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MOZAR MARTINS DE SOUZA

OS ESSÊNIOS

E O

CRISTIANISMO

PREFÁCIO

Neste livro vamos estudar os fatos relativos à pesquisa do cristianismo que, no meu entendimento, estão pouco disponíveis em língua portuguesa. Sei, perfeitamente, que essa forma poderá causar certa frustração nas pessoas interessadas, que acessarem este livro, mas por outro lado, a chama deste conhecimento estará mais rapidamente disseminada.

Procurarei sempre fazer as interrupções em pontos que não prejudiquem o entendimento, evitando quebras bruscas na continuidade, o assunto seguinte será sempre um tópico, tanto quanto possível, se não independente, em continuação cronológica, histórica ou sobre fatos paralelos ao assunto anterior.

OS ESSÊNIOS

 

Abril de 1947, no vale de Khirbet Qumran, junto às encostas do Mar Morto, Juma Muhamed, pastor beduíno da região, recolhia seu rebanho quando ao seguir atrás de uma ovelha desgarrada percebeu que havia uma extensa fenda entre duas rochas. Curioso, atirou uma pedra e ouviu o ruído de um vaso se quebrando. No vaso, encontrou pergaminhos.

Este momento caracterizou-se como um marco para o mundo arqueológico:

A Descoberta dos Manuscritos do Mar Morto.

Desde então, a tradução e divulgação do seu conteúdo têm atraído atenção mundial, e uma grande expectativa tem se instaurado quanto a possíveis segredos ainda não revelados.

  Foram encontradas em 11 cavernas, nas ruínas de Qumran, centenas de pergaminhos que datam do terceiro século a.C até 68 d.C., segundo testes realizados com carbono 14. Os Manuscritos do Mar Morto foram escritos em três idiomas diferentes: Hebreu, Aramaico e Grego, totalizando quase mil obras.

Eles incluíam manuais de disciplinas, hinários, comentários bíblicos, escritos apocalípticos, cópias do livro de Isaías e quase todos os livros do Antigo Testamento.

De acordo com os estudiosos, os Manuscritos estão divididos em três grupos principais: Sectários, Apócrifos e Bíblicos. Os Bíblicos reúnem todos os livros da Bíblia, exceto Ester, no total 22 livros. Os Apócrifos são os livros sagrados excluídos da Bíblia, e, finalmente os Sectários que são pergaminhos relacionados com a seita, incluindo visões apocalípticas e trabalhos litúrgicos.

No livro "As doutrinas secretas de Jesus", o autor H. Spencer Lewis, F.R.C., Ph.D., cita na pág. 28 a referência (chave 15):

"Essa sociedade secreta (sociedade secreta de Jesus) pode ou não ter sido afiliada aos essênios, outra sociedade secreta com que Jesus estava bem familiarizado".

A descoberta dos Pergaminhos do Mar Morto confirmou a referência feita pelo autor aos essênios e seus ensinamentos secretos, que precederam o cristianismo e que Jesus deve ter conhecido bem. Um relatório parcial sobre essa descoberta, do arqueólogo inglês G. Lankester Harding, Diretor do Departamento de Antiguidades da Jordânia, diz o seguinte:

"A mais espantosa revelação dos documentos essênios até agora publicada é a de que os essênios possuíam, muitos anos antes de Cristo, práticas e terminologias que sempre foram consideradas exclusivas dos cristãos. Os essênios tinham a prática do batismo, e compartilhavam um repasto litúrgico de pão e vinho presidido por um sacerdote. Acreditavam na redenção e na imortalidade da alma. Seu líder principal era uma figura misteriosa chamada o Instrutor da Retidão, um profeta-sacerdote messiânico abençoado com a revelação divina, perseguido e provavelmente martirizado."

"Muitas frases, símbolos e preceitos semelhantes aos da literatura essênia são usados no Novo Testamento, particularmente no Evangelho de João e nas Epístolas de Paulo. O uso do batismo por João Batista levou alguns eruditos a acreditar que ele era essênio ou fortemente influenciado por essa seita. Os Pergaminhos deram também novo ímpeto à teoria de que Jesus pode ter sido um estudante da filosofia essênia. É de se notar que o Novo Testamento nunca menciona os essênios, embora lance freqüentes calúnias sobre outras duas seitas importantes, os saduceus e os fariseus."

Todos esses documentos foram preservados por quase dois mil anos e são considerados os achados do século, principalmente porque a Bíblia, até então conhecida, data de uma tradução grega, feita pelo menos mil anos depois da de Qumran. Hoje, os Manuscritos do Mar Morto encontram-se no Museu do Livro em Jerusalém.

O nome Essênios deriva da palavra egípcia Kashai, que significa "secreto". Na língua grega, o termo utilizado é "therepeutes", originário da palavra Síria "asaya", que significa médico. A organização nasceu no Egito nos anos que precedem o Faraó Akhenathon, o grande fundador da primeira religião monoteísta, sendo difundida em diferentes partes do mundo, inclusive em Qumran. Nos escritos dos Rosacruzes, os Essênios são considerados como uma ramificação da "Grande Fraternidade Branca".

Segundo estudiosos, foi nesse meio onde passou Jesus, no período que corresponde entre seus 13 e 30 anos. Alguns estudiosos também acreditam que a Igreja Católica procura manter silêncio acerca dos essênios, tentando ocultar que receberam desta seita muitas influências.

Para medir o tempo, os Essênios utilizavam um calendário diferenciado, baseado no sol. Ao contrário do utilizado na época, que consistia de 354 dias, seu calendário continha 364 dias que eram divididos em 52 semanas permitindo que cada estação do ano fosse dividida em 13 semanas e mais um dia, unindo cada uma delas.

Consideravam seu calendário sintonizado com a "Lei da Grande Luz do Céu". Seu ritmo contínuo significava ainda que o primeiro dia do ano e de cada estação sempre caía no mesmo dia da semana, quarta-feira, já que de acordo com o Gênesis, foi no quarto dia que a Lua e o Sol foram criados.

Segundo os Manuais de Disciplina dos Essênios dos Manuscritos do Mar Morto, os essênios eram realmente originários do Egito, e durante a dominação do Império Selêucida, em 170 a.C., formaram um pequeno grupo de judeus, que abandonou as cidades e rumou para o deserto, passando a viver às margens do Mar Morto, e cujas colônias estendiam-se até o vale do Nilo.

No meio da corrupção que imperava, os essênios conservavam a tradição dos profetas e o segredo da Pura Doutrina. De costumes irrepreensíveis, moralidade exemplar, pacíficos e de boa fé, dedicavam-se ao estudo espiritualista, à contemplação e à caridade, longe do materialismo avassalador. Os essênios suportavam com admirável estoicismo os maiores sacrifícios para não violar o menor preceito religioso.

Procuravam servir a Deus, auxiliando o próximo, sem imolações no altar e sem cultuar imagens. Eram livres, trabalhavam em comunidade, vivendo do que produziam.

Os Essênios não tinham criados, pois acreditavam que todo homem e mulher era um ser livre. Tornaram-se famosos pelo conhecimento e uso das ervas, entregando-se abertamente ao exercício da medicina ocultista. 

Em seus ensinos, seguindo o método das Escolas Iniciáticas, submetiam os discípulos a rituais de Iniciação, conforme adquiriam conhecimentos e passavam para graus mais avançados. Mostravam então, tanto na teoria quanto na prática, as Leis Superiores do Universo e da Vida, tristemente esquecidas na ocasião. Alguns dizem que eles preparavam a vinda do Messias.

Era uma seita aberta aos necessitados e desamparados, mantendo inúmeras atividades onde, a acolhida, o tratamento de doentes e a instrução dos jovens eram a face externa de seus objetivos. Não há nenhum documento que comprove a estada essênia de Jesus, no entanto seus atos são típicos de quem foi iniciado nesta seita. A missão dos seguidores do Mestre Verdadeiro foi a de difundir a vinda de um Messias e nisto contribuíram para a chegada de Jesus. 

Na verdade, os essênios não aguardavam um só Messias, e sim, dois. Um originário da Casa de Davi, viria para legislar e devolver aos judeus a pátria e estabelecer a justiça. Esse Messias-Rei restituiria ao povo de Israel a sua soberania e dignidade, instaurando um novo período de paz social e prosperidade. Jesus foi recebido por muitos como a encarnação deste Messias de sangue real. No alto da cruz onde padeceu, lia-se a inscrição: Jesus Nazareno Rei dos Judeus. 

O outro Messias esperado nasceria de um descendente da Casa de Levi. Este Salvador seguiria a tradição da linhagem sacerdotal dos grandes mártires. Sua morte representaria a redenção do povo e todo o sofrimento e humilhação por que teria que passar em vida seria previamente traçado por Deus.

O Messias-Sacerdote se mostraria resignado com seu destino, dando a vida em sacrifício. Faria purgar os pecados de todos e a conduta de seus atos seria o exemplo da fé que leva os homens a Deus. Para muitos, a figura do pregador João Batista se encaixa no perfil do segundo Messias.

Até os nossos dias, uma seita do sul do Irã, os mandeanos, sustentam ser João Batista o verdadeiro Messias. Vivendo em comunidades distantes, os essênios sempre procuravam encontrar na solidão do deserto o lugar ideal para desenvolverem a espiritualidade e estabelecer a vida comunitária, onde a partilha dos bens era a regra.

Rompendo com o conceito da propriedade individual, acreditavam ser possível implantar no reino da Terra a verdadeira igualdade e fraternidade entre os homens. Consideravam a escravidão um ultraje à missão do homem dada por Deus. Todos os membros da seita trabalhavam para si e nas tarefas comuns, sempre desempenhando atividades profissionais que não envolvessem a destruição ou violência.

Não era possível encontrar entre eles açougueiros ou fabricantes de armas, mas sim grande quantidade de mestres, escribas, instrutores, que através do ensino passavam de forma sutil os pensamentos da seita aos leigos.

O silêncio era prezado por eles. Sabiam guardá-lo, evitando discussões em público e assuntos sobre religião. A voz, para um essênio, possuía grande poder e não devia ser desperdiçada. Através dela, com diferentes entonações, eram capazes de curar um doente. Cultivavam hábitos saudáveis, zelando pela alimentação, físico e higiene pessoal. A capacidade de predizer o futuro e a leitura do destino através da linguagem dos astros tornou os essênios figuras magnéticas, conhecidas por suas vestes brancas.

Eram excelentes médicos também. Em cada parte do mundo onde se estabeleceram, eles receberam nomes diferentes, às vezes por necessidades de se proteger contra as perseguições ou para manter afastados os difamadores. Mestres em saber adaptar seus pensamentos às religiões dos países onde se situavam, agiram misturando muitos aspectos de sua doutrina a outras crenças. O saber mais profundo dos essênios era velado à maioria das pessoas.

É sabido também que liam textos e estudavam outras doutrinas. Para ser um essênio, o pretendente era preparado desde a infância na vida comunitária de suas aldeias isoladas. Já adulto, o adepto, após cumprir várias etapas de aprendizado, recebia uma missão definida que ele deveria cumprir até o fim da vida. Vestidos com roupas brancas, ficaram conhecidos em sua época como aqueles que "são do caminho".

Foram fundadores dos abrigos denominados "beth-saida", que tinham como tarefa cuidar de doentes e desabrigados em épocas de epidemia e fome. Os beth-saida anteciparam em séculos os hospitais, instituição que tem seu nome derivado de hospitaleiros, denominação de um ramo essênio voltado para a prestação de socorro às pessoas doentes. 

Fizeram obras maravilhosas, que refletem até os nossos dias. A notícia que se tem é de que a seita se perdeu, no tempo e memória das pessoas. Não sabemos da existência de essênios nos dias de hoje (não que seja impossível), é no mínimo, pelo lado social, uma pena termos perdido tanto dos seus preceitos mais importantes. Se o que nos restou já significa tanto, imaginem o que mais poderíamos vir a ter aprendido.

DESVENDADO OS PERGAMINHOS

Escrevendo em 1949 sobre a exploração da gruta, R. de Vaux acreditava que "estes rolos, de idades diferentes, cuidadosamente guardados em vasilhas da mesma época, não são peças abandonadas por acaso, mas um arquivo ou biblioteca escondida em um momento de perigo". E, ao datar a cerâmica e com ela relacionar os manuscritos, acrescenta: "Nenhum documento é posterior aos começos do século I a.C. e alguns deles podem ser mais antigos".

Agora é necessário descobrir quem teria depositado os manuscritos na gruta. O estabelecimento humano mais próximo é representado pelas ruínas de Qumran. R. de Vaux e G. L. Harding fazem assim a primeira expedição de escavações no Khirbet Qumran de 24 de novembro a 12 de dezembro de 1951.

Identificam uma construção retangular de 37 metros de comprimento por 30 metros de largura à qual se ligam outros edifícios e um aqueduto que serve para recolher as águas do Wadi Qumran no inverno. A cerâmica encontrada é idêntica à de 1Q: isto relaciona os manuscritos com o grupo que vivia em Qumran. O cemitério, com mais de mil túmulos, rigorosamente organizado, também é investigado e nove esqueletos são enviados a Paris para exames técnicos.

Mas as moedas são o achado mais precioso, porque permitem a datação do assentamento humano de Qumran. As dez moedas identificadas inicialmente vão da época de Herodes Magno (37-4 a.C.) à segunda guerra judaica contra Roma (132-135 d.C.).

Entretanto, ainda em 1951, os ta'amireh levam mais fragmentos manuscritos a Jerusalém e os oferecem aos arqueólogos, que os compram. No dia 21 de janeiro de 1952, R. de Vaux e outros arqueólogos seguem até a região do Wadi Murabba'at, situado a 25 km a sudeste de Jerusalém e a cerca de 18 km ao sul de Qumran. Em algumas grutas desta região são encontrados importantes documentos em hebraico, aramaico, grego e latim, relacionados em sua maioria, com a segunda guerra judaica contra Roma  (132-135 d.C.) Fica estabelecido que Murabba'at servia de refúgio aos soldados de Simão bar Kosibah, líder do levante, de quem são recuperadas até cartas assinadas.

Enquanto a equipe de R. de Vaux se encontra em Murabba'at, os ta'amireh levam novos manuscritos a Jerusalém, descobertos em outra gruta de Qumran, que será chamada de 2Q. Nela são encontrados 185 fragmentos de pele. Logo em seguida, De Vaux e seu pessoal, em março de 1952, faz um levantamento da falésia, numa extensão de 8 km, explorando 230 grutas. Destas, 37 contêm cerâmica e outros objetos. E a cerâmica é idêntica à das ruínas de Qumran e da primeira gruta.

Na terceira gruta de Qumran são encontrados cerca de 35 jarros e fragmentos de mais ou menos 30 rolos de pele extremamente deteriorados. "Mas o seu conteúdo mais curioso era de cobre: na parte anterior da gruta (...) jaziam dois rolos de cobre com um texto gravado em caracteres hebraicos quadrados, alguns deles em relevo".

Em setembro de 1952 são descobertas as grutas de número 4, 5 e 6. A gruta 4Q é a mais rica de todas: possui fragmentos de cerca de 400 manuscritos.

Na 6Q são encontrados fragmentos do "Documento de Damasco", um manuscrito que fora recuperado em 1897 em uma antiga sinagoga do Cairo e do qual não se sabia quase nada.

Na primavera de 1955 são descobertas as grutas 7Q, 8Q, 9Q e 10Q, e em fevereiro de 1956, a última, a 11Q, com quatro rolos em bom estado de conservação.

As ruínas de Qumran são escavadas em 6 diferentes expedições que se encerram em 1958. Arqueólogos judeus pesquisam também os wadis da região ocidental do Mar Morto entre Engaddi e Massada e encontram importantes documentos.

No total, cerca de mil documentos são recuperados em 20 grutas no deserto de Judá, entre os anos de 1946 e 1966. Além de centenas de óstracas (cacos de cerâmica com escrita) e inscrições.

Em Khirbet Qumran os arqueólogos identificam um conjunto de construções bastante interessante: oficinas, olaria, despensas, refeitório, cisternas, um "scriptorium" etc. Nenhum fragmento de manuscrito é encontrado nas construções, mas apenas alguns óstracas. E a sua grafia é a mesma dos manuscritos encontrados nas grutas. Também são recolhidas cerâmicas, muitas moedas e outros objetos.

O curioso é que o edifício não tem dormitórios. Ou se dormia em tendas ou nas grutas das redondezas. O estabelecimento agrícola de Ain Feshka, ao sul de Qumran, também é explorado. Ali os essênios manufaturam a palmeira, juncos, sal, betume e cereais. Estes últimos são cultivados numa planície a oeste de Qumran, a Buqea, que mede cerca de 8x4 km.

No total, são recuperados, em 11 grutas de Qumran, 11 manuscritos mais ou menos completos e milhares de fragmentos de mais de 800 manuscritos em pergaminho e papiro. Escritos em hebraico, aramaico e grego, cerca de 225 manuscritos são cópias de livros bíblicos, sendo o restante livros apócrifos, trabalhos exegéticos e escritos da comunidade que vive em Qumran.

Todos os manuscritos são anteriores ao ano 68 d.C., quando Qumran é destruído. Os mais antigos são anteriores à instalação da comunidade que vive em Qumran e remontam ao século III a.C. O mais antigo é o 4QEx, datado em torno de 250 a.C. O teste do Carbono 14 chega à data de 33 a.C. com 200 anos para mais ou para menos.

O método do Carbono 14, descoberto em 1947, é aplicado em 1950-51 a um pedaço de linho que envolve os manuscritos. Não é possível aplicá-lo diretamente aos manuscritos porque exige a destruição de 1 a três gramas de material.

Mais recentemente, em 1990, 14 manuscritos são submetidos ao teste AMS (Accelerator Mass Spectrometry), ou Espectrometria com Acelerador de Massa, técnica de datação descoberta em 1987. O material orgânico necessário para o AMS é de apenas 0,5 a 1,0 miligrama. Dos 14 manuscritos testados, 4 não são de Qumran e estão datados com segurança através de outros métodos: isto é necessário para se checar a veracidade dos resultados. E os resultados confirmam, com certa segurança, a datação feita através de outros métodos como a paleografia. Com certeza nenhum dos manuscritos de Qumran foi copiado após 68 d.C.

Manuscritos Bíblicos:

São recuperados manuscritos e fragmentos de quase todos os livros bíblicos judaicos, pois só falta Ester.

O Pentateuco está muito bem representado em Qumran, pois há 15 manuscritos fragmentados do Gênesis, 15 do Êxodo, 9 do Levítico, 6 de Números e 25 do Deuteronômio. São 70 manuscritos. Estes manuscritos ligam-se a três tradições textuais: 

a) à do texto massorético (TM);

b) à do original hebraico a partir do qual é traduzida a LXX ;

c) à do Pentateuco samaritano.

A parte da Bíblia que hoje conhecemos como Obra Histórica Deuteronomista (OHDtr.), composta pelos livros de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis está pouco presente em Qumran, num total de apenas 12 manuscritos.

Os arqueólogos recuperam apenas fragmentos de 2 manuscritos de Josué, 3 de Juízes, 3 de Samuel e 4 de Reis. O grande interesse desses manuscritos para os estudiosos é que eles estão bem mais próximos do texto hebraico usado para a tradução da LXX do que do texto massorético.

Dos profetas são encontrados 18 manuscritos: 2 de Isaías - um quase completo (1QIsa) e outro com uma parte apenas (1QIsb) - 4 de Jeremias, 6 de Ezequiel e 8 dos doze profetas menores.

Os textos de Isaías são próximos ao TM, assim como os de Ezequiel e dos profetas menores, mas um manuscrito de Jeremias, 1QJrb, traz o mesmo texto da LXX. E isso é importante, pois o Jeremias da LXX é bem mais curto do que o do TM. Este é resultado de uma ampliação posterior, enquanto o que serve de base para a LXX é mais sóbrio.

1QIsa é um rolo quase completo de Isaías, datando da primeira metade do séc. I a.C. 1QIsb está mal conservado e contém apenas Is 38-66 e trechos de outros capítulos. É da última metade do séc. I a.C.

Quanto à última parte da Bíblia Hebraica, os Escritos, são recuperados em Qumran restos de cerca de 66 manuscritos. Os Salmos estão bem representados com 30 manuscritos, Daniel está em 8 e assim por diante. Na gruta 4 são recuperados fragmentos do original aramaico de Tobias, até então perdido, e textos muito próximos à época de composição dos originais como 4QEcla e 4QDn, respectivamente, cerca de cem e cinqüenta anos após a escrita dos livros do Eclesiastes e de Daniel.

Ester não é encontrado. Como esse livro é muito bem aceito pelos Macabeus, isto deve ter provocado sua rejeição pela comunidade de Qumran, inimiga daqueles governantes.

No conjunto, são cerca de 225 manuscritos ou fragmentos de livros bíblicos. Sua importância para a história do texto do AT é grande, já que testemunham as várias tradições existentes antes da unificação feita pelos rabinos de Jâmnia nos anos 90 da era cristã.

Livros Apócrifos:

Outra área bastante interessante dos manuscritos de Qumran é a dos livros apócrifos.

Na gruta 1 são encontradas 22 colunas de um Gênesis Apócrifo (1QapGn), em aramaico, que narra a história de Gn 5,28-15,4, isto é, de Lamec a Abraão, com embelezamentos midrashicos. Pode ser datado entre o II e o I séculos a.C.

Vários fragmentos da gruta 1 testemunham a existência de um Livro de Noé. Na gruta 4 há fragmentos de 5 manuscritos de um Testamento de Amram (Amram é neto de Levi, segundo a Bíblia), sete fragmentos de um Samuel Apócrifo (4Q160) etc.

COMENTÁRIOS BÍBLICOS:

Os comentários bíblicos de Qumran são do gênero pesher, palavra hebraica que quer dizer "explicação", “significado". O método pesher consiste em comentar o texto bíblico versículo por versículo, procurando aplicá-lo às circunstâncias vividas pela comunidade, como se os textos bíblicos, especialmente os proféticos, estivessem falando diretamente da realidade atual. Os livros resultantes são conhecidos como pesharim, "comentários".

Após citar um versículo ou mesmo trechos menores, o comentarista diz: "A explicação (pesher) disto diz respeito a...".

Estes livros são classificados como 1QpHab, 1QpMq, 4QpOs etc, respectivamente, Comentário (pesher) de Habacuc, Comentário de Miquéias, Comentário de Oséias e assim por diante. Estão identificados cerca de uma dúzia destes comentários entre os manuscritos de Qumran.

Os pesharim, além de exemplificarem um método exegético só usado pela comunidade de Qumran e pelos cristãos, são importantes igualmente como testemunhos históricos da organização e vicissitudes da comunidade.

O pesher mais importante de Qumran é o 1QpHab, Comentário de Habacuc, escrito provavelmente no começo do séc. I a.C., por suas constantes referências à história da comunidade.

Outro tipo de trabalho exegético encontrado em Qumran é o targum. Targum significa "tradução" e indica as traduções aramaicas dos livros bíblicos (targumim) que se fazem nas sinagogas da época. Só que o targum não é uma tradução literal, mas uma paráfrase explicativa e atualizada do texto hebraico. É ótimo para se saber como os judeus interpretam o texto bíblico.

Na gruta número 11 de Qumran os arqueólogos encontram vários fragmentos de origem targúmica, entre eles um Targum de Jó. É o mais antigo dos targumim conhecidos, sendo do final do séc. II a.C.

Outro tipo de exegese é o que os editores dos manuscritos chamam de Florilégio: consiste em agrupar vários trechos bíblicos, que possuam alguma homogeneidade, para que eles se completem e sejam explicados. O fragmento 4Q174, por exemplo, reúne trechos de 2Sm 7 com Sl 1 e 2 que são interpretados, em seguida, segundo o padrão do pesher.

Regras da comunidade:

De extrema importância são os livros que trazem as normas de constituição e atividades da comunidade de Qumran.

  A Regra da Comunidade ou Manual de Disciplina, em hebraico, Serek hayahad (1QS), é o principal livro da comunidade de Qumran. É o manuscrito que contém as normas que governam a comunidade. Provavelmente seu autor é o próprio fundador da comunidade, conhecido nos textos como o Mestre da Justiça. Sua composição pode ser situada entre 150 e 125 a.C., enquanto que o manuscrito completo é dos anos 100-75 a.C.

Além da cópia completa encontrada em 1Q, fragmentos de outras 11 cópias estão entre os textos de 4Q e 5Q.

A Regra pode ser dividida em três seções:

 

1. Normas para o ingresso na Comunidade (I-IV);

  2. Estatutos referentes ao Conselho da Comunidade (V-IX);

  3. Diretrizes para o Mestre e o Hino do Mestre (IX-XI).

 

A Regra da Congregação, em hebraico,Serek ha'edat (1QSa), e a Coleção de Bênçãos (1QSb) são dois anexos à Regra da Comunidade. A primeira é da metade do séc. I a.C. e a segunda pode ser datada por volta de 100 a.C. A Regra da Congregação é um escrito de tipo escatológico que descreve a vida e o banquete da comunidade no fim dos tempos. A Coleção de Bênçãos é uma antologia de fórmulas para abençoar os membros da comunidade.

  Os Cânticos de Louvor, em hebraico, Hôdayôt (1QH), são cânticos de ação de graças ou hinos de louvor, parecidos com o "Magnificat" e o "Benedictus" de Lucas. Inspiram-se principalmente nos Salmos e em Isaías. Devem ter sido compostos entre 150 e 125 a.C., e, pelo menos em parte, pelo Mestre da Justiça. O manuscrito de 1Q provém dos anos 1 a 50 d.C. Em 4Q são encontrados fragmentos de mais 6 cópias.

  A Regra da Guerra, em hebraico, Serek hamilhamah, também conhecida como "A guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas", "compreende uma espécie de compêndio da ciência bélica e das celebrações cultuais que deveriam ser observadas por ocasião de uma guerra com vistas à luta final que precederia a era da salvação". Os filhos da luz contam com a ajuda dos anjos Miguel, Rafael e Sariel, enquanto que os filhos das trevas contam com Belial. A vitória, é claro, é dos filhos da luz. O original é composto entre os anos 50 a.C. e 25 d.C., enquanto que o manuscrito encontrado em 1Q é do séc. I d.C. Em 4Q são encontrados fragmentos de mais cinco cópias deste livro.

  O Documento de Damasco (CD) é uma obra conhecida desde 1896-97, quando dois manuscritos são encontrados num depósito de rolos velhos (genizá) de uma antiga sinagoga do Cairo. Um dos manuscritos é do século X d.C. e o outro do séc. XII d.C. Publicados em 1910, continuam, então, um enigma: não se sabe a que grupo judeu o texto se refere e que certamente compôs a obra. Os estudiosos sugerem os saduceus, os fariseus, os ebionitas, os caraítas... e apenas um diz que é dos essênios!

  Agora, acontece que fragmentos de nove cópias do Documento de Damasco são encontrados nas grutas de Qumran (7 fragmentos em 4Q, 1 em 5Q, 1 em 6Q): sem dúvida é uma obra criada na comunidade essênia.

  Muitos especialistas defendem que "Damasco" deve ser entendido em sentido literal e que representaria uma primeira fase da comunidade, anterior ao seu estabelecimento em Qumran. Outros pensam que "Damasco" seja apenas um modo velado de se falar de Qumran, a partir de Am 5,26-27. E o Documento pode ser também a regra de outra ala da organização, que viveria fora de Qumran.

  A obra compõe-se de uma exortação e de uma lista de estatutos. Na exortação o pregador (talvez uma autoridade da comunidade) tem por objetivo "encorajar os sectários a permanecerem fiéis e, com este fim em vista, ele se empenha em demonstrar, por meio da história de Israel e da comunidade, que a fidelidade é sempre recompensada e a apostasia castigada".

  Os estatutos reinterpretam as leis bíblicas relativas a votos e juramentos, tribunais, purificação, sábado, pureza ritual etc. Trazem também os estatutos da comunidade. O Documento de Damasco deve ter sido escrito por volta de 100 a.C.

  Consulte o conceituado The Orion Center sobre a pesquisa dos Manuscritos.

   O Rolo do Templo, encontrado na gruta 11, (11QT), só aparece em junho de 1967, durante a "Guerra dos Seis Dias", quando o Estado de Israel o retira das mãos de um antiquário da parte árabe de Jerusalém, a quem os ta'amireh o vendera.

  É o maior dos manuscritos de Qumran, com mais de oito metros e meio de comprimento e 66 colunas. Trata do Templo e do culto, e embora se trate de uma reinterpretação da legislação bíblica do Êxodo, Levítico e Deuteronômio, o autor apresenta sua mensagem como fruto de revelação divina direta. O Rolo do Templo é do séc. II a.C. São encontrados fragmentos deste livro nas grutas 4Q e 11Q.

O rolo de cobre:

  Desde o início da década de 90, cerca de cem estudiosos de todo o mundo participaram das pesquisas, sob a supervisão do Departamento de Antiguidades de Israel.

  O resultado deste trabalho que envolveu cerca de 900 pergaminhos está sendo apresentado em 38 volumes, dois dos quais em fase final de preparação. Entre os documentos publicados está o conteúdo do Rolo de Cobre, com a suposta localização de tesouros do Templo.

Os Manuscritos foram encontrados entre 1947 e 1956 nas grutas de Qumran, região localizada ao sul da cidade de Jericó, na margem ocidental do Mar Morto. Segundo os estudos realizados, alguns são datados de aproximadamente 250 antes da era comum e outros do ano 70 da era comum. A maioria dos textos foi escrita em hebraico e sobre pergaminhos, porém há alguns em aramaico ou grego, em papiro. Entre as principais dificuldades encontradas pelos pesquisadores, está o fato de terem sido encontrados fragmentos, principalmente, e não rolos completos.

Os primeiros sete rolos foram descobertos ao acaso por um beduíno, em 1947.

Três desses foram comprados pelo arqueólogo E.L. Sukenik e quatro contrabandeados para os Estados Unidos. Foi somente em 1954 que o arqueólogo e filho de Sukenik, Yigal Yadin, conseguiu que estes últimos fossem encaminhados a Israel. Para marcar o fato, foi construído o Santuário do Livro, um anexo do Museu de Israel, em Jerusalém, local que abriga a maioria dos fragmentos e no qual há uma exposição permanente dos Manuscritos do Mar Morto.

