Da América e da Europa



Da América e da Europa

Eduardo Lourenço

Nunca a América esteve tão omnipresente na cena planetária como neste começo de século e de milénio. Missão salvadora em lógico prolongamento de duas guerras mundiais e da guerra fria que se seguiu à última, mas também vertigem na aparência incontrolada e incontrolável, depois, mau grado o desaire do Vietname, logo compensado com duas guerras do Iraque. A esta omnipresença americana correspondeu a retirada da Europa, nas suas duas expressões, da mesma cena mundial por ela dominada desde Watterloo, pelo menos. E com ela um novo relacionamento América-Europa e Europa-América, se não de total dependência, de subalternidade, sem exemplo no passado. Como Roma depois da segunda guerra púnica, a América após o duplo colapso político da União Soviética e da Europa democrática, assumiu, sem hesitações, a função hegemónica imperial, até então de exclusiva representação europeia.

Estamos em plena vertigem imperial e imperialista da América, mas desta vez sob o signo e a caução da Democracia exemplar de que os Estados Unidos se reclamam e que nós mesmos, europeus, aceitamos como paradigmática, até porque, começou por ser, fora da Europa, a filha dilecta da História europeia.

“American Vertigo” é o título certo que um europeu, filho desse mesmo entusiasmo mítico pela América, deu ao seu mais recente ensaio, na esteira do célebre de Tocqueville, sobre o caso americano no momento em que se tornou o autor incontornável da nossa História. Como todos os ensaios de compreensão da América, mesmo nesta fase da hegemonia planetária dos Estados Unidos, o livro de Bernard Henry Lévy é, ao mesmo tempo, um ensaio sobre a Europa. Ou melhor sob fundo da Europa. Apesar da sua paixão pela América, “American Vertigo” – de hitchkockiana ressonância – é um espelhismo. Um duplo espelhismo, o da imagem da América em nós e a nossa na América. O ensaio do mediático ex-novo filósofo é interessante, vivo, apaixonado e, por vezes, apaixonante. Corresponde um pouco ao que nós esperávamos desta revisitação de Tocqueville a cento e setenta anos de distância. Mas já não é, porque o não podia ser, uma leitura e uma compreensão da América como a do tempo do célebre ensaísta e historiador. O espelhismo é inverso. A Europa de Tocqueville era o centro do mundo e a novidade e o golpe de génio de Tocqueville foi de ter compreendido que essa não-Europa, em vias de se construir e mesmo de se construir era não só a “periferia” paradoxal da mesma Europa, mas já uma Europa outra, uma anti-Europa à procura de um futuro que teria o seu nome e seria o paradigma do futuro.

Há mais de século e meio, a tentação, já então forte, de ler a América no espelho da Europa era de natureza não apenas equívoca, mas assimétrica. A Europa era – salvo na excepção-Tocqueville – o modelo, e a jovem América que não chegara ao termo da sua “fronteira”, quando muito uma Europa futura. Mas sobretudo, a Europa, por mais paradoxal que pareça, nesse confronto de imagens, era ela mesma o mito da Civilização e, embora, social e culturalmente no continente de diversas e antagónicas nações, aos olhos do mundo e na ordem política, o nosso continente era um “todo”. Um todo sobretudo no seu papel de continente “civilizado” e “civilizador”.

Duas guerras suicidárias, o fim da descolonização que sempre de fora dava à Europa a sua figura civilizadora e imperialista, converteram o continente-Civilização, primeiro em destroços, depois num mundo politicamente sem centro e, por fim, embora de novo social e culturalmente ainda brilhante, numa espécie de Grécia que nem espera Alexandre nem a futura Roma para ser a subalterna realidade política em que se converteu.

Aproximar para fins de compreensão geopolítica a América e a Europa só tem sentido em relação a um passado recente em que uma e outra eram actores da História ou em vista de uma Europa, continente unificado ou unificável, futuramente (im)plausível. A América, goste-se ou não se goste, neste momento é ainda uma força que avança, uma vontade histórico-política com um sujeito próprio, e o novo César de um império romano fictício, mas que como tal se sonha ainda. A Europa na sua realidade concreta são “nações” – e é o que como “nações” se vive que é importante – sem nenhum “centro” nem vontade política digna desse nome. No melhor dos casos, em nome do seu fabuloso passado político é ainda uma sociedade de resistência e de protesto face a uma sociedade (a mesma) hiperliberal como a americana, mas que é uma Nação. Mas mesmo nesta perspectiva, a realidade europeia é, pelo menos, a de duas Europas – não a antiga, da guerra fria, de oeste a leste – mas uma pró-americana de ideologia e quase ocupação, e outra, mais contestatária, de tradição socializante e crítica em relação ao paradigma dominante americano. Paradoxo quase burlesco, típico da inversão de signo da nova fase do Ocidente, são os antigos países de Leste que caíram na escarcela dos Estados Unidos como frutos maduros, e são os do ocidente, aliados preferenciais da América, que mais contestam as pretensões imperialistas do país de Lincoln e Bush.

