Só os Fusquinhas Votarão no Itamar - Teologia pela Internet



Só os Fusquinhas Votarão no Itamar

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Só os Fusquinhas Votarão no Itamar

José Luiz Dutra de Toledo

Edição





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©José Luiz Dutra de Toledo

joluduto@.br

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Só os Fusquinhas Votarão no Itamar

José Luiz Dutra de Toledo

Í N D I C E

O Autor

Alguns setores das esquerdas têm uma visão infantil do poder

As crianças de hoje entendem de computadores melhor que os adultos, mas confundem escorpião com barata e podem morrer numa dessas confusões!...

Ideologia e racismo na história das devoções católicas brasileiras

Itamar Franco quer dar uma de rei absolutista, no caso Luiz XVI, e proclama: “L’État c’est moi!”

Le peuple c'est moi

Livres Impressões e abaixo-assinado contra espíritas de porco

Manifesto contra a sórdida demagogia

Minha alma não é pequena, mas será que vale a pena?

Miss Brasil 2001 adverte: a fome ronda os lares da classe média

Mundividências de um habitante de uma caverna eletrônica no fim do segundo milênio

Ninguém diz tudo o que pensa ou sente e se o disséssemos o mundo teria um enfarte fulminante

O enjôo paulista

O leite das feras

O moderno realismo político de Fernando Henrique Cardoso nos sugere um adeus às ilusões

O que nos faz querer viver ou continuar vivendo?

O último encontro de escritores

Os cachorros não são racistas

Os inesquecíveis perfumes de uma das minhas bisavós

Ossos, músculos, vermes e flores...

Out-doors dos meus caminhos

Ouvindo Elvis Presley num ônibus com ar condicionado, no fim de Novembro de 1999

Porque evitamos os porquês?

Precisamos de uma sociedade que seja melhor que as drogas!...

Projeto mais sapos para o bem do Brasil

Proust e a doença – 1914-1921

Quem tem medo de Itamar Franco?

Salvador Felipe Jacinto Dali i Domenech, um dos mais impressionantes e patéticos cronistas do Inconsciente no cotidiano derretimento do tempo no espaço atemporal

Sobre a mesmice dos dias

Sons de tambores excitavam anões num cortejo de Folia de Reis

Textos Mineiros

Tomo leite com açúcar queimado com o Czar Nicolau II e esfrego os meus pés nos dele

Traduzir não é trair, é propiciar diálogos, é reescrever o irremediável abismo profundo a separar as línguas e gentes do mundo, propôs Paul Celan

Um cachorro faminto bate à minha porta

Um cavalo amarrado às margens de uma avenida olha o matagal ressecado e queimado e montes de lixo e não vê água para beber

Um macho grita para o outro: — Desmaia, anda, desmaia! Desmaia logo, cara!...

Uma Babel de olhares suplicantes e de bocas desejantes e de esqueletos de peixes eleva-se ao cyber-espaço: olho por osso e dente

Uma história com começo, meio e fim, certinha, bonitinha, seqüenciada, escatológica, teleológica, linear e moralista como um conto de fada é ideológica e manipuladora

Uma procissão apocalíptica

Uma tarde feliz

Vários contos num só conto ou leia um e pense em vários outros

Vertical – Horizontal

Viva a baronesa das frutas!...

Yoga para nervosos

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O Autor

 

     José Luiz Dutra de Toledo, historiador, professor, cronista, calabora desde 1969 com vários suplementos culturais mineiros, paulistas, cearenses, sergipanos, fluminenses e do exterior.

     Mestre em História pela UNESP-Franca-SP (1990), Prêmio Clio (1992) da Academia Paulistana da História. Professor da rede municipal de ensino de Ribeirão Preto-SP, apreciador da música contemporânea de Zeca Baleiro, Chico Science, Banda Nação Zumbí, Tom Zé e Milton Nascimento.

     Capricorniano, nasceu em 22 de Dezembro de 1951, em Tabuleiro-Minas Gerais, filho de Joaquim Ribeiro de Toledo Netto e de Sílvia Dutra Toledo; estudou no Grupo escolar Menelick de Carvalho (escola estadual de Tabuleiro-MG), no Ginásio Comercial João XXIII (escola comunitária de Tabuleiro-MG), na Escola Agrícola Federal de Rio Pomba-MG, no Colégio Estadual Sebastião Patrus de Souza de Juiz de Fora-MG; na Universidade Federal de Juiz de Fora e na Universidade Estadual Paulista – campus de Franca-SP (tempo de escolaridade: 23 anos interruptos, sempre em escolas públicas, nunca estudou em escolas particulares); trabalhou em Juiz de Fora-MG, Chácara-MG, Porto Alegre-RS, Gravataí-RS, Sobradinho – Joazeiro-BA (CHESF), São Paulo-SP, Altinópolis-SP, Franca-SP e em Ribeirão Preto-SP; presidiu o Diretório Acadêmico Tristão de Atayde do Instituto de Ciências Humanas e de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora-MG e na mesma época (1972/1975) venceu concurso para a monitoria da disciplina História das Idéias Políticas I no Departamento de História do mesmo Instituto acima citado.

     Já viveu em Rio Pomba-MG, Juiz de Fora-MG, Porto Alegre-RS, São Paulo-SP, Sobradinho-BA, Altinópolis-SP, Ribeirão Preto-SP e em Piumhí-MG em variados e diversos endereços nestas mesmas cidades, repetindo as famosas sinas de Fernando Pessoa e de Dostoievski.

     Mora em Ribeirão Preto e região desde 1984. Acumula mais de 1500 textos publicados mas até hoje não tinha conseguido publicar sequer um dos seus 23 livros inéditos mas encadernados e guardados numa vulnerável arca de pó de madeira colada (compensado).

     Publicou entre 1969 e 1999 mais de dois mil textos em jornais, fanzines, suplementos culturais e revistas literárias de pelo menos doze estados brasileiros e Distrito Federal; professor em escolas públicas e particulares entre 1973 e 1995; organiza desde Abril de 1995 a Hemeroteca da Secretaria Municipal da Educação de Ribeirão Preto – Ribeirão Preto/Estado de São Paulo/Brasil.

     Seus dois volumes de coletâneas de textos publicados em jornais brasileiros nos 7 primeiros meses de 1998 foram incluídos no acervo da Biblioteca Nacional do Uruguay em 18 de Janeiro de 1999.

     Aprecia muito moranga cozida com rodelas de cebolas e ovos cozidos, abóbora d’água com quiabo, carne de porco, arroz, feijão e angú..."não posso comer doces mas adoro pudins dietéticos de coco, figos secos da Turquia, bolos dietéticos, gelatinas, etc.. e sou narcisista, por que não haveria de sê-lo??..."

     Ama os animais e as plantas, não é esotérico, nem direitista, nem centrista, nem esquerdista, nem extremista, nem anarquista, irrotulável, mas apoiou Fernando Henrique Cardoso para o mandato presidencial (1999/2002).

     Atualmente tenta implantar o seu projeto de um Centro de Expressões e Estudos sobre Imaginários, Mentalidades e Tendências Contemporâneas, um desdobramento das projeções de Ivan Illitch, educador mexicano que no CIDOC – Cuernavaca anteviu uma sociedade sem escola, na qual o conhecimento seria cultivado em pequenos grupos de interesses específicos. Mais ou menos como hoje ocorre em torno de sites e home-pages da internet. No caso, busca-se intercâmbios e formas de divulgação e registros de reflexões, estudos e manifestações inspiradas ou suscitadas por questões atinentes aos nossos imaginários, mentalidades e tendências contemporâneas. O Centro está, provisoriamente, instalado à rua Vinte e Um de Abril, número 77 – Vila Tibério – Ribeirão Preto – Estado de São Paulo – Brasil 14050460 e-mail: dutol@.br, para o qual o leitor está convidado a contribuir.