Entre os 900 pergaminhos reconstituídos pelos pesquisadores, cerca de 200 contêm o mais primitivo original bíblico conhecido, enquanto os demais incluem orações, rituais e regras provavelmente dos essênios, uma comunidade judaica isolada e austera que viveu em Qumran.

Um rolo, em especial, chamou a atenção dos pesquisadores:

Diferentemente dos demais, que narram estilo de vida, hábitos e costumes dos essênios, este, além de conter textos literários, traz a suposta localização de tesouros enterrados há séculos.

Para alguns especuladores, seriam tesouros do Segundo Templo, escondidos antes da sua destruição, no ano 70 da era comum. Para outros, seria o patrimônio acumulado pelos essênios, comunidade que fizera um voto de pobreza. De qualquer maneira, independentemente das teorias, segundo o conteúdo do Rolo de Cobre, foram escondidas mais de 200 toneladas de ouro e prata, que estariam à disposição de quem conseguir encontrá-las. Pois, como disse um arqueólogo israelense, ao se decifrar o Rolo de Cobre, o mesmo se tornou acessível a qualquer criança que saiba ler.

O Rolo de Cobre foi restaurado no Laboratório Valectra, unidade nuclear de Pesquisa e Desenvolvimento da estatal Electricité de France. Foi descoberto em 20 de março de 1952, em duas partes, na caverna de número três, próximo a Qumram, por Henri de Contenson, da Escola Dominicana de Arqueologia Bíblica de Jerusalém (EBAJ). A presença de rebites nas duas partes encontradas comprovou a teoria de que compunham um único documento, com 240 centímetros de largura e 30 de altura. Decifrá-lo, no entanto, revelou-se difícil por causa da oxidação do metal, que impossibilitou desenrolá-lo.

Em 1955, diante da falta de recursos, na Jordânia, para dar continuidade às pesquisas, o Rolo de Cobre foi enviado à Universidade de Manchester, Inglaterra, aos cuidados do professor H. Wright-Baker. A metodologia adotada implicou no corte do objeto em 23 peças, para limpeza, fotografias e decifração. A divulgação do conteúdo do Rolo de Cobre foi feita em etapas, a partir de 1956, pelo padre Joseph T. Milk, da EBAJ, responsável pela versão completa do texto, de 1962, com uma lista de 64 locais onde teriam sido escondidos os tesouros.

Nada no conteúdo decifrado, no entanto, responde a duas perguntas cruciais: de onde vieram os tesouros e qual a sua origem?

Não existe consenso nas respostas. Durante um simpósio internacional realizado em setembro de 1996, no Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade de Manchester, uma pesquisa informal revelou que a maioria dos 50 participantes acreditava no conteúdo do Rolo de Cobre, divergindo, no entanto, sobre a quem teriam pertencido: ao Segundo Templo ou aos essênios.

O Rolo de Cobre (3Q15) - que tem de ser cortado para ser aberto, de tão oxidado que estava - fala de um tesouro escondido em 64 lugares diferentes da Palestina, em ouro, prata, perfumes etc. O montante alcançaria a fabulosa quantia de 65 toneladas de prata e 26 toneladas de ouro.

Seria um tesouro de fato ou só uma ficção? Até hoje nada foi achado deste pretenso tesouro. Os estudiosos se dividem na suas opiniões: seria um tesouro da comunidade de Qumran? Ou pertenceria ao Templo de Jerusalém? Neste último caso, quando e porquê o documento vai parar em Qumran?.

A leitura, tradução e publicação dos manuscritos mais ou menos completos não é um grande problema para os especialistas. Mesmo os fragmentos das grutas menores são publicados até os anos 70.

O problema está nos milhares de fragmentos de mais de 500 manuscritos da gruta 4. A maioria está muito deteriorada: corroídos, curvados, enrugados, retorcidos, cobertos por mofo e elementos químicos.

Para trabalhar nestes fragmentos é constituída em 1952 uma equipe internacional no Museu Arqueológico da Palestina, em Jerusalém Oriental, pertencente à Jordânia.

O chefe da equipe é o dominicano R. de Vaux. Com ele trabalham Frank Moore Cross, americano, presbiteriano; J. T. Milik, polonês, católico; John Allegro, inglês, agnóstico; Jean Starcky, francês, católico; Patrick Skehan, americano, católico; John Strugnell, inglês, presbiteriano; Claus-Hunno Hunziger, alemão, luterano. Predominam especialistas de Harvard (USA), École Biblique (Jerusalém) e Oxford (Inglaterra).

"Ficou aparentemente entendido que esses pesquisadores possuíam o direito oficial de publicar os textos de seus respectivos quinhões. Na lista, era óbvia, e foi nitidamente percebida, a ausência do nome de qualquer pesquisador judeu. O governo jordaniano insistiu em que nenhum judeu fosse incluído na equipe".

Os trabalhos avançam em bom ritmo, já que são financiados por J. D. Rockfeller Jr., magnata americano. Mas, dois fatos intervêm: morre Rockfeller e Israel, na Guerra dos Seis Dias, em 1967, anexa Jerusalém Oriental e toma o Museu Arqueológico da Palestina onde estão os manuscritos da gruta 4. O projeto de publicação perde o compasso.

Com a morte de R. de Vaux em setembro de 1971, a função de editor-geral passa para seu colega dominicano Pierre Benoit, que por sua vez, ao morrer em 1987, passa o cargo para John Strugnell. Durante todos estes anos, a equipe continua pequena. Quando um pesquisador morre ou se retira, é substituído por outro e pronto. Strugnell, porém, lutará por duas coisas: pela expansão do pequeno grupo original encarregado dos manuscritos e pela inclusão neste equipe de pesquisadores judeus.

Entretanto, cresce no meio acadêmico mundial a insatisfação com a demora na publicação dos documentos. Alguns nomes se destacam neste protesto: Robert Eisenman, da Universidade do Estado da Califórnia e Philip Davies da Sheffield University, Inglaterra. Eles tentam o acesso aos manuscritos, mas são barrados por J. Strugnell. É então que entra em cena Hershel Shanks, fundador da Biblical Archaeology Society. Através da Biblical Archaeology Review, ele inicia, a partir de 1985, poderosa campanha em favor do livre acesso dos pesquisadores aos manuscritos ainda não publicados.

Após polêmica entrevista aos jornais, em dezembro de 1990, John Strugnell é demitido do cargo pela Israel Antiquities Authority (IAA), que indica Emanuel Tov como editor-chefe e amplia a equipe para cerca de 50 pesquisadores.

Contudo, dois novos fatos mudam o rumo das coisas. Em setembro de 1991 Ben Zion Wacholder e Martin Abegg do Hebrew Union College, em Cincinati, publicam A Preliminary Edition of the Unpublished Dead Sea Scrolls. Baseados no glossário elaborado pelos pesquisadores oficiais, e utilizando um computador, os dois estudiosos reconstroem textos inteiros da gruta 4. No mesmo mês, a Biblioteca Huntigton, de San Marino, Califórnia, que possui as fotos de todos os manuscritos, coloca a coleção à disposição dos estudiosos.

Em novembro de 1991 a Biblical Archaeology Society publica a Edição Fac-símile dos Manuscritos do Mar Morto, com cerca de 1800 fotografias dos manuscritos.

Neste meio tempo a IAA autoriza aos fotógrafos o acesso aos manuscritos. Estas fotografias estão disponíveis em 5 lugares: Jerusalém, Claremont e San Marino (as duas últimas na Califórnia), Cincinati e Oxford. E, finalmente, em 1993, sob os auspícios da IAA, sai a edição completa em microfilmes de todos os manuscritos do Mar Morto: The Dead Sea Scrolls on Microfiche. A Comprehensive Facsimile Edition of the Texts from the Judaean Desert, edited by Emanuel Tov with the collaboration of Stephen J. Pfann, E. J. Brill-IDC, Leiden 1993.

No Brasil temos a importante obra de Florentino García Martínez, Textos de Qumran, Petrópolis, Vozes,  1995, 582 pp. É uma acurada tradução dos 250 textos mais importantes de Qumran. A tradução do espanhol para o português é do exegeta Valmor da Silva.

É preciso assinalar que em nenhum dos manuscritos até agora publicados aparece a palavra "essênio". Este termo vem, provavelmente, do hebraico hassidim (os piedosos), em aramaico hassayya, em grego essaioi ou essênoi, daí "essênios".

Embora a quase totalidade dos estudiosos identifique a comunidade de Qumran com os essênios, são, às vezes, sugeridas outras possibilidades. Há a hipótese caraíta, judeu-cristã, zelota, saducéia e farisaica.

O grupo caraíta é fundado em Bagdá no séc. VIII d.C. pelo rabino Anan ben Davi, que proclama uma volta à Escritura. O termo vem de caraim, "leitores (da Escritura)", pois em hebraico qara é "ler". "Etimologicamente, os caraítas são, pois, os 'biblistas' ou 'especialistas da Escritura'; isso eles o seriam também historicamente".

Graças à afinidade existente entre a teologia da comunidade de Qumran e os caraítas é que se levanta a hipótese caraíta. Mas é uma idéia sem fundamento histórico algum.

Assim como os cristãos primitivos, a comunidade de Qumran se autodenomina, às vezes, os "pobres" (ebionim). Daí alguns acharem que ali vivem os ebionitas, seita judaico-cristã. Só que os dados da arqueologia e da paleografia contradizem tal hipótese.

Em Massada os arqueólogos descobrem uma cópia de uma obra de Qumran, o que levanta a possibilidade, segundo alguns, de serem zelotas os habitantes de Qumran. Entretanto, é bem mais viável pensar que alguns essênios tenham se reunido aos zelotas que resistem aos romanos em Massada até 73 d.C. Daí a obra ter ido parar lá.

A hipótese saducéia quase não encontra apoio, pois em relação à helenização saduceus e qumranitas estão em posições opostas. Sem mencionar as profundas divergências teológicas.

Por último, a hipótese farisaica é colocada a partir das muitas semelhanças da comunidade de Qumran com o grupo dos fariseus. Mas isto se explica pela provável entrada maciça de fariseus na comunidade por ocasião das perseguições de João Hircano I.

O testemunho dos autores antigos:

O testemunho dos autores antigos sobre os essênios é importante para a identificação da comunidade de Qumran. Localização geográfica, valores, modo de vida etc dos essênios são descritos pelos judeus Flávio Josefo e Fílon de Alexandria e pelos romanos Plínio, o Velho, e Solino.

É Flávio Josefo quem nos diz que:

"Existem, com efeito, entre os judeus, três escolas filosóficas: os adeptos da primeira são os fariseus; os da segunda, os saduceus; os da terceira, que apreciam justamente praticar uma vida venerável, são denominados essênios: são judeus pela raça, mas, além disso, estão unidos entre si por uma afeição mútua maior que a dos outros".

Na mesma direção vai Fílon de Alexandria, que diz:

"A Síria Palestina, que ocupa uma parte importante da populosa nação dos judeus, não é, também ela, estéril em virtude. Alguns deles, que somam mais de quatro mil, são denominados essênios".

Plínio, o Velho nos oferece precioso dado para a localização dos essênios em Qumran:

"Na parte ocidental do mar Morto os essênios se afastam das margens por toda a extensão em que estas são perigosas. Trata-se de um povo único em seu gênero e admirável no mundo inteiro, mais que qualquer outro: sem nenhuma mulher e tendo renunciado inteiramente ao amor; sem dinheiro e tendo por única companhia as palmeiras. Dia após dia esse povo renasce em igual número, graças à grande quantidade dos que chegam; com efeito, afluem aqui em grande número aqueles que a vida leva, cansados das oscilações da sorte, a adotar seus costumes (...) Abaixo desses ficava a cidade de Engaddi, cuja importância só era inferior à de Jericó por sua fertilidade e seus palmeirais, mas que se tornou hoje um montão de ruínas. Depois vem a fortaleza de Massada, situada num rochedo, não muito distante do mar Morto".

A. G. Lamadrid observa que "a descrição de Plínio corresponde perfeitamente às ruínas de Qumran, que se encontram a uns dois quilômetros a ocidente do mar Morto e também alguns quilômetros ao norte da antiga cidade de Engaddi".

Solino, do séc. III d.C., que tira parte de seu material de Plínio, diz o seguinte:

"O interior da Judéia que se estende para o ocidente é ocupado pelos essênios. Estes, seguidores de rígida disciplina, se separaram dos costumes de todos as outras nações, tendo sido destinados a este modo de vida pela divina providência. Nenhuma mulher se encontra entre eles e eles renunciaram ao sexo completamente. Eles desconhecem o dinheiro e vivem entre palmeiras. Ninguém nasce entre eles, entretanto seu número não diminui. O local é destinado à castidade. Ali reúnem-se pessoas de várias nações; entretanto, ninguém que não tenha uma reputação de castidade e inocência é ali admitido. Aquele que cometer a menor falta, embora faça o maior esforço para ser admitido, é mantido afastado por ordem divina. Assim, ao longo de tantas eras (é difícil de se crer), uma raça onde não há nascimentos vive para sempre. Logo abaixo dos essênios existia a cidade de Engaddi, mas ela foi arrasada".

Tanto Flávio Josefo quanto Fílon de Alexandria noticiam a opção celibatária e a vida comunitária dos essênios, o que os manuscritos de Qumran confirmam - pelo menos para uma parte da organização - como veremos adiante:

"Os essênios repudiam os prazeres como um mal e consideram como virtude a continência e a resistência às paixões. Eles desprezam, para si mesmos, o casamento; mas adotam os filhos dos outros numa idade ainda bastante tenra para receberem seus ensinamentos: eles os consideram como se fossem de sua família e os moldam de acordo com os seus costumes".

Fílon diz que na comunidade dos essênios "existem apenas homens de idade madura e inclinados já para a velhice, que não são mais dominados pelo fluxo do corpo nem arrastados pelas paixões, mas que gozam da liberdade verdadeira e realmente única".

Fílon acredita que os essênios não se casam porque isto ameaçaria a sua vida comunitária, dado, segundo sua opinião, o caráter de semeadora de discórdias que predomina nas mulheres: "Por outro lado, prevendo com perspicácia o obstáculo que ameaçaria, seja por si só, seja de modo mais grave, dissolver os laços da vida comunitária, eles baniram o casamento, ao mesmo tempo em que prescreveram a prática de uma perfeita continência".

Sobre a vida comunitária dos essênios diz Flávio Josefo que os seus bens são igualmente divididos, evitando que haja pobres e ricos, o que é confirmado pelos documentos da comunidade: "Com efeito, trata-se de uma lei: aqueles que entram para o grupo entregam seus bens à comunidade, de tal forma que entre eles não se vê absolutamente nem a humilhação da pobreza nem o orgulho da riqueza, já que as posses se encontram reunidas, não existindo para todos senão um único haver, como ocorre entre irmãos".

Há ainda muitos outros testemunhos interessantes sobre os essênios, especialmente de Flávio Josefo, que veremos oportunamente.

Se a comunidade que vive em Qumran é composta pelos essênios, é possível reconstruir a sua história, que se situa entre os séculos II a.C. e I d.C. Além dos testemunhos antigos contamos com os manuscritos da comunidade e os resultados das escavações de Khirbet Qumran.

Tudo indica que quando o macabeu Jônatas assume o sumo sacerdócio em Jerusalém começa a crise. Como sabemos, os assideus lutam lado a lado com os Macabeus contra a aristocracia filo-helênica, a partir de 167 a.C. 

Mas quando estes, que não são sadoquitas, se apossam do sumo sacerdócio, um sacerdote sadoquita do Templo, conhecido nos manuscritos apenas como Mestre da Justiça (Môreh hasedeq) rompe com os Macabeus e lidera um grupo de sacerdotes e assideus que se afasta de Jerusalém.

O Documento de Damasco comenta esta aliança e conseqüente ruptura: "E no tempo da ira, aos trezentos e noventa anos após tê-los entregue nas mãos de Nabucodonosor, rei da Babilônia, visitou-os e fez brotar de Israel e de Aarão um broto da plantação para possuir a sua terra e para engordar com os bens de seu solo. E eles compreenderam sua iniqüidade e souberam que eram homens culpáveis; porém eram como cegos e como quem às apalpadelas busca o caminho durante vinte anos. E Deus considerou suas obras porque o buscavam com coração perfeito, e suscitou para eles um Mestre de Justiça para guiá-los no caminho de seu coração" (CD I, 5-11).

Trezentos e noventa anos após a destruição de Jerusalém por Nabucodonosor ocorrida em 586 a.C., nos colocaria no ano 196 a.C. e não combina com a época dos Macabeus, quando teria surgido o grupo essênio. Mas somando-se aos 390 anos mais 20 anos, durante os quais a comunidade anda às cegas, depois mais 40 anos, que representam o tempo simbólico entre a morte do Mestre da Justiça e a chegada da era messiânica, chega-se a 450 anos. Some-se a isto os simbólicos 40 anos de atividade do Mestre e temos 490 anos ou 70 x 7 anos que, segundo o livro de Daniel, representam o tempo decorrido entre a intervenção destruidora de Nabucodonosor e o advento salvador do Messias. Ou seja: 390 anos (ou 490) é uma quantia simbólica, uma afirmação teológica apenas e não serve para datar coisa alguma.

Mas há outros dados neste texto que nos oferecem algum ponto de apoio histórico. O "tempo da ira" só pode ser a crise da época de Antíoco IV Epífanes.

A "raiz que brota de Israel e Aarão" é uma referência aos leigos e sacerdotes que compõem a comunidade essênia, e os "vinte anos" nos quais se comportam como cegos pode ser uma avaliação do período de aliança dos assideus com os Macabeus, anteriores ao surgimento do Mestre da Justiça.

De uma passagem da Regra da Comunidade se deduz que os líderes deste grupo são sacerdotes sadoquitas: "Esta é a regra para os homens da comunidade que se oferecem voluntariamente para converter-se de todo mal e para manter-se firmes em tudo o que ordena segundo a sua vontade. Que se separem a congregação dos homens da iniqüidade para formar uma comunidade na lei e nos bens, e submetendo-se à autoridade dos filhos de Sadoc, os sacerdotes que guardam a aliança, e à autoridade da multidão dos homens da comunidade, os que se mantêm firmes na aliança" (1QS V, 1-3).

Também os fragmentos de uma antologia de bênçãos (1QSb), originalmente anexadas à Regra da Comunidade, falam da liderança dos sacerdotes sadoquitas entre os essênios: "Palavras de Bênção. Do Instrutor. Para abençoar] os filhos de Sadoc, os sacerdotes que Deus escolheu para si para reforçar sua aliança para [sempre, para distribuir todos os seus juízos em meio ao seu povo, para instruí-los conforme o seu mandato. Eles estabeleceram na verdade [sua aliança] e inspecionaram na justiça todos os seus preceitos, e andaram de acordo com o que ele escolhe" (11QSbIII, 22-25).

Além do Documento de Damasco, alguns comentários bíblicos de Qumran falam do Mestre da Justiça. O enquadramento histórico do Mestre da Justiça é importante para se reconstruir a história da comunidade, pois ele é apresentado como a figura mais importante entre os essênios e quase certamente é o seu fundador.

Explicando o Sl 37,23-24 diz um escrito de Qumran: "Pois por YHWH são assegurados [os passos do homem;] ele se deleita em seu caminho: embora tropece [não] cairá, pois YHWH [sustenta sua mão]. Sua interpretação se refere ao Sacerdote, o Mestre de [Justiça, a quem] Deus escolheu para estar [diante dele, pois] o estabeleceu para construir por ele a congregação [de seus eleitos] [e endireitou o seu caminho, em verdade" (4QpSlaIII, 14-17).

No Comentário de Habacuc se lê interessante aplicação de Hab 1,13b: "Por que contemplais, traidores, e guardais silêncio quando devora um ímpio alguém mais justo que ele? Sua interpretação se refere à Casa de Absalão e aos membros de seu conselho, que se calaram quando da repreensão do Mestre de Justiça e não o ajudaram contra o Homem de Mentira, que rejeitou a Lei em meio a toda a sua comunidade]" (1QpHab V,8-12).

Ainda no mesmo Comentário de Habacuc aparecem outros dados interessantes na explicação de Hab 2,8b: "Pelo sangue humano [derramado] e a violência feita ao país, à cidade e a todos os seus habitantes. Sua interpretação se refere ao Sacerdote Ímpio, posto que pela iniqüidade contra o Mestre de Justiça e os membros de seu conselho o entregou Deus nas mãos de seus inimigos para humilhá-lo com um castigo, para aniquilá-lo com a amargura da alma por ter agido impiamente contra os seus eleitos" (1QpHab IX, 8-12).

A comunidade Q:

Segundo Burton L. Mack, os escritos da comunidade "Q" são os primeiros registros que temos dos movimentos primitivos de Jesus, e é um texto verdadeiramente precioso. Eles documentam a história de um grupo específico do movimento primitivo de Jesus, por um período de cerca de 50 anos, desde a época em que Jesus tinha 20 anos até após a guerra Romano-Judaica nos anos 70. O notável sobre este grupo é que ele se desenvolveu dentro de uma comunidade, firmemente, interligada e produziu uma vasta e grandiosa mitologia, simplesmente atribuindo, mais e mais ensinamentos a Jesus.

Eles não precisaram imaginar Jesus no papel de um Deus ou contar estórias sobre sua ressurreição dos mortos para honrá-lo como um mestre. Em outras palavras eles não eram cristãos, eram na verdade, um grupo de Jesus. As camadas primitivas dos ensinamentos de Jesus em Q são as menos interpoladas de todas as suas citações em documentos existentes. Isto pode nos significar, que Q nos coloca mais próximos do Jesus Histórico do que jamais poderemos estar. 

Portanto, é enorme a importância de Q. Os desafios sobre a concepção popular das origens Cristãs é claro. Se a visão convencional dos primórdios do Cristianismo está certa, como podemos explicar esses pioneiros de Jesus. Será que não entenderam a mensagem? Eram ignorantes do evangelho da salvação ou os repudiavam? Se, entretanto, os primeiros seguidores de Jesus entendiam o propósito do movimento, da maneira descrita em Q, como explicaremos a aparição dos cultos de Cristo, as fantásticas mitologias dos evangelhos narrativos e o eventual estabelecimento do culto e da religião Cristã? Q nos força a repensar as origens do Cristianismo como nenhum outro documento dos primeiros tempos.

Após a descoberta de Q, os evangelhos narrativos não podem mais serem vistos como relatos dignos de confiança sobre os eventos históricos que culminaram com o estabelecimento da fé Cristã. Temos agora que considerar os evangelhos como resultados da elaboração do primitivo mito Cristão. Como já dissemos, Q força essa questão, porque não concorda com os relatos dos evangelhos narrativos. 

Q é oriundo da palavra alemã Quelle, que significa "fonte". O texto obteve este nome quando historiadores descobriram que tanto Mateus como Lucas usaram uma coleção de citações de Jesus como uma de suas "fontes" para seus evangelhos, sendo a outra fonte o evangelho de Marcos. Os estudiosos sabiam a mais de 150 anos que alguma coisa como Q tinha que ter existido, mas apenas recentemente tiveram a certeza. Apesar de tudo, todos sabíamos qual o o conteúdo do documento porque os seus ensinamentos estavam lá, nos evangelhos de Mateus e Lucas.

Uma vez que não tínhamos um manuscrito Q independente que teria sido perdido na balbúrdia do início do segundo século, um conhecimento profundo de Mateus e Lucas seria necessário caso quiséssemos reconstruir o texto original que eles tinham em comum. Foi uma surpresa, quando alguns especialistas curiosos, começaram a reconstruir um texto unificado e olharam Q como uma peça de literatura independente, uma peça de literatura que tinha conduzido um movimento de Jesus por meio século, antes de Mateus e Lucas sequer pensarem em mesclá-lo com a estória de Marcos sobre Jesus. 

Um mundo Cristão, inteiramente, diferente veio à tona. 

Uma vez que o texto de Q não é encontrado separadamente, em nenhuma cópia do Novo Testamento, teremos que nos referir aos seu conteúdo citando o capítulo e versículo no evangelho de Lucas. A preferência de Lucas sobre Mateus é devida ao fato de que Lucas não alterou a seqüência e terminologia das citações tanto quanto Mateus alterou (assim Q 11:1-4 = Lucas 11:1-4). No artigo FAQ do Problema Sinótico você poderá encontrar alguns subsídios para entender as hipóteses da construção dos evangelhos sinóticos. 

Q coloca os primeiros povos de Jesus no foco, e o quadro é tão diferente daquele que todos sempre imaginaram que se torna surpreendente. Ao invés de pessoas se reunindo para adorar um Cristo, como nas congregações Paulinas, ou preocupando-se com o que significa ser um seguidor de um mártir, como nas Comunidades de Marcos, o povo de Q estava, completamente dedicado às questões presentes sobre o Reino de Deus e com o comportamento necessário para alguém abraçá-lo seriamente. 

Estudos recentes identificaram três camadas de material de instrução em Q. Cada uma dessas camadas corresponde a um estágio na história da comunidade Q. Isto permite rastrear a história dos primeiros movimentos de Jesus acompanhando as mudanças nas referências a respeito da idéias do Reino de Deus. Nenhum outro texto ou conjunto de textos do primeiro século nos preenche com as histórias inteiras de uma comunidade "Cristã" primitiva. Os estudiosos agora se referem a essas camadas como Q 1 ,Q 2 e Q 3.

A camada mais antiga,Q 1, consiste, extensivamente, das citações sobre a sabedoria de ser um verdadeiro seguidor de Jesus. Q 2 , por outro lado, introduz pronunciamentos de julgamentos proféticos e apocalípticos sobre aqueles que se recusarem a ouvir os ensinamentos de Jesus. E, finalmente, Q 3 registra uma retratação ao desgaste de encontros públicos para tratar de idéias de paciência e piedade para os iluminados enquanto esperam seu momento de glória num certo futuro no fim da história humana. 

Um fato notável sobre o material de Q 1 é que ele advoga por um estilo de vida evolucionário, transformando aforismos em prescrições de comportamento. Uma injuriosa recriminação tal qual "Deixa os mortos sepultarem os seus mortos, tu vai e anuncia o reino de Deus", pode ser isolada no núcleo de um pequeno aglomerado de citações, tornando-se um princípio de comportamento adequado ao novo reino. Neste caso, o comportamento recomendado é simplesmente o compromisso com o reino (Q 9:57-62).

Podemos identificar sete temas no bloco Q 1:

A maior unidade (Q 6:20-49) consiste de ensinamentos de Jesus a respeito de a quem pertence o reino de Deus ("os pobres, famintos, os que choram"), e como tratar os outros ( o que quereis que os homens vos façam, fazei-lhes o mesmo a eles"), e sobre julgamentos aos outros (" não julgueis e não sereis julgados"); 

O segundo bloco de Q 1 é sobre tornar-se um seguidor e trabalhar para o reino de Deus (Q 9:57-10:11); 

O terceiro é sobre ter confiança em pedir a Deus (o Pai) (Q 11:1-13); 

O quarto diz que não se deve ter temor de falar (Q 12:2-7);

O quinto explica que não deve existir preocupação com alimentação, vestuário e que o desejo por coisas pessoais é tolice (Q 12:13-34); 

O sexto ensina que como a semente e o fermento, o reino de Deus crescerá (Q 13:18-21); 

O sétimo fala sobre os encargos de ser um seguidor e sobre as conseqüências de não levar o movimento a sério (Q 14:11, 16-24, 26-27, 34-35). 

Se datarmos esse material em cerca de 50 C.E., na altura dos primeiros vinte anos do movimento, podemos verificar o que o povo de Jesus vinha fazendo. Eles estavam profundamente envolvidos em definir, exatamente, o que significava pertencer à escola de Jesus. Eles despenderam um grande esforço intelectual para encontrar argumentos para um determinado tipo de atitudes e ações consideradas fundamentais para alcançar-se o reino de Deus.

Podemos definir o perfil do estilo de vida que eles estavam recomendando?

Se fizermos uma lista dos imperativos que estão próximos aos núcleos das menores unidades de Q 1 podemos começar a enxergar que um tipo de programa estava na mente dos primeiros povos de Jesus. A lista inclui os seguintes imperativos ou regras de comportamento: 

Ame os seus inimigos (Q 6:27); 

Se apanhar numa face ofereça a outra (Q 6:29); 

Dê a todos que pedem (Q 6:30); 

Não julgue e não sereis julgados (Q 6:37); 

Remova primeiro a trava do seu próprio olho (Q 6:42); 

Deixe os mortos enterrarem os seus mortos (Q 9:60); 

Eis que vos mando como cordeiros ao meio dos lobos (Q 10:3);

Não leveis bolsa, nem alforje, nem sandálias (Q 10:4); 

Dizei-lhes: É chegado o reino de Deus (Q 10:9); 

Pedi e dar-se-vos-á (Q 11:9); 

Não estejais apreensivo pela vossa vida (Q 12:22);

Buscais antes, o reino de Deus (Q 12:31). 

Um programa com muito risco parecia estar em andamento. Ricos, mau uso da autoridade e poder, hipocrisias e pretensões, iniqüidades sociais e econômicas, injustiças e até mesmo lealdades familiares normais estavam, inteiramente, sob suspeita. O reino ideal estava sendo estabelecido em antagonismo aos costumes tradicionais, através da orientação de que os seguidores de Jesus deveriam praticar a pobreza voluntária, o afastamento dos laços familiares, a renúncia de bens, a coragem de falar e aplicar a não-retaliação.

Um tremendo programa. Fazia esse programa algum sentido? 

A resposta é afirmativa. O estilo de vida do povo de Jesus guardava estrita semelhança com a tradição grega da filosofia popular característica dos Cínicos. Os Cínicos também promoveram um afrontoso estilo de vida como maneira de criticar os costumes convencionais e os temas dos dois grupos, Cínicos e povo de Jesus, eram bastante coincidentes. Os Cínicos ajudaram ao homem comum ganhar alguma percepção sobre a maneira como seu mundo funcionava, desta forma as pessoas não encontraram problemas para entender o que o povo de Jesus estava dizendo. 

