 habitantes.

Gênero: 67,3% mulheres, 23,5% homens, 9,2% crianças;

Média de moradores por domicílio: sete;

Número de aparelhos receptores de rádio: 43;

Número de aparelhos receptores de TV: 7 (6 privadas e 1 pública);

Escolaridade:

|Não alfabetizado |Básico incompleto |Básico Completo |Médio Incompleto |Médio completo |Superior/outros |

|19,6% |21,7% |45,4% |7,3% |6% |0% |

Crianças na escola: 100%

Taxa de mortalidade infantil: 12,7 em 1000

Média de anos/vida: 64,3 anos

Programas que mais gostam na TV: novelas 58,2% / jornalismo 32,1% / esporte/outros 9,8%

Leitura de mídia impressa: N/A (somente na escola – jornais defasados)

Escuta de rádio: 73,4% ouvem todos os dias / 21,7% ouvem esporadicamente / Não souberam 4,9%

Já ouviram falar de outras mídias (internet): 78,2% sim / 13,3% não / Não souberam 8,5%

Maria e a tradição oral X o maravilhoso mundo da “caixa mágica”

O único registro por meio de imagens é o produzido pela moradora Maria, uma jovem excepcional que desenha em seus cadernos o dia-a-dia e os acontecimentos da comunidade. Para a maioria dos moradores, principalmente aqueles que não têm o hábito de sair da comunidade, os desenhos de Maria e seu relato oral dos fatos são o único meio de comunicação social.

Maria cria uma TV de papel. É produtora, programadora, veiculadra e comunicadora.

Aliás, a tradição oral se faz muito forte na localidade. O laço através do qual as tradições e a história da região passam de geração em geração é a oralidade.

Entre os moradores, todos são muito falantes e de forma detalhada o relatam os fatos. Por incrível que possa parecer, os desenhos de Maria possuem riqueza de detalhes. Uma abordagem bidimensional forte, porque tanto são o “congelamento objetivo” de um acontecimento cotidiano por uma visão subjetiva, interpretada de forma singular pela moradora.

No mínimo, a instalação da TV mudou os hábitos fundamentais na rotina da comunidade. Primeiramente, porque assistir aos programas à noite passa a fazer parte da cultura local. E num segundo momento, a mudança de repertório, cosmovisão e referências.

Para a maioria daqueles moradores, o que até 2003 era uma dimensão de mundo, que se limitava aos morros que circundavam o povoado, redimensiona-se a outras paisagens. Passa, principalmente, a despertar desejos: de consumo, de hábitos. Os moradores começaram a enxergar indivíduos de fisionomias diferentes, pessoas que falam diferentemente. Tomam consciência que, além daqueles morros há todo um mundo a ser explorado.

Passou-se a ouvir outras variantes da língua, que não a deles, com forte aférese final (“jornalE”, por exemplo), principalmente nos mais velhos. A apócope do E latino final, pelo isolamento, não ocorrera até então; muitos acham que “os da televisão falam diferente, falam jornaU, no lugar de jornalE”.

Para muitos, também, conhecer o mar foi um acontecimento marcante. Segundo relatos do professor da escola local, os mais velhos, na sua esmagadora maioria analfabetos, nunca imaginaram que no mundo houvesse oceanos. Como nasceram no centro do Brasil, há milhares de quilômetros do mar, imaginavam que o mundo fosse seco.

Outra constatação que chocou os moradores e que pudemos detectar em entrevistas foi o choque provocado pela violência mostrada pelos telejornais. Muitos, ainda, se sentiram chocados com as guerras. Outros despertaram atenção às intrigas familiares das telenovelas: as falsidades das personagens, a “falta de família”.

O termo “família”, que muitas vezes atribuímos uma conotação conservadora foi, aliás, uma constante nos depoimentos dos moradores. O que nos sugere uma temática universal e livre de toda e qualquer ideologia.

Para alguns moradores, entretanto, a chegada da TV pouco influenciou suas vidas. Não houve agrados ou curiosidades. Para estes indivíduos, a vida local, sua cultura e as tradições já consolidadas são elementos extremamente importantes. Houve uma moradora que falou não gostar de novelas, porque “as minhas novelas eu mesma faço”. Ao ser perguntada o que eram novelas, disse que são “histórias que a cada dia é contado um pouco. Como as que minha mãe me contava todas as noites”. Isto nos remete a uma raiz profunda e forte da cultura brasileira. O contar e ouvir histórias está profundamente enraizado e, talvez, seja daí a origem do sucesso do gênero em nosso país.

Conclusões

Apesar da baixa escolaridade, a aceitação da mídia é grande. O que contraria mitos que não relacionam baixa escolaridade e potencial de consumo. Para a maioria dos teóricos, como Aronchi de Souza[1], sempre houve o interesse das “classes dominantes” pela “ignorância do povo”. Será a educação formal realmente o único meio de se atingir a plena cidadania? Não haverá no ser humano uma motivação inerente, presente em sua natureza, que o leve a buscar e explorar o mundo a seu redor?

A mídia poderia ser uma forma de levar mais conhecimento de forma barata a essa comunidade. Isto pudemos observar na taxa de “conhecimentos de outras mídias”, que mostrou um fato curioso: o rádio e a TV mostram o caminho para outras possibilidades, de forma leve e eficaz.

Quebramos, nesta breve pesquisa, muitos conceitos imprecisos que tínhamos acerca de local, localismo, cultura isolada. A cultura, concluímos, é universalizante. Não no conceito apocalíptico que coloca a mídia como uma ameaça e o mercado como algo destruidor de culturas.

Mas, hoje, enquanto discutimos nos grandes centros as perspectivas de uma nova televisão digital, interativa. Observamos uma radical mudança nos paradigmas de mercado, recepção, público, produção e distribuição que se aproxima rapidamente e, principalmente, o que isto poderia modificar nosso cotidiano, o exemplo de Barra de Aroeira serve de microcosmo. Um fato em escala mensurável sem estatísticas projetivas de como a mídia é engrandecedora e não destruidora. Como somos abertos e suscetíveis à mudanças. Como somos curiosos, mesmo quando não temos conhecimentos específicos desenvolvidos.

O conhecimento formal não se faz presente. Mas a sabedoria daqueles que vivem mais de sessenta anos, sim.

Que Barra de Aroeira sirva de lição. Quando a TV digital for implantada seremos nós os curiosos e exploradores. Seremos nós os tocados, os marcados. Estará no meio de nós a ingênua Maria e seus desenhos, talvez não tão ingênuos assim. Devemos, sim, acreditar na cultura, crer em nossa personalidade.

Bibliografia:

CASHMORE, Ellis. E a televisão se fez. São Paulo: Summus, 1994

FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura. São Paulo: Nobel, 1997

HOEINFF, Nelson. A nova televisão: desmassificação e o impasse das grandes redes. Rio

de Janeiro: Relume Dumará, 1996

MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: SENAC, 2000

SOUZA, José Carlos Aronchi de. Gêneros e formatos da televisão brasileira. São Paulo:

Summus, 2004

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[1] José Carlos ARONCHI DE SOUZA. Gêneros e formatos da televisão brasileira.

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