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Alguns setores das esquerdas têm uma visão infantil do poder

     No Capitalismo, sonhar que todo o mundo seja igualmente filho do Papai Noel, como se os presentes que carrega em seu saco para distribuição “equânime e justa” não tenham custado nada, como se do céu houvessem caído, como num passe de mágica irrealizável em qualquer sistema sócio-econômico, numa mágica realização eventual da mítica igualdade a satisfazer a crescente massa de despossuídos panfletários-improdutivos,...eis aquí uma das quimeras pré-natalinas das mais babacas.

     Outro dia, não, outra noite, no programa de entrevistas Roda Viva da TV Cultura de São Paulo, deixando escapar esta sua imagem infantil sobre o que seja poder (justo e messiânico), Marcelo Rubens Paiva, autor de Feliz Ano Velho soltou uma destas: no caso da clínica de idosos Santa Genoveva, onde muitos anciãos morriam por descaso e inanição, aquele jovem escritor sonhava com o todo poderoso presidente Fernando Henrique Cardoso mandando o Exército Nacional isolar a área daquela casa de repouso e alí descendo de helicóptero com voz de prisão para todos os responsáveis pelo que ocorria naquela espécie atual de campo de concentração.

     Eu compreendo e louvo a indignação de Marcelo Rubens Paiva, mas um presidente da República não é nenhum super-herói de revista em quadrinhos, F.H.C. não é Bat-man, nem Antonio Conselheiro, nem o rei Dom Sebastião, nem o Zôrro. Além disto, tal concepção de governo é intervencionista, não se coaduna com o tão cantado mas pouco respeitado “Estado de Direito” (tão desrespeitado pelos extremistas de Direita e de Esquerda), em suma, uma idéia autoritária do que seja exercer o poder ou como se procede um governo que pretenda justiça social. Marcelo transforma os donos da Clínica Santa Genoveva em bodes expiatórios de uma sociedade hipócrita que há muito tempo vem relegando ao abandono os raros idosos sobreviventes em nosso país, descartando-os como objetos exauridos, bagaços secos e superados numa sociedade de consumo voraz e suicida, ávida por novas tecnologias para suas cavernas eletrônicas, por novas formas de usar e descartar os outros, seja em salas de bate-papo do “universo-on-line”, seja até em sua própria família, no seu partido, no seu bairro ou cidade ou na sua igreja.

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As crianças de hoje entendem de computadores melhor que os adultos, mas confundem escorpião com barata e podem morrer numa dessas confusões!...

     Isidore Ducasse, assim se chamava o recém-nascido filho do cônsul francês na Montevideo de 1846... Isidore, que mais tarde se chamaria conde de Lautréamont, o outro de Montevideo em tradução literal do codinome em francês. Nosso conde de Lautréamont seria uma mistura de marquês de Sade (versão franco-uruguaia), um pré-surrealista, um neo-barroco, um romântico heterodoxo, um baudelaireano com raríssimas alusões a Willian Blake e sequer uma a respeito do nevoeiro misterioso sobre a sua biografia. Morreu com 24 anos, em 1870.. aliás, morreu com a mesma idade na qual morrera sua mãe.. uma mulher que fora empregada ou serviçal de seu pai e que morreria um ano e poucos meses depois do seu nascimento... morte materna também envolta em misteriosa névoa.. assim como quem ou o que teria motivado a sua ida aos 14 anos de idade para estudar em liceu provinciano francês. Além de cartas esparsas e alguns poemas, a parte mais importante e inquietante da sua obra está em seus seis Cantos de Maldoror, título referente à tesão de mijo conhecida na França como mal da aurora? Outra inquietante dúvida lautréamontiana! Enquanto passeava pelas soturnas ruas de la Ciudad Vieja de Montevideo fiquei a imaginar em qual daqueles solares teria vivido os seus 14 anos uruguaios o cruel inimigo do Criador e arquiteto requintado de uma das versões poéticas mais horripilantes do Mal. Cheguei a pensar que fôra no prédio da atual Chancelaria de la República Oriental del Uruguay... mas como está na avenida 18 de Julio, um tanto longe de la Ciudad Vieja, julguei disparatada tal hipótese. Outra coisa intrigante: quando fui à Biblioteca Nacional del Uruguay oferecer uma das minhas vinte e duas coletâneas de textos publicados, tentei adquirir alguma publicação ou ensaio sobre este poeta (classificado no fichário desta monumental instituição) entre os poetas franco- uruguaios mas me disseram que nada tinham a me oferecer sobre Lautréamont. Quando papai me exportou para um internato localizado a doze quilômetros da cidadezinha em que nasci, eu tinha a mesma idade em que Isidore Ducasse seguira para estudar na França. Será que foi por vontade própria? Ou porque o pai o quisesse afrancesar? Ou por já estar suficientemente afrancesado pelo pai desejou ardentemente respirar ares franceses mais devassos e cosmopolitas? Mas com apenas 14 anos já teria tais índoles demoníacas? Tudo depende do que vislumbrara nos porões da casa montevideana do pai e cônsul da pátria de Sade!... Do Uruguai Lautréamont só descreveria paisagens litorâneas e narraria evoluções de guerras, naufrágios fantasmagóricos em suas traiçoeiras costas, ventos praianos, passeios a cavalo sob capas esvoaçantes aos ventos praieiros da Banda Oriental... e não muito mais que isso... referências aos pais, claro.. mas sem localizá-las no Uruguay!.. Muitos preferem lê-lo lá no seu país natal com lentes esotéricas, mas alguns trechos de erudição hermética e enciclopédica dos Cantos de Maldoror insinuam timidamente algumas exegeses nestas direções perceptíveis só aos iniciados... e olha que a França foi uma das mais férteis pátrias da Maçonaria!.. Mas o que teria a ver Sade e maçonaria? Nada, a meu ver. Lautréamont é muito mais uma síntese entre Sade, Rimbaud, Baudelaire, W. Blake, Paul Vérlaine e anunciador profético da verve maldita da cultura francesa do século XX (André Bréton, Blaise Cendrars, Antonin Artaud, Georges Bataille, Jean Cocteau, Jean Genet e talvez André Gide). Sade, homem barroco, sugeriu muito do neo-barroquismo latino-americano de Lautréamont, antepassado não muito longínquo de Severo Sarduy.... erva dentre as muitas outras ervas do caldeirão fervente e atormentante da erudição labiríntica e atordoante de José Lézama Lima, ensaísta cubano autor do romance Paradiso e mestre espiritual do citado Severo Sarduy. Troncos e esteios fundamentais da árvore genealógica do contemporâneo neobarroquismo neobarroso platino e latino-americano de Ruben Dario, Julio Herrera y Reissig, Octávio Paz, Alejo Carpentier, Miguel Angel Asturias, Nestor Perlonguer, João do Rio, Adolfo Caminha, Antonio Carlos Villaça, João Guimarães Rosa, Glauco Mattoso, Caetano Veloso, Glauber Rocha, Di Cavalcante, Milton Nascimento, Jorge Luis Borges, João de Minas, Cruz e Sousa, Alphonsus Guimaraens, Euclides da Cunha, Heitor Villa Lobos, Astor Piazolla, Monteiro Lobato, Assis Valente, Joãozinho Trinta, Luiz Mott, Cartola, Pedro Nava e outros diabos retorcidos dos cerrados sertanejos do Brasil e de outras plagas hispano-americanas. Um contemporâneo deslocado ou não bem sintonizado com o cronológico. Uma verve mística e/ou satânica do olhar latino-americano sobre o outro, o que nos é diferente, estranho, o que ousa... “Só uma palavra me devora: aquela que o meu coração não diz.” (Sueli Costa). Eu anuncio a má nova de Maldoror: numa era de escassez e virtualidades eleva-se o clamor por justiça. O ceticismo pascaliano diante de tão polissêmico clamor propicia a Maldoror mais motivos para suas divertidas incursões transgressoras.