A diferença entre o povo de Jesus e os Cínicos era a seriedade com a qual o movimento de Jesus encarava a nova visão social do reino de Deus. Isto era reflexo da preocupação judaica por uma sociedade trabalhadora real, como sendo o contexto necessário para qualquer bem-estar individual. Foi esse interesse em explorar uma visão social alternativa que afastou o movimento de Jesus de um mero apelo Cínico. Pode-se ainda detectar algum humor do tipo Cínico no estilo aforístico das citações:

"Porque onde estiver o vosso tesouro ali estará também o vosso coração" (Q 12;34);

"Pode porventura o cego guiar o cego" (Q 6:39); "Porque qualquer que pede recebe" (Q 11:10).

Assim a fase inicial dos movimentos de Jesus devem ter sido caracterizada por um espírito mais brincalhão do que aquela caracterizada pelo material Q 1 que chegou até nós. 

Mas o processo de formação dos grupos, e a fase de agir seriamente como grupos, estabeleceu uma atitude não-Cínica. Todos os blocos do material de Q 1 revelam uma tentativa estudada de expressar um claro conjunto de códigos para o movimento de Jesus como uma formação social, códigos estes que giravam em torno de definir quem, realmente, pertencia ao reino. As instruções Q 10: 1-11, por exemplo, são direcionadas para orientar um comportamento adequado quando se tivesse que representar o movimento de Jesus em outra cidade. Estas instruções, mostram que existia uma rede de pequenas assembléias de grupos, que poderia ser considerada como suporte ao movimento.

Assim, o período inicial de tentar um novo reino por intermédio do estilo tipo Cínico, evoluiu para uma bem mais complexa empreitada. O foco não estava somente no estabelecimento de uma lista de códigos para definir um verdadeiro discípulo, mas em estabelecer padrões para reconhecimento e para os relacionamentos autênticos dentro da comunidade dos companheiros seguidores de Jesus. A formação social do povo de Jesus e a visão social do reino de Deus começaram a se espelhar uma na outra. 

A motivação em Q 2 é, drasticamente, diferente. O processo de formação social tinha pago o seu preço. Famílias tinham sido separadas, um código de comportamento estrito tinha sido estabelecido pelos demais Judeus para censurar ou levar ao ostracismo o povo de Jesus, algumas cidades os incitavam a se afastarem e alguns membros antigos decidiram que o estresse era muito grande. A lealdade era nessa hora o apelo principal, e alguns seguidores de Jesus tiveram que decidir entra a família e o movimento. Aqueles que permaneceram fiéis, a despeito das tensões sociais, encontraram novas razões para dizer sim ao movimento de Jesus, mas a maioria dessas razões era o lado secundário de argumentos extravagantes de comparação com aqueles que eram considerados do lado errado.

"Mas ai de vós fariseus. Vocês são como sepulturas bonitas por fora, mas cheia de poluição por dentro" (Q 11:42; cf Mateus 23:27).

"E digo-vos que mais tolerância haverá naquele dia para Sodoma do que para aquela cidade" (Q 10:12). 

Assim, ao invés do estilo de crítica social através dos aforismos alegres, característico dos primeiros tempos de experimentação social, ou mesmo do tom mais sério de instrução que definiu o posterior desenvolvimento do povo de Jesus, a comunidade Q adotou uma postura firmemente judicatória em relação ao mundo. Pronunciamentos apocalípticos ameaçadores do juízo final eram dirigidos contra aqueles que recusavam o programa do reino. E assim o tempo para a completa realização do reino foi adiado para o fim dos tempos (eschaton).

Os conflitos sociais refletidos em Q 2 provavelmente tiveram lugar durante os anos 50 e 60, embora algumas das citações são melhor entendidas como uma linguagem cunhada nas sombras da guerra Romano-Judaica. Com este tipo de linguagem soando em seus ouvidos, os escribas do movimento de Jesus tiveram que rever seus manuais de instrução sobre Jesus. Eles mantiveram os livros antigos de instruções e sabedoria ética que hoje identificamos como Q 1, porque esses haviam se tornado em ensinamento padrão para a comunidade. Mas adicionaram material judicatório e profético para promover o enquadramento na nova motivação.

O novo manual foi arranjado de maneira cuidadosa, tecendo o material apocalíptico e judicatório no conjunto primitivo de instruções, dando a impressão que o material original tinha sido preparado com o juízo final em mente.

Entretanto, dois problemas conceituais tinham que ser resolvidos para que essa revisão fosse realizada. O primeiro era o fato de que o povo de Jesus tinha se acostumado a encarar Jesus como um mestre de sabedoria e agora tinham que imaginá-lo como sendo também um profeta apocalíptico. Isto requeria uma grande mudança na caracterização. O outro problema era que, tendo experimentado um fracasso adiando a realização de sua visão até a data da justificação, a comunidade tinha agora a obrigação de estar bem segura de estar no caminho certo. Isto requeria um horizonte de história bem mais vasto do que a comunidade jamais tinha considerado ser necessário. 

Ambos os problemas foram resolvidos com revisões imaginativas da figura de Jesus e do seu papel na história épica de Israel. Estas revisões foram engenhosas. O primeiro movimento foi introduzir a figura de João Batista como profeta do julgamento e pregador do arrependimento (Q 3:7-9).

O segundo movimento foi João prever "aquele que virá" quem ajuntará o trigo no seu celeiro, mas queimará a palha com fogo que nunca se apaga" (Q 3:16-17).

Então, esses escribas deixaram João e Jesus falarem um sobre o outro para ver o que cada um sabia do outro (Q 7:18-19, 22-28, 31-35). Como os escribas imaginaram, Jesus reconhece João como o último dos profetas de Israel e assim "aquele que virá", e João previu um ainda "maior" para vir, o qual, obviamente, era Jesus. Jesus era "maior", de acordo com os escribas, porque ele era tanto um sábio como um profeta. Ele era um sábio pelo virtuosismo de seus ensinamentos em Q 1 . Ele era um profeta em virtude dos seus julgamentos apocalípticos que breve seriam ouvidos de seus lábios. 

A possibilidade espantosa oferecida por essa simples história imaginária era que, como filho da sabedoria, Jesus poderia saber o que Deus teria desejado desde o início da criação. E como um profeta apocalíptico ele poderia saber o que aconteceria no final dos tempos. Resultado: Jesus tornou-se o vidente da história passada e o profeta do fim da história. Seus seguidores poderiam agora se sentirem seguros que eles estavam, exatamente, onde deveriam estar, unidos com o grande plano de Deus para Israel e prontos para assumir seus lugares quando o julgamento final ocorresse. 

Esta solução engenhosa para seus problemas tem que ser julgada como um golpe de gênio na criação do mito, não importando o que se pense propriamente sobre o mito. Sobre o João Batista histórico e sua relação com esse movimento, os estudiosos ainda estão quebrando a cabeça entre várias opções. O fato importante para nossos propósitos é que João entrou na cena da imaginação da comunidade Q sobre Jesus como um segundo estágio na criação do mito, de maneira a redesenhar o próprio papel de Jesus. 

As adições de Q 3 foram feitas algum tempo depois da guerra Romano-Judaica. Elas incluem o lamento sobre Jerusalém (Q 13:34-35), a estória da tentação de Jesus (Q 4:1-13), afirmações sobre a importância da lei Mosaica (Q 16:16-18) e a promessa final aos fiéis: "E vós sois os que tende permanecido comigo sentareis no trono, julgando as doze tribos de Israel" (Q 22:28-30). Q 3 não é uma grande revisão do manual, mas introduz algumas novas idéias sobre o relacionamento do povo de Q com a história de Israel, e elevou a mitologia de Jesus ao nível de um ser divino que poderia ser imaginado conversando com Deus como seu Pai e debatendo com Satanás como seu tentador.

O Tópico em ambos os casos era a própria "autoridade de Jesus sobre todo o mundo." (Q 4:6-7). Tudo parece crer que a poeira do período Q 2 havia baixado e que o povo de Q teria afinado o tom de suas respostas àqueles que lhes eram críticos. Talvez a guerra tenha se encarregado dos antagonismos primevos ou transformado a paisagem cultural tão drasticamente, que a postura pré-guerra do movimento se apresentasse então tola, mesmo para o povo de Jesus. 

Foi o livro de Q, no nível Q 3, que atraiu a atenção de outros grupos de Jesus, foi então copiado e lido por outra geração dentro dos movimentos de Jesus e, eventualmente, incorporado nos evangelhos de Mateus e Lucas e se perdeu até recentemente para a história, quando então os estudiosos o reconstruíram. Historiadores da segunda corrente diferente de Mack, considerando que se está apostando muitas fichas na primeira camada de um documento não mais existente, construído a partir de outros, Mateus e Lucas, escritos após meio século e algumas revisões.

Estes historiadores consideram que o Jesus, mestre com estilo dos Cínicos é inteiramente ausente nas epístolas do primeiro século, e portanto, deveria ser examinada a possibilidade de que esta camada de Q não pertencer a Jesus, e sim ser o produto de algum reduto Cínico que teria encontrado seu caminho dentro de algum movimento de pregação judaica na Galiléia e somente mais tarde ter sido anexada à idéia de uma figura histórica. Questionam, igualmente, a incongruente mudança de motivação da camada Q 1 para a camada Q 2 , não considerando adequadas as explicações de Mack, que as atribuiu às tensões resultantes das rejeições. A visão convencional do Cristianismo assumia uma visão apocalíptica no início e, gradualmente, mudava para a linguagem da sabedoria quando o mundo não acabava conforme se apregoava. Agora, a seqüência estava disposta de maneira inversa. A mudança não era mais da mensagem apocalíptica para o advento da instrução e da sabedoria, mas da sabedoria para o apocalíptico. Reafirmamos que esta mudança implica numa total reconsideração das origens Cristãs e da maneira como a função da linguagem apocalíptica foi entendida. 

Na minha opinião um forte componente corrobora essa segunda corrente, trata-se do desinteresse da comunidade Q pelos destinos de seu fundador. Isto é certamente incrível. Se o seu mestre e fundador tivesse sofrido o destino relatado em Jerusalém, seria crível que a comunidade ignorasse isto ou permanecesse ignorante do fato?

Um fato marcante a respeito da comunidade Q é que eles não eram cristãos. Eles não encaravam Jesus como o Messias ou o Cristo. Eles não consideravam sua morte como um evento divino, trágico ou redentor. E eles não imaginavam que ele iria ascender dos mortos para governar um mundo transformado. ao contrário, eles pensavam nele como um mestre cujos ensinamentos tornaria possível viver com verve naqueles dias turbulentos. Assim eles não se reuniam para cultuar em seu nome, honrá-lo como um deus, ou cultivar sua memória através de hinos, orações e rituais. O povo de Q, era um povo de Jesus, não cristãos. 

O desafio de Q ao conceito popular das origens do cristianismo é claro. Se a visão convencional das origens do cristianismo é correta, como explicar estes primeiros seguidores de Jesus?

Teriam eles falhado quanto a compreender a mensagem?

Estavam ausentes quando o inesperado aconteceu?

Teriam seguido em ignorância ou repúdio ao evangelho cristão de salvação?

Se, entretanto, os primeiros seguidores de Jesus entenderam o propósito de seu movimento tal qual Q o descreve, como podemos explicar o surgimento do culto de Cristo, da fantástica mitologia dos evangelhos narrativos, e o eventual estabelecimento da igreja e religião cristã ?

Q força a questão de se repensar as origens do cristianismo como nenhum outro documento da antiguidade força. Os evangelhos narrativos não podem mais serem vistos como relatos fidedignos dos raros e estupendos eventos históricos na fundação da fé cristã. Os evangelhos, agora têm que ser vistos como resultados da antiga fabricação de mitos cristãos. Q força a questão, pois documenta uma história antiga que não concorda com o relato dos evangelhos narrativos. 

Os pronunciamentos:

Segundo Burton L. Mack, os evangelhos sinóticos incluem muitas estórias sobre Jesus que os especialistas costumam chamar pronunciamentos. Jesus é descrito em uma certa situação; alguém questiona o que ele está dizendo ou fazendo; e Jesus dá uma resposta satírica, irônica e às vezes mordaz. Em muitos casos estas estórias foram embelezadas para descrever a situação, explicar porque a questão foi levantada e discriminar os opositores. Mas mesmo se a passagem se transforma em um diálogo, Jesus tem sempre a última palavra, e freqüentemente uma longa narrativa pode ser reduzida a uma simples troca de desafios e respostas. Vejamos alguns exemplos, numerados para referência futura com J de Jesus como prefixo: 

(J-1) Quando perguntado por que comia com os coletores de impostos e os pecadores, Jesus respondeu, Aqueles que tem saúde não precisam de médico." (Mar 2:17) 

(J-2) Quando perguntado porque seus discípulos não jejuavam, Jesus respondeu, "Por acaso podem jejuar os amigos do noivo enquanto o noivo estiver com eles?" (Mar 2:19) 

(J-3) Quando perguntado porque seus discípulos colhiam grãos no sábado, Jesus respondeu, "O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado." (Mar 2:27) 

(J-4) Quando perguntado porque comiam com as mãos sem lavar, Jesus respondeu, "Nada há fora do homem, que, entrando nele o possa contaminar; mas o que sai dele isso é que contamina o homem." (Mar 7:15) 

(J-5) Quando perguntado quem era o maior, Jesus respondeu, "Se alguém quiser ser o primeiro será o último de todos e o servo de todos." (Mar 9;35) 

(J-6) Quando alguém o chamou de "Bom Mestre," Jesus retrucou, "Porque me chamas de bom?" (Mar 10:18) 

(J-7) Quando perguntado se o rico poderia entrar no reino de Deus, Jesus respondeu, "É mais fácil passar um camelo por um buraco de agulha, do que um rico entrar no reino de Deus." (Mar 10:25) 

(J-8) Quando alguém mostrou-lhe uma moeda com a inscrição de César e perguntou, "É lícito pagar impostos a César ou não? "Jesus respondeu, Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus." (Marc 12:17) 

(J-9) Quando uma mulher na multidão elevou sua voz e disse-lhe "Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos que mamaste." Jesus respondeu, "Antes bem-aventurado os que ouvem a palavra de Deus e a guardam." (Lu 11:27-28) 

(J-10) Quando alguém da multidão lhe disse, "Mestre, dize a meu irmão que reparta comigo a herança," Jesus respondeu, "Homem quem me pôs a mim por juiz ou repartidor entre vós?" (Lu 12:13-14) 

Estas estórias são bastante similares a um grande número de anedotas contadas pelos Gregos sobre os fundadores das várias escolas de filosofia. É evidente a propensão grega pelas formulações rebuscadas, bem como pelo encantamento com as réplicas inteligentes e com o humor satírico. Chamadas de chreiai (úteis), anedotas como estas eram usadas para testar professores, avaliando sua capacidade de manterem a credibilidade diante de seus alunos, e de saírem incólumes de situações desafiadoras.

Assim as chreiai eram "'úteis" para compor o que os gregos chamavam uma "vida" (bios de onde retiramos "biografia"). Isto é porque além do humor, havia outra importante função para essas estórias. As chreiai eram capazes de revelar uma impressão do caráter de um professor (ethos). As chreiai criavam o que os especialistas chamam de uma situação retórica, repleta de circunstâncias, oradores, discurso e audiência. Isto significa que boas chreiai podem ser usadas para representar uma escola de tradição. Pode-se verificar como as chreiai foram postas a serviço das construções filosóficas, na obra, Vida de Filósofos Eminentes, do escritor Diógenes Laércio, no início do terceiro século. 

Anedotas do tipo das contadas sobre Jesus eram freqüentes entre as tradições Socráticos e Cínicas. É portanto, valioso comparar as estórias citadas com algumas anedotas típicas dos Cínicos. Um jogo de escaramuças parece ter sido jogado com os Cínicos por aqueles que tinham coragem para enfrentá-los. Uma vez que os Cínicos viviam numa espécie de alienação em relação à sociedade, demonstrando indiferença às suas convenções mas na realidade totalmente dependentes dela para seu viver, qualquer situação poderia servir para pegá-los em uma armadilha.

O objetivo era flagrar o Cínico em uma atitude inconsistente apontando a sua falta de completa independência da sociedade. De maneira a vencer o desafio, o Cínico colocava uma abordagem inteiramente diferente sobre a matéria deixando a impressão de que o desafiador não tinha entendido a situação. Vejamos alguns exemplos de Diógenes Laércio, numerados para referência usando-se um C de Cínico: 

(C-1) Quando censurado pelo costume de andar em má companhia, Aristenes respondeu, "Bem, os médicos atendem seus pacientes sem pegar a febre." (DL 6:6) 

(C-2) Quando alguém disse a Aristenes, "Muitos elogiam você", ele respondeu, "O que fiz de errado?" (DL 6:8) 

(C-3) Quando alguém desejava estudar com Diógenes, ele dava-lhe um peixe e dizia para seguir atrás dele. Quando por embaraço o estudante logo atirava o peixe fora deixando-o, Diógenes ria e dizia, "Nossa amizade foi quebrada por um peixe" (DL 6:36) 

(C-4) Quando alguém reprovava-o por freqüentar lugares impuros, Diógenes respondia que o sol também entra nas intimidades sem sair desonrado. (DL 6:63) 

(C-5) Quando perguntado porque suplicava a uma estátua, Diógenes respondeu, "Para praticar em ser recusado" (DL 6:49) 

Os Gregos mediam a resposta pelo seu humor e inteligência e uma certa lógica era envolvida em sair-se ileso do anzol. Assim funcionava a lógica; um interlocutor colocava o Cínico na berlinda (C-4): como você pode freqüentar lugares socialmente inadequados (um eufemismo para casas de prostituição)? O primeiro movimento era identificar a questão enfatizada pelo desafio. Neste caso era a noção de ser "contaminado" ao visitar um local "impuro", isto é, um local socialmente inadequado. O segundo movimento era mudar o foco e encontrar um exemplo de "entrada em local impuro" no qual não havia contaminação. O sol, por exemplo, "entra" nas intimidades sem ficar sujo.

A ausência inteligente de correlação entre os dois exemplos criava o humor. Não havia o objetivo de um ensinamento explícito. O interlocutor poderá, certamente, não se vir a meditar sobre teorias de pureza ou impureza, mas ele poderá muito bem se afastar rindo e deixar o Cínico seguir seu caminho ou mesmo dar-se conta sobre a natureza arbitrária da categorização de puro ou impuro quando usada para uma circunstância social específica. Quanto ao Cínico, este tendo aceito o desafio e tendo administrado a confusão momentânea na lógica da situação foi capaz de escapar da armadilha. 

As anedotas atribuídas a Jesus operavam através da mesma lógica. Em todos os casos os desvios Cínicos são uma característica das réplicas de Jesus. As mudanças na ordem do discurso são facilmente identificáveis.

Em J-1, a questão da contaminação é removida pela mudança do foco das condutas de alimentação para a prática médica. É muito parecida com a anedota sobre Aristenes em C-1.

Em J-2 a discrepância tem relação com a ocasião na qual o jejum é apropriado.

J-3 sustenta a distinção entre duas regras sobre o trabalho nos sábados, uma a proscrição a outra a permissão.

Em J-4 a incongruência é criada pela justaposição de condutas de alimentação com observações escatológicas. É similar à resposta de Diógenes em C-4 confundindo contaminação social com natural. As colocações em J-4 e J-5 sustentam a crítica a valores sociais comuns relacionados com a classe social.

E a anedota de Jesus em J-10 é semelhante a um grande número de anedotas Cínicas nas quais os estudantes são duramente corrigidos por alguma má interpretação e conduzidos de volta aos seus próprios recursos para enxergar melhor as coisas e começar a estudar o método Cínico. Uma forma branda desta posição do professor contra o futuro aluno é ilustrado em C-3. 

Existem muitas chreiai de Jesus no evangelho de Marcos. Em razão da forma que estas estórias terminam, deixando com Jesus a última palavra, os especialistas denominam essas passagens de estórias de pronunciamentos. Marcos usava essas estórias com grande vantagem na construção do seu evangelho, parcialmente porque elas se constituíam nos blocos de construção para a "vida" (bios) que ele queria escrever, parcialmente porque elas criavam um conflito, o conflito básico da conspiração contra Jesus que Marcos queria desenvolver e parcialmente porque este era o tipo de estória que a própria comunidade de Marcos aprendera a contar sobre Jesus.

Existem 28 estórias deste tipo no evangelho de Marcos. Destas, doze estórias tratam de questões que dividiam o povo de Jesus dos Fariseus. A maioria delas foi identificada pelos estudiosos como estórias pré-Marcos, que foram contadas na comunidade de Marcos antes de Marcos decidir usá-las na sua vida de Jesus. Estas são as estórias que tem interesse para nós, pois elas fazem um conjunto e podem ser usadas como janela dentro de um ramo do movimento de Jesus que se opôs à tradição da escola dos escribas e Fariseus. De acordo com a velha tradição Grega, o povo de Jesus, da comunidade de Marcos, imaginava Jesus como defensor de sua própria escola de tradição e o pintavam contra os Fariseus dizendo chreiai . Isto significava que eles se consideravam discípulos da Escola de Jesus. 

A estória de pronunciamento que apresenta Jesus em debate com os Fariseus todas endereçam questões que tem a ver com a pureza. O conceito de pureza era básico para o sistema social e de propriedade judeu. A partir de um grande sistema legal, ético e da lei do sacrifício que foi desenvolvida durante o período do segundo templo, os Fariseus tiveram sucesso em separar uma pequena lista de práticas ritualistas que eles poderiam realizar em casa. Isto, eles afirmavam, em estrita observância das leis e tradições judaicas.

A lista incluía o dízimo, dar esmola, observância do sábado (incluindo oração diária e um dia de jejum na semana), limpeza (lavagem após atividades que traziam impurezas), regras para as seleção e reparação da comida, regras a respeito das pessoas com as quais se podia sentar à mesa.

Estas regras não deviam ser entendidas como leis, porque os Fariseus não tinham autoridade oficial sobre nenhuma instituição judaica. Elas eram sinais de piedade, de uma seita progressiva engajada em redefinir o que significava ser Judeu à sombra da destruição do templo. Elas eram, no entanto, extremamente importantes para o reconhecimento de qualquer judeu que desejava ser "puro", isto é, ser reconhecido na comunidade judaica com leal às tradições dos judeus. 

Cabe aqui, para os que não estão familiarizados, uma descrição de quem eram os Fariseus, erradamente há já algum tempo, apresentados no linguajar de gíria brasileira, como uma qualificação pejorativa. Tomando a descrição de Josefos (Guerra dos Judeus 5:2) os Fariseus eram "um corpo dentro da comunidade judaica que professava ser mais religioso que os outros e pretendia explicar a lei mais precisamente".

Embora sejamos levados a pensar nos fariseus como rigidamente ortodoxos eles eram, em certos aspectos, o elemento progressivo no Judaísmo. De maneira a encontrar novas condições após a queda do templo, os Fariseus se colocaram a interpretar a lei. O desenvolvimento e manutenção das sinagogas como um centro de adoração e instrução é uma conquista dos Fariseus. Eles eram bastante admirados pelos judeus que não eram filiados a nenhuma seita judaica. Os Fariseus clamavam pela autoridade da fé e da instrução enquanto os Saduceus, a classe alta da nobreza e de onde saíam os sumos-sacerdotes, clamava por aquela do sangue e da posição. 

Se fizermos uma lista das questões sob debate nas estórias de pronunciamento da comunidade pré-Marcos o resultado é uma notável correlação com as questões dos Fariseus. Além das questões apontadas de J-1 a J-10 existe um grande número de questões que se colocavam entre o povo de Jesus e os Fariseus, tais como a legitimidade do divórcio, o pagamento de taxas, a lei Mosaica, a base da autoridade, os sinais de honra e as causas das doenças e "espíritos impuros".

Portanto quer parecer que este ramo do movimento de Jesus trabalhou sua autodefinição através de um violento debate com os padrões Fariseus.

Porque isso? 

Mack explica isso afirmando que o cenário mais adequado indica que alguns integrantes do povo de Jesus continuaram a se considerar como judeus mesmo estando inteiramente ligados no movimento de Jesus. Pode-se imaginar a disseminação do movimento de Jesus nas regiões de Tiro e Sidom onde uma das estórias de pronunciamento de Marcos (Mar 7:24-30) foi elaborada. Alguns judeus atraídos pelo movimento continuavam a participar da vida da sinagoga ou pertenciam a famílias que continuavam. Naturalmente surgiram conflitos com as próprias famílias e com os líderes das sinagogas à respeito da lealdade às tradições judaicas.

Em certo momento as diferenças relativas principalmente aos códigos de pureza Fariseu e as "impurezas" do povo de Jesus tornaram-se uma questão crítica e algumas pessoas tiveram que optar entre acompanhar o povo de Jesus ou desistir da participação. Alguns relacionamentos familiares devem ter ficado sob tensão. O grande problema era que ser "impuro" pelos padrões Fariseus era justamente o ponto principal do movimento. 

Embora as considerações de Mack sejam razoáveis ele parece passar ao largo de um aspecto importante. O motivo da resistência judaica aos Romanos era a religião judaica. Igualmente o quadro apresentado no Novo Testamento é aquele de uma instituição agregada ao "status quo". Não há indicação no Novo Testamento de nenhum conflito entre a religião judaica e o poder romano.

O objetivo claro dos evangelhos é apresentar a questão revolucionária como sendo entre Jesus é o "Establishment" judeu. O fato de existir uma Instituição Romana contra a qual existiam forças revolucionárias é ocultado de maneira que a instituição contra a qual Jesus se rebelava possa ser representada como inteiramente judia. Existia é verdade, um pequeno partido, os Saduceus, o quais eram colaboracionistas, sustentavam a situação e aceitavam cargos oficiais sob os romanos. O Sumo-sacerdote, propriamente, era Saduceu e é importante que se note, era nomeado pelos romanos. Como membro de uma minoria colaboracionista, ele era encarado com suspeito pela grande massa da nação. A autoridade religiosa, no entanto, não permanecia com os sacerdotes mas com um corpo completamente diferente de pessoas, denominados Rabinos, os líderes dos Fariseus.

Assim os evangelhos falham em não mostrar que com relação ao povo a verdadeira instituição era o partido dos Fariseus que sem posição de destaque político, cujos líderes jamais receberam reconhecimento pelos romanos, constituía-se na primeira e última resistência contra os romanos. A imagem apresentada nos evangelhos sobre os Fariseus, colocando-os como interessados apenas em salvaguardar suas posições é inteiramente equivocada. 

Assim Jesus tornou-se o mestre-fundador de um movimento que trabalhou sua autodefinição no debate contra os ensinamentos dos Fariseus. Isto nos dá um quadro completamente diferente daquele mostrado pela comunidade Q, ou como veremos, o povo de Tomé, a Congregação de Israel e as colunas de Jerusalém. Um grupo particular do movimento de Jesus investiu inocente e fortemente na idéia de pensar-se como apto aos dois padrões, judaico e de Jesus.

Este grupo, e isto é uma questão da máxima relevância, voltou-se para as práticas das escolas de tradição helenistas, quanto a atribuir todas as razões para pensar da maneira que pensavam, ao seu fundador. Eles não desenvolveram nenhuma teoria ou mito da autoridade de Jesus como homem dvino, salvador ou mártir da nova causa. Também, não desenvolveram nenhuma visão apocalíptica de julgamento final ao final dos tempos. O que fizeram, foi colocar Jesus no papel de legislador, tal qual os escribas dos Fariseus, mas então desenvolveram sua habilidade retórica de maneira a superar os escribas em seu próprio jogo. 

Um instrumento excepcional surgiu quando este grupo decidiu usar as anedotas de Jesus para registrar seu debate com os escribas dos Fariseus. Quando se prepara uma chreiai os argumentos são os de quem prepara não os dos protagonistas da chreiai . Assim que o povo de Jesus desenvolveu as chreiai com argumentos mais elaborados eles preferiram não tomar os créditos pelos argumentos que encontraram. Ao invés, como na tradição grega de atribuição de novos ensinamentos ao fundador da escola, eles deixaram Jesus receber os créditos não só pelas chreiai como pelos argumentos em seu favor. Isto resultou em dar a Jesus dois pronunciamentos em cada chreiai elaborada, com a última afirmação, invariavelmente, marcando um pronunciamento da correção de seus pontos de vista.

Assim, ao final da chreiai sobre trabalho no sábado, Jesus diz, "O sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado". Assim, intencionalmente ou não, a Escola de Jesus produziu uma auto-referência de autoridade para seu mestre-fundador. 

No princípio esta caracterização de Jesus parece frágil, se não tola, e a lógica da argumentação fraca. Mas, ao combinar-se este estilo de auto-referência de Jesus com outros papéis míticos para Jesus, resulta um símbolo de autoridade extremamente impenetrável .

O evangelho de Marcos mostrará isto mais tarde. No meio tempo, como pode a Escola de Jesus tomar seu espaço no mundo, tendo se excluído de uma proeminente definição de judaísmo, definição esta, que aparentemente, foi considerada suficientemente importante, a ponto de se assumir muito seriamente o desafio com os Fariseus?

Não sabemos dizer com certeza, pois temos apenas o evangelho de Marcos como a próxima janela para dentro de seu pensamento. Olhando através desta janela parece-nos que a Escola de Jesus passou por um momento de desorientação e ansiedade no processo de se tornar uma seita independente.

1 – Quando surgiram os Essênios:

Estamos na Palestina.

Na terra dos Profetas, entre o primeiro século antes do Cristo e o primeiro século após o Cristo, operam-se grandes movimentos religiosos.

Agrupamentos diversos nascem da massa popular.

Encontra-se ai os zelotes, sicários, galileus, nazarenos, batistas, levitas e outros grupos que nasciam por força de suas aspirações religiosas.

Entre esses, um outro grupo do qual já se tinha referência muito antiga, desde o lendário Egito, floresce ás margens do Mar Morto, próximo de Jericó.

São os Essênios.