Apesar de na ordem política e militar a Europa estar reduzida a uma “Natolândia”, a “velha Europa”, tão pouco cara a Rumsfeld, responsável pela nova estratégia norte- americana no mundo, não é bem e nunca será, mais um “estado” em uma série de “estados” da grande América. Até se pode dizer que esta tão impressionante supremacia americana no contexto de um Ocidente tão assimétrico como é o nosso, é, em grande parte, ilusória. Um bom entendimento com a Europa – em todos os planos – ainda é importante para os Estados Unidos e claro está não o é menos para a Europa. A Europa – e já o provou em circunstâncias graves – é para os Estados Unidos um factor positivo na sua política planetária que tem muito de “fuga para a frente”. E a Europa não está sozinha no mundo. Ainda é um interlocutor válido no novo jogo mundial onde a China e a Índia entraram ou reentraram com espectacular presença. Sem falar na diversa mas complementar posição de ambas – América e Europa – em relação ao Islão. A “impotência” europeia não é apenas um elemento negativo na perspectiva das relações América-Europa. Essa “impotência” é também sabedoria tardia mas efectiva de um continente que, depois de várias peripécias suicidárias se converteu no continente da paz por excelência. Continente de paz activa, entenda-se, não de espaço egoisticamente preservado de conflitos ou alheio aos males do mundo e, em particular, aos que afectam as áreas onde a Europa teve responsabilidades históricas e, agora, deveres éticos imperativos.

A América que está ou tem tendência – mormente sob o ponto de vista tecnológico – a estar em toda a parte e a intervir cada vez mais abertamente no destino do planeta como um todo não só presume das suas forças, como não pode levar a cabo a sua “missão” providencial sem o consentimento implícito e o apoio de uma Europa, por mais subalternizada que esteja ou pareça. Vendo bem, esta América tão fora dela e tão dominadora do mundo, não está certa de um futuro tão “americano”, como agora o imagina e nós europeus temos tendência a crer, hipnotizados pelo exemplo dos exemplos, o do Império Romano. A América é um falso império romano, que se construiu no tempo lento de uma outra civilização imóvel por dentro durante quase mil anos, com quatro de gloriosa decadência. De um certo modo, a Europa não apenas como passado, mas como realidade futurante, não tem menos garantia de perenidade (e de íntima coesão de memória) que esta América em contínuo processo de construção-destruição do seu próprio modelo. Nem o factor língua tão homogéneo ainda hoje lhe assegura o domínio cultural que é ainda o seu. Há uma caoticidade inerente à sociedade americana – hoje factor até certo ponto do seu dinamismo – que mina surda ou já visivelmente a espécie de “nação”, maior do que ela mesma que são os Estados Unidos. É duvidoso que o seu novo modelo imperial como solução de emergência para canalizar os seus elementos centrípetos, lhe assegure como outrora a Roma, uma perenidade política de alcance planetário. Mais fácil será que essa “performance “ venha de impérios com memória milenária e estruturante, entre eles a China e o Japão. De qualquer modo, se como “império ocidental” os Estados Unidos se consolidarem é imperativo que associem a uma nova utopia precisamente essa Europa, filha do Império Romano, de onde a ideia de um império mundial surgiu. E que nessa Europa não se esqueça a Rússia, nação messiânica e imperial. Com estes três lados poderá reinventar o antigo triângulo mítico e místico que a religião dominante do Ocidente configurou na Trindade. O Ocidente é um todo e é uma ilusão de nação adolescente pensar que a mera supremacia militar, financeira e económica assegure à mais optimística criatura da velha Europa, o domínio do mundo. Sozinha a América não chegará ao fim de si mesma.

Lisboa, 1 de Maio de 2005

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