     Em seletos fragmentos pinçados dos seis Cantos de Maldoror, Lautréamont par lui même: “Queria, eu que nada novo lhe ensino, que não sentisse uma eterna vergonha ante minhas amargas verdades; porém, a realização deste desejo não seria conforme as leis da natureza... Os lobos e os bandoleiros não se devoram entre si... a humanidade não tem direito a queixar-se... que me importa uma legião de tormentas?!... Meus pais me abandonaram.. já não sei o que fazer. O carro dos seres cadavéricos, estranhos e mudos, desapareceu no horizonte e só se vê a rua silenciosa... Minha poesia consistirá, só, em atacar, por todos os meios, ao homem, esta besta selvagem, e ao Criador, que não devia ter gerado semelhante criatura. Recebi a vida como uma ferida e não permiti que o suicídio curasse a cicatriz. Descobriram em minha fronte uma gota de esperma, uma gota de sangue. A primeira havia brotado dos espasmos de uma cortesã!... A segunda havia saltado das veias do mártir!... Odiosos estigmas!... Pois bem, escuta... a confissão de um homem que lembra ter vivido meio século, sob a aparência de um tubarão, nas correntes submarinas que varrem as costas da África... Não arrojarei a teus pés a máscara da virtude... teu respeitoso discípulo na perversidade, porém, não como um temível rival.. já que não te disputo a palma do mal, não creio que outro o faça: antes deveria igualar-se a mim, o que não é coisa fácil... a montanha já não está alegre... permanece solitária como um ancião... as casas existem, mas não se poderia dizer o mesmo sobre aqueles que nelas já não existem. As emanações dos cadáveres chegam já até mim. Quisera beijar seus pés, porém meus braços se fecham só sobre o vapor transparente. O fantasma se esquiva de mim: me ajuda a buscar seu próprio corpo. Finjo ignorar que meu olhar pode dar a morte, inclusive aos planetas que giram pelo espaço.. me encontro situado diante do desconhecimento de minha própria imagem... contra o ventre do granito... a pálida via láctea dos eternos pesares. Noite após noite, obrigo aos meus lívidos olhos a olharem as estrelas através dos cristais da minha janela. A eternidade muge como um mar distante. Quando a noite escurece o curso das horas, quem não combateu contra a influência do sonho na barriga empapada de glacial suor? Era uma noite de inverno. Enquanto a brisa soprava entre os abetos, o Criador abriu sua porta, em meio às trevas, e fez sair um pederasta. (...) O ataúde conhece o caminho e avança após a túnica esvoaçante do consolador. Os parentes e amigos do defunto fechavam o préstito. Este avança com majestade, como um navio que não teme o afundamento. ... Os grilos e os sapos seguem a poucos passos a festa mortuária; tão pouco eles ignoram que suas modestas presenças nos funerais de alguém seja algum dia notada. (...) Que me deixe baixar pelo rio do meu destino, através de uma crescente série de gloriosos crimes... Assim se realizará a profecia do galo, quando vislumbrou o futuro no fundo do candelabro. Peça ao céu que o caranguejo ermitão alcance a tempo a caverna dos peregrinos e lhes comunique – em poucas palavras – o relato do trapeiro de Clignancourt... O espelho da suprema convulsão da agonia... exagerações do medo materno... cálculos do meu espírito.. O homem de lábios de bronze se retira. Qual era seu objetivo? Ganhar um amigo à toda prova. Um descarnado esqueleto permanece suspenso na superfície esférica e convexa da cúpula do Panthéon: quando o vento o balança, segundo se diz, os estudantes do bairro latino, temendo uma semelhante sorte, elevam aos céus uma curta prece. São insignificantes rumores que, ninguém está obrigado a acreditar, e aptos só para assustar crianças.

     (...) Escuta bem o que te digo: dirige para trás teus passos e não para frente, como o olhar de um filho que evita, respeitosamente, a contemplação da augusta face materna. A brisa que nos golpeava o rosto, penetrava sob nossos mantos e fazia com que os cabelos de nossas cabeças deitassem revoltamente para trás. A gaivota, com os seus gritos e os movimentos das suas asas, se esforçava inutilmente em nos advertir sobre a possível proximidade da tormenta.”

     Antes dos editores dos Cantos de Maldoror começarem a vendê-los, os primeiros exemplares da obra-prima de Lautréamont foram recolhidos, impedidos de caírem sob as vistas dos ousados leitores da mais conceituada cultura humanista ocidental depois da hegemonia greco-romana e da Idade Média cristã e ainda baluarte pós-iluminista da liberdade de expressão. Se não fosse a ousadia de León Bloy, intelectual católico heterodoxo, o primeiro a apresentar e divulgar a obra de Lautréamont, talvez poucos teriam conhecido estes cantos malditos, já várias vezes publicados na França, na Espanha, no Brasil, na Argentina e em outros países hispano-americanos.

     Talvez Maldoror tenha inspirado a cena inicial do filme Un chién andalouz de Luiz Buñuel e Salvador Dali ou tenha guiado o Ladrão de bicicletas de Rosselini, ou seja uma versão oitocentista do barroquismo sadiano mas uma coisa precisa ser gritada: este poeta franco-uruguaio precisa ser mais conhecido e estudado!...

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Ideologia e racismo na história das devoções católicas brasileiras

(........)

“Espírito ímpio

por que não pensas na morte?

Saiba que ela fere

na hora marcada.”

Zanoto – Varginha-MG

     Nossa Senhora do Rosário era uma devoção tradicional e amplamente disseminada entre os contingentes negros desde a colonização portuguesa do Brasil. Claro, os brancos também veneravam e reverenciavam a Mãe do Rosário, devoção esta difundida pelos frades dominicanos, arautos das devassas inquisitoriais. Nossa Senhora Aparecida, embora de tez negra, é a padroeira do branco Brasil católico.

     Em Ribeirão Preto-SP, a igreja do Rosário, na Vila Tibério, está localizada numa praça que, em qualquer cidade do interior do Brasil seria chamada de praça do Rosário, ali ganhou o nome de Coração de Maria.

     Será que esta escolha de outro nome expressa conteúdos racistas na devoção católica da população deste bairro ribeirãopretano majoritariamente descendente de italianos?

     Em Piumhi-MG, a igreja do Rosário dos Pretos, tem em seu altar-mor, no lugar de Nossa Senhora do Rosário, uma imagem da branquíssima Nossa Senhora de Fátima, a virgem-musa dos católicos conservadores brasileiros que previu o fim do comunismo no fim do século e que provavelmente ali ganhou afresco no teto, vitral e altar-mor em homenagem ao padre português Abel, vigário piumhiense nos anos 50 com índole nitidamente conservadora.

     Antigamente, no dia 12 de Outubro era dia de congada e de Nossa Senhora do Rosário dos pretos e dos brancos e hoje virou dia da negra (talvez só na pele) Nossa Senhora Aparecida, antiga devoção militar medieval, hoje padroeira do Brasil branco e católico.

     O espaço é infinito. Nós somos finitos. Eu sou mortal. O tempo é infinito. Nós somos finitos. Eu sou mortal. Na interseção de espaços e tempos infinitos, continuamos finitos mortais como o sapo surpreendido há pouco no meu (?) jardim. Continuamos infinitamente pequenos diante da imensidão crescente do universo e tão desprotegidos quanto uma macia e mansa cadela cor de caramelo que caminha com dificuldade (por ter uma de suas patas traseiras esmagadas e da qual pende uma enorme e surrealista unhona tipo gancho) pela estação Rodoviária de Passos-MG à cata de restos de salgados ao chão atirados pelos brutalizados passageiros que por ali passam. Sua meiguice é a mais convincente prova do martírio santificador dos animais deste fim de século. Os lábios ulcerados da vagina desta cachorra fizeram doer meu coração.

     Em Piumhi-MG, há quase 50 anos, um adolescente carroceiro esteve envolvido no rapto da mulher do juiz e, por isso, foi sentenciado e preso. Uma reedição sertaneja do rapto de Helena de Tróia e do seqüestro das sabinas?