Entre os anos 150 a.C. e 70 d.C, aproximadamente, os Essênios foram bem identificados, uma vez que viviam isolados das demais comunidades, afastados da opulência de Jerusalém.

Preferiam o deserto da Judéia.

Ficaram poucos conhecidos, até o encontro dos documentos do QUNRAM, no Mar Morto, a partir de 1974.

As ruínas de cinco mosteiros no deserto da Judéia são o marco de sua existência em passado distante, além de outros mosteiros dispersos por diversas regiões na Samaria e Galiléia.

2 – Noticias históricas:

Alguns historiadores famosos falam sobre os Essênios.

Entre eles, destacam-se Filon de Alexandria:

Os Essênios são como santos que habitam e muitas aldeias e vilas da Palestina. Não se unem por clã familiar ou por raça, mas sim por meio de associações voluntários, formadas com intuito de melhor praticar a virtude e o amor entre as criaturas humanas.

Nas suas casas jamais se houve grito ou tumulto. Cada um, quando fala, cede a palavra ao outro. Este silêncio causa grande impressão ao visitante.

Sabem eles moderar a cólera e conservar o equilíbrio. Cumprem a palavra e sustentam a paz. O que dizem vale do que um juramento um sacrilégio, porque só precisa jurar quem é mentiroso.

Os que entram para a comunidade se comprometem a não prejudicar ninguém; ser fiel com todos, especialmente com os que tem poder, uma vez que ninguém ocupa cargos sem que seja pela vontade de Deus.

Vivem muitos anos alcançando facilmente os cem, possivelmente pela regularidade de vida. Suportam a dor, fazendo-se fortes contra ela. Sabem que o corpo é perecível, mas que a alma é imortal, vivendo ela no éter, de onde é atraída para se ligar aos corpos como se estes fossem prisões. Separadas da carne, libertam-se e elevam-se.

Muitos conseguem prever o futuro e é raro que se enganem nas previsões.

Muitos não se casam, porque acreditam que matrimônio é impedimento à vida simples. Outros, porém, afirmam que os que não se casam recusam a melhor parte da vida, que é a propagação da espécie.

A opinião do povo a respeito deles são pessoas irrepreensíveis e excelentes.

3 – Aliança com Deus:

Os Essênios não concordavam com os doutores das leis, que lideravam no templo de Salomão, quando ao sacrifício nas oferendas no altar da raça.

Preferiam os rituais do batismo e o respeito aos alimentos, que purificavam e comiam sempre em lugar especial.

Serviam o pão e o vinho, embora ocasionalmente comessem carne.

A cadeira principal deixavam sempre vazia.

Reservaram-se, à espera do Messias.

Eles eram pacíficos.

Seus bens eram postos em comum e exigiam unidade doutrinária.

Só falavam de uma espécie de guerra: a dos filhos da Luz contra os filhos das Trevas, ambos muitos fortes, empenhando-se em luta constante que se trava no interior de cada criatura.

Embora descendentes dos hebreus, desligaram-se das festas tradicionais do judaísmo, como a da Páscoa, dos tabernáculos e outras mais. Transformaram a sua vida em vivência litúrgica e não de detinham em inutilidades.

Viviam numa simplicidade muito rara entre as pessoas, em todas as épocas.

A idéia da Aliança com Deus é profunda e rica entre os Essênios, sendo, como realmente é, o centro de toda Bíblia, porém no seu aspecto mais rico, ou seja, a Aliança como expressão de amor.

4 – Ordens e afirmações:

Podemos encontrar os Essênios em duas diferentes ordens: uma de vida monástica, junto ao Mar Morto, e outra dispersa por toda a Palestina, Ásia e Alexandria, formando grupos de dez filiados, cada um com um dirigente.

Os grupos próximos têm alguma interdependência, chegando a somar cinqüenta ou cem.

No campo religioso, eles representaram o não conformismo típico que combina uma inquietude interior com disciplina quase fanática. São comparados aos primeiros cristãos.

O Rei da Prússia, escrevendo a Voltaire, afirma: “Jesus foi um Essênio”.

Gratz, em sua obra, afirma: “João Batista, era Essênio”.

Edmundo Wilson, jornalista do New York Times, em série de reportagens sobre os documentos encontrados em 1947, no Mar Morto, escreve: “O Convento, esse prédio de pedras, junto ás águas amargas do Mar Morto, com seu forno, tinteiros e piscinas sacras, túmulos, é, talvez, mais do que Belém e Nazaré, o berço do cristianismo”

5 – Princípios:

Os Essênios ensinam a piedade, santidade, vida familiar e vida civil.

Ensinam a não jurar e não mentir.

Crêem que o homem é a causa de todo bem e de nenhum mal.

O amor da virtude compreende desprendimento da riqueza e estabilidade de tudo o que assegure bons costumes.

O amor aos homens exige benevolência, igualdade e concórdia.

Ninguém possuí uma casa que não possa ser comum.

As vestes podem ser usadas por todos; o alimento para todos é igual.

Os doentes sem recursos não ficam sem cuidados. Eles têm, em comum, o que é necessário para tratá-los.

Respeitam os velhos e deles cuidam com suas próprias mãos, como filhos gratos, ainda mesmo quando não sejam seus próprios pais.

Habitam em aldeias, evitando as cidades pelas injustiças a que seus habitantes estão acostumados.

Alguns trabalham na terra e outros nas artes, tornando-se úteis a si e aos seus vizinhos. Não se preocupam em ajuntar prata em ouro, nem grandes parcelas de terra para aumentar os seus ganhos, contendendo-se com o que lhes forneça o necessário para a vida.

Consideram grande abundância o Ter-se poucos desejos e fáceis de serem satisfeitos.

Não há entre eles fabricantes de armas de guerra.

Entre eles não há escravos; todos são livres; uns já ajudam os outros. Condenam a escravidão, não apenas porque destrói a igualdade, mas porque atenta contra o direito da natureza que, como boa mãe, faz os homens irmãos, não apenas de nome, mas na realidade.

Desprezam a lógica e as palavras complicadas como inutilidades para adquirir virtudes. Preocupam-se, no entanto, com a física e com a astronomia, quando estas ensinam a existência de Deus e a origem do Universo.

Tem grande cuidado com a moral, tomando como guia as leis dos antepassados.

Nos fins de semana estudam muito.

Um lê livros e o outro, entre os mais preparados, explica aquilo que não foi facilmente compreensível, dada à simbologia usada nos ensinamentos.

6 – Organização:

Os Essênios renovam no deserto de Judá, a experiência vital da antiga peregrinação israelita nas planícies do Sinai. Sua vida confirma o profeta Isaias(40.3): VOZ QUE CLAMA, NO DESERTO, PREPAREI O CAMINHO DE SENHOR.

Entre eles estaria João, o Batista.

Historiadores da época se referem aos Essênios:

Eles se parecem com monges, estão sempre vestidos de branco, com franjas azuis. Suas ocupações são de índole prevalentemente espiritual, sempre com vistas à pureza pessoal. E ao trabalho com Deus pelas comunidades.

Usam o Pentateuco (O Livro Sagrado) como base, o qual utilizam com muito respeito. Afastam-se do mal e unem-se no Torá (O Livro) e nos bens.

Obrigam-se, por compromisso solene, e avançar no conhecimento.

Eles são destaques aos Instrutores, mais exigem que estes sejam, igualmente, superiores nos costumes e nos exemplos. Que pratiquem a Justiça, a Verdade, o Direito, cultivando ânimo afável e modéstia. Que se mantenham de espírito contrito, expiando as próprias faltas, pela prática da justiça.

O poder do Instrutor independente de preparação cultural. Assim, se não dor capaz de ensinar exemplificando, qualquer leigo poderá desempenhar as suas funções.

Relatos mediúnicos dizem que a titulação – Essênios – seria derivada de Essen, filho adotivo de Moisés, a quem o legislador entregou o seu acervo para “continuidade da tarefa.” Quanto ao fundador da comunidade, sabe-se apenas que era conhecido por “Mestre da Justiça”.

 

7 – O Messias:

Antes dos manuscritos do Mar Morto serem encontrados, dizia-se que todo povo judeu aguardava o Deus exclusivo da Palestina. Contudo, após as revelações dos manuscritos, soube-se que foi entre leis judeus Essênios que, pela primeira vez, se ouvira falar na vinda do Messias Universal, que será Rei, mas que todas as nações desfrutarão.

O cristianismo, nascido nesse período essênico, sofreu as influências dessa época. Está patente, portanto, que os Essênios foram ao que mais participaram na formação dessa doutrina, o que pode ser visto pela sua conduta e também pelas instruções que eram os que mais se assemelhavam àquelas ensinadas por Jesus.

Os Essênios se espalhavam, também, por toda parte, mesmo sem pertencer aos grupos definidos, afiliados apenas por costumes e religiosidade.

O tema central Essênio dói sempre a Aliança, vivendo com profundidade a gratidão. Sentem a manifestação de Deus, não somente a propósito deles, mas de todos os homens do mundo.

Poucos respeitam tanto a Aliança com Deus, como os homens destes grupos.

8 – Origem dos cristãos:

Hempel, 1951, escreveu: Esclarecida a origem dos cristãos. O cristianismo é apenas Essênio. Essênio ou cristão, dá no mesmo.

Na terminologia, usos e costumes, característicos, notam-se grandes semelhanças entre cristãos e Essênios.

Eis algumas:

Jesus criticava os fariseus, igualmente como fazia João, o Batista, e os Essênios. A maneira de expressão de João, o Evangelista, André, Pedro, Natanael, era a forma comum entre os Essênios.

Os Essênios pregavam a mansidão e a humildade, para serem agradáveis a Deus. Foram essa, igualmente, lições e exemplos dados por Jesus.

Os Essênios ensinavam o amor ao próximo como a si mesmo. Jesus tratou o amor como fundamento entre as criaturas.

Os Essênios ensinavam o amor ao próximo como a si mesmo. Jesus tratou o amor como fundamento entre as criaturas.

Os Essênios pregaram o “espírito da verdade” e a “vida eterna”. Foram estas também palavras de Jesus.

Os Essênios falaram de um fundamento que não seria abalado. Jesus chamou a Pedro de rocha que não seria abalada.

Os Essênios têm os hinos das “Bem Aventuranças”, a idéia central usada por Jesus no Sermão do Monte.

Os Essênios se definem como membros da Aliança, igualmente como se definiam os discípulos de Jesus. No Qumran, onde viviam os Essênios, o conselho era formado por doze membros, como doze foram os Apóstolos. A divisão do pão e do Vinho pelo Superior, à hora da refeição, nos lembra Jesus.

Punham seus bens em comum. Assim também ensinou Jesus quando desse ao jovem que o procurou: “Se queres ser perfeito, vai, vende todas as tuas coisas e segue-me.”

Jesus manteve o costume do batismo, prática normal entre os Essênios.

Ambos, Essênios e cristãos, respiram o mesmo clima de uma única matriz.

Toda história de Israel, sua evolução religiosa, é a base do Novo Testamento. São derivados do mesmo tronco.

Podemos afirmar, com toda segurança, que os Essênios prepararam o terreno para a sementeira e desenvolvimento do cristianismo. Assim, a gratidão dos cristãos é por terem eles facilitado o caminho.

Observa-se, agora, que os que quiseram ser os filhos da Luz, e viver como tal, se apagaram quando chegou Aquele que é a Luz Verdadeira, embora sem o terem, talvez, assim reconhecido. Porém, mesmo depois que Jesus inaugurou no Calvário a era de redenção, ainda por quarenta anos o vento carregou as orações dessa comunidade.

Invadidos um dia pelas Legiões Romanas, apressadamente os Essênios esconderam nas fendas e nas grutas da região montanhosa, os seus escritos. Foram eles, nessa invasão, mortos ou dispersos, para não mais voltar às suas comunidades de trabalho e oração, que agora, descoberta, põem nova luz na história das religiões.

Tinham, porem, já cumprindo a vocação, segundo Isaias:

“No deserto, preparei os caminhos do Senhor”.

O CRISTIANISMO

INTRODUÇÃO

O estudo dos primeiros movimentos cristãos está hoje recebendo muita atenção dos especialistas e existe muito material moderno desvendando esse passado, tão importante para o mundo ocidental.

Tudo que sei, foi aprendido nas obras desses brilhantes professores e estudiosos e apenas transponho aqui, em nosso idioma, algumas dessas conclusões. Não considero nada como de minha autoria, coloco em português as pesquisas que li, estudei e que considero sérias e algumas questões necessitam ser levantadas, posso estar com estes textos cometendo uma serie de injustiças, principalmente com relação à figura de Jesus Cristo, mas o sentido aqui exposto é de tentar mostrar, que após a morte e sua ressurreição, os fatos podem ter sido manipulados.

Quando nos confrontamos com a idéia de escrever algo sobre o Novo Testamento acabamos diante de uma situação parecida com a conhecida estória do ovo de Colombo. O fato é, que para a maioria das pessoas, o Novo Testamento é apresentado como prova para o quadro convencional das origens do cristianismo e o mesmo quadro convencional é tomado como prova da maneira pela qual o Novo Testamento foi escrito.

O Novo Testamento é normalmente encarado como se fosse um documento tipo carta-régia criado nos moldes de uma constituição, como a nossa por exemplo. De acordo com essa visão, todos os autores do documento estariam presentes na aurora da nova religião, vivido os acontecimentos e coletivamente escrito seus evangelhos com o propósito de lançar as bases da Igreja Cristã que Jesus viera para inaugurar. No entanto, a despeito dessa visão ser largamente disseminada, não foi o que aconteceu.

Os especialistas localizaram os vários escritos do Novo Testamento, em várias épocas diferentes e em várias localidades num espaço de cem anos; das cartas de Paulo nos anos 50 do primeiro século até os evangelhos de Marcos e Mateus nos anos 70 e 80, os evangelhos de Lucas e João no entorno da virada do século e os Atos e outras cartas durante a metade do segundo século indo até 140 ou 150 da Era Cristã.

Um outro complicador para a tradição é que os estudos nos últimos 600 anos, e os avanços das pesquisas neste século demonstraram, sem qualquer sombra de dúvida, de que com exceção das sete cartas de Paulo e do livro das revelações, escrito por um desconhecido João, os escritos selecionados para inclusão no Novo Testamento, não foram escritos por aqueles cujos nomes estão indicados. Muitos cristãos modernos consideram este fato de difícil compreensão, pois se isso é verdade, alguém está mentindo.

Uma boa maneira de entender este fenômeno é considerar que:

- A maior parte da literatura nos primórdios da era Cristã era anônima;

- Que o conceito de uma era apostólica pertence ao segundo século;

- Que a posterior atribuição desta literatura, a nomes associados com os apóstolos pode ser explicada de uma maneira que não caracteriza desonestidade.

Não será fácil desmontar o quadro convencional, porque os textos que deverão ser acessados estarão, intrinsecamente, interligados com este quadro. Considere-se que os nomes que temos para estes textos estão ligados às origens do mito do Cristianismo e que não dispomos de outros nomes para referenciá-los. Assim, teremos que nos referir a Marcos quando nos referirmos ao "autor do evangelho de Marcos", e a Mateus quando nos referirmos ao "autor do evangelho de Mateus". Existe também uma outra razão pela qual não será fácil deixar de lado este quadro convencional.

É que esta visão tradicional é suportada pela composição do Novo Testamento e este tem sido o único conjunto de textos disponível para imaginar e "documentar" este quadro, aliado ao fato de que os cristãos investiram muito neste cenário e este investimento tomou a forma de uma crença de que os evangelhos são um relato histórico da verdade.

Aceitar o fato de que os cristãos antigos estiveram engajados na elaboração de um mito, pode ser difícil para os cristãos modernos. A conotação usual do termo mito é quase, inteiramente, negativa e quando usada para descrever o conteúdo dos evangelhos do Novo Testamento haverá, certamente, um clamor. Isto porque, diferentemente, de quase todos os mitos que começam com um, "era uma vez", o mito cristão é colocado numa época e num local histórico. Portanto, parece ser obrigatório a crença de que os eventos dos evangelhos realmente aconteceram e que a estória não pode ser um "mito".

Deve ser notado, e pode ajudar o entendimento, que:

- A montagem de mitos é uma atividade social normal e necessária;

- Os mitos, elaborados pelos antigos cristãos são devido mais a empréstimo e rearranjo de mitos admitidos como verdadeiros, nas culturas do contexto, do que uma especulação, simplesmente;

- Que os mitos que eles montaram faziam sentido, não somente para sua época e circunstâncias, mas também pelas experiências sociais das quais eles eram revestidos.

Como mitos podem fazer sentido?

E que tipo de sentido faz o mito cristão?

Esses são os desafios que temos para mostrar. E, para vencermos este desafio, necessitaremos voltarmos no tempo, investigarmos as condições dos primeiros movimentos cristãos em relação ao rompimento da tradição dos fariseus e o grande problema que os judeus tinham em mãos quando o segundo templo foi destruído em 70 d.C. Não somente a sua história antiga contida nos livros de "Moisés", mas também um imenso edifício literário desde o período helenista documentava o investimento intelectual dos judeus no estado-templo como sendo esse o próprio objetivo da história humana, desde a fundação do mundo.

Os cristãos também tinham um problema. Eles não tinham o direito de assumir a história dos judeus como a sua própria história. Mas os primeiros judeus-cristãos gostavam de se sentir, eles mesmos, como o povo de Deus, herdeiros das promessas de Israel, ou mesmo o novo Israel.

Comparem com o discurso atual da Igreja Universal do Reino de Deus, que a partir de um crescimento espantoso, se sente credenciada na comunidade evangélica, a representar um novo Deus vivo, não o Deus da Bíblia, do passado, e assim, reivindicar para o seu novo templo no Rio de Janeiro, sede mundial, o título de templo do novo Israel. De certa forma, a IURD está assumindo uma posição análoga aos primeiros cristãos que rompiam com a antiga tradição, incluindo, em seu ritual características únicas dentro das denominações evangélicas.

Assim sendo, todos os primeiros mitos sobre Jesus, simplesmente foram tentativas de pintá-lo, bem como seus seguidores, com cores aceitáveis ao Israel épico. Mas essas tentativas eram fantasiosas, de momento e incapazes de competir com a lógica do épico judaico. O épico judaico era uma história cujo objetivo era o estabelecimento do estado-templo e não uma congregação cristã.

Quando o templo desabou, entretanto, e a lógica do épico ficou em total desarranjo, os cristãos tiveram a chance de revisá-lo em seu favor. Foi então que a revisão do épico judaico tornou-se o maior foco para os primeiros redatores do mito cristão. Exemplos disso podem ser vistos nos evangelhos do Novo Testamento, todos eles iniciam suas estórias de Jesus ao final da história de Israel. Isto aconteceu durante o fim do primeiro século, período no qual a mitologia de Jesus como filho de Deus brotou entre muitas comunidades cristãs. E então, do meio do segundo século em diante o barulho começou. Tanto judeus como cristãos queriam fazer a leitura da história de Israel em seu favor e ambos necessitavam das escrituras judaicas.

OS MOVIMENTOS EM TORNO DE JESUS

Segundo Burton Mack, antes do estabelecimento do novo culto em torno de Jesus, precisamos analisar os movimentos que antecederam ao estabelecimento desse culto e que se convencionou denominar de movimentos de Jesus. Neste ponto é importante frisar duas correntes principais. A primeira na qual Mack se encaixa que é a de considerar o nascimento destes movimentos em torno da figura de uma pessoa histórica que seria Jesus, embora Mack afirme não ser necessária a figura de um Jesus Histórico para explicar estes grupos.

Nesta abordagem pode-se considerar que estamos novamente diante do ovo de Colombo. Historiadores como Earl Doherty, não aceitam essa posição, inclusive imputando Burton Mack de culpa, por usar a própria estratégia que critica nos historiadores ditos cristãos, embora seja ele mesmo, Mack, um cristão. A outra corrente não aceita que esses movimentos partiram de uma figura, no caso Jesus, e sim que todos esses grupos, produzindo visões díspares entre si a partir de uma matriz comum de ingredientes, acabaram por convergir numa figura composta de um suposto fundador que refletia os vários grupos sectários e que se tornou a corporificação de todos os elementos do período.

Neste livro estaremos abordando a visão de Mack, contrapondo as argumentações contrárias quando existentes e sempre nos referiremos às citações, especialmente em Q e no evangelho de Tomé, como sendo de Jesus, embora cientes que muitas destas, senão a maioria, foi atribuída a Jesus como era do costume das escolas no estilo grego de atribuir a sabedoria evoluída, a seu fundador.

As culturas entraram em conflito nos tempos Greco-Romanos, e o mediterrâneo Oriental explodia com uma mistura pesada e volátil de povos, poderes e idéias. Três modelos de sociedade estavam na cabeça de todos durante a era Greco-Romana (segundo século Antes da Era Cristã até segundo século E.C.); o antigo estado-templo Judeu, as cidades-estado da Grécia (polis) e a república Romana.

A Galiléia foi governada pelos reis de Jerusalém somente duas vezes nos mil anos que precederam a época de Jesus, por breve período de tempo. No início dos reinos de David e Salomão, por apenas 80 anos, posteriormente foi governada por Tiro, Samária, Damasco, Assíria, Neo-Babilônia, Pérsia, Ptolomeus, e Seleucidas antes de ser retomada pelos Judeus em 104. Não há nada que sugira que os Galileus estavam felizes com essa anexação. O povo da Galiléia era Galileu e não Sírio, Samaritano ou Judeu.

Durante o período Helenista, A Galiléia foi introduzida na linguagem, filosofia, arte e cultura Gregas, através da fundação de cidades no modelo grego em localizações estratégicas acima e abaixo do vale do rio Jordão, a leste do mar da Galiléia, ao longo da costa marítima a oeste e, eventualmente, dentro da própria Galiléia. Durante a época de Jesus havia cerca de doze cidades Gregas dentro de um raio de 40 quilômetros de sua cidade natal, Nazaré.

Sabemos, que a tentativa Grega de exportar Atenas foi mal sucedida. Atenas, não era um produto de exportação. Ao invés de realçar as grandes tradições da Grécia Clássica, as cidades Helenistas geraram confusão ideológica e conflito cultural. Desta maneira a mistura de povos, culturas e poderes políticos era a característica mais óbvia e desafiadora daqueles tempos.

Durante a dominação dos romanos o quadro não mudou, pois embora estes sempre se mostrarem bons em manter a ordem, e no desenvolvimento de melhorias com trabalhos públicos, isto não era suficiente para criar uma cultura comum. Nenhum dos povos subjugados era fascinado com a história, religião e cultura romanas. Assim, a cidade do Tibre era respeitada, mas não amada. Os romanos não inspiravam lealdade e o império que criaram não tinha uma alma cultural. Lei e ordem nunca foram suficientes para manter um povo dançando.

O detalhamento do caldeirão cultural daqueles tempos demandaria uma digressão fora do escopo deste pequeno livro e, portanto, limitaremos a registrá-la, pois grande será o seu papel na criação do mito cristão.

Jesus nasceu na Galiléia e aparentemente tinha alguma educação a julgar por esses movimentos que o lembram como seu fundador. Porém, é totalmente impossível relatar-se alguma coisa dele como pessoa, e muito menos escrever sua biografia. As "memórias" sobre ele diferem muito e todas possuem características mitológicas e o melhor que se pode fazer é ensaiar-se algumas conclusões, a partir dos ensinamentos atribuídos a ele.

Estes ensinamentos pertencem aos movimentos que se iniciaram em seu nome. Temos que inferir que tipo de mestre era ele, a partir dos ensinamentos que foram desenvolvidos naqueles movimentos. Ele com certeza tinha alguma intelectualidade, porque os ensinamentos dos movimentos derivados dele são carregados de idéias e pontos de vistas penetrantes. Ele não criou um programa social para os outros seguirem ou uma religião que sugerisse que os seguidores o considerassem um Deus. Ele simplesmente falava coisas mais claras do que o costume e fazia sentido quando falava da vida em seu mundo, devendo com isto ter atraído outras pessoas, a juntarem-se ao seu mundo.

O teor dessas falas pode ser visto nos ensinamentos de Jesus que seus seguidores preservaram. Os ensinamentos são na verdade uma coleção de aforismos sentenciosos, que atingiram o coração das questões éticas. Uma análise profunda desses aforismos revela uma interveniência de dois temas que marcam a genialidade do movimento.

O primeiro é um desafio bem humorado e irritante destinado a empreender uma contracultura no estilo de vida. Esses desafios eram lançados com toda seriedade, mas marcados pelo humor. A mais próxima analogia desse tipo de convite, para um tipo de vida fora da corrente principal, é encontrada no discurso Cínico da época.

Um outro tema é o interesse em um conceito social chamado "O Reino de Deus". Este conceito não foi trabalhado com nenhuma clareza, mas da maneira como foi usado mostra alguma coisa de visão social nos ensinamentos de Jesus. O Reino de Deus referia-se a uma sociedade ideal, imaginada como alternativa ao modo pelo qual o mundo estava vivendo sob o domínio de Roma.

É interessante notar que, nesta fase, o Reino de Deus dos ensinamentos de Jesus não era uma projeção apocalíptica ou de um paraíso celeste de um desejo extramundo. Era impulsionado por um desejo de imaginar de que deveria haver uma melhor maneira de viver. Pelos aspectos culturais mencionados acima a Galiléia parecia ser um lugar perfeito para experimentos de crítica social, e tentativas de uma melhor maneira de viver. Assim, os ensinamentos de Jesus podem ser descritos como uma combinação criativa destes dois temas, ou um desafio para os indivíduos explorarem uma noção de alternativa social.

Se assim era, o gênio de Jesus foi deixar que a centelha se difundisse entre duas sensibilidades culturais diferentes, a Grega e a Semítica. Todos os ingredientes essenciais estavam presentes: crítica social, visão alternativa social, soberania divina e virtude pessoal. E, todavia, nada estava presente a não ser idéias. Nada tinha sido explicitado. Tudo havia sido deixado para mais conversas, conversas e experiências com as novas idéias.

E isto, foi exatamente, o que aconteceu. As conversas sobre o Reino começaram com os ensinamentos de Jesus e então atraíram cada vez mais pessoas. Não podemos saber ao certo de que maneira esses grupos se formaram e como o movimento do reino se espalhou de um lugar a outro. O que sabemos é que, quando os escritos sobre Jesus começaram a aparecer, as conversas sobre o reino resultaram na formação de diferentes formas de associação. E então uma nova religião começou a nascer.

Os movimentos de Jesus começaram na Galiléia, durante os anos 30 e 40 do primeiro século da E.C. Grupos de pessoas se juntaram em torno da combinação de três novas idéias que estavam pairando no ar, desde a ruptura dos traços culturais tradicionais da era Greco-Romana.

A combinação dessas três idéias gerava um grande excitamento social.

A primeira era a noção vaga de uma sociedade perfeita conceituada como um reino. Esta era uma noção usada por muitos grupos para idealizar uma maneira melhor de viver. O povo de Jesus se agarrou a esta idéia e agia como se o reino que eles imaginavam fosse uma possibilidade real, a despeito dos romanos. Eles o chamavam, de Reino de Deus.

A segunda idéia, era de que qualquer indivíduo, não importasse seu extrato social, ou capacidade inata era talhado para o reino. O povo de Jesus dizia: "venha, você pode, você pode viver como se pertencesse ao reino de Deus" e "Se você vier, ou agir como tal, o reino de Deus, certamente, se espalhará por todo o mundo".

A terceira idéia, era uma combinação das duas anteriores. Consistia na idéia nova de que a mistura de povos, era exatamente o que o reino de Deus deveria buscar.

Que poderoso conceito social deve ter formado esta combinação de idéias, um corte nos limites sociais e culturais, colocando abaixo um enorme apelo individualista com um objetivo, inteiramente, social além de insistir que a ponte entre um ideal inacreditável e sua materialização social poderia ser construída.

E assim, o movimento de Jesus começou. Nos primeiros quarenta anos somos capazes de identificar, pelo menos sete correntes diferentes dentro do movimento de Jesus, embora elas pudessem ser em um número bem maior. Temos sorte de sabermos alguma coisa, pois esse era um período experimental onde os grupos se expandiam tão, rapidamente, quanto mudavam seus pontos de vista. No início, ninguém pensou em registrar nada, além de existir muito pouco a registrar que não fosse rumor ou conversa informal. O que temos escrito desse período, chegou a nossos dias graças a uma combinação de puro acidente histórico com a laboriosa investigação dos estudiosos.

O acidente histórico consiste no fato de que algumas tentativas de se escrever as coisas e compartilhar idéias foram salvas, embelezadas e, eventualmente, retrabalhadas por escritores posteriores, cujos escritos acabaram por serem incluídos no Novo Testamento. Se isto não tivesse acontecido, a maior parte do registro das memórias do primeiro período teriam se perdido para sempre, porque nem os primeiros movimentos, nem depois a igreja estavam interessados em manter essas memórias antigas vivas.

Segundo Mack: do período inicial temos alguma evidência documental que nos permite identificar cinco diferentes grupos do povo de Jesus, além do grupo chamado "Família de Jesus" do qual temos apenas algumas poucas indicações e a Congregação de Cristo, que falaremos mais tarde. Mack se refere aos cinco grupos, dentro do movimento de Jesus como:

- A Comunidade Q, a qual produziu Os Evangelhos de citações Q;

- A Escola de Jesus, que produziu as estórias tipo pronunciamentos pré-Marcos;

- Os Discípulos Verdadeiros, que produziram o evangelho de Tomé.

- A Congregação de Israel, que produziu o conjunto de estórias de milagres pré-Marcos;

- As Colunas de Jerusalém, sobre as quais, temos apenas o relato de Paulo, na carta aos Gálatas.