     Quando estive, em 1990, em Diamantina-MG, um ex-motorista de J K me levou, em seu táxi, a várias cachorras que despencam em torno desta lendária cidade histórica mineira. Agora, no dia 15 de Outubro de 1999, chego a Piumhi-MG e sou conduzido até a nossa casa na Eduardo Heringer pelo motorista de táxi João Goulart. Com tantos ex-presidentes em meu dia-a-dia pressinto estar ficando famoso ou à beira de ir morar no Alvorada.

     Por pouco, os habitantes do futuro canil do Quinto Pelotão de Polícia Militar de Piumhi-MG não se divertirão com os ossos de uma criança, cuja tumba veio à luz durante as escavações para o alicerce desta dependência para os aliados dos homens da lei. Tal sepultura era uma das muitas que se aglomeravam no Cemitério Eclesiástico de Piumhi, criado pelos padres Balbônios em 1828 e desativado pelo poder público municipal em 1932, quando foi aberto a toda a comunidade piumhiense o antigo cemitério dos Protestantes, que, assim, passava a ser o atual Cemitério Municipal da Saudade, no bairro das Pindaíbas, em Piumhi-MG.

     Tal sepultura infantil ali localizada, era uma tosca construção de tijolos com dimensões aproximadas de 80 cm. X 40 cm., guardava alguns restos do caixão e restos de um anjinho. Alças metálicas cobertas de ferrugem, pregos, pequenos pedaços de ossos, vestígios de ramos de cipreste e até um pouco da mortalha que cobriu o corpo daquela criança morta era tudo que restava daquela anônima e curta história.

     Recentemente, à pág. 14 Mundo – da Folha de São Paulo, em sua edição de 8 de Outubro de 1999, informou-se que: um cemitério de crianças, que pode ser do século IX, foi encontrado em um povoado a cerca de 20 km. De Barcelona, capital da Catalunha. A escavação foi feita durante a restauração de uma igreja. Peças de cerâmica dos séculos X ao XIV e ossos de padres dos séculos XVII e XVIII também foram encontrados.

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Itamar Franco quer dar uma de rei absolutista, no caso Luiz XVI, e proclama: “L’État c’est moi!”

     Saudades da Escola de Samba Turunas do Riachuelo de Juiz de Fora, na qual desfilei no Carnaval de 1973!... Escola de samba muito apoiada pelos amigos do então prefeito Itamar Franco!...

     Os mineiros de Piumhí estão apavorados com a possibilidade de uma guerra civil entre Minas Gerais (cujo governador acusa o governo federal de perseguir e isolar o seu estado) unidas ao Rio Grande do Sul (governada, segundo vários internautas, por um Olívio que tem os quatro pés no chão e que gosta muito de um martelo) contra o governo federal encabeçado pelo não-populista Fernando Henrique Cardoso. Para começo de papo, em 1961 o Rio Grande do Sul brizolista ameaçou enfrentar o resto do país (sozinho) para garantir a posse do gaúcho Jango, derrubado 3 anos depois pelos militares e sem qualquer reação militar riograndense do sul. Em recentes pesquisas de opinião pública feitas nos estados destes dois governos rebeldes, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, revelou-se uma opinião pública amplamente favorável à negociação com o governo federal e contrária à renegociação das dívidas dos seus estados. A maioria já sacou que vai ser o próprio povo quem vai pagar os calotes de seus governos locais. Ou, já percebeu que a negociação estabelecida anteriormente foi a melhor para as economias dos seus estados. Afinal, Mário Covas já deixou isto bem claro.

     Policiais e professores mineiros estão indignados com os atrasos nos pagamentos de seus salários. Os médicos da rede pública estadual de saúde também. O calote de Itamar agravou ainda mais este problema dos funcionários da máquina de serviços públicos de Minas Gerais. Enquanto isto o sr. Itamar Augusto Cautiero Franco insiste em confundir a sua richa pessoal com o presidente da República com o que ele chama de ‘isolamento do povo mineiro’. Aliás, Itamar não é o povo mineiro, desmentindo o seu estilo absolutista, o estado de Minas Gerais não confunde barroco com absolutismo, nem se confunde com a pessoa de seu governador. Minas é um dos 27 estados da República Federativa do Brasil (que há mais de cem anos se ressente da falta de clareza e de justiça em seu precário arranjo federativo) e o sr. Itamar é apenas um dos passageiros governadores de um estado deste conjunto caótico de estados brasileiros.

     A vitória da Imperatriz Leopoldinense assinala a entronização de um novo Imperador carioca: Luizinho Drummond. O calote oportunista de Itamar e suas reuniões, chamadas pelo governador do Mato Grosso do Sul de clube do Bolinha, não passou de um fracassado gesto demagógico no qual tentou faturar politicamente com a fragilização do presidente F H Cardoso, desorientado com a crise financeira, econômica, social, política e cultural brasileira. O deputado do PPB paraense, Gerson Peres só neste caso tem razão:” Não existe salvação sem sacrifício.” (citação bíblica). Não sou eu quem diz, é Otávio Frias Filho, diretor editorial da Folha de São Paulo quem escreve o seguinte: “Itamar Franco é um demagogo irresponsável que precipitou, com a moratória de Minas, a derrocada cambial. Não, Itamar é um patriota que teve a coragem de declarar que o rei – o Real – está nu. Ele conseguiu dividir o país em dois campos, colocando-se temporariamente no centro da discórdia e dos refletores... Na afobação de folclorizá-lo, o jornal The New York Times publicou que ele usa peruca.” (página 2 do primeiro caderno da Folha de São Paulo em sua edição de 11 de Fevereiro de 1999). De perucas? Minas não é Versailles!..

     O mesmo jornalista, e empresário poderoso na mídia paulistana, analisa a posição política de Itamar: “É um nacionalismo populista mais voltado a garantir direitos do que as condições necessárias para sustentá-los.. No começo de 89, quando a candidatura Collor ainda tinha “mais que uma esperança, menos que uma chance”, Itamar, que jogava na Segunda divisão, topou ser vice. Demorou anos até se dar conta de que a ruptura apregoada por Collor nos palanques era oposta à sua, era a que nos levaria ao choque da internacionalização.” Em outras palavras chamou Itamar de sonso ou bobo que demora a sentir que a ficha caiu. A bem da verdade, me lembro que Itamar e Collor brigaram várias vezes durante a campanha presidencial de 1989 e durante estas desavenças Itamar ameaçou renunciar à candidatura de Vice na chapa de Collor. Agora, as celeumas e querelas de Itamar contra FHC tem levado alguns a verem algumas semelhanças entre as conjunturas políticas de 1964 (golpe contra Jango) e a de hoje (quando já se propôs nova eleição presidencial, ouviram-se rumores sobre golpe contra FHC e até aventou-se a possibilidade do Congresso abrir processo de impeachment contra o presidente reeleito). Mas vários historiadores entraram no debate e mostraram que tais semelhanças são só aparentes. Tanto em 1964 como em 1999, governadores articulavam frentes políticas contra o governo federal. Só isto.

     E continuo citando o jornalista Otávio Frias: “Mais incrível ainda, seu governo estabeleceu uma continuidade entre as administrações Collor e FHC, que ele tão pouco atinou que não faria outra coisa senão aprofundar a internacionalização. Itamar atravessou todos esses anos como o Mr. Magoo dos desenhos, impermeável ao sentido das confusões que ocorrem a seu lado.” E acrescento: e embaixador do governo de FHC em Portugal e, depois, na OE.A – Washington D. C., às custas do povo brasileiro.