Cada um destes grupos difere dos outros de forma notável, mas todos eles compartilham algumas características. Uma particularidade comum já foi indicada, qual seja o investimento na idéia do Reino de Deus e o fato de todos estarem engajados na formação de grupos. Outra característica que eles podem ter compartilhado, embora de difícil documentação em cada grupo, é a prática de reuniões para fazerem refeições juntas e, obviamente, todos consideravam Jesus como o fundador de seu movimento. Mas a despeito das características comuns, cada grupo desenvolveu-se diferentemente e as visões e práticas diferentes aplicadas são umas evidências de que Jesus não legou um programa para o lançamento de uma nova religião. A estrada de Jesus até a religião Cristã que finalmente emergiu no quarto século, com o mito de Jesus como filho de Deus solidamente colocado, é um caminho longo e tortuoso. O Cristianismo não nasceu de uma concepção imaculada. Foi o produto de miríades de momentos de trabalho intelectual e negociação de acordos sociais, do povo investido dessa experiência.

Esta descoberta tem sido difícil de ser aceita por muitos Cristãos. Isto porque a idéia tradicional do começo do Cristianismo coloca Jesus sabendo, antecipadamente, o que se espera dele e dos seus discípulos, na tarefa de estabelecer a religião Cristã. Nenhum grupo primitivo de Jesus encarava Jesus como o Cristo, ou o próprio grupo como uma igreja Cristã. É muito importante compreender que esses movimentos se desenvolveram como escolas de pensamento, e não como comunidades religiosas do tipo que se juntam em celebração ao mito de Cristo. É muito importante nessa fase que o retrato de Jesus mostrado nos evangelhos seja deixado de lado. Esta imagem só ocorreu quando Marcos escreveu sua estória de Jesus, depois da guerra Romano-Judaica.

A COMUNIDADE Q

Segundo Burton L. Mack, os escritos da comunidade "Q" são os primeiros registros que temos dos movimentos primitivos de Jesus, e é um texto verdadeiramente precioso. Eles documentam a história de um grupo específico do movimento primitivo de Jesus, por um período de cerca de 50 anos, desde a época em que Jesus tinha 20 anos até após a guerra Romano-Judaica nos anos 70. O notável sobre este grupo é que ele se desenvolveu dentro de uma comunidade, firmemente, interligada e produziu uma vasta e grandiosa mitologia, simplesmente atribuindo, mais e mais ensinamentos a Jesus. Eles não precisaram imaginar Jesus no papel de um Deus ou contar estórias sobre sua ressurreição dos mortos para honrá-lo como um mestre. Em outras palavras eles não eram cristãos eram simplesmente, uns grupos de Jesus.

OS ENSINAMENTOS DE “Q”

As camadas primitivas dos ensinamentos de Jesus em Q são as menos interpoladas de todas as suas citações em documentos existentes. Isto significa, que Q nos coloca mais próximos do Jesus Histórico do que jamais poderemos estar.

Portanto, é enorme a importância de Q e do desafio sobre a concepção popular das origens Cristãs é claro. Se a visão convencional dos primórdios do Cristianismo está certa, como podemos explicar esses pioneiros de Jesus. Será que não entenderam a mensagem? Eram ignorantes do evangelho da salvação ou os repudiavam?

Se, entretanto, os primeiros seguidores de Jesus entendiam o propósito do movimento, da maneira descrita em Q, como explicaremos a aparição dos cultos de Cristo, as fantásticas mitologias dos evangelhos narrativos e o eventual estabelecimento do culto e da religião Cristã?

Q nos força a repensar as origens do Cristianismo como nenhum outro documento dos primeiros tempos. Após a descoberta de Q, os evangelhos narrativos não poderia mais ser visto como relatos dignos de confiança sobre os eventos históricos que culminaram com o estabelecimento da fé Cristã. Temos agora que considerar os evangelhos como resultados da elaboração do primitivo mito Cristão. Como já dissemos, Q força essa questão, porque não concorda com os relatos dos evangelhos narrativos.

Q é oriundo da palavra alemã Quelle, que significa "fonte". O texto obteve este nome quando historiadores descobriram que tanto Mateus como Lucas usaram uma coleção de citações de Jesus como uma de suas "fontes" para seus evangelhos, sendo a outra fonte o evangelho de Marcos. Os estudiosos sabiam a mais de 150 anos que alguma coisa como Q tinha que ter existido, mas apenas recentemente tiveram a certeza. Apesar de tudo, todos sabíamos qual o conteúdo do documento porque os seus ensinamentos estavam lá, nos evangelhos de Mateus e Lucas.

Uma vez que não tínhamos um manuscrito Q independente que teria sido perdido na balbúrdia do início do segundo século, um conhecimento profundo de Mateus e Lucas seria necessário caso quiséssemos reconstruir o texto original que eles tinham em comum. Foi uma surpresa, quando alguns especialistas curiosos, começaram a reconstruir um texto unificado e olharam Q como uma peça de literatura independente, uma peça de literatura que tinha conduzido um movimento de Jesus por meio século, antes de Mateus e Lucas sequer pensarem em mesclá-lo com a estória de Marcos sobre Jesus.

Um mundo Cristão, inteiramente, diferente veio à tona.

Uma vez que o texto de Q não é encontrado separadamente, em nenhuma cópia do Novo Testamento, teremos que nos referir ao seu conteúdo citando o capítulo e versículo no evangelho de Lucas. A preferência de Lucas sobre Mateus é devida ao fato de que Lucas não alterou a seqüência e terminologia das citações tanto quanto Mateus alterou (assim Q 11:1-4 = Lucas 11:1-4).

Q coloca os primeiros povos de Jesus no foco, e o quadro é tão diferente daquele que todos sempre imaginaram que se torna surpreendente. Ao invés de pessoas se reunindo para adorar um Cristo, como nas congregações Paulinas, ou preocupando-se com o que significa ser um seguidor de um mártir, como nas Comunidades de Marcos, o povo de Q estava, completamente, dedicado às questões presentes sobre o Reino de Deus e com o comportamento necessário para alguém abraçá-lo seriamente.

Estudos recentes identificaram três camadas de material de instrução em Q. Cada uma dessas camadas corresponde a um estágio na história da comunidade Q. Isto permite rastrear a história dos primeiros movimentos de Jesus acompanhando as mudanças nas referências a respeito da idéias do Reino de Deus. Nenhum outro texto ou conjunto de textos do primeiro século nos preenche com as histórias inteiras de uma comunidade "Cristã" primitiva. Os estudiosos agora se referem a essas camadas como Q1, Q2 e Q3 .

A camada mais antiga, Q1, consiste, extensivamente, das citações sobre a sabedoria de ser um verdadeiro seguidor de Jesus. Q2, por outro lado, introduz pronunciamentos de julgamentos proféticos e apocalípticos sobre aqueles que se recusarem a ouvir os ensinamentos de Jesus. E, finalmente, Q3 registra uma retratação ao desgaste de encontros públicos para tratar de idéias de paciência e piedade para os iluminados enquanto esperam seu momento de glória num certo futuro no fim da história humana.

Um fato notável sobre o material de Q é que ele advoga por um estilo de vida evolucionário, transformando aforismos em prescrições de comportamento. Uma injuriosa recriminação tal qual "Deixa os mortos sepultarem os seus mortos, tu vai e anuncia o reino de Deus", pode ser isolada no núcleo de um pequeno aglomerado de citações, tornando-se um princípio de comportamento adequado ao novo reino. Neste caso, o comportamento recomendado é simplesmente o compromisso com o reino (Q 9:57-62).

Podemos identificar sete temas no bloco Q:

A maior unidade (Q 6:20-49) consiste de ensinamentos de Jesus a respeito de a quem pertence o reino de Deus ("os pobres, famintos, os que choram"), e como tratar os outros (“o que quereis que os homens vos façam, fazei-lhes o mesmo a eles"), e sobre julgamentos aos outros ("não julgueis e não sereis julgados");

O segundo bloco de Q1 é sobre tornar-se um seguidor e trabalhar para o reino de Deus (Q 9:57-10:11);

O terceiro é sobre ter confiança em pedir a Deus (o Pai) (Q 11:1-13);

O quarto diz que não se deve ter temor de falar (Q 12:2-7);

O quinto explica que não deve existir preocupação com alimentação, vestuário e que o desejo por coisas pessoais é tolice (Q 12:13-34);

O sexto ensina que como a semente e o fermento, o reino de Deus crescerá (Q 13:18-21);

O sétimo fala sobre os encargos de ser um seguidor e sobre as conseqüências de não levar o movimento a sério (Q 14:11, 16-24, 26-27, 34-35).

Se datarmos esse material em cerca de 50 d.C., na altura dos primeiros vinte anos do movimento poderá se verificar, o que o povo de Jesus vinha fazendo. Eles estavam profundamente envolvidos em definir, exatamente, o que significava pertencer à escola de Jesus. Com isto, eles despenderam um grande esforço intelectual para encontrar argumentos para um determinado tipo de atitudes e ações consideradas fundamentais para alcançar-se o reino de Deus.

Podemos definir o perfil do estilo de vida que eles estavam recomendando? Se fizermos uma lista dos imperativos que estão próximos aos núcleos das menores unidades de Q1 podemos começar a enxergar que um tipo de programa estava na mente dos primeiros povos de Jesus.

A lista inclui os seguintes imperativos ou regras de comportamento:

Ame os seus inimigos (Q 6:27);

Se apanhar numa face ofereça a outra (Q 6:29);

Dê a todos que pedem (Q 6:30);

Não julgue e não sereis julgados (Q 6:37);

Remova primeiro a trava do seu próprio olho (Q 6:42);

Deixe os mortos enterrarem os seus mortos (Q 9:60);

Eis que vos mando como cordeiros ao meio dos lobos (Q 10:3);

Não leveis bolsa, nem alforje, nem sandálias (Q 10:4);

Dizei-lhes: É chegado o reino de Deus (Q 10:9);

Pedi e dar-se-vos-á (Q 11:9);

Não estejais apreensivos pela vossa vida (Q 12:22);

Buscais antes, o reino de Deus (Q 12:31).

Um programa com muitos riscos parecia estar em andamento. Ricos, mau uso da autoridade e poder, hipocrisias e pretensões, iniqüidades sociais e econômicas, injustiças e até mesmo, lealdades familiares normais estavam, inteiramente, sob suspeita. O reino ideal estava sendo estabelecido em antagonismo aos costumes tradicionais, através da orientação de que os seguidores de Jesus deveriam praticar a pobreza voluntária, o afastamento dos laços familiares, a renúncia de bens, a coragem de falar e aplicar a não-retaliação.

Um tremendo programa. Fazia esse programa algum sentido?

A resposta é afirmativa. O estilo de vida do povo de Jesus guardava estrita semelhança com a tradição grega da filosofia popular característica dos Cínicos. Os Cínicos também promoveram um afrontoso estilo de vida como maneira de criticar os costumes convencionais e os temas dos dois grupos,

Cínicos e povo de Jesus, eram bastante coincidentes. Os Cínicos ajudaram ao homem comum a ganhar alguma percepção sobre a maneira como seu mundo funcionava, desta forma as pessoas não encontraram problemas para entender o que o povo de Jesus estava dizendo.

A diferença entre o povo de Jesus e os Cínicos era a seriedade com a qual o movimento de Jesus encarava a nova visão social do reino de Deus. Isto era reflexo da preocupação judaica por uma sociedade trabalhadora real, como sendo o contexto necessário para qualquer bem-estar individual. Foi esse interesse em explorar uma visão social alternativa que afastou o movimento de Jesus de um mero apelo Cínico. Pode-se ainda detectar algum humor do tipo Cínico no estilo aforístico das citações:

"Porque onde estiver o vosso tesouro ali estará também o vosso coração" (Q 12;34);

"Pode porventura o cego guiar o cego" (Q 6:39);

"Porque qualquer que pede recebe" (Q 11:10).

Assim a fase inicial dos movimentos de Jesus devem ter sido caracterizada por um espírito mais brincalhão do que aquela caracterizada pelo material Q1 que chegou até nós.

Mas o processo de formação dos grupos, e a fase de agir seriamente como grupos, estabeleceu uma atitude não-Cínica. Todos os blocos do material de Q1 revelam uma tentativa estudada de expressar um claro conjunto de códigos para o movimento de Jesus como uma formação social, códigos estes que giravam em torno de definir quem, realmente, pertencia ao reino.

As instruções Q 10: 1-11, por exemplo, são direcionadas para orientar um comportamento adequado quando se tivesse que representar o movimento de Jesus em outra cidade. Estas instruções mostram que existia uma rede de pequenas assembléias de grupos, que poderia ser considerada como suporte ao movimento. Assim, o período inicial de tentar um novo reino por intermédio do estilo tipo Cínico, evoluiu para uma bem mais complexa empreitada. O foco não estava somente no estabelecimento de uma lista de códigos para definir um verdadeiro discípulo, mas em estabelecer padrões para reconhecimento e para os relacionamentos autênticos dentro da comunidade dos companheiros seguidores de Jesus. A formação social do povo de Jesus e a visão social do reino de Deus começaram a se espelhar uma na outra.

A motivação em Q2 é, drasticamente, diferente. O processo de formação social tinha pagado o seu preço. Famílias tinham sido separadas, um código de comportamento estrito tinha sido estabelecido pelos demais Judeus para censurar ou levar ao ostracismo o povo de Jesus, algumas cidades os incitavam a se afastarem e alguns membros antigos decidiram que o estresse era muito grande. A lealdade era nessa hora o apelo principal, e alguns seguidores de Jesus tiveram que decidir entre a família e o movimento. Aqueles que permaneceram fiéis, a despeito das tensões sociais, encontraram novas razões para dizer sim ao movimento de Jesus, mas a maioria dessas razões era o lado secundário de argumentos extravagantes de comparação com aqueles que eram considerados do lado errado.

"Mas ai de vós fariseus. Vocês são como sepulturas bonitas por fora, mas cheia de poluição por dentro" (Q 11:42; cf Mateus 23:27).

"E digo-vos que mais tolerância haverá naquele dia para Sodoma do que para aquela cidade" (Q 10:12).

Assim, ao invés do estilo de crítica social através dos aforismos alegres, característicos dos primeiros tempos de experimentação social, ou mesmo do tom mais sério de instrução que definiu o posterior desenvolvimento do povo de Jesus, a comunidade Q adotou uma postura firmemente judicatória em relação ao mundo. Pronunciamentos apocalípticos ameaçadores do juízo final eram dirigidos contra aqueles que recusavam o programa do reino. E assim o tempo para a completa realização do reino foi adiado para o fim dos tempos (eschaton).

Os conflitos sociais refletidos em Q provavelmente tiveram lugar durante os anos 50 e 60, embora algumas das citações seriam de melhor entendimento como uma linguagem cunhada nas sombras da guerra Romano-Judaica. Com este tipo de linguagem soando em seus ouvidos, os escribas do movimento de Jesus tiveram que rever seus manuais de instrução sobre Jesus. Eles mantiveram os livros antigos de instruções e sabedoria ética que hoje identificamos como Q, porque esses haviam se tornado em ensinamento padrão para a comunidade. Mas adicionaram material judicatório e profético para promover o enquadramento na nova motivação. O novo manual foi arranjado de maneira cuidadosa, tecendo o material apocalíptico e judicatório no conjunto primitivo de instruções, dando a impressão que o material original tinha sido preparado com o juízo final em mente.

Entretanto, dois problemas conceituais tinham que ser resolvidos para que essa revisão fosse realizada. O primeiro era o fato de que o povo de Jesus tinha se acostumado a encarar Jesus como um mestre de sabedoria e agora tinham que imaginá-lo como sendo também um profeta apocalíptico. Isto requeria uma grande mudança na caracterização.

O outro problema era que, tendo experimentado um fracasso adiando a realização de sua visão até a data da justificação, a comunidade tinha agora a obrigação de estar bem segura de estar no caminho certo. Isto requeria um horizonte de história bem mais vasto do que a comunidade jamais tinha considerado ser necessário.

Ambos os problemas foram resolvidos com revisões imaginativas da figura de Jesus e do seu papel na história épica de Israel.

Estas revisões foram engenhosas.

O primeiro movimento foi introduzir a figura de João Batista como profeta do julgamento e pregador do arrependimento (Q 3:7-9).

O segundo movimento foi João prever "aquele que virá" quem ajuntará o trigo no seu celeiro, mas queimará a palha com fogo que nunca se apaga“. (Q 3:16-17).

Então, esses escribas deixaram João e Jesus falarem um sobre o outro para ver o que cada um sabia do outro (Q 7:18-19, 22-28, 31-35). Como os escribas imaginaram, Jesus reconhece João como o último dos profetas de Israel e assim "aquele que virá", e João previu um ainda "maior" para vir, o qual, obviamente, era Jesus. Jesus era "maior", de acordo com os escribas, porque ele era tanto um sábio como um profeta. Ele era um sábio pelo virtuosismo de seus ensinamentos em Q. Ele era um profeta em virtude dos seus julgamentos apocalípticos que breve seriam ouvidos de seus lábios.

A possibilidade espantosa oferecida por essa simples história imaginária era que, como filho da sabedoria, Jesus poderia saber o que Deus teria desejado desde o início da criação. E como um profeta apocalíptico ele poderia saber o que aconteceria no final dos tempos.

Resultado:

Jesus tornou-se o vidente da história passada e o profeta do fim da história. Seus seguidores poderiam agora sentirem-se seguros que eles estavam, exatamente, onde deveriam estar, unidos com o grande plano de Deus para Israel e prontos para assumir seus lugares quando o julgamento final ocorresse.

Esta solução engenhosa para seus problemas tem que ser julgada como um golpe de gênio na criação do mito, não importando o que se pense propriamente sobre o mito. Sobre o João Batista histórico e sua relação com esse movimento, os estudiosos ainda estão quebrando a cabeça entre várias opções. O fato importante para nossos propósitos é que João entrou na cena da imaginação da comunidade Q sobre Jesus como um segundo estágio na criação do mito, de maneira a redesenhar o próprio papel de Jesus.

As adições de Q foram feitas algum tempo depois da guerra Romano-Judaica. Elas incluem o lamento sobre Jerusalém (Q 13:34-35), a estória da tentação de Jesus (Q 4:1-13), afirmações sobre a importância da lei Mosaica (Q 16:16-18) e a promessa final aos fiéis:

"E vós sois os que tende permanecido comigo sentareis no trono, julgando as doze tribos de Israel" (Q 22:28-30).

Q não é uma grande revisão do manual, mas introduz algumas novas idéias sobre o relacionamento do povo de Q com a história de Israel, e elevou a mitologia de Jesus ao nível de um ser divino que poderia ser imaginado conversando com Deus como seu Pai e debatendo com Satanás como seu tentador. O Tópico em ambos os casos era a própria "autoridade de Jesus sobre todo o mundo" (Q 4:6-7).

Tudo parece crer que a poeira do período Q2 havia baixado e que o povo de Q teria afinado o tom de suas respostas àqueles que lhes eram críticos. Talvez a guerra tenha se encarregado dos antagonismos primitivos ou transformado a paisagem cultural tão drasticamente, que a postura pré-guerra do movimento se apresentasse então tola, mesmo para o povo de Jesus.

Foi o livro de Q, no nível Q3, que atraiu a atenção de outros grupos de Jesus, foi então copiado e lido por outra geração dentro dos movimentos de Jesus e, eventualmente, incorporado nos evangelhos de Mateus e Lucas e se perdeu até recentemente para a história, quando então os estudiosos o reconstruíram.

Historiadores da segunda corrente diferente de Mack, considerando que se está apostando muitas fichas na primeira camada de um documento não mais existente, construído a partir de outros, Mateus e Lucas, escritos após meio século e algumas revisões. Estes historiadores consideram que o Jesus, mestre com o estilo dos Cínicos, é inteiramente ausente nas epístolas do primeiro século, e, portanto, deveria ser examinada a possibilidade de que esta camada de Q não pertencesse a Jesus, e sim ser o produto de algum reduto Cínico que teria encontrado seu caminho dentro de algum movimento de pregação judaica na Galiléia e somente mais tarde teria sido anexada à idéia de uma figura histórica.

Questionam, igualmente, a incongruente mudança de motivação da camada Q1 para a camada Q2, não considerando adequadas às explicações de Mack, que as atribuiu às tensões resultantes das rejeições. A visão convencional do Cristianismo assumia uma visão apocalíptica no início e, gradualmente, mudava para a linguagem da sabedoria quando o mundo não acabava conforme se apregoava. Agora, a seqüência estava disposta de maneira inversa. A mudança não era mais da mensagem apocalíptica para o advento da instrução e da sabedoria, mas da sabedoria para o apocalíptico.

Reafirmamos que esta mudança implica numa total reconsideração das origens Cristãs e da maneira como a função da linguagem apocalíptica foi entendida.

Na minha opinião um forte componente corrobora essa segunda corrente, trata-se do desinteresse da comunidade Q pelos destinos de seu fundador. Isto é certamente incrível. Se, o mestre e fundador tivesse sofrido o destino relatado em Jerusalém, seria crível que a comunidade ignorasse isto ou permanecesse ignorante do fato?

Um fato marcante a respeito da comunidade Q é que eles não eram cristãos. Eles não encaravam Jesus como o Messias ou o Cristo. Eles não consideravam sua morte como um evento divino, trágico ou redentor. E eles não imaginavam que ele fosse ascender dos mortos para governar um mundo transformado. Ao contrário, eles pensavam nele como um mestre cujos ensinamentos tornaria possível viver com verve naqueles dias turbulentos. Assim eles não se reuniam para cultuar em seu nome, honrá-lo como um deus, ou cultivar sua memória através de hinos, orações e rituais. O povo de Q, era um povo de Jesus, não cristãos.

O desafio de Q ao conceito popular das origens do cristianismo é claro. Se a visão convencional das origens do cristianismo é correta, como explicar estes primeiros seguidores de Jesus?

Teriam eles falhado quanto a compreender a mensagem?

Estavam ausentes quando o inesperado aconteceu?

Teriam seguido em ignorância ou repúdio ao evangelho cristão de salvação?

Se, entretanto, os primeiros seguidores de Jesus entenderam o propósito de seu movimento tal qual Q o descreve, como podemos explicar o surgimento do culto de Cristo, da fantástica mitologia dos evangelhos narrativos, e o eventual estabelecimento da igreja e religião cristã?

Q força a questão de se repensar às origens do cristianismo como nenhum outro documento da antiguidade força. Os evangelhos narrativos não podem mais ser visto como relatos fidedignos dos raros e estupendos eventos históricos na fundação da fé cristã. Os evangelhos, agora teriam que serem vistos como resultados da antiga fabricação de mitos cristãos.

Q força a questão, pois documenta uma história antiga que não concorda com o relato dos evangelhos narrativos.

OS PRONUNCIAMENTOS

Segundo Burton L. Mack, os evangelhos sinóticos incluem muitas estórias sobre Jesus que os especialistas costumam chamar pronunciamentos. Jesus é descrito em uma certa situação; alguém questiona o que ele está dizendo ou fazendo; e Jesus dá umas respostas satíricas, irônicas e às vezes mordazes. Em muitos casos estas estórias foram embelezadas para descrever a situação, explicar porque a questão foi levantada e discriminar os opositores. Mas mesmo se a passagem se transformar em um diálogo, Jesus tem sempre a última palavra, e freqüentemente uma longa narrativa pode ser reduzida a uma simples troca de desafios e respostas.

Vejamos alguns exemplos, numerados para referência futura com J de Jesus como prefixo:

(J-1) Quando perguntado por que comia com os coletores de impostos e os pecadores, Jesus respondeu, Aqueles que tem saúde não precisam de médico”. (Mar 2:17).

(J-2) Quando perguntado porque seus discípulos não jejuavam, Jesus respondeu, "Por acaso podem jejuar os amigos do noivo enquanto o noivo estiver com eles?" (Mar 2:19).

(J-3) Quando perguntado porque seus discípulos colhiam grãos no sábado, Jesus respondeu, "O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado" (Mar 2:27).

(J-4) Quando perguntado porque comiam com as mãos sem lavar, Jesus respondeu, "Nada há fora do homem, que, entrando nele o possa contaminar; mas o que sai dele isso é que contamina o homem" (Mar 7:15).

(J-5) Quando perguntado quem era o maior, Jesus respondeu, "Se alguém quiser ser o primeiro será o último de todos e o servo de todos". (Mar 9;35).

(J-6) Quando alguém o chamou de "Bom Mestre", Jesus retrucou, "Porque me chamas de bom?" (Mar 10:18).

(J-7) Quando perguntado se o rico poderia entrar no reino de Deus, Jesus respondeu, "É mais fácil passar um camelo por um buraco de agulha, do que um rico entrar no reino de Deus". (Mar 10:25).

(J-8) Quando alguém lhe mostrou uma moeda com a inscrição de César e perguntou, "É lícito pagar impostos a César ou não? Jesus respondeu, Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus". (Marc 12:17).

(J-9) Quando uma mulher na multidão elevou sua voz e disse-lhe "Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos que mamaste". Jesus respondeu, "Antes bem-aventurado os que ouvem a palavra de Deus e a guardam". (Lu 11:27-28).

(J-10) Quando alguém da multidão lhe disse, "Mestre, dize a meu irmão que reparta comigo a herança". Jesus respondeu, "Homem quem me pôs a mim por juiz ou repartidor entre vós?". (Lu 12:13-14).

Estas estórias são bastante similares a um grande número de anedotas contadas pelos Gregos sobre os fundadores das várias escolas de filosofia. É evidente a propensão grega pelas formulações rebuscadas, bem como pelo encantamento com as réplicas inteligentes e com o humor satírico. Chamadas de chreiai (úteis), anedotas como estas eram usadas para testar professores, avaliando sua capacidade de manterem a credibilidade diante de seus alunos, e de saírem incólumes de situações desafiadoras.

Assim as chreiai eram "'úteis" para compor o que os gregos chamavam uma "vida" (bios de onde retiramos "biografia"). Isto é porque além do humor, havia outra importante função para essas estórias. As chreiai eram capazes de revelar uma impressão do caráter de um professor (ethos). As chreiai criavam o que os especialistas chamam de uma situação retórica, repleta de circunstâncias, oradores, discurso e audiência. Isto significa que boas chreiai podem ser usadas para representar uma escola de tradição. Podem-se verificar como as chreiai foram postas a serviço das construções filosóficas, na obra, Vida de Filósofos Eminentes, do escritor Diógenes Laércio, no início do terceiro século.

Anedotas do tipo das contadas sobre Jesus eram freqüentes entre as tradições Socráticas e Cínicas. É, portanto, valioso comparar as estórias citadas com algumas anedotas típicas dos Cínicos.

Um jogo de escaramuças parece ter sido jogado com os Cínicos por aqueles que tinham coragem para enfrentá-los. Uma vez que os Cínicos viviam numa espécie de alienação em relação à sociedade, demonstrando indiferença às suas convenções, mas, na realidade totalmente dependentes dela para seu viver, qualquer situação poderia servir para pegá-los em uma armadilha. O objetivo era flagrar o Cínico, em uma atitude inconsistente, apontando a sua falta de completa independência da sociedade. De maneira a vencer o desafio, o Cínico colocava uma abordagem inteiramente diferente sobre a matéria deixando a impressão de que o desafiador não tinha entendido a situação.

Vejamos alguns exemplos de Diógenes Laércio, numerados para referência usando-se um C de Cínico:

(C-1) Quando censurado pelo costume de andar em má companhia, Aristenes respondeu, "Bem, os médicos atendem seus pacientes sem pegar a febre." (DL 6:6).

(C-2) Quando alguém disse a Aristenes, "Muitos elogiam você", ele respondeu, "O que fiz de errado?". (DL 6:8).

(C-3) Quando alguém desejava estudar com Diógenes, ele dava-lhe um peixe e dizia para seguir atrás dele. Quando por embaraço o estudante logo atirava o peixe fora o deixando, Diógenes ria e dizia, "Nossa amizade foi quebrada por um peixe" (DL 6:36)

(C-4) Quando alguém o reprovava por freqüentar lugares impuros, Diógenes respondia que o sol também entra nas intimidades sem sair desonrado. (DL 6:63).

(C-5) Quando perguntado porque suplicava a uma estátua, Diógenes respondeu, "Para praticar em ser recusado". (DL 6:49).

Os Gregos mediam a resposta pelo seu humor e inteligência e uma certa lógica era envolvida em sair-se ileso do anzol. Assim funcionava a lógica; um interlocutor colocava o Cínico na berlinda (C-4): como você pode freqüentar lugares socialmente inadequados (um eufemismo para casas de prostituição)? O primeiro movimento era identificar a questão enfatizada pelo desafio.

Neste caso era a noção de ser "contaminado" ao visitar um local "impuro", isto é, um local socialmente inadequado. O segundo movimento era mudar o foco e encontrar um exemplo de "entrada em local impuro" no qual não havia contaminação. O sol, por exemplo, "entra" nas intimidades sem ficar sujo. A ausência inteligente de correlação entre os dois exemplos criava o humor. Não havia o objetivo de um ensinamento explícito. O interlocutor poderá, certamente, não se vir a meditar sobre teorias de pureza ou impureza, mas ele poderá muito bem se afastar rindo e deixar o Cínico seguir seu caminho ou mesmo dar-se conta sobre a natureza arbitrária da categorização de puro ou impuro quando usada para uma circunstância social específica.

Quanto ao Cínico, este tendo aceitado o desafio e tendo administrado a confusão momentânea na lógica da situação foi capaz de escapar da armadilha.

As anedotas atribuídas a Jesus operavam através da mesma lógica. Em todos os casos os desvios Cínicos são uma característica das réplicas de Jesus. As mudanças na ordem do discurso são facilmente identificáveis.

Em J-1, a questão da contaminação é removida pela mudança do foco das condutas de alimentação para a prática médica. É muito parecida com a anedota sobre Aristenes em C-1.

Em J-2 a discrepância tem relação com a ocasião na qual o jejum é apropriado.

J-3 sustenta a distinção entre duas regras sobre o trabalho nos sábados, uma a proscrição a outra a permissão.

Em J-4 a incongruência é criada pela justaposição de condutas de alimentação com observações escatológicas.

É similar à resposta de Diógenes em C-4 confundindo contaminação social com natural.

As colocações em J-4 e J-5 sustentam a crítica a valores sociais comuns relacionados com a classe social.

E a anedota de Jesus em J-10 é semelhante a um grande número de anedotas Cínicas nas quais os estudantes são duramente corrigidos por alguma má interpretação e conduzidos de volta aos seus próprios recursos para poderem enxergar melhor a coisa, e, começarem a estudar o método Cínico.