     Comparado ao personagem do filme Forest Gump, Itamar, segundo Otávio Frias Filho, é “um político banal, hesitante e intempestivo que, no entanto, pensa, fala e sente como o povo, quando o governo parece perder a cabeça e o povo, a paciência”. Mas as pesquisas de opinião pública revelam que uma ampla e folgada maioria dos gaúchos e dos mineiros quer os seus governadores negociando com FHC e abandonando suas infelizes idéias de moratórias e calotes. Ideologicamente e elitistamente, Itamar e Olívio recusam privatizações. O radicalismo intempestivo destes dois governadores está sendo criticado por vários outros governadores de oposição. Itamar, às vésperas do Carnaval, tresloucadamente, convocou o Alto Comando da Polícia Militar de Minas Gerais tendo em vista “atos de hostilidade crescente contra o povo mineiro”. Outros dizem que Itamar está com medo não de uma revolta popular, mas sim de uma nova rebelião de policiais mineiros. Tudo isto reforçou o medo dos piumhienses de uma guerra de Minas mais Rio Grande do Sul contra os demais 25 estados da Federação Brasileira. Se tal ocorresse, nossa história republicana estaria até hoje como há mais de cem anos atrás, ou seja, estaríamos vivendo os seculares conflitos armados entre oligarcas provincianos e o poder central. A convocação por Itamar do Alto Comando da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais ocorreu, ironicamente, às vésperas do Carnaval de 1999. Se tal guerra arrebentasse seria a guerra das serpentinas contra os confetes.

     Na página 1-4 Brasil da edição de 12 de Fevereiro de 1999 da Folha de São Paulo noticia-se que uma tradicional loja de fantasias de Belo Horizonte vendia com muita saída máscaras caricaturais do governador Itamar. Máscaras com topete e tudo. Era a mais vendida máscara carnavalesca na capital mineira. Enquanto isto o sr. Itamar evitava aparecer em público e ainda nos informava que, mais uma vez, Itamar estava hesitante: ainda não sabia se iria passar o Carnaval em Juiz de Fora, onde um bloco escolheu a sua figura como tema para o seu desfile neste ano. Só espero que Itamar não escandalize os mineiros com a sua proximidade política em relação às sem calcinhas.

     Mas a imprensa paulistana insiste em carnavalizar a figura política do novo governador mineiro. Ainda no embalo de Otávio Frias Filho, Eliane Cantanhede, na segunda página da Folha de São Paulo em sua edição de 12 de Fevereiro de 1999, assevera que:” Em vez de convocar a PM, o governador Itamar Franco deveria fazer como o presidente Itamar Franco e convocar Lilian Ramos. Foi justamente no Carnaval que os jornais do mundo todo publicaram as fotos do então presidente da República com a modelo sem calcinha. E parece que Itamar gosta mesmo de um Carnaval. Sua gestão no governo mineiro é um verdadeiro batuque contra o governo federal e o ex-amigo e o ex- primeiro-ministro Fernando Henrique Cardoso. Decretou a moratória e aguçou o apetite dos urubús pelo Real. Depois recusou-se a falar com FHC. Virou o governador do “não”. Agora essa de convocar a milicada da PM para se trancar com ele no Palácio da Liberdade na véspera do Carnaval é o samba do crioulo doido. No caso de Itamar tudo é tão possível quanto impossível. Mas, no fundo, no fundo, o que ele fez foi só aumentar a confusão.”

     Além de aumentar a confusão, Itamar apareceu mais que o presidente Fernando Henrique. Em minha viagem ao Uruguai na segunda quinzena de Janeiro de 1999, vi nas bancas de jornais de Montevideo que só dava Itamar nas primeiras páginas do jornal El País e de outros grandes jornais uruguaios. Parecia até que o presidente brasileiro era Itamar Franco!.. Neste sentido, Itamar apareceu demais, se expõe ao risco de se configurar como uma personalidade ridícula e estapafúrdia. Nada conforme o discreto charme da política mineira clássica de Tancredo, J. K., Benedito Valadares, José Maria Alkimim, Afonso Arinos de Mello franco, Pedro Aleixo, Milton Campos, Aliomar Baleeiro e Bias Fortes. Deus salve Minas de seus governantes, meu deus!.. Sem Itamar viria o pior: Newton Cardoso! Valha-nos Deus! Faça o Itamar criar juízo enquanto é tempo!...

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Le peuple c'est moi

(...) ”O futuro de uma nação não é o que se teme. Mas, sim, o que ousarmos.

Carlos Lacerda – político e jornalista que viveu entre 1914 e 1977

     “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma de lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.’ (Artigo quinto do Estatuto da Criança e do Adolescente)

     Ou seja: a utopia hegemônica no citado Estatuto passa por cima de uma constatação sociológica e política na qual a sociedade que negligencia, violenta, oprime e explora adultos, fatalmente procede ou procederá da mesma forma com os adolescentes e as crianças. Como e porque com estes segmentos sócio-etários a sociedade se portaria de outra maneira? Por uma questão de condescendência voluntária e generosa? Lembremo-nos da orientação eclesiástica que justificava a escravização dos negros e, ao mesmo tempo, condenava a escravização dos índios e, no entanto, ambos – negros e índios- acabaram sendo escravizados, mesmo que por distintas formas.

     Quando o professorado (segmento social da lumpen-intelectualidade da cultura brasileira) questiona a angelical ideologia dos formuladores do Estatuto brasileiro da Criança e do Adolescente, quase sempre, tal manifestação é vista como conservadora e reacionária .Mas o hiato entre esta classificação, a realidade e a utopia está se aprofundando inquietantemente.

     A reivindicação de creches pode, mais certamente, apenas estar possibilitando o trabalho extra-doméstico das mães. A dicotomia entre os cuidados prestados às crianças nas creches e a educação pré-escolar aguça ainda mais o milenar dualismo entre corpo e alma . Diferentes tratamentos para quem é indivisível .

     Os adultos continuam definindo o que sejam ou o que não sejam as necessidades infantís . Nenhum texto legal prevê recursos que encaminhem garantias de tratamento ou atendimento e respeito aos direitos, necessidades e realização do paradisíaco bem estar infantil . Marcel Proust e Jorge Luis Borges nos sugeriram que o único paraíso detectável é um paraíso perdido.

     A dúvida sobre os reais propósitos dos educadores de crianças mais a fragilidade política deste setor educacional fazem com que os governos não assegurem condições favoráveis a uma política do bem-estar da criança pequena. Assim, muitas das nossas crianças permanecerão encarceradas em creches ou trancafiadas em seus barracos por cadeados fechados por suas próprias mães, resolutas em suas determinações de não facilitar o aproveitamento de seus filhos por traficantes e assaltantes .

     Antes de corroborarmos a fala daqueles que apregoam o ‘antes isso do que nada’ (ótica dos que também usam politicamente as questões da infância como matérias-primas para seus slogans eleitoreiros – veja o filme A IDADE DA INOCÊNCIA de François Truffaut) denunciamos a educação para a subalternidade nas creches que educam crianças para esperarem a troca de fraldas, esperarem o pinico, o copo d’água que pode nem vir, ou esperar alimentos ... Creches que formam aqueles que reaparecerão mais tarde em filas de bancos, I.N.S.S., escolas e de supermercados.

     Tais descasos e a lógica do pequeno poder político gerado em torno de questões relativas às crianças refletem a história das demarcações da infância na história da humanidade e seus prováveis desdobramentos nas condições de vida adulta destas crianças de hoje .

     Quando tocamos nestes impasses políticos e educacionais estamos conscientes de que tais temas pesarão e marcarão as perspectivas que decidirão a próxima sobrevivência da humanidade.

Tardes de Lindóia

     Sinto que se encerra um ciclo em minha vida . Às vezes me vejo limpando a lixeira. Já expurguei tudo que devia, tenho dito. The End. Lágrimas. Tristeza. Star. Glamour... Há exatamente dez anos passei a publicar mais frequentemente meus artigos em diversos jornais de vários estados brasileiros e agora já tenho pelo menos um mil textos por este Brasil afora .Um certo enfado me domina e quero partir para uma nova empreitada. Não acho que seria publicar livros. talvez meus horizontes me levem a explorar as limitadas vastidões da lógica binária da Informática ou, quem sabe?, viagens, músicas, fotografias, novas amizades, alguma novidade vai pintar ou rolar para melhorar ainda mais a minha vida . Assim creio.

     Ouço a Abertura do Parsifal de Wagner, a melhor música para consolidar a sensação acima manifesta .Porta-retrato com foto de algum ser querido em cima de uma das minhas estantes para livros...Um líder indígena desafia a ventania do velho Oeste e, naqueles filmes classificados como ‘far-west’, chega bem na frente da câmera para um daqueles “closes” com cocar e decisivas e inabaláveis resoluções.

     Se eu escrevesse agora um texto sobre o chorar sozinho num banheiro sujo eu só estaria parafraseando ou citando Cazuza...Se eu escrevesse sobre o luar em um cemitério eu estaria relembrando Georges Bernanos . Se eu voltasse a escrever sobre uma silenciosa tempestade de neve em um sombrio cemitério de Dublin eu estaria recordando uma passagem de um conto ou de uma novela de James Joyce que John Houston traduziu para a linguagem cinematográfica no filme Os vivos e os mortos.

     Se eu registrasse, em minhas crônicas, aquilo que só eu sofrí, eu o faria com os instrumentos e jeitos que herdei da civilização em que existí . Só saberia fazê-lo com formas e conteúdos sofridos por outros . Não vivo nem viví a angústia da influência. No entanto, não sei se conseguiria ter de novo, em meu jardim de Piumhí-MG, rosas tão formosas (contrastando com um celestial azulado tão marcante e inesquecível) como aquelas que vovó Argelina me proporcionou há quarenta anos, em Tabuleiro-MG. Os únicos paraísos, repito com Proust e Borges, são os paraísos perdidos e é deles que eu retiro agora a primeira caneca de plástico com flores parecendo bordadas em ponto de cruz sobre um fundo azul claro e na qual bebí uma das mais refrescantes limonadas de minha vida!... Só no parto de memórias nossas utopias seriam possíveis .Só debaixo de nossas noturnas barracas de cobertores, suando, nos libertávamos daquilo que rondava nossos escuros quartos de dormir e de enfrentar pesadelos.

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Livres Impressões e abaixo-assinado contra espíritas de porco

     A cada dia me convenço que os anjos do nosso mundo, dos nossos tempos, são os cachorros, os pandas, os passarinhos, os botos e os bisões. Talvez os gatos também. Há mais de dois séculos nossos anjos eram os que revelavam a música dos céus, a música da terra assanhada pelos céus, Mozart, Scarlatti, Vivaldi, Sibelius, Pergolesi, Bach, Haydn e, mais recentemente, Rossini, Wagner, Puccini, Beethoven, Chopin, Offenbach, Verdi, Bizet, Ravel, Carlos Gomes, frei Jesuíno do Monte Carmelo, padre José Maurício Nunes Garcia, Tchaikovski, Villa-Lobos, Debussy, Erik Satie, Bhrams, Paderwisky, Prokofieff, Shubert, Gounod, Gershwin e Cole Porter.

     Se no dia ou na noite da minha morte ainda existirem cachorros, passarinhos, Mários Quintanas, pandas, gatos, tigres, botos, rinocerontes, hipopótamos e lontras, capivaras e macacos, elefantes e girafas, morrerei contente. Estes anjos me alçarão aos céus.

     Só agora, ao ler Montaillou de Emmanoel Le Roy Ladurie, eu entendi porque as pessoas mais próximas da morte diziam aos seus descendentes deserdados que não lhes deixariam uma unha sequer dos seus pertences. Isto porque, na Idade Média, os mais próximos do fim colecionavam seus fios de cabelos e unhas (ou outras partes não perecíveis do seu corpo) para legarem aos amigos e parentes mais próximos após as suas mortes.

     A mente medieval do Imperador Carlos V, da Alemanha, Espanha e Holanda, pode ter sido o modelo humano com o qual Miguel de Cervantes cunhou o arquetípico Dom Quixote de la Mancha (Chronos ou Saturno?). Proust e Flaubert, para mim, foram outros anjos. Como hoje o foram Pasolini, Bergman, Visconti, Fellini, Rosselini, Tennessee Williams, Sergei Paradjanov, Jean Luc Godard e Luiz Rosemberg Filho, Antonioni de Blow-up... David Cronemberg... Werner Herzog, Buñuel, Saura, Truffaut, Scorcese ... Antonio Bispo do Rosário... León Hirzmann, Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos... Rogério Sganzerla e Fernando Arrabal, ponto final.

     Quem poderia contestar minha hipótese pela qual minha cadela boxer Saragoza descenderia das negras cadelas (da germânica Floresta Negra) da matilha trazida da Alemanha para a Hispania pelo louro e medieval Carlos V, pai do Imperador Felipe II, Imperador Sol Onipotente e Onipresente porque em seu império, que ia das Filipinas aos Andes, passando pelo Brasil e colônias do litoral noroeste africano, Marrocos, Cuba e Chile... onde o sol nunca se punha? Carlos V era como Dom Quixote: embora vivesse em pleno século XVI, insistia em viver no apogeu do Medievo cristão. Há 3 semanas, uma pedagoga concordou com os que acham que eu sou um E.T. deslocado no tempo e no espaço. Só porque eu acho que os automóveis não deveriam sequer Ter existido em nosso mundo. Os carros também não sobreviverão neste mundo que nasceu e findará sem os seres humanos, viventes devassos e suicidas que um dia se eliminaram num ping-pong de bombas de neutros.

     Acho que Carlos Heitor Cony está querendo dar uma de José Saramago brasileiro. Besteira a dele! Outro dia Cony me levou a gargalhadas ao lembrar da resposta que dera no início dos anos 60 ao jornalista que, numa entrevista, lhe pergunta qual o seu músico predileto. E o cronista da Folha de São Paulo (que não publica em seu Painel dos Leitores reclamações de soropositivos discriminados pela seguradora do Banespa, a COSESP) respondeu: “— Meu músico favorito é o autor de Ciranda, cirandinha.

     Atiraram na garagem daqui de casa uma cachorrinha vira-lata de 3 meses de idade e infestada por carrapatos. Procurei por 2 dias um dono para esta rejeitada e não consegui arrumá-lo. Como tenho trauma de rejeição, adotamos a coitada que agora não é digna de dó, é Lanúcia. Lã e pelúcia. Assim formamos em nossa casa um conjunto familiar de cinco corações a esperarem pelo ano 2000.

     “Uisque misturado não é pecado. Destilarias escocesas agora incentivam união do bom malte até com coca-cola.” – manchete da primeira página da Gazeta Mercantil em sua edição de 13 de Julho de 1999. Pecado é eu, diabético, não poder mais tomar um uisquezinho de vez em quando. Ai que saudades daqueles bombons com núcleos de rum! Hum!.. Delícia!.. E aqueles sorvetes de figo! Ah!...

     Meu currículo patológico, de ser humano que viveu oitenta por cento do seu tempo de vida envolvido com instituições escolares, convence a qualquer um que sou, de fato, um homem histórico: já tive úlcera duodenal, hepatite “B”, sífilis, tuberculose, gonorréia, micoses, herpes e, agora, a síndrome da imunodeficiência adquirida. Mas não tive leptospirose, toxoplasmose, câncer, hantavirose nem hanseníase... Ainda bem, senão eu iria para as páginas heróicas e hercúleas do Guinness Book. “Mas o pulso ainda pulsa.” (Titãs). Viva David Cronemberg! Agora, no universo humano, imaginar já é realizar. Minhas mãos tremem ao segurar alguns objetos. Árias de Puccini formam a trilha sonora do filme Violência e paixão de Luchino Visconti. Que lindo!...