Uma forma branda desta posição do professor contra o futuro aluno é ilustrada em C-3.

Existem muitas chreiai de Jesus no evangelho de Marcos. Em razão da forma que estas estórias terminam, deixando com Jesus a última palavra, os especialistas denominam essas passagens de estórias de pronunciamentos. Marcos usava essas estórias com grande vantagem na construção do seu evangelho, parcialmente porque elas se constituíam nos blocos de construção para a "vida" (bios) que ele queria escrever, parcialmente porque elas criavam um conflito, o conflito básico da conspiração contra Jesus que Marcos queria desenvolver e parcialmente porque este era o tipo de estória que a própria comunidade de Marcos aprendera a contar sobre Jesus.

Existem 28 estórias deste tipo no evangelho de Marcos. Destas, doze estórias tratam de questões que dividiam o povo de Jesus dos Fariseus. A maioria delas foi identificada pelos estudiosos como estórias pré-Marcos, que foram contadas na comunidade de Marcos antes de Marcos decidir usá-las na sua vida de Jesus. Estas são as estórias que tem interesse para nós, pois elas fazem um conjunto e podem ser usadas como janela dentro de um ramo do movimento de Jesus que se opôs à tradição da escola dos escribas e Fariseus.

De acordo com a velha tradição Grega, o povo de Jesus, da comunidade de Marcos, imaginava Jesus como defensor de sua própria escola de tradição e o pintavam contra os Fariseus dizendo chreiai. Isto significava que eles se consideravam discípulos da Escola de Jesus.

As estórias de pronunciamentos que apresentam Jesus em debate com os Fariseus todas endereçam questões que tem a ver com a pureza. O conceito de pureza era básico para o sistema social e de propriedade judeu. A partir de grandes sistemas legais, éticos e da lei do sacrifício que foi desenvolvida durante o período do segundo templo, os Fariseus tiveram sucesso em separar uma pequena lista de práticas ritualistas que eles poderiam realizar em casa. Isto, eles afirmavam, em estrita observância das leis e tradições judaicas.

A lista incluía o dízimo, dar esmola, observância do sábado (incluindo oração diária e um dia de jejum na semana), limpeza (lavagem após atividades que traziam impurezas), regras para as seleção e separação da comida, regras a respeito das pessoas com as quais se podia sentar à mesa. Estas regras não deviam ser entendidas como leis, porque os Fariseus não tinham autoridade oficial sobre nenhuma instituição judaica. Elas eram sinais de piedade, de uma seita progressiva engajada em redefinir o que significava ser Judeu à sombra da destruição do templo. Elas eram, no entanto, extremamente importantes para o reconhecimento de qualquer judeu que desejava ser "puro", isto é, ser reconhecido na comunidade judaica como leal às tradições dos judeus.

Cabe aqui, para os que não estão familiarizados, uma descrição de quem eram os Fariseus, erradamente há já algum tempo, apresentados no linguajar de gíria brasileira, como uma qualificação pejorativa. Tomando a descrição de Josefos (Guerra dos Judeus 5:2) os Fariseus eram "um corpo dentro da comunidade judaica que professava ser mais religioso que os outros e pretendia explicar a lei mais precisamente". Embora sejamos levados a pensar nos fariseus como rigidamente ortodoxos eles eram, em certos aspectos, o elemento progressivo no Judaísmo. De maneira a encontrar novas condições após a queda do templo, os Fariseus se colocaram a interpretar a lei. O desenvolvimento e manutenção das sinagogas como um centro de adoração e instrução é uma conquista dos Fariseus. Eles eram bastante admirados pelos judeus que não eram filiados a nenhuma seita judaica. Os Fariseus clamavam pela autoridade da fé e da instrução enquanto os Saduceus, a classe alta da nobreza e de onde saíam os sumos-sacerdotes, clamava por aquela do sangue e da posição.

Se fizermos uma lista das questões sob debate nas estórias de pronunciamento da comunidade pré-Marcos o resultado é uma notável correlação com as questões dos Fariseus. Além das questões apontadas de J-1 a J-10 existe um grande número de questões que se colocavam entre o povo de Jesus e os Fariseus, tais como a legitimidade do divórcio, o pagamento de taxas, a lei Mosaica, a base da autoridade, os sinais de honra e as causas das doenças e "espíritos impuros". Portanto quer parecer que este ramo do movimento de Jesus trabalhou sua autodefinição através de um violento debate com os padrões Fariseus. Porque isso?

Mack explica isso afirmando que o cenário mais adequado indica que alguns integrantes do povo de Jesus continuaram a se considerar como judeus mesmo estando inteiramente ligados no movimento de Jesus. Pode-se imaginar a disseminação do movimento de Jesus nas regiões de Tiro e Sidom onde uma das estórias de pronunciamento de Marcos (Mar 7:24-30) foi elaborada. Alguns judeus atraídos pelo movimento continuavam a participar da vida da sinagoga ou pertenciam a famílias que continuavam. Naturalmente surgiram conflitos com as próprias famílias e com os líderes das sinagogas à respeito da lealdade às tradições judaicas. Em certo momento as diferenças relativas principalmente aos códigos de pureza Fariseu e as "impurezas" do povo de Jesus tornaram-se uma questão crítica e algumas pessoas tiveram que optar entre acompanhar o povo de Jesus ou desistir da participação. Alguns relacionamentos familiares devem ter ficado sob tensão. O grande problema era que ser "impuro" pelos padrões Fariseus era justamente o ponto principal do movimento.

Embora as considerações de Mack sejam razoáveis ele parece passar ao largo de um aspecto importante. O motivo da resistência judaica aos Romanos era a religião judaica. Igualmente o quadro apresentado no Novo Testamento é aquele de uma instituição agregada ao "status quo". Não há indicação no Novo Testamento de nenhum conflito entre a religião judaica e o poder romano.

O objetivo claro dos evangelhos é apresentar a questão revolucionária como sendo entre Jesus é o "Establishment" judeu. O fato de existir uma Instituição Romana contra a qual existiam forças revolucionárias é ocultado de maneira que a instituição contra a qual Jesus se rebelava possa ser representada como inteiramente judia. Existia é verdade, um pequeno partido, os Saduceus, o quais eram colaboracionistas, sustentavam a situação e aceitavam cargos oficiais sob os romanos. O Sumo-sacerdote, propriamente, era Saduceu e é importante que se note, era nomeado pelos romanos. Como membro de uma minoria colaboracionista, ele era encarado com suspeito pela grande massa da nação. A autoridade religiosa, no entanto, não permanecia com os sacerdotes mas, com um corpo completamente diferente de pessoas, denominados Rabinos, os líderes dos Fariseus.

Assim os evangelhos falham em não mostrar que com relação ao povo a verdadeira instituição era o partido dos Fariseus que sem posição de destaque político, cujos líderes jamais receberam reconhecimento pelos romanos, constituía-se na primeira e última resistência contra os romanos. A imagem apresentada nos evangelhos sobre os Fariseus, colocando-os como interessados apenas em salvaguardar suas posições, é inteiramente equivocada.

Assim Jesus tornou-se o mestre-fundador de um movimento que trabalhou sua autodefinição no debate contra os ensinamentos dos Fariseus. Isto nos dá um quadro completamente diferente daquele mostrado pela comunidade Q, ou como veremos, o povo de Tomé, a Congregação de Israel e as colunas de Jerusalém. Um grupo particular do movimento de Jesus investiu inocente e fortemente na idéia de pensar-se como apto aos dois padrões, judaico e de Jesus. Este grupo, e isto é uma questão da máxima relevância, voltou-se para as práticas das escolas de tradição helenistas, quanto a atribuir todas as razões para pensar da maneira que pensavam, ao seu fundador. Eles não desenvolveram nenhuma teoria ou mito da autoridade de Jesus como homem divino, salvador ou mártir da nova causa. Também, não desenvolveram nenhuma visão apocalíptica de julgamento final ao final dos tempos.

O que fizeram, foi colocar Jesus no papel de legislador, tal qual os escribas dos Fariseus, mas então desenvolveram sua habilidade retórica de maneira a superar os escribas em seu próprio jogo.

Um instrumento excepcional surgiu quando este grupo decidiu usar as anedotas de Jesus para registrar seu debate com os escribas dos Fariseus. Quando se prepara uma chreiai os argumentos são os de quem prepara, não os dos protagonistas da chreiai. Assim que o povo de Jesus desenvolveu as chreiai com argumentos mais elaborados eles preferiram não tomar os créditos pelos argumentos que encontraram. Ao invés, como na tradição grega de atribuição de novos ensinamentos ao fundador da escola, eles deixaram Jesus receber os créditos não só pelas chreiai como pelos argumentos em seu favor. Isto resultou em dar a Jesus dois pronunciamentos em cada chreiai elaborada, com a última afirmação, invariavelmente, marcando um pronunciamento da correção de seus pontos de vista. Assim, ao final da chreiai sobre trabalho no sábado, Jesus diz, "O sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado". Assim, intencionalmente ou não, a Escola de Jesus produziu uma auto-referência de autoridade para seu mestre-fundador.

No princípio esta caracterização de Jesus parece frágil, se não tola, e a lógica da argumentação fraca. Mas, ao combinar-se este estilo de auto-referência de Jesus com outros papéis míticos para Jesus, resulta um símbolo de autoridade extremamente impenetrável. O evangelho de Marcos mostrará isto mais tarde. No meio tempo, como pode a Escola de Jesus tomar seu espaço no mundo, tendo se excluído de uma proeminente definição de judaísmo, definição esta, que aparentemente, foi considerada suficientemente importante, a ponto de se assumir muito seriamente o desafio com os Fariseus? Não podemos dizer com certeza, pois temos apenas o evangelho de Marcos como a próxima janela para dentro de seu pensamento. Olhando através desta janela parece-nos que a Escola de Jesus passou por um momento de desorientação e ansiedade no processo de se tornar uma seita independente.

O EVANGELHO DE TOMÉ

Em 1945, após o final da 2a guerra mundial, uma coleção de citações de Jesus foi descoberta juntamente com outros 50 manuscritos antigos, próximo ao vilarejo de Nag Hammadi, junto a uma curva do Nilo, no Egito. No título do documento lia-se: "Estas são as palavras secretas que o Jesus vivo falou e Judas Tomé, o Dídimo, registrou". A assinatura no final aponta, o Evangelho segundo Tomé.

Os estudiosos ficaram estupefatos com essa descoberta. Ali estava um evangelho real, bastante similar a Q, provando que o povo de Jesus tinha realmente produzidos evangelhos constituídos de seus ensinamentos. Antes de Tomé essa era uma construção dos estudiosos, a partir dos sinóticos para chegar-se ao evangelho Q, não tendo existido um exemplar de Q que tenha chegado às nossas mãos.

Os escritos tinham sido traduzidos do Grego para o Copta, segundo estudiosos, no último quarto do primeiro século e algumas das citações possuem conotação nitidamente gnósticas tendo sido, portanto, difícil de se encaixar, no início, O Evangelho de Tomé no quadro das origens cristãs. Segundo Mircea Eliade em sua obra Histoire des Croyances et des Idées Religieuse (traduzido em português e editado pela Zahar Editores em 1979), o evangelho de Tomé seria a versão completa dos Logia atribuídos a Jesus nos papiros de Oxirrinco e conhecida desde 1897. Mircea aponta as "origens judeu-cristãs de algumas escolas gnósticas importantes". As pesquisas sobre a gnose e o gnosticismo evoluíram bastante nos últimos anos, mas, suas origens ainda suscitam dúvidas. A biblioteca descoberta numa talha em Nag Hammadi deu lugar a inúmeros trabalhos.

A descoberta, o estudo e a publicação da Biblioteca de Nag Hammadi, poderia ser usada como roteiro para uma aventura cinematográfica digna de Indiana Jones, na qual participaram governos, pesquisadores, comerciantes de antiguidades, envolvendo-se em tramas, fugas, peripécias no deserto e maldições proféticas.

Tal qual o evangelho Q, o evangelho de Tomé consiste em citações de Jesus e ambos os documentos iniciam com uma narrativa que estabelece o cenário para o resto do documento. Em Q é a entrada em cena de João Batista que introduz Jesus como uma combinação de profeta e sábio. O evangelho de Tomé inicia com Jesus estabelecendo-se como a fonte de conhecimento esotérico e na 13ª citação, Jesus afasta-se com Tomé e troca com ele "três palavras". Quando Tomé retorna a seus companheiros, eles perguntam o que Jesus disse a ele, e Tomé responde, "Se vos disser algumas das coisas que ele me falou, vós tomareis de pedras e me apedrejareis e o fogo sairá das pedras e vos consumirá”. (TO 13).

Não existe nenhuma referência de onde se passa essa cena, não existe em todo o evangelho nenhum interesse biográfico em Jesus não sendo mencionado nada sobre a crucificação ou ressurreição de Jesus. O Povo de Tomé, tal qual o povo de Q, estava apenas interessado nos ensinamentos de Jesus. Eles se consideravam os verdadeiros discípulos de Jesus. A mensagem é fortemente de contra-cultura: afasta-se do materialismo e direciona o leitor na direção de uma vida simples, uma existência espiritual. Jesus aqui não é o Messias, mas um reformador social radical, falando aos ouvintes para renegar os valores vazios do mundo de negócios. No evangelho de Tomé encontramos Jesus antes de ser Cristo, antes dos séculos de disputas e embelezamentos eclesiásticos que criaram a figura mitológica dos dias de hoje.

A primeira ação que se sugere é a comparação com o livro Q. Sob os aspectos da forma ambos são, aproximadamente, do mesmo tamanho apresentando o mesmo tipo de material; aforismos, instruções de comportamento, parábolas e analogias para explicar o reino de Deus seguidas de dispositivos para a crítica aos que não aderirem.

É importante notar que um terço das citações possuem paralelo em Q e 60 por cento delas são da camada Q1. Não existindo indicações de que o evangelho de Tomé tenha copiado estas citações de Q ou dos evangelhos sinóticos, parece claro que a tradição de Tomé registrou citações de um período anterior quando o movimento de Jesus compartilhava material de ensino semelhante. Muitas das citações que não possuem paralelo em Q, são enigmáticas e intencionalmente misteriosas. A conclusão é de que, da mesma forma do que o evangelho Q, o evangelho de Tomé documenta um movimento de Jesus com história própria.

Desvendar esta história é um pouco mais difícil que no caso do povo de Q. Isto, porque a segregação do evangelho de Tomé em camadas históricas como foi feito para Q, ainda não foi possível de ser feita. O conjunto de citações não evoluiu da mesma maneira. Entretanto, é possível estabelecer-se algumas observações sobre alguns tipos de materiais que devem refletir estágios na história do povo de Tomé.

Iniciando-se com o último estágio, fica claro que uma conotação gnóstica foi aplicada na coleção como um todo. A primeira citação referindo-se a todas as citações diz:

"Quem quer que descubra a interpretação destas citações não experimentará a morte". (TO 1).

Lendo-se a coleção, verifica-se que os ensinamentos de Jesus procuram dotar os discípulos com o esclarecimento (iluminismo) necessário a guiá-lo em relação ao seu destino, sendo este iluminismo, diretamente, relacionado com o entendimento individual da verdadeira identidade de cada um, como ser espiritual.

Se o tópico é reino de Deus, a interpretação oculta é que "o reino está dentro de vós e fora de vós" (TO 3), ou que está "espalhado por sobre a Terra, e as pessoas não o vêem" (TO 113). Se questão é relacionada com o mundo, a interpretação é que é um "cadáver" (TO 56) ou um mero "corpo" (TO 80) ou, um "campo" que pertence a alguma outra pessoa (TO 21). Jesus não se apresenta como um "professor" comum. Ao contrário, aqueles que alcançarem a verdadeira interpretação dos seus ensinamentos se tornarão tão iluminados como ele próprio e não precisarão mais dele uma vez que enxergarão a luz.

"Eu não sou teu Mestre, porque tu bebeste da Fonte borbulhante que te ofereci e nela te inebriaste". (TO 13).

"Quem beber da minha boca se tornará como eu. E eu serei o que ele é. E as coisas ocultas lhe serão reveladas" (TO 108).

Então Jesus é o símbolo do iluminismo, a luz em si próprio: “Eu sou a luz, que está acima de todos. Eu sou o Todo. O Todo saiu de mim, e o Todo voltou a mim. Rachai a madeira - lá estou eu. Erguei a pedra - lá me achareis”. (TO 77). Isto significa que o verdadeiro discípulo deve "Olhar para o Vivo, enquanto viver, para que não morra e deseje ver aquele que já não pode ver" (TO 59). Mas "Se vos conhecerdes, sereis conhecidos e sabereis que sois filhos do Pai Vivo” (TO 3). Um discípulo que percebe que não pertence ao mundo mas ao reino de Deus torna-se um "transeunte" com relação ao mundo (TO 42) e "um" com relação à união com o divino. E ao final da vida haverá o retorno para o reino da luz de onde originalmente viemos ao mundo ( TO 49 - 50)

Sair com uma conotação gnóstica dos ensinamentos de Jesus significa que o povo de Tomé tomou una decisão em algum momento de sua história que o povo de Q não tomou. As circunstâncias que acompanharam este desvio podem, felizmente, ser discernidas no próprio texto do evangelho em subtítulos que se apresentam do início ao fim. Estes temas (subtítulos) caracterizam "os discípulos" de Jesus e as perguntas que eles lhe fazem, algo completamente inexistente no livro de Q. Os discípulos são referenciados de forma coletiva, mas Pedro, Mateus, Jaime, Tomé, Salomé e Maria são mencionados pelo nome. Jaime e Tomé são os garantidores da tradição. Salomé e Maria dizem as coisas certas e representam os verdadeiros discípulos. Pedro, Mateus e os "discípulos", coletivamente, representam um grupo ou grupos do povo de Jesus dos quais Tomé discorda.

Através do texto estes discípulos endereçam as perguntas erradas e tem que ser corrigidos. Uma pergunta constante que estes discípulos fazem é a respeito do futuro, de quando o reino de Deus surgirá, e como eles saberão que ele chegou. Fica claro que desejavam alguma interpretação apocalíptica de Jesus. O interesse deles era tratado por Jesus como interpretação errônea de seus ensinamentos que então explicava que o reino já estava presente.

Outro tema tinha relação com o comportamento ritualístico. Os discípulos desejavam saber sob jejum, oração, dar esmola, limpeza, dieta e sobre a necessidade da circuncisão. Em todos os casos Jesus tratava as perguntas como tolas, sem importância e tratava de transformar a menção numa metáfora para esclarecimento e auto-entendimento. Assim, por exemplo, quando os discípulos perguntaram a Jesus, "Diga nos como será nosso fim". Jesus respondeu dizendo, "Abençoado é aquele que permanece no princípio; ele conhecerá o fim e não experimentará a morte" (TO 18).

Não existe anúncio de apocalipse em Tomé, pelo contrário, o Evangelho de Tomé vai à outra direção, em busca de um "começo perfeito" ao paraíso reconquistado, completamente alienado do mundo presente ele propõe um caminho para o que seria um novo amanhecer da criação. O primeiro passo nesta jornada às origens, mostra Jesus como a encarnação da sabedoria divina, admoestando o mundo a encontrar seu caminho perdido. Esta abordagem não só realça a perfeição da criação como põe por terra qualquer clamor por uma solução terminal.

Este material é nitidamente polêmico. O povo de Tomé sabia que alguns grupos de Jesus tinham evoluído na direção de comunidades apocalípticas e outros para comunidades judaico-cristãs. Eles então se esforçavam para se distinguirem destes dois grupos e o faziam através de Jesus, quando este contrariava as teimosias de ambos. Para executarem isso desenvolveram duas estratégicas retóricas diferentes. A primeira era simplesmente negar: Não, tu não entendeste, "O que tu procuras já chegou, mas tu não se dás conta" (TO 51). A outra abordagem era utilizar uma citação que parecia afirmar o que o povo de Tomé não queria que Jesus afirmasse, mas que era interpretada de uma maneira diversa de sua interpretação aparente. Um exemplo é a citação apocalíptica "Dois descansaram no leito, um morrerá, o outro viverá" (TO 61).

Em Q, este dito aparece de uma maneira, inteiramente, apocalíptica (Q 17:34).

No evangelho de Tomé, ao contrário, esta citação é interpretada através do entendimento de Salomé que explica que não existe referência ao final dos tempos (eschatom), mas ao iluminismo envolvendo Jesus e ela própria, quando este deitado à sua mesa ensinou-lhe o verdadeiro sentido de "morrer" e "viver" (TO 61-62).

Podemos caracterizar, pelo menos, três momentos na história do povo de Tomé. Começaram como um movimento de Jesus que deve ter tido muito em comum com a fase mais antiga do movimento Q. Em certo momento, se viram diante das pressões de duas tendências, o cultivo de uma mentalidade apocalíptica ou uma codificação de atividades ritualísticas similares às práticas judaicas. Conseguindo resistir a ambas as tendências, a comunidade de Tomé desenvolveu um caráter de distanciamento do mundo social e cultivou uma noção de um mundo de luz imaginário como seu mundo real. O mundo de luz era imaginado como um remanso para as vicissitudes de um mundo visto como ganancioso, violento e destrutivo. Muitos ditos do evangelho de Tomé enxergam o mundo como um local onde alguém pode ser "engolido" ou "comido vivo". A meta era permanecer "intocável" às pessoas, eventos e preocupações que motivavam e controlavam o mundo social.

E quanto à guinada tomada pelo povo de Tomé em relação ao povo de Q e outros ramos do movimento de Jesus? Teria sido mais profunda do que a guinada do povo de Q quando fez sua opção em direção a uma visão apocalíptica da história? Provavelmente não. Tanto Q, como a comunidade de Tomé, tiveram suas raízes na mesma combinação tensa de idéias características dos ensinamentos de Jesus, uma chamada para mudar o estilo de vida e para manifestar o reino de Deus. O pessoal de Q era obcecado pela visão social que acompanhava o discurso do reino de Deus. Já o pessoal de Tomé concentrou-se mais no individualismo radical do desafio do novo estilo de vida. Nenhum dos dois grupos logrou controlar e manter sob equilíbrio as tensões originais, mas ambos desenvolveram caminhos que eram entendidos como respostas aos tempos tormentosos.

Com relação aos aspectos sociais do reino de Deus, aparentemente, o povo de Tomé deve ter tido um senso comunitário a despeito da redução de todos os símbolos do reino a metáforas intimistas. Os ditos são endereçados no plural aos candidatos a discípulos; existem instruções de como enxergar e tratar um outro como Verdadeiros Discípulos; e existem algumas indicações de que o grupo estava interessado no significado simbólico de alguns rituais, tais como o batismo e a comunhão na mesa. Portanto, embora não possamos estar seguros de suas práticas, a comunidade de Tomé deve ter se agrupado para cultivar sua busca, pela transcendência pessoal.

É extremamente importante notar que o povo de Tomé desenvolveu sua mitologia revestindo as citações de Jesus de significado esotérico. Embora esses ensinamentos são creditados a Jesus, sabemos que eles eram eventualmente os ensinamentos da comunidade de Tomé, pois esta se desenvolveu como uma escola de tradição helênica que continuava atribuindo novas idéias ao fundador da escola. Alguns especialistas têm se perturbado, com o uso do termo "Jesus Vivo”, imaginando que possa se referir à mitologia da ressurreição de Jesus da morte. Isto significaria que os membros do povo de Tomé eram cristãos os quais transformaram o salvador crucificado em um redentor gnóstico. É como se o povo de Tomé tivesse conhecimento da mitologia cristã e possivelmente usassem o termo "Jesus Vivo" com a intenção de rechaçar esta mitologia. Mas não é o caso que sua visão de Jesus como incorporação da "luz", "vida" e "sabedoria" fosse dependente de uma mitologia baseada na ressurreição. Assim Jesus tornou-se o símbolo encarnado do conhecimento e da luz porque era isto o que seu ensinamento distribuía. Não havia necessidade da realização de milagres, de profecias do fim do mundo, de morrer na cruz como salvador ou ressuscitar para o juízo final.

A segunda corrente citada considera que o fato de tanto Q como o evangelho de Tomé, serem oriundos de duas comunidades distintas, com nenhum interesse biográfico na vida, morte e ressurreição de Jesus, deveria disparar alarmes para dirigir a consciência dos historiadores a examinar a possibilidade de que esses dois documentos se iniciaram como simples coleções de ditos, desanexadas de qualquer relação com a figura de qualquer Jesus.

AS ESTÓRIAS DE MILAGRES

A vida de Jesus contada por Marcos é pautada pelas estórias de milagres que Jesus realizou e das coisas miraculosas que aconteceram a Jesus. Estas estórias pretendem fornecer a impressão do poder divino influindo na história humana, na pessoa de Jesus. Segundo Burton L. Mack, da mesma forma que os pronunciamentos, Marcos usou os milagres baseando-se em coleções de estórias antigas que possuíam uma interpretação diferente. Esta interpretação pode ser observada em dois conjuntos de cinco milagres, que tiveram sua origem num movimento pré-Marcos.

Ao lermos o evangelho de Marcos, logo percebemos que existem duas estórias sobre Jesus e os discípulos cruzando o mar e duas estórias sobre Jesus alimentando a multidão. Esta questão desencadeia outras questões sobre os milagres que aconteceram ao redor desses dois eventos principais. (Mar 4:35 - 8:10).

Um estudo, efetuado por Paul Achtemeier em 1970, mostrou que Marcos usou dois conjuntos de cinco estórias milagrosas, tendo cada um deles sido, originariamente, pretendido ser independente. Isto, não explica porque Marcos usou dois conjuntos ao invés de um, mas sugere que deveria existir um sentido ou razão na existência e uso dos conjuntos de estórias independentemente da maneira que Marcos as usou para ajudar a compor o seu evangelho. Isto, porque os dois conjuntos seguem um mesmo padrão; primeiro um milagre sobre travessia no mar, depois uma combinação de um exorcismo e duas curas e finalmente um relato de alimentação de uma multidão. Os dois conjuntos estão listados abaixo:

Acalmando a multidão. Andando sobre o mar.

(4:35-41) Mar (6:45-51)

O possesso de Gérasa. O cego de Betsaida.

(5:1-20) (8:22-26)

A filha de Jairo. A mulher Sírio-Fení- cia.

(5:21-23, 35-43) (7:24-30)

A mulher com hemorragia. O surdo-mudo.

(5:25-34) (7:32-37)

Alimentando 5000. Alimentando 4000.

(6:34-44, 53) (8:1-10).

Os leitores terão que esperar, até chegarmos ao Evangelho de Marcos, para obter a resposta do porquê da necessidade de dois conjuntos de milagres ao invés de apenas um. No momento, é o significado do padrão que queremos compreender, pois ele nos fornecerá uma nova janela para enxergarmos outro momento da formação do mito nos movimentos antigos de Jesus.

Numa primeira avaliação estas estórias assemelham-se aos relatos de milagres, especialmente as curas, típicas da era Greco-Romana. Centenas desses relatos foram coletados para comparação e o gênero é sempre exatamente o mesmo, sejam os milagres contados sobre o santuário de Epidaurus, aos reportados pelo Deus grego da cura, Asclépio, sejam aqueles contados sobre Jesus. Mas dai, algumas diferenças começam a serem notadas. Achtemeier e outros foram capazes de mostrar, que embora as características formais das estórias individuais correspondem à maneira como os milagres foram contados durante o império Grego-Romano, o conteúdo das estórias de Jesus trazia uma mudança especial. Os temas e alguns detalhes pareciam ser reminiscências dos épicos de Israel. Uma travessia milagrosa e uma alimentação milagrosa da multidão eram itens clássicos na estória do Êxodo do Egito e os milagres do meio do conjunto trazem a visão dos milagres de Elias e Eliseu, profetas do povo durante as confusões originadas com a queda dos reinos de David e Salomão.

Uma pesquisa que fiz na literatura judaica do período mostra que eram usadas com freqüência referências à milagrosa travessia do mar e a alimentação do povo judeu, com o Maná, para lembrar a estória inteira do Êxodo. Para os milagres de Elias e Eliseu existe alguma evidência da tradição popular sobre Elias retornando para recuperar Israel nos tempos de convulsão social. Portanto, começa a nascer a suspeita de que alguns grupos de Jesus queriam retratá-lo com contornos de um fundador parecendo-se de alguma maneira com Moisés e um pouco como Elias.

Uma vez que o padrão e o simbolismo são desvendados, uma terceira observação sobre o conjunto de milagres ganha significação. Estamos nos referindo ao problema de que as pessoas que recebem os milagres estão na margem da sociedade judaica. Tratava-se de casos de doentes desenganados, incluindo possessão demoníaca e morte. Uma verificação acurada mostra que os personagens das estórias são candidatos com pouca chance de serem resgatados pela sociedade de Israel. Nenhum deles seria levado ao ostracismo pelas atitudes judaicas de então, mas todos eles estariam fora das classificações quando os sacerdotes priorizassem os papéis sociais de importância para a sociedade de trabalho judaica.

E se essas pessoas nas estórias foram escolhidas para desempenhar um papel, tal qual Jesus foi retratado nos papéis de Moisés e Elias? Mas que papel seria esse?

Este papel se configura como um maravilhoso mito sobre a origem de um grupo de Jesus. Jesus, o fundador de um movimento novo, seria como Moisés, os líderes da saída dos filhos de Israel do Egito, e como Elias, o profeta cuja aparição resgataria o legítimo papel dos filhos de Israel como povo de Deus. No entanto esse fato demonstra que a congregação de Jesus era conduzida e orientada para as pessoas socialmente marginais que não se encaixava nos padrões do povo judeu. Para que uma incongruente mistura de pessoas fosse legitimada, de acordo com os padrões judaicos, seria necessária uma boa quantidade de "milagres" de algum tipo. Assim os milagres tinham o propósito de associar Jesus e as pessoas que o seguiam, com Moisés, Elias e o povo de Israel. O resultado era uma forte sugestão que os ouvintes ou leitores sofreriam, imaginando o novo movimento de Jesus, como uma Congregação de Israel.