     (.....) “A tecnologia é uma extensão do corpo humano. A tecnologia é a mais pura expressão da vontade humana. Acho que nós atingimos um ponto crítico na história da sexualidade humana. Nós não precisamos mais manter relações sexuais para a procriação. Se quisermos, podemos nos livrar do sexo, sem que isso signifique a extinção da raça humana. Embora primariamente o sexo sempre tenha sido visto como um ato de propagação e prazer, outros aspectos dele estiveram mais evidentes nas últimas décadas: o político, o do poder, o do modismo. E estamos num momento crucial, em que o sexo está sendo redefinido, reinventado mesmo. Tomamos como exemplo o cenário do modismo. Hoje, você pode colocar um piercing no umbigo, uma tatuagem na canela. Nós também temos acessos a cirurgias plásticas para alterar – ou mudar – anatomicamente tanto a genitália masculina quanto a feminina. Se existem os mais variados tipos de operações sexuais, porque não ir mais longe no sentido da criação de novos órgãos sexuais que não resultem em gravidez? Este momento de grande avanço tecnológico traz um novo entendimento sexual. Quis jogar com essas idéias em eXistenZ.” (David Cronemberg).

     La Zarzuela.. assim chamavam ao restaurante no qual duas tarântulas dançavam la tarantella. Walter dispensou a carona de Eurípedes (porteiro do hotel Belas Artes de Piumhí-MG) e foi caminhando até a sua casa na rua Dr. Eduardo Heringer. Caminhava e lembrava-se da sua história pessoal num cenário natal que só existia aos cacos. Walter Benjamin explicaria o cenário trágico de Walter e de todos os homens deslocados e com identidades caotizadas em nosso mundo contemporâneo.

     Parece que nós, humanos, somos massas protéicas pós-concepções, plenas de cheiros sacanas e eróticos. Como queijos com odores de chulé a ejacularem espermas que lembram mingau de inhame com um pouco de maizena.

     Meu ritmo de absorção, digestão e de formulação de respostas às informações recebidas é o mesmo de um ruminante e, por isso, fico desorientado com a presente abundância de informações. Tenho recebido tantos cartões, fanzines, jornais, cds, livros, cartas, telefonemas e e-mails que, por excesso de nutrientes intelectuais, vou formando pilhas angustiantes de feno literário para o meu posterior deleite ruminatório. Sou lento, Rô. Há vários dias não paro de ouvir o álbum de Árias para piano de Puccini, mas ainda não vi seus 7 vídeos experimentais e, muito menos consegui ler o precioso livro que organizaste e publicaste sobre o cineasta Jean Luc Godard. Sobre o cinema de Luchino Visconti, vou lhe confidenciar o seguinte: os filmes que mais aprecio na filmografia deste refinado discípulo de Antonio Gramsci são: Il inocente e Violência e paixão. E, para aprofundar o turbilhão informativo deste fim de século, passa na minha rua uma perua, se locomovendo com lentidão, emitindo o seguinte aviso em alto-falante: ”— A deliciosa pamonha com receita mineira está passando na sua porta, para pronta entrega, a preço de ocasião.” Mensagem repetida quinze vezes. Morro de medo da crise que vivemos. Teremos uma guerra mundial? O mundo acabará no ano 2000? Preciso reaprender aquela musiquinha sobre o fim do mundo composta por Assis Valente... beijei na boca de quem não conhecia.. peguei na mão de quem não devia...

     Em Ribeirão Preto-SP o povo aprecia muito uma galinhada. Eu não gosto deste prato e se quiser embrulhar meu estômago me ofereçam aquelas canjas de galinha que servem às parturientes em resguardo e que motivaram o seguinte refrão que ouvi nos campos de futebol da minha infância: ”É canja, é canja, é canja de galinha!.. Arruma outro time prá jogar na nossa linha!”...

     Acho que o hormônio testosterona emanava indistintamente das obras de Ernest Hemingway e Vinicius de Morais, mas nem por isso estes 2 escritores não teriam tido sequer uma ou outra vivência homossexual. Tem muita gente ganhando dinheiro revelando homossexualismos embutidos em trajetórias de celebridades literárias. Vamos acabar logo com esta charlatanice ou chantagem da era da mediocridade: a cada dia que passa mais e mais creio no seguinte: de louco, de médico, de poeta e de gay todo mundo tem um pouco. Acho que só o Leonel Brizola e o Jece Valadão não concordariam comigo.. ehehehe...

     Calor no inverno do sudeste brasileiro em 1999, às vésperas do fim do mundo, moço!... Uma reforma ministerial frustrante, um presidente da República desorientado, um país apavorado, uma sociedade violenta e violentada e muito barulho de motos e carros nas ruas.. ônibus roncam e poluem.. e aqui em Ribeirão Preto uma neve preta de fagulhas apagadas de queimadas em canaviais me faz sentir que estamos todos submetidos aos interesses nada saudáveis e nada limpos dos usineiros da região.. Ai da economia do nordeste paulista sem a indústria sucro-alcoleira! Estamos num beco sem saída?

     Um forte cheiro de borracha queimada envolvia-me ao desembarcar do ônibus Iguatemi, voltando de um encontro cujo desfecho foi o cancelamento irrevogável do I Encontro de Escritores do Interior Paulista e do Sul de Minas. Encontro já divulgado e articulado e previsto para os dias 21 e 22 de Agosto de 1999, no projeto Espaço Cultural Ponto Xis – Ribeirão Preto. No quarteirão dos fundos da Catedral Metropolitana de Ribeirão Preto temos um grande salão de Bingo parecido com aqueles cassinos de Las Vegas. Também em Ribeirão Preto vivemos apartheid social: uma estação rodoviária para pobres (no final da Av. Jerônimo Gonçalves) e outra para ricos embarcarem para a capital, uma mini-Rodoviária, perto do Estádio do Comercial. Esperamos por um Mandela de verdade em Ribeirão Preto.

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Manifesto contra a sórdida demagogia

     Sobre as críticas de Lula, Ciro Gomes, Brizola, Tarso F. Genro, Requião, Itamar e cia.ltda.. ao Programa de Reestruturação do Sistema Financeiro (ou PROER) é bom que se deixe claro que tal iniciativa política não foi meramente um socorro as ricos banqueiros daquí ou dacolá, mas um necessário e urgente reforço no sistema bancário usado como depositário das poupanças e bens de todos os brasileiros. Nenhuma sociedade capitalista do mundo contemporâneo funciona com todos os seus bancos falídos ou desacreditados.

     Outra coisa: quanto a candidatura à reeleição de nosso presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, é necessário dizer que se tal reeleição se consumar daquí a um ano, o Brasil estará mostrando ao horizonte globalizado da economia internacional que goza de, pelo menos, um tanto de estabilidade política, condição material básica para novos investimentos estrangeiros em nosso país ou nossa melhor integração ao fluxo das riquezas do mundo atual. Só os demagogos passam por cima desta conjectura ou possibilidade.

     Infelizmente a demagogia é uma erva daninha que se alastra por todo o país, compactuada ora com a corrupção ou com o corporativismo e precisamos achar uma saída não- autoritária para a superação deste quadro.

     Há poucos dias o infeliz ministro da Saúde teria dito que os remédios distribuídos aos doentes de AIDS no Brasil estariam prejudicando as dotações orçamentárias para o tratamento de doenças que atinjam um número maior de brasileiros (potencialmente eleitores). Mas o ministro, ao afirmar tal besteira, fingiu desconhecer que a economia que se faz na redução expressiva das internações de imunodeprimidos é muito mais aceitável que uma interrupção no fornecimento de tais medicamentos. Caso o governo brasileiro proceda tal interrupção o Brasil estaria produzindo um novo super-vírus da AIDS contra o qual novas e longas e caríssimas pesquisas seriam a curto prazo desanimadoras, como os discursos dos demagogos.

O mito da Criança Salvadora

     Não foi o Cristianismo a primeira religião a alardear o potencial salvador de uma criança (como o nosso natalino Menino Jesus).

     Antes do Cristianismo, o Judaísmo depositou em um menino rescém-nascido, que descia o caudaloso rio Nilo num cestinho de vime ou junco, a tarefa de libertador e salvador dos Hebreus da escravidão no Egito. Era Moisés!...