Tão logo este ponto importante entra em foco, os contornos do movimento de Jesus começam a surgir. O povo etnicamente misto era congregado para as refeições em comum, tinha líderes que se preocupavam com a associação e suas necessidades, talvez possuíssem alguma metodologia de distribuir alimentos entre os seguidores e poderiam estar num processo de criar ritualismos e simbolismos para suas refeições comuns. Eis aqui um movimento de Jesus, que prestou atenção em seus membros, verificou a formação social em andamento, deliciou-se com sua inovação, teve consciência de quão estranho deveriam parecer para os outros, surpreendeu-se ao imaginarem-se em comparação com outros povos, considerou fascinante a comparação com "Israel", e divertiram-se tentando vários cenários antes de estabelecer o conjunto de milagres que personificava Jesus nos papéis de um Moisés e de um Elias.

Veja-se que não existe polêmica nestas estórias, como se outras maneiras de pertencer a Israel fossem erradas, nem nenhuma reivindicação de quanto ao movimento de Jesus ser a única forma correta de ser judeu. Observe-se que não existe referência de qualquer conflito que Jesus tenha tido com as autoridades judaicas e nenhuma necessidade de pensar que este povo tenha sido transformado pela mensagem de uma dramática crucificação ou milagrosa ressurreição.

Foi uma audaciosa combinação de idéias que produziu este conjunto de estórias, e também uma combinação que pode ser imaginada para um movimento no norte da Palestina à busca por um mito de origem. Moisés era o legendário profeta-rei de especial significância para o épico Samaritano, e o ciclo de estórias Elias-Eliseu era uma tradição do reino norte de Israel.

Moisés e Elias não eram propriedade privada dos judeus. Uma vez, que a idéia de usar as estórias de milagre para remodelar o movimento de Jesus como uma nova Congregação de Israel estava em andamento, outros conjuntos de milagres poderiam ser criados para ilustrar outras características dessa congregação. Marcos soube fazer isso muito bem e conseguiu vantagens para os propósitos do seu próprio evangelho, como veremos mais tarde.

AS COLUNAS DE JERUSALÉM

Em algum ponto, durante os primeiros vinte anos dos movimentos de Jesus, formou-se um grupo em Jerusalém, presumivelmente formado por Galileus. Eles não deixaram nenhum registro ou documento escrito que tenhamos conhecimento, mas fontes secundárias nos dizem alguma coisa sobre eles. É importante que tentemos reconstruir aquilo que podemos, simplesmente porque o quadro que a maioria de nós possui em mente, é altamente mitográfico e frustrará nossa reconstrução das origens cristãs, a menos que o submetamos a alguma análise.

A referência mais antiga que temos está contida na carta de Paulo aos Gálatas, escrita em 55 E.C. Nesta carta, Paulo nos relata as duas visitas que fez aos "colunas" em Jerusalém com o propósito de comparar seu evangelho com o deles. Infelizmente, Paulo não nos conta nada do "evangelho" deles, mas faz menção nominal a Cefas (Pedro), Jaime e João e discorre sobre a questão principal da conversa. A questão tinha relação com a aceitação dos gentios no movimento do reino de Deus e especialmente se os colunas em Jerusalém exigiriam que um gentio fosse circuncidado. É importante notar que essa é uma questão que Paulo, especificamente, gostaria de ver respondida, pois refletia sua preocupação com esse problema entre as congregações que havia convertido e fundado. Não temos sequer condição de saber se o grupo de Jerusalém teria pensado alguma vez sobre essa questão e muito menos se teria compartilhado as preocupações ou interesse de Paulo nesta matéria.

Do relato de Paulo, é significante o fato de eles haverem concordado que os gentios não fossem circuncidados e que eles, somente solicitaram a Paulo, que "se lembrasse dos pobres", muito provavelmente uma referência a eles próprios e à sua condição empobrecida. Isto não é muito para prosseguir, mas nos permite imaginar que o grupo de Jerusalém deve ter sido um movimento, não uma congregação cristã do tipo Paulina, uma distinção a ser discutida, posteriormente, nas partes seguintes.

Estes aspectos do grupo de Jerusalém nos permitem estabelecer o seguinte perfil para o grupo:

- Temos os nomes de seus líderes Cefas (Pedro), Jaime e João;

- A localização em Jerusalém e o interesse em viver lá, está claro:

- Existe a (aparente) aceitação de algumas práticas e idéias judaicas, tais como código de pureza regendo as companhias à mesa.

Nenhum outro movimento de Jesus compartilhava essas características. Em todas as comunidades, seja a comunidade Q, a Escola de Jesus dos pronunciamentos, ou a Congregação de Israel era uma idéia integral o fato de Jesus possuir discípulos (ou estudantes), mas nenhum desses grupos menciona Pedro, Jaime, João ou qualquer outro discípulo pelo nome. A próxima menção nominal desses discípulos após lidos na carta de Paulo, e no evangelho de Marcos escrito nos anos 70, quando a estória de Marcos os coloca em foco como estudantes que não compreenderam seu mestre. O mesmo papel é desempenhado por Pedro e "os discípulos" no Evangelho de Tomé. Estes discípulos eram muito estúpidos para entender a mensagem do reino que Jesus pintava. Temos que esperar até a estória de Mateus, escrita nos anos 80 ou 90, para vê-los reabilitados como estudantes aplicados de Jesus e para quem as chaves do reino de Deus eram entregues (Mat, 17:17-19). Portanto, não sabemos muito sobre as figuras reais de Pedro, Jaime e João, os Pilares em Jerusalém.

Com relação ao interesse de Jesus em Jerusalém, existem apenas duas citações dentro do material que temos dos movimentos de Jesus que abordam essa questão, e ambas são meramente observações marginais da destruição do templo em 70 E.C.

Uma é o lamento em Q3, “Jerusalém, Jerusalém, Quantas vezes quis juntar teus filhos. Eis que vossa casa ficará deserta”. (Q 13:34-35). A outra é a citação de Jesus que "prediz" a destruição do templo. Esta é a citação mais problemática do evangelho de Tomé, porque escrita no estilo de Marcos, parece ser uma criação de Marcos (TO 71, Mar 14:58). Isto mostra que a motivação para os colunas se estabelecerem em Jerusalém tem que ser deixada à especulação, porque não há indicação que nenhum outro grupo de Jesus tenha feito qualquer conexão entre Jesus, o movimento de Jesus, o reino de Deus e a cidade de Jerusalém.

Isto conduz a questão da aderência dos pilares ao código de pureza judaico. Em todos os outros grupos do movimento de Jesus a resposta quanto a essa questão era uma só: o povo de Jesus não seguia esses códigos. Havia, na verdade, uma tendência a sentir-se orgulho de rejeitar estas práticas em favor da respeitabilidade e autodefinição do grupo. Portanto, o que fazer com o fato de que os colunas estivessem do outro lado desta questão?

É extremamente difícil entender o que o grupo de Jerusalém pensava. Não existe nada nos ensinamentos de Jesus, ou nas estórias primitivas sobre Jesus que sugeriria uma motivação para Jesus e seus discípulos dirigirem-se, primeiramente, para Jerusalém, muito menos para Galileus irem para lá após Jesus tê-la deixado.

E ainda existe uma outra questão, a estória de Marcos não ajuda por três razões importantes:

A primeira é que a conspiração que ele inventou para levar Jesus a Jerusalém somente poderia ser imaginada após a guerra Romano-Judaica.

A segunda é que, se tivermos que aceitar a estória de Marcos sobre a marcha de Jesus para Jerusalém, para confrontar as autoridades judaicas constituídas, e ser morto por representar uma grande ameaça ao estado-templo em virtude de alguma coisa tão inócua como ensinar nos arredores do templo, fica muito difícil imaginar que seus seguidores não fossem também ameaçados ou mortos quando assumissem residência em Jerusalém para promover o programa pelo qual Jesus foi morto.

A terceira razão segundo a qual a estória de Marcos não ajuda é que de acordo com o próprio Marcos, Jesus e seus discípulos foram acusados de violar os códigos de pureza não os guardando. Portanto, teríamos que vislumbrar outro cenário que faça sentido com os dados que Paulo nos forneceu.

Marcos era tendencioso e crítico na imagem que produziu dos discípulos o que significa que os discípulos, tal qual se apresentavam, devem ter representado uma posição com a qual Marcos discordava. Seria uma diferença de opinião em relação aos códigos de pureza?

No evangelho de Tomé, Pedro e os discípulos representam uma posição com interesse na manutenção dos códigos de pureza judaicos. E isto está em concordância com a caracterização de Paulo sobre os colunas em Jerusalém. Se Paulo e o evangelho de Tomé estão certos sobre a questão dos códigos de pureza, isto certamente se ajustaria com a posição contra a qual Marcos estava escrevendo. Assim, embora não possamos saber com certeza, parece que Pedro e companhia, simplesmente, tiraram dos ensinamentos de Jesus, conclusões sobre o reino de Deus que divergia dos outros grupos de Jesus.

Deve-se notar que o grupo de Jerusalém durou pouco tempo. No final da estória de Marcos, Pedro e os discípulos são ordenados a ir para a Galiléia para formar lá uma congregação. Marcos pode ter sabido que Pedro e o grupo de Jerusalém não estavam mais residindo em Jerusalém. Tradições posteriores falam da ida do grupo de Jerusalém para Pela no centro da guerra e Paulo menciona que Pedro, posteriormente, residiu em Antioquia. Quanto a Tiago, sabe-se que ele foi martirizado no ano 62 E.C., durante o crescimento das hostilidades que precipitaram o rompimento da guerra Romano-Judaica em 66 E.C. O que restou, foram pistas fragmentadas de um grupo que residiu em Jerusalém por um período, relativamente, curto de tempo.

Agora, colocando estas peças juntas, parece que Tiago, que era irmão de Jesus, juntamente com Pedro e outros, fizeram algumas ligações entre os ensinamentos de Jesus sobre o reino de Deus e o reino-templo em Jerusalém. O que estas conexões poderiam ter sido, permanece obscuro. Uma vez que consideravam os códigos de pureza compatíveis com os ensinamentos de Jesus, uma posição com a qual Mateus, escrevendo muito tempo mais tarde, concordará, eles pareciam para muitos, meramente, como uma seita farisaica. Talvez eles se considerassem como fermento apropriadamente colocado em Jerusalém para florescer os ideais de devoção e assim contribuir para sua sustentação ou regeneração como cidade do grande rei.

O lamento sobre Jerusalém, em Q, foi escrito, exatamente, a partir desta perspectiva. Portanto, sabemos que pensamentos como este eram possíveis dentro dos movimentos de Jesus, mesmo se nem todos os sustentassem. Infelizmente para os colunas, supondo que eles pensavam que os ensinamentos de Jesus sobre o reino eram mais adequados em uma escola em Jerusalém, a destruição da cidade significou também o fim de sua missão.

O estabelecimento desse grupo por Mack é objeto de muita crítica por alguns historiadores. Sabemos que O "Culto de Cristo", segundo o professor Mack, se constitui na única e mais antiga "resposta" a Jesus, antes dos evangelhos o transformarem no filho de Deus. Temos que realmente ficar boquiabertos com a distância que separa a mente de Paulo, daqueles que consideravam Jesus apenas como um advogado contra as práticas de pureza judaicas. Doherty chega a afirmar que toda a teoria desmorona sobre o peso dessa consideração. Lembremos, no entanto, que na definição dos cultos de Jesus, Mack afirma que nenhum culto primitivo de Jesus o concebia como o Cristo. Se os cultos de Jesus eram desenvolvidos através dos tempos nas grandes comunidades de gentios, fora da Palestina, Doherty considera inconcebível não ter sido avaliado por Mack, a inadequação da conversão de Paulo neste quadro. Paulo não parece demonstrar que, criticamente, suas crenças diferiam muito daquela sustentada pelos colunas de Jerusalém. Quem então transformou Jesus, no próprio coração de Israel, numa divindade cósmica, adornando-o com mitologias helênicas tão logo baixou à sepultura? Como podemos conciliar o fato de que se o chamado grupo de Jerusalém não considerava Jesus como divino, não atribuía nenhum significado à sua morte e presumivelmente desconhecia a ressurreição, tal diferença de opinião não tenha aflorado quando Paulo foi a Jerusalém para "discutir o evangelho? Como podia Paulo se referir a eles como "apóstolos antes de mim" e se estes não "pregavam um Cristo redentor”?

O cerne de tais questionamentos está na conclusão, ou pelo menos encaminhamento, da possibilidade de que um Jesus histórico jamais tenha existido. Jesus seria uma obscura personagem, talvez como o brasileiro Enri, que em Curitiba se diz reencarnação de Jesus. Este personagem acabou sendo escolhido para encarnar o fundador das seitas oriundas do movimento social nascido com a dinâmica cultural daqueles tempos.

Finalizando os movimentos de Jesus, não poderíamos deixar de tocar num tópico que será abordado com maior riqueza de detalhes, posteriormente, quanto chegarmos às cartas de Paulo, mas dado à conexão com os colunas de Jerusalém vamos mencionar aqui, de passagem. Na tese defendida por Marcelo Carreiro, no tópico II.1, “Uma Conspiração Silenciosa”, consta o seguinte texto:

"Como é estranho que todos os escritores cristãos do primeiro século, com toda a devoção que eles mostram sobre Cristo e a nova fé cristã, nenhum deles expressa o mais tênue desejo de ver o local de nascimento de Jesus, de visitar sua terra natal de Nazaré, os locais de sua pregação, a sala da Santa ceia, a tumba de onde ele surgiu entre os mortos. Tais lugares jamais são mencionados. Acima de tudo, não há a menor peregrinação ao próprio calvário, onde a salvação da humanidade teria sido consumada. Como um local como este não teria se tornado um templo“.

Com relação a Paulo em sua visita a Jerusalém, reportada na carta aos Gálatas, Marcelo escreve:

"É concebível que Paulo não desejasse correr para o Calvário, para se prostrar ao solo sagrado sobre o qual passou o sangue do senhor assassinado? Certamente, ele teria partilhado dessa experiência intensamente emocional com seus leitores. Nem Paulo nem qualquer outro escritor de cartas do primeiro século pronunciam um sussurro sobre tal coisa".

A Conspiração Silenciosa será mais detalhada quando chegarmos aos escritos de Paulo e outros escritores do primeiro século, sendo ela uma marca importante do mito cristão.

CONCLUSÃO

Muitos outros grupos podem ter se formado na esteira do Jesus Histórico. Os poucos que discutimos são suficientes, entretanto, para nos deixar ver a realidade dos primeiros quarenta anos do movimento de Jesus, vamos citar alguns passos.

No começo, Jesus era lembrado como um mestre que desafiava os indivíduos a pensar como cidadãos do reino de Deus. O conceito do reino de Deus era, aparentemente, oportuno. Ele fazia as pessoas, que estavam conscientes daqueles tempos tumultuados se agruparem, propiciando-lhes um foro para debates e ação. Mas o conceito do reino, embora direcionados sobre noções que já pairavam no ar e, portanto não completamente vazias, eram no, entretanto, mais vagas e sedutoras do que claras e programáticas. Assim os vários grupos que se formaram eram experimentais. Eles experimentaram grandes mudanças assim que atraíram outros por sua falação sobre o reino, desenvolveram suas próprias práticas sociais e identidade de grupo, respondendo às pressões e dando-se conta de si próprios como uma pequena sociedade com grandes idéias. A estratégia comum era atribuir a sabedoria que tinham adquirido a Jesus, colocando-as sob a forma de instruções oriundas dele e revisadas de forma a se ajustar à escola de pensamento que estavam desenvolvendo. Fizeram exatamente como qualquer escola helenista de filosofia teria feito. E o resultado deste desenvolvimento foi que a voz e imagem de Jesus, seu fundador, foi também repetidamente refundida. Como vimos, os retratos de Jesus são estritamente diferentes à medida que transitamos de um grupo para outro, dentro do movimento de Jesus.

FORMAÇÃO DO CULTO CRISTÃO - FRAGMENTOS

Os movimentos sociais mudam com o tempo. Isto acontece em resposta às novas circunstâncias, mas, também porque as experiências dentro de um grupo freqüentemente introduzem novos padrões de comportamento e de pensamento. Líderes sobem e caem, os humores vão e vêem e as estratégias mudam, algumas vezes abruptamente. Olhamos fascinados, porque a vida em grupos define a empreitada humana e as pessoas no processo de mudança de padrões de vida e pensamento sempre chamam a nossa atenção. Poderemos aprender alguma coisa tanto sobre os outros como também sobre nós mesmos. O aprendizado se torna especialmente significativo se for focado na formação das comunidades primitivas, cujas estratégias de convivência em comum ainda se nos apresentam como legados, transferidos dos episódios da fundação de nossa história cultural. Este processo de formação social é, exatamente, o que observamos de forma privilegiada, à medida que o culto Cristão surge a partir dos movimentos de Jesus.

 Começando em algum lugar ao nordeste da Síria, provavelmente na cidade de Antióquia, espalhando-se através da Ásia Menor para dentro da Grécia, o movimento de Jesus, sofreu uma mudança de conseqüências históricas. Foi uma mudança que transformou o que estamos chamando de movimento de Jesus no culto de um Deus, chamado Jesus Cristo. À primeira vista, é difícil imaginar que o Culto de Jesus, fosse em alguma época, o movimento de Jesus, tal a maneira drástica e rápida em que parece ter acontecido a mudança. Mas, se detalharmos o processo, calmamente, movendo-nos através dos complexos desenvolvimentos de cerca de vinte e cinco anos de experimentação social, e observando as pistas que os estudiosos descobriram para explicar as razões que sustentam as transformações que tiveram lugar, traremos à luz uma história bastante compreensível.

  O Culto de Jesus se diferencia do movimento de Jesus em dois aspectos principais.

Um é o foco sobre a significância do destino e morte de Jesus. A morte de Jesus foi entendida como tendo sido um evento que trouxe uma nova comunidade à existência. Este foco sobre a morte de Jesus trouxe como resultado o afastamento da atenção sobre os ensinamentos de Jesus e da noção de pertencer-se à sua escola. Gerou em contrapartida, uma elaborada preocupação com a noção do martírio, ressurreição e com a transformação de Jesus em uma presença espiritual divina.

A outra diferença foi a formação de um culto orientado para aquela presença espiritual. Hinos, orações, aclamações e doxologias foram compostos e utilizados quando os cristãos se reuniam em nome de Jesus. Refeições e outros rituais de congregação celebravam, tanto a memória de Jesus, como a presença de seu espírito.

Estas características são distintas e apontam o culto de Jesus como sendo, estritamente, diferente dos movimentos de Jesus, conforme já observamos. Como explicar essas diferenças tem sido a tarefa dos estudiosos que hoje já aprenderam o suficiente para rastrear essas mudanças, que transformaram os movimentos de Jesus no Culto de Jesus. Neste tópico, estaremos apresentando a estória dessas transformações e oferecendo explicações para os mitos e os rituais que estes povos de Cristo produziram.

As evidências para estudarmos o culto de Jesus são, principalmente, oriundas das cartas de Paulo, escritas durante os anos 50. Se não fosse pela sua correspondência com estas congregações, talvez nunca soubéssemos que estes cultos existiam, pelo menos não em período tão antigo e, certamente, sem o auxílio das vigorosas comunidades vivas que os estudiosos foram capazes de reconstruir.

Quando se analisa este primórdio da religião cristã, assim como o especialista cristão tem que se abster da fé para poder fazer uma análise historiográfica, também os não-crentes, em sentido oposto, tem que compreender o que significou para o crescimento do cristianismo a exuberância do espírito de Paulo, se visto por dentro de sua fé. Nós pouco saberíamos sem Paulo, pois mesmo as comunidades cristãs mais antigas, que continuaram o culto de Cristo não foram, capazes de compreender a complexa mitologia dos primeiros Cristãos refletidos nas cartas de Paulo. Se tivéssemos apenas as tradições primitivas de Jesus para construir as origens cristãs, nenhum estudioso moderno teria imaginado que algo como o culto Cristão poderia ter se desenvolvido a partir delas.

Desta maneira, as cartas de Paulo são uma preciosa dose de evidência do experimento social do primeiro século que de outra forma nos seria inimaginável. Suas cartas são tão importantes para o nosso conhecimento do culto Cristão como o são os Manuscritos do Mar Morto para o nosso conhecimento da comunidade de Qumram.

 Entretanto, as cartas de Paulo dizem muito mais sobre o próprio Paulo e do seu entendimento do culto de Cristo do que sobre o culto para o qual ele se converteu. Precisamos, pois, distinguir entre os dois, se quisermos compreender o culto Cristão como algo que já existia na ocasião em que Paulo o encontrou. O culto Cristão marcava sua presença de modo a gerar em Paulo, no primeiro contato, um sentimento contrário de hostilidade. Porém, ele deve ter sido atrativo o suficiente para causar sua conversão posterior. Teremos que explorar estas cartas e a mente de Paulo para entender o culto Cristão refletido nestas cartas.

Felizmente, uma boa quantidade de material textual do culto está disponível através das cartas de Paulo. Isto pode parecer estranho, uma vez que as cartas são claramente compostas por Paulo. Mas a feliz circunstância é que Paulo incorporou nestas cartas, não somente as idéias que havia absorvido dos Cristãos, mas também fragmentos de sua produção literária. Estes fragmentos de produção literária não podem ser colocados juntos formando uma única e grande composição e, portanto, não temos um texto composto dessas primeiras comunidades. Mas as pequenas unidades que foram preservadas compartilham um mesmo teor e manifesta outras características literárias que o tornam um conjunto coerente. Estes conjuntos poéticos nos dão suficiente informação, de maneira a pintar uma figura interessante desse povo ao qual Paulo odiava, mas não pode resistir. Dado que estas pessoas foram as primeiras a usar o termo Cristo quando se referiam a Jesus, podemos imaginá-los como os primeiros Cristãos.

Para isolar esses fragmentos das cartas de Paulo temos que fixar nossa atenção detalhadamente nas idéias de Paulo e no uso característico da linguagem. Quando ocorre em uma de suas cartas, mesmo numa pequena unidade, uma variação da maneira costumeira de Paulo se expressar é necessário uma verificação acurada da unidade de texto, especialmente, nos casos nos quais a pequena unidade se assemelha com poesias seguindo regras antigas de composição. Nestes casos, dificilmente, evitamos a suspeita de que Paulo tenha se valido de empréstimos e muita criatividade para estabelecer seus argumentos. Usando material que era familiar a estas congregações, embora sob novo formato, Paulo atingia seus propósitos atuando como um talentoso retórico. Esta atitude não era incomum naqueles tempos, pelo contrário, o uso de material da tradição sem, necessariamente, creditar as autorias era uma prática comum entre os autores Greco-Romanos. Como fazê-lo era ensinado nas escolas, e fazê-lo bem trazia as mais altas honrarias.

Assim, tem sido possível identificar e colecionar um número considerável de unidades literárias pequenas, que refletem os pontos de vista e as realizações das congregações Cristãs com as quais Paulo mantinha conversação. Quando se olha conjuntamente para essas unidades literárias, vislumbra-se um quadro compreensivo do culto Cristão.

Entre estas peças encontramos pequenas fórmulas de credo sobre o significado da morte e ressurreição de Jesus (como em Rm. 3:24-26 e Rm. 4:25) e bem elaborados sumários do mito Cristão (como em, 1 Cor: 15:3-5). Aparecem também poemas e orações de Cristo como um Deus (Fl. 2:6-11) e do amor Agape como poder espiritual (1 Cor. 13:1-13). Aclamações ("Jesus é o Senhor," Fl. 2:11), motivações (tais como "Todas as coisas me são lícitas," 1 Cor 10:23), e doxologias abundantes (como por exemplo, "A nosso Deus e Pai seja dada glória para todo o sempre," Fl 4:20), E existem extratos de alegorias das escrituras que revelam uma enérgica atividade intelectual e de escrita (como exemplo a alegoria da estória do êxodo em 1 Corintios 10:1-5 e dos filhos de Abraão em Gálatas 4:22-26).

A importância desses pedaços de composição literária é enorme não só porque eles provêem evidência para as congregações de Cristo para as quais Paulo foi convertido mas também porque elas sustentam as hipóteses que precisamos para explicar a transformação do movimento de Jesus em um culto a Cristo.

Simplificadamente, o que aconteceu foi que o movimento de Jesus se espalhou pelas cidades da Síria, Ásia Menor e Grécia aonde atraiu não só judeus vivendo em diáspora bem como a pagãos. Foram assim formadas, por aqueles que se reuniam regularmente, células para discutir sobre o reino de Deus. Surgiram patronos entre os que eram capazes de hospedar estas reuniões em suas casas. As refeições tornaram-se, naturalmente, a ocasião para as reuniões e comer junto tornou-se a marca dos que pertenciam ao novo agrupamento. O novo agrupamento desafiou de início preconceitos étnicos e sociais devido à sua constituição missegenada e liberou considerações precipitadas sobre novas maneiras de experiência comunitária.

A proposta estava lançada. Participação nos grupamentos que falavam do reino de Deus era o mesmo que pertencer ao reino de Deus. E esta associação envolvia todos, independente da identidade social costumeira. Assim, uma nova mentalidade nascia. Era a idéia de que a participação em uma comunidade devia ser definida tendo como base uma mesma visão social compartilhada e não por marcas tradicionais de identidade étnica ou classe social. Foi certamente esta característica da nova formação social, que se tornou irresistível a Paulo. Assim ele se expressou sobre isto tão logo conseguiu vencer seus antagonismos à idéia; "Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre, não há macho nem fêmea, porque todos vós sois um em Cristo Jesus" (Gl 3:28). Tal afirmação é, naturalmente, um puro exagero, mas atinge o cerne da questão.

Mas lançar a idéia é uma coisa, e convencer-se a si próprio e aos outros que ela é uma verdade é outra. A primeira tentativa de ser mais preciso a respeito de identificar o reino de Deus como o "povo de Deus" encontrou dificuldades. A razão residia no fato de que esta noção estava enraizada no conceito de Israel, e o conceito de Israel pertencia aos judeus. E os gentios? Como apagar os limites étnicos? Como poderia a tradição de Israel ajudar se ela transformava os gentios em cidadãos de segunda classe? E supondo-se que a noção de Israel fosse expandida para receber os gentios, como ficariam os códigos tradicionais judaicos de rituais e de devoção? Seriam eles ainda aplicáveis? Mesmo para os gentios? Seriam todos eles ainda aplicáveis? E se não fossem, não estariam os cristãos numa embaraçosa competição com as sinagogas da diáspora aonde os judeus e gentios tementes a Deus tinham propostas maiores em nome de Israel? Se assim fosse, como deveria ser o argumento para que a proposta cristã fosse considerada razoável e correta? Como deveriam ser os códigos de comportamento? Quais seriam as marcas que distinguiriam aqueles que pertencessem à comunidade cristã? O que na realidade fariam os cristãos quando se reunissem?

Estas questões devem ter surgido e criado uma agitação. Fazer uma proposta de que um grupo missegenado representasse o plano de Deus para a reconstrução da sociedade humana não era uma tarefa simples.

Não temos registros de como esses debates foram conduzidos. O que temos na realidade são apenas os resultados acordados nas primeiras rodadas de negociações. Estes acordos estão contidos nos fragmentos do culto Cristão que passaremos a mostrar.

O MITO CRISTÃO

Os textos mais importantes para trabalharmos sobre a lógica do culto cristão são encontrados nas cartas de Paulo aos Corintios (1 Cor. 13;3-5) e Romanos (Rm. 3:24-26 e 4:25). Todos enfocam o significado que os cristãos primitivos atribuíam à morte de Jesus e cada um deles trás à luz uma visão distinta e complementar do sentido de sua morte. Tomados como um conjunto eles possuem todas as pistas que precisamos para descobrir os fundamentos do mito. Cada um merece uma análise específica.

1 Coríntios 15:3-5

Este fragmento tem sido chamado de Kérygma [4] (proclamação ou evangelho) dos cristão primitivos, nele Paulo diz ter recebido esta tradição e a passa em suas orações. Vejamos a tradição:

Que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras;

E que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras;

E que foi visto por Cefas, e depois pelos doze.....

A primeira coisa a se notar é o fato deste texto além de padronizado, ser cuidadosamente composto. Quatro eventos estão em evidência (morte, sepultamento, ressurreição e aparição), dois dos quais são fundamentais, a saber, a morte e a ressurreição do Cristo. Cada um deles é introduzido através de uma unidade redacional composta de modo a oferecer uma interpretação para o evento. As unidades para a morte e a ressurreição estão, formalmente, balanceadas, isto é, elas estão compostas de linhas ou pensamentos que correspondem a linhas similares na outra unidade. Esta característica é mais clara na referência às escrituras, que é repetida em cada unidade, mas também aparece como função retórica de cada evento subordinado. O sepultamento enfatiza a realidade da morte de Cristo, da mesma forma que a aparição credita a realidade da ressurreição. Somente no caso do significado primário da morte e da ressurreição é que existe um pequeno desbalanceamento, uma vez que a morte ocorreu "por nossos pecados" enquanto a ressurreição aconteceu "no terceiro dia". Esta fórmula "querigmática" não foi criada em um momento de inspiração. Ela reflete um longo período de trabalho intelectual coletivo, incluindo acordos sobre a importância do foco na morte de Jesus como o evento de maior significado para a comunidade, o que representava este significado, o uso do nome Cristo ao invés de Jesus, o pensamento de que Jesus tenha ressuscitado, a importância da referência às escrituras e o tipo de argumentação que faria com que os dois eventos dependentes se tornassem reais (sepultamento e aparição).

De maneira a entendermos a linha de pensamentos contida nesta formulação de credo precisamos explicar duas mitologias que sustentam a lógica que permeia toda esta argumentação. Uma é o mito grego da morte nobre. A outra o mito judaico do mártir. O conceito grego da morte nobre pode ser rastreado através da história do pensamento grego até suas origens na honra devida ao guerreiro que morre por seu país (ou povo, cidade ou leis). Com Sócrates a aplicação do conceito foi estendida para abraçar a filósofos e mestres que sofreram banimento e morte em razão de seus ensinamentos. Neste caso a morte era considerada honrada se o mestre permanecesse fiel a seus ensinamentos e morresse por eles. Este conceito da morte nobre era absolutamente fundamental para a visão grega de cidadania, da honra e da virtude.

A mudança do guerreiro para o filósofo enfatizou o significado da morte nobre transformando a pessoa que morre com nobreza em um mártir por uma causa. O requisito para alcançar-se à virtude de uma morte como essa era a integridade pessoal (com relação aos ensinamentos ou causas pelos quais alguém se dispunha a morrer) e a resistência (ou lealdade à causa mesmo diante da morte).

Em Blessings and Boundaries Interpretations of Jesus' Death in Q - David Seeley sustenta que em Q14:27 está a mais antiga interpretação da morte de Jesus nos escritos Q.

Entre os círculos judaicos o conceito do mártir tomou outra direção. Transcrita a partir da imagem antiga do guerreiro que morre por sua pátria e simbolizando essa morte um sacrifício oferecido em defesa de um povo, a idéia adquiriu para alguns o sentido de que a morte de um mártir deveria ser eficaz. Com isso quer se dizer que a morte traria um fim às circunstâncias que a provocaram e contribuiria para reforçar a causa pela qual teria perecido o mártir em questão.

Assim a história dos Macabeus que lutaram por uma Judéia independente dos Seleucidas durante a metade do segundo século A.C., foi gradualmente se transformando no martírio dos sete irmãos que "morreram pela lei" e assim garantiram a derrota do poder estrangeiro contra o qual lutaram.

O mito judaico do profeta perseguido era também popular naqueles tempos. Variantes mais antigas do mito incluíam as estórias de José, Ester e Daniel, bem como aparecem em muitos Salmos que abordam os momentos de resgate dos piedosos em desgraça. A trama inclui dois episódios principais. O primeiro é a acusação injusta de deslealdade que coloca o profeta "nas mãos" de um déspota estrangeiro que ameaça contra a sua vida. O segundo episódio era a revelação ou descoberta da piedade e lealdade do profeta pelo déspota. Esta revelação acabava por resgatar o homem justo e promover sua elevação a uma posição honrosa.

A história social dos judeus durante o último período do segundo templo ameaçou seriamente o final feliz do velho mito da sabedoria. Assim sendo, embora a honestidade exigia o reconhecimento de que nem sempre o justo era resgatado das perseguições, dos poderes estrangeiros e da morte, o conto foi revisado para garantir ao justo um destino post-mortem, projetando-se a cena do resgate para um outro tempo e lugar (em algum outro mundo) depois da morte. O tratado denominado, As Sabedorias de Salomão, um precioso documento do pensamento e literatura judaicos, é um exemplo estrito de uma meditação bem elaborada sobre esta variante do conto, que acabou encontrando seu lugar na Bíblia cristã. Para qualquer estudante que queira entender a mitologia dos antigos cristãos, torna-se indispensável debruçar-se sobre as Sabedorias de Salomão.

Ambos os mitos, seja o da morte nobre como a revisão do mito do profeta perseguido, dependiam da morte do protagonista. Pode-se verificar como eles podem ser facilmente combinados e na realidade alguns aspectos das estórias de Macabeus 4 e da Sabedoria de Salomão sugerem que foi idealizada uma tentativa de fusão das duas tramas. O mito de Cristo está também enraizado em uma combinação dessas duas estórias, sendo a morte de Jesus retratada sobre a lógica do martírio e o significado da ressurreição retirada do conto da sabedoria. O ligeiro desbalanceamento entre os dois episódios, que se nota no kérygma acima, é devido, parcialmente, à diferença na lógica dos dois contos. Note-se que o significado da morte de Jesus é creditado como sendo efetivo para a comunidade ("por nossos pecados"), enquanto o significado da ressurreição é somente relacionado ao próprio destino e honra de Jesus.

Três características do texto indicam que pensava-se no mito do mártir enquanto o mito de cristo era idealizado. A primeira é o significado crítico da frase "morreu por". Esta é a única indicação sobre o objeto do kérygma . É a única afirmação de propósitos, motivação ou efetividade do evento. Sem ela não se saberia porque a morte de Jesus teria atraído tanta atenção. Não é apenas mais uma interpretação de se encarar sua morte dentro do culto. É a única interpretação, e ela aparece repetidamente dentro das cartas Paulinas, aonde quer que seja feita referência ao significado da morte de Cristo.

"Morrer por" é um termo técnico para expressar o propósito do martírio. Aparece também repetidas vezes no martírio dos Macabeus e somente faz sentido naquele contexto. Não existe outro significado.

A segunda característica do mito de Cristo, que o identifica como martirial, é o fato de que o propósito da morte teria que causar efeito na comunidade cristã como um todo. Nesse caso o propósito teria algo relacionado com "nossos pecados". A formulação no plural é extremamente importante indicando, como realmente acontece, que o martírio estava sendo pensado em relação à comunidade como uma unidade social. O aspecto da comunidade a exigir uma defesa por um mártir é referido como "pecados". O uso do termo pecados trouxe complicações para o entendimento do kérygma porque ele é tão somente entendido com facilidade à luz da posterior visão cristã sobre pecado, culpa e perdão ou redenção para os indivíduos. A perspectiva de sua interpretação original ganha força quando se nota que em outras referências da morte de Jesus o propósito pode ser simplesmente expresso como "por vós" (no plural) sem nenhuma menção aos "pecados". (1 Cor. 11:24; Rom. 8:32). Qual foi então a intenção em caracterizar a comunidade cristã em termos de seus pecados?

A palavra pecado aparece freqüentemente em textos antigos judaicos referenciando comportamentos em desacordo com a Tora. Tora referia-se ao estilo judeu de vida e pecado referia-se à conduta em desacordo com esse estilo de vida, códigos ou etiquetas. O termo entretanto, não se referia à experiência religiosa individual, pecado ou a falha em guardar a lei; a devoção ou lealdade à lei eram matérias objetivas e o termo pecadores podia então ser usado para classificar as pessoas cujos atos ou padrões não eram reconhecidos pela lei do Tora.

Encontramos, por exemplo, a organização dos sacerdotes taxada como de "pecadores" aos olhos dos judeus que viam nela uma violação do Tora. Encontramos também os gentios como uma classe inteiramente classificada como "pecadores", simplesmente, devido a seu estilo de vida não ser governado pela lei judaica. Portanto, quer parecer que o uso do termo “pecadores” , tanto no contexto martirial tal como no mito de Cristo, referia-se ao estilo de vida do grupo, à constituição do grupo ou à existência problemática em relação às normas judaicas. Talvez, todas as três razões.

A terceira característica desse kérygma é a referência a Cristo sendo "ressuscitado". A palavra grega para ressuscitar não tem conotação mitológica. Heróis e homens divinos se tornavam deuses de outras maneiras e as pessoas passavam para outra vida sem ressurreição. Ressuscitar significava somente acordar alguém de um sono ou levantar alguém. Usado aqui, como um eufemismo, para trazer Cristo de volta da morte, ou ressuscitar um corpo teria como resposta da maioria das pessoas, incluindo tanto judeus como Gregos, um sonoro "O Quê?". Isto, porque para os gregos a noção de imortalidade não incluía o corpo. A imortalidade era entendida, se tanto, como a essência do espírito (mente, psique e sabedoria) deixando o corpo. Para os judeus, a imortalidade pessoal era uma idéia problemática, não facilmente integrável com sua antropologia social e um cadáver era sinal de impureza e morte. Os judeus supunham que espíritos dos mortos partiam, não perambulavam ao redor do corpo e o encontro com um cadáver vivo não era uma experiência considerada agradável.

Havia apenas uma estória na qual as idéias de ressurreição de corpos era considerada apropriada e isto era no final do mundo, quando em alguns apocalipses judaicos, as pessoas se levantariam de seus túmulos para presenciarem o julgamento final. Portanto, medo e aversão seriam as reações naturais de gregos e judeus ao ouvirem relatos sobre uma pessoa levantar-se após ser morta e enterrada. Porque então a ênfase no fato de Cristo ser ressuscitado?

A Martiriologia não requeria tal premissa para retratar a nobreza ou efetividade da morte de uma pessoa. E aonde o conto de sabedoria começou a se mesclar com o mito do martírio, como parece ter acontecido em Macabeus e na Sabedoria de Salomão, a reabilitação post-mortem do mártir era esculpida em termos de transformação espiritual, nunca física.

Isto significa que o significado da morte de Jesus como um martírio para a causa Cristã forçou uma idéia nova e rara. Mártires morriam por causas reais e já estabelecidas; Jesus teria que morrer por uma causa ainda não estabelecida. Mártires morriam nas mãos de forças externas; Jesus teria que confrontar uma condição dentro da comunidade pela qual ele iria então morrer. Considerando-se que ambas, causa e condição, eram altamente questionáveis caracterizadas por pecados e pecadores, a matéria torna-se ainda mais complicada. Desta maneira não era suficiente o uso da lógica do martírio para reivindicar a justiça da causa. Era necessário também confrontá-la também com sinais claros de defesa do mártir. Esta era uma tarefa difícil pois Jesus era um estranho mártir morrendo por uma causa impensável. A única maneira de sobrepujar as contradições implícitas era exagerar no drama e considerar o evento do ponto de vista de Deus. O que seria melhor do que ter o próprio Deus envolvido na ação? Quatro características do kerygma são resultados diretos desta imaginação.

O primeiro aspecto da teologia do mito é o uso do termo Cristo , significando que Jesus era imaginado como tendo sido "ungido" ou aprovado por Deus para o serviço divino. Outro aspecto é a caracterização da comunidade como "pecadores". Uma terceira é o apelo "às escrituras", uma reivindicação implícita que os maravilhosos eventos de Cristo estavam em total concordância com o destino que Deus havia engajado e projetado para a história de seu povo. E uma quarta, é que aquele Deus tinha aprovado tanto Jesus como sua causa ao ressuscitá-lo da morte. A voz passiva "ele foi elevado" contrasta com a ativa "ele morreu por", indicando que um considerável trabalho de preparação tinha sido dedicado aos tópicos de operacionalização do drama. Portanto, foi a necessidade de imaginar o envolvimento de Deus em um, de outra forma, implausível martírio por uma causa bastante problemática, que resultou na estranha e grotesca noção de Deus elevando Jesus dos mortos.

Como veremos, o mito da ressurreição de Jesus atingiu seu propósito e foi vitorioso, mas nem uma só comunidade cristã primitiva estava satisfeita com seu nível literal. Era muito bruto para isso e além do mais o assunto que realmente interessava tinha pouco a ver com fantasmas e corpos. O que importava era a causa pela qual Jesus tinha morrido.

Romanos 3:21-26

Este texto da carta de Paulo aos Romanos nos coloca em contato com um período bastante primitivo do desenvolvimento do mito cristão. Ele documenta um estágio no pensamento dos cristãos primitivos que antecede as formulações refinadas do kérygma . A morte de Jesus estava em foco e seu significado como martírio tinha sido trabalhada sem nenhuma necessidade de imaginar-se uma ressurreição. Paulo modelou a formulação destas idéias a seu gosto acabando por substituir os ditos originais com a forma pela qual os citou. Por sorte, os estudiosos foram capazes de reconstruir o cerne da idéia nos fragmentos pré-Paulinos. A reconstrução que se segue faz parte de um estudo detalhado de Sam Williams em 1975:

Nos tempos passados Deus ignorou os pecados dos gentios.

Mas agora Deus considerou a morte de Jesus como um meio de expiação por causa de sua fé (plenitude).

Ele fez isso para mostrar justiça, e justificar (ou fazer justiça) para aquele cuja fé provém da própria fé de Jesus.

Quatro idéias convergem nesta interpretação da morte de Jesus. A primeira é que Deus levou em conta o problema que afetava a nova comunidade, no sentido de que a inclusão dos gentios tinha que ser justificada. A segunda é que Deus considerou a morte de Jesus como uma expiação pelos seus pecados. A terceira é que a eficácia da morte de Jesus era devida à sua fé. E a quarta é que aquele que aprende a ser fiel segundo o modelo da fidelidade de Jesus está justificado aos olhos de Deus.

A lógica desta mitologia é extremamente interessante. É baseada em uma martiriologia na qual considera-se Jesus ter sido "fiel" e a palavra para isso é pistis, um termo que aparece nas estórias de mártires para expressar a virtude que lhes é essencial. Significa algo como "comprometido" e em conjunto com o termo "resistência" refere-se à firmeza dos mártires, mesmo diante da morte. A causa pela qual Jesus é fiel não é expressada, mas é possível que os cristãos primitivos iniciaram essa linha de raciocínio imaginando Jesus ter sido fiel a seus próprios ensinamentos e/ou à visão do Reino de Deus. Isto teria sido um passo fácil a ser dado, imaginando-se que a morte convinha para figura de um fundador cuja integridade era inquestionável.

Assim podemos ver como foi alcançada a transição de um movimento de Jesus para um culto de Cristo. De qualquer maneira, esta martiriologia primitiva é sobre Jesus, não sobre o Cristo. O fator que transformou este martírio em um evento que justificasse a nova comunidade, e assim desse crédito à idéia de que a nova comunidade era a causa de sua morte não foi derivada das próprias intenções de Jesus mas da maneira pela qual a visão de Deus sobre o evento era entendida.

Os termos estabelecidos para justificar a inclusão dos gentios em um movimento que se auto-idealizava no modelo de Israel, o povo de Deus, eram pecadores e justos. Como vimos pecadores era uma designação genérica para qualquer um e todos que não viviam de acordo com os padrões judeus de devoção. Aqueles que atendiam ao padrão eram chamados de justos. Assim, os termos trabalhavam em par e podiam distinguir Judeus de gentios com relação à aceitação ou não-aceitação das leis judaicas e dos padrões de virtude. Desta forma, os termos eram completamente apropriados para a situação de um grupo perturbado por sua constituição mista.

Tudo o que temos que fazer é notar que as palavras justo, justiça e justificar (absolvido como justo), termos usado nesta mitologia para registrar o julgamento de Deus sobre uma comunidade, são todos análogos ao Grego dikaios , que significa "legítimo" ou "certo". A imagem é aquela de um julgamento, na qual Deus, o juiz justo, justifica os gentios como membros justos da comunidade, somente se eles considerassem Jesus na forma que a mitologia o retratava. Começamos então a perceber alguma coisa do poder dessa persuasão que cativou a atenção de Paulo. Estes, pelo menos, são os verdadeiros termos do argumento que Paulo adornaria como seu evangelho.

A lógica essencial do mito cristão deve estar clara agora e o trabalho intelectual investido na sua construção deve estar também óbvio. Vemos o mito desenvolvendo-se, exatamente, no momento em que o movimento de Jesus se transforma no culto do Cristo. A necessidade de justificar a inclusão dos gentios, mudou o foco de atenção de Jesus o mestre e seus ensinamentos, para focalizar sua morte como um evento dramático que estabelece a reivindicação do movimento em se constituir no povo de Deus.

Deve ficar claro que o mito de Cristo não era uma narrativa da paixão de Jesus, tal qual encontramos nos evangelhos posteriores. Como martiriologia e especialmente na sua forma "kerigmática", o mito cristão possui efetivamente um potencial para tornar-se uma estória. Mas em sua primeira concepção ele tem pouca relação com reminiscências históricas e não possui nenhuma motivação para estabelecer este evento, em qualquer contexto histórico. Somente a figura de Jesus, a indicação de seu martírio, o envolvimento de Deus e seu significado para a comunidade são de interesse. Imaginar mais, privaria o kérygma de sua lógica. Poderia na verdade até destruir sua lógica. Dado o propósito do mito, qualquer informação suplementar na estória, para incluir circunstâncias sociais que conduziram à morte de Jesus, quem o condenou à morte, porque o fizeram e o que aconteceu a Jesus e àqueles ao seu redor, transformaria a apresentação do mito cristão em um forum para debates políticos, com distinções étnicas e questões acusatórias fácil e perigosamente detonáveis.

Estas eram as verdadeiras questões que o mito tinha que sobrepujar. Assim, apenas a motivação de Deus e seu martírio tinham papel garantido nesta estória. Não existe a mais leve sugestão, em qualquer texto do corpo Paulino, de que ele ou os cristãos que ele convertera pensassem de Jesus ou de si próprios como opositores aos regulamentos do templo em Jerusalém, como Marcos dirá em seu evangelho. O kérygma e a narrativa da paixão no evangelho de Marcos, são dois mitos diferentes e incongruentes.

Podemos também notar que desde que estes mitos são a primeira referência que possuímos sobre a morte de Jesus pela cruz e desde que a estória de Marcos é dependente do mito do martírio no kérygma nós não temos, realmente, condição de saber nada sobre as circunstâncias históricas da morte de Jesus. Na verdade, apesar de todo o estudo sobre os movimentos de Jesus e sobre o culto do Cristo não somos sequer capazes de afirmar, categoricamente, a existência histórica de Jesus e temos que endereçar a possibilidade de nunca ter existido um Jesus histórico. Não existe referência à morte de Jesus na cruz no material pré-Marcos sobre Jesus. A única possível exceção é o dito sobre "Quem não carrega a sua cruz e não me segue, não pode ser meu discípulo" em Q 14:27 (kai ostiv ou bastazei ton stauron autou kai ercetai opisw mou ou dunatai mou einai mayhthv). Mas desde que "a cruz" entre Estóicos e Cínicos tinha se tornado em uma metáfora para testar o brio das pessoas, esta passagem não pode ser usada como prova positiva que o povo de Q sabia que Jesus tinha sido crucificado.

O RITUAL DAS CEIAS

Outro importante aspecto das Congregações cristãs é o retrato, pintado por Paulo, da comunidade à ceia em 1 Coríntios 11. O texto é familiar aos cristãos nos evangelhos sinóticos quando a última ceia com os discípulos provê o roteiro para a celebração cristã da Eucaristia e da Missa. Na imaginação cristã o texto Paulino é baseado na recordação da última ceia em que Jesus antecipa seu sacrifício, dando ao pão e ao vinho significado simbólico e instruindo seus discípulos praticarem-no em sua memória ( as ditas palavras de instituição).

1 Coríntios 11: 23-25

Este é outro texto ao qual Paulo denomina a "tradição" que ele "recebeu" e passou aos Coríntios. A tradição lê-se como se segue:

O Senhor Jesus , na noite em que foi entregue, tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse:

 "Isto 'é o meu corpo, que se dá por vós; fazei isto em memória de mim".

Do mesmo modo, depois de cear, tomou o cálice dizendo:

"Este cálice é a nova Aliança no meu sangue; todas as vezes que deles beberdes, fazei-o em memória de mim".

Surpresa pode muito bem ser a primeira reação de qualquer leitor moderno deste texto. Mesmo após entender a sofrida lógica do mito cristão, ninguém está, efetivamente, preparado para esta chocante imagem de Jesus, calmamente anunciando sua iminente imolação. Os estudiosos do Novo Testamento não forneceram muita ajuda para que este quadro fizesse algum sentido. Parte do problema é que a liturgia e iconografia carregaram esta cena com as tintas da piedosa devoção a um personagem totalmente divino apresentando absoluta serenidade face à idéia de seu próprio sacrifício para livrar o mundo da perdição. Esta imagem tende a frustrar a análise crítica. Outra parte do problema é que o cenário dominante das origens cristãs, automaticamente, coloca esta cena no contexto da narrativa dos evangelhos e a trata como histórica.

A tarefa da análise poderia ser imaginar como aconteceu, como se ajustaria com o que sabemos do Jesus histórico, como os discípulos teriam entendido e o que Jesus queria significar com isto. Este conjunto de questões que partem do princípio que esta cena aconteceu, não leva a lugar algum. Assim, a primeira conclusão é que a cena não faz sentido como história. A cena não é histórica mas imaginária. Foi uma criação da congregação de Cristo em consonância com sua mitologia. As razões para a mitologia são claras, o que precisamos agora entender são as razões para imaginar-se esta imagem de Jesus à mesa.

O ponto de partida é a observação de que este ícone retrata uma ceia. Uma vez que os antigos cristãos se reuniam para a ceia e desde que Paulo usou este texto da ceia para dizer algo sobre a maneira pela qual alguns Coríntios estavam se comportando quando se reuniam para cear, a suspeita é de que a imagem de Jesus se relaciona com a prática antiga da ceia dos cristãos. Assim, tudo que temos fazer para compreender o texto da última ceia é reconhecer que a formação social organizou-se do modelo de associações, que as reuniões eram reconhecidas como o momento em que o propósito do grupo era vivenciado e que os símbolos escolhidos eram mais do que naturais. Não há nenhum sentido em buscar-se um significado alegórico secreto do pão e do vinho invocados nas palavras de Jesus. Tanto pão como o vinho, bem como partir o pão e beber o vinho eram símbolos básicos, com uma ampla gama de significados metafóricos. Não são os símbolos, propriamente, mas a estranha maneira que o significado martiriológico foi aplicado a eles que causa tanta surpresa no ícone. A morte de Jesus foi um "sacrifício" que selou uma "aliança" que fundou a comunidade cristã e a comunidade cristã confirmou esta fundação fazendo de sua ceia comum uma recordação daquele sacrifício.

Isto não significa que os cristãos tenham sido demasiadamente solenes com o ícone que criaram. A descrição de Paulo sobre o comportamento dos Coríntios durante as reuniões mostra que eles não o eram. Desta maneira nosso uso do termo culto não deve ser confundido com a altamente refinada experiência ascética associada com o termo adoração . Este foi um desenvolvimento cristão posterior. O que o texto demonstra é que os cristãos primitivos meditaram sobre suas ceias realizadas em comum e verificaram que seria a coisa certa para o povo do reino fazer. Encontraram assim, uma maneira de confirmar isto pela associação da ceia com o seu mito. O mito seria logo lembrado nas duas importantes ocasiões das atividades vespertinas e a ceia seria considerada como "comemoração" do evento da fundação da comunidade. É esta ênfase sobre os dois momentos da ceia e sua simbolização que sugeriu um ritual primitivo. Como esse ritual era realizado, não sabemos. Entretanto, um ponto deve ficar claro: Os textos da ceia em Coríntios (e Marcos) não tinham a intenção de servirem de roteiros para encenação dramática. A noção de sacerdotes tomando o lugar de Jesus na encenação da "última ceia" não ocorreu senão em algum momento do terceiro século.

O HINO DE CRISTO

Hino de Cristo é o nome que os estudiosos modernos têm dado a um gênero de oração poética que aparentemente era bastante popular entre os círculos dos primeiros cristãos. Existem vários exemplos no Novo testamento (Fl. 2:6-11;Cl. 1:15-20;Ef. 2:14-16; 1 Tm. 3:16;1 Pd3:18-22;Hb 1:3; e Jo 1:1-18) e muitos outros na literatura cristã posterior. O mais antigo desses exemplos é o poema em Filipenses 2:6-11, outro fragmento pré-Paulino:

Que sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus.

Mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens.

E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até a morte, até a morte da cruz.

    Pelo que também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome;

Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra.

E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.

O hino contém duas estrofes, cada uma possuindo três linhas dobradas. As estrofes balanceiam uma a outra de forma que na primeira estrofe se descreve três estágios descendentes (ou de humilhação) de uma pessoa "na forma de Deus", enquanto que na segunda estrofe descreve-se três estágios de exaltação (ou ascendentes). O padrão lembra o kerygma da morte e ressurreição, mas o foco aqui, no hino de Cristo, não é mais o martírio. A reflexão sobre a morte crucificado e a ressurreição como um resgate do mártir não é mais o interesse primordial. (Alguns estudiosos até ponderaram sobre isso em virtude da frase "até a morte da cruz" no versículo 8, mas a maioria concorda que foi Paulo quem introduziu esta linha).

Este novo mito com seu padrão descendente/ascendente praticamente anula o kérygma . Ao invés de uma martiriologia, os cristãos primitivos têm agora um mito de destino cósmico em suas mãos. Assim o poema não é realmente sobre Cristo; é um hino sobre Jesus Cristo como Senhor.

Esta é uma mitologia de escala cósmica. No mundo Greco-Romano, Senhor significa soberano. Precisamos apenas saber o nome do Senhor em questão para localizar seu domínio. O Deus de Israel era o Senhor para os Judeus. Outros deuses eram Senhores para seus povos. O poema diz que Jesus Cristo é o nome do Senhor acima de qualquer outro Senhor. Esta é uma estupenda reivindicação, clamá-la para Jesus, o mártir, certamente viraria muitas cabeças. Assim, temos que nos perguntar o que causou a idéia de que Jesus tivesse sido ou era um Deus.

As pistas estão disponíveis nos mitos que estão mesclados neste poema sobre Jesus. Os estudiosos identificaram pelo menos três panos de fundo mitológicos para esse poema. O primeiro é a estória da criança sábia que é resgatada das forças que a aprisionavam. Que Jesus teria sido uma criança sábia não era uma idéia nova, pois já estava presente nas tradições sobre Jesus, como em Q, e era também um ingrediente básico do mito cristão no kérygma . Na tradição de Jesus , a idéia de Jesus como uma criança sábia não era parte da martiriologia. Era baseada na extensão de seus conhecimentos, conhecimentos estes que somente um homem divino poderia possuir.

Uma segunda mitologia em cena era uma caracterização romântica sobre o rei ou governante ideal. De acordo com este romance, desenvolvido durante o período helenista, o "verdadeiro" governante não tiraria vantagem de sua aparência e poder divinos, mas os deixaria de lado de maneira a servir aos interesses de seu povo. Note-se que os romances reais compartilham o padrão humilhação/exaltação com as estórias de sabedoria.

Uma terceira fonte para o hino de Cristo era um padrão de mito comum a quase todas as culturas da época, que estabelecia que os deuses desceriam dos céus, apareceriam às pessoas como mensageiros, e então retornariam aos céus. Na mitologia gnóstica isto era altamente desenvolvido. Aqui, novamente, o padrão descendente/ascendente é o ponto de correspondência com as duas mitologias anteriores.

Existe também a possibilidade que o livro de Isaias possa ser uma quarta fonte para alguma das imagens no hino de Cristo. O servo sofredor descrito em Isaias 52:13 - 53-12 tem a forma de um servo, que foi humilhado, morto e exaltado. E o estilo de "se dobrará todo joelho" e "toda língua jurará" traz um paralelo muito próximo a uma reivindicação feita pelo próprio Deus em Isaias 45 (v. 23).

Ao percebermos que o hino de Cristo é um amálgama desta três (ou quatro) mitologias, facilmente combináveis porque possuem um padrão humilhação/exaltação comum, a meditação refletida que deve ter ocorrido começa a aparecer na superfície. A forma do kérygma evoluiu através das reflexões posteriores sobre a nova perspectiva da natureza do ressuscitado. Pensava-se na ressurreição como uma exaltação para a posição de soberania. O resultado era que agora, a posição de Jesus suplantava todos os reinos imagináveis, dentro de uma perspectiva cósmica. Assim, Jesus podia ser cantado com o Senhor de tudo.

  Entretanto, isto apenas torna claro o processo da criação do mito, no sentido desse ou daquele arranjo de idéias para produzir uma imagem poética orgânica. Não engaja os fatores críticos ou circunstâncias sociais ou interesses de grupos que tivessem motivado ou pleiteado por tal mito. Não responde à pergunta porque as congregações cristãs primitivas desejaram ou necessitaram fundir esses mitos.

Assim, precisamos notar que o culto de Cristo tinha encontrado uma série de questões embaraçosas em função de suas reivindicações extravagantes. Se eles não estavam mais vivendo em acordo com os costumes de suas culturas herdadas o que dizer de sua lealdade aos poderes constituídos prevalecentes? Deveriam os cristãos observar as regras, os governantes e os sistemas de autoridade que esperavam sua obediência? Se não, que autoridade poderiam esses cristãos primitivos reivindicar para viverem como se pertencessem a outro mundo, outra ordem social? O hino de Cristo era sua resposta a estas questões. É o canto de uma congregação que viria a enxergar-se como parte de um "reino" que era superior e independente dos reinos do mundo. O novo mito não era o resultado de uma mera especulação ou de um desejo ardente de possuir uma divindade protetora. Nem era o resultado de experiências religiosas pessoais de algum visionário que poderia "ter visto (o Deus) Jesus" , forma que alguns Cristão modernos interpretam Paulo. Não. O mito imergiu enquanto lutando com um conflito de autoridade. Era a resposta à ardente questão sobre quem tinha o direito de definir procedimentos e controlar suas obediências e fidelidades. Podemos estar seguros disso porque o denominador comum de todos esses mitos não era a divindade das figuras míticas envolvidas, mas sua soberania. O verdadeiro absurdo das reivindicações de Jesus como o Senhor de todos, sinaliza o embaraço que a questão da autoridade se colocou primeiramente para estes cristãos.  

O hino de Cristo revela então que aqueles cristãos se consideravam muito seriamente como uma sociedade alternativa. Eles pensaram sobre as formas que suas congregações diferiam de outras formações sociais e procuraram maneiras de expressar o quanto sua visão de comunidade humana era melhor para as pessoas viverem juntas no mundo. O hino de cristo era a resposta a este pensamento crítico. Assim, também o hino de Cristo era o resultado ao protesto dos cristãos terem apenas um rei, Jesus.

Que reivindicação audaciosa! Comparado com outros reinos do mundo ou mesmo com outros grupos com raízes em antigas tradições étnicas, nacionais ou religiosas estes cristãos não eram nada além do que células de pessoas desgostosas experimentando uma nova noção social. Não tinham status, poder ou tradição cultural próprias e clamavam um Senhor mais exaltado que o imperador romano e tão exaltado como o Deus de Israel. Tão absurdas e pretensiosas reivindicações traziam perigo intrínseco para as boas relações com seus vizinhos. E era exatamente esta audácia que recomendava o reino de Deus aos primitivos cristãos como a melhor maneira de expressar sua identidade e transmitir o que é que eles representavam.

  Considerar-se membro de tal reino pode ter sido uma opção muito atrativa para aliciar pessoas e a transformação do movimento de Jesus em um culto de Cristo, não ainda de adoração mas no qual Jesus Cristo era aclamado como o senhor do universo, marca uma importante conjuntura do início do cristianismo.

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