     Tão universal é o mito da Criança Salvadora que no Brasil pré-Cabralino algumas tribos consumidoras de mandioca repassavam aos seus descendentes uma lenda na qual a menina encantadora Maní morre no auge de uma crise de escassês de alimentos e, as lágrimas abundantes dos que choravam sua morte propiciaram o renascimento de Maní sob a forma de mandioca, alimento que salvaria seu povo da fome e da morte.

     Outros povos e culturas ofereciam aos deuses vidas de crianças para concretizarem operações salvíficas entre suas divindades e suas gentes. Até mesmo os Hebreus realizaram tais sacrifícios de crianças. Aztecas, Maias e Incas também ofereceram vidas humanas aos deuses. Alguns povos africanos também ofereciam vidas infantís aos seus orixás. No Cristianismo ibero-americano tivemos, até décadas atrás, procissões de crianças vestidas de anjos para coroarem a Virgem Maria. Belas imagens!...

A virtualidade como transição temporal entre o “ser” e o “não ser” durante a presente crise global dos juros e câmbios

     Há pelo menos seis séculos a nascente economia de mercado ocidental européia já operava com a virtual produção futura de bens ou riquezas contidas em cartas de crédito e ações de Bolsas que se especializavam em determinados produtos, como por exemplo a bolsa de Moscou era a Bolsa das peles e das carnes; Bruxelas era a bolsa dos tecidos finos; algumas feiras se especializavam na venda de brinquedos, instrumentos musicais, perfumes, vidros e cristais, queijos, vinhos e champagnes, móveis e livros, etc.... Mercadejar o que já existe é mais concreto e palpável; vender o futuro é estímulo `a produção e prova de garantia, certeza ou estabilidade nos fluxos dos mercados. Se na economia o dilema shakespeareano entre o “ser” e o “não ser” redundou na tragédia mais antiga da humanidade (“ter ou “não-ter”), o encontro histórico destes impasses na presente virtualidade dos mercados, na atual tecnologia da virtualidade informática conflui também para a alegoria barroca da ampuleta, na qual se mostram cada vez mais indissociáveis a morte e a vida, razão e não-razão, desejo e necessidade, trabalho e lazer, paixão e amor e até Eros e Tanatos.

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Minha alma não é pequena, mas será que vale a pena?

     Hilda Hilst e sua obra incompreendida me lançam no abismo da incerteza melancólica: porque fazemos questão do reconhecimento? As rivalidades entre escritores (André Gide teria prejudicado a edição das primeiras obras de Marcel Proust) e as desonestidades editoriais dos que fazem as mídias mercadológicas e as sacanagens de alguns jornais e fanzines sem critérios éticos na montagem de colagens de fragmentos de correspondências ou textos de cartas trocadas entre escritores do chamado circuíto alternativo me fazem ver um panorama de concreta barbárie cultural. As listas dos cem mais importantes pintores do século XX provavelmente não incluírão o pintor modernista francês Emile Othon Friesz mas, para mim, sua tela Outono em Honfleur (Automne à Honfleur) – pintada em 1906 e hoje integrando a coleção do Museu de Arte Moderna de Paris, e agora exposta no Museu de Arte Moderna de São Paulo, figuraria na lista dos cem óleos sobre telas mais interessantes da história da pintura nos dois últimos milênios! Não é exagero, veja a tela citada e comprove. No entanto, eu nunca ouvira falar deste artista plástico francês. O pintor egípcio-paranaense Alberto Massuda anda triste: perdeu o amplo apartamento que alugava no centro de Curitiba e agora vive encolhido numa gaiola-studio designada no mercado imobiliário como Kitinete (a respeito do drama deste conceituado artista plástico, leia o Caderno G da Gazeta do Povo de Curitiba em sua edição de 6 de Agosto de 1998. Minha alma não é pequena, mas será que vale a pena?

     Não sou um romântico a reclamar um fluxo de bens culturais desencadeado à margem de uma economia de mercado globalizado. Minha inquietação é de outra ordem: será que vale a pena investir tanta energia e tão extenso projeto de vida na criação de objetos e textos de valor histórico-cultural a serem aleatoriamente avaliados ou canonizados por critérios mercadológicos ou ideológicos? Será que vale uma tumba a glória ou o reconhecimento póstumo.

     Quando até o gado bovino, as galinhas e os cachorros ouvem Tchaikovsy, Bach, Vivaldi, Beethoven, Mozart, Sibelius, e Haendel, oitenta e nove por cento das massas populares e da medíocre classe média preferem danças do tcham, dança da garrafa, o sambão fundo-de-quintal do sapatinho e outras miserites culturais. Até as porcas já provaram que produzem mais carne e banha quando ouvem Verdi, Erik Satie, Carlos Gomes e Offenbach. Nossa mediocridade nos leva a sambar em louvor de calcinhas, bundinhas e garrafinhas. Por isto dizem escritores e dramaturgos que a espécie humana está em extinção ou não tem futuro ou é uma espécie que não deu certo. Minha sensibilidade não é fechada nem rígida, mas será que vale a pena? Quando alguns disseminam a fome, a ignorância, as pestes, os vírus e as bactérias muitos acham que o único monstro é o maníaco motoboy que estuprou e ameaçou devorar os cadáveres das suas incontáveis vítimas. Minha alma é pós-helênica, mas será que vale a pena?

     Puxe e imprima via Internet textos do jornal parisiense Le Monde sobre o Maio de 1968: interessantíssimos documentos históricos sobre as tendências do mundo contemporâneo.

     Nos fins de semana é praticamente sufocante e impossível aproveitar ou apreciar a exposição de Salvador Dalí no Museu de Arte de São Paulo-Av. Paulista,1578-Saint Paul cross maníacs: uma fila para comprar ingressos, outra para chegar a uma catraca que nos dá acesso a um mini – shopping de objetos, livros, álbuns e cartões reproduzindo designers, estilos e obras de Dalí, mais uma fila para sair deste mini – shopping e uma quilométrica fila para ir vendo peça por peça da exposição Salvador Dalí: telas, aquarelas, croquís, projetos, painéis, esculturas e ensaios fotográficos, etc.. Ufa! .. Ambiente pouco propício aos prazeres estéticos! Ou a viagens surrealistas!.. Haja fôlego!.. Começa agora a mega-exposição de Caravaggio- o mais polêmico pintor barroco italiano do século XVII (dezessete).

     A Assessoria de Comunicação Social da Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul (sediada à rua dos Andradas número 736 – segundo andar – sala 10 – Centro – Porto Alegre – RS – Brasil – 90010110 – fone: 051-2266974), agradeceu os textos de minha autoria a este órgão público por mim enviados, oferecendo-me edições do jornal RS Cultura, publicações recentes da Casa de Cultura Mário Quintana e um precioso Calendário Cultural Gaúcho com todos os cursos, simpósios, seminários, concursos, mostras, espetáculos musicais e operísticos, teatrais e cinematográficos, eventos literários e feiras de livros, exposições de artes plásticas a ocorrerem na capital riograndense do sul, no interior do estado de Caio Fernando Abreu e em Buenos-Aires, informando-nos ainda sobre os endereços de todos os tipos de entidades e instituições públicas ou privadas dos âmbitos culturais e artísticos de Porto Alegre, interior do Rio Grande do Sul e Buenos-Aires.... É o Mercosul em sua faceta cultural.

     O Sindicato dos Servidores Municipais de Ribeirão Preto anuncia a promoção de muitos concursos (literários, de música, cinema ou vídeo, fotografia, humor e artes plásticas. Inscrições até 18 de Setembro deste ano,claro!... Informe-se na sede do próprio sindicato: rua XI de Agosto, 361 – Campos Elíseos – ou na biblioteca da Secretaria Municipal da Educação com Cida Fascino.

     Dona Ivone Freitas Grellet, qual é o novo telefone do Bonfim Notícias? Você tem certeza que já me mandou todas as edições do Bonfim Notícias de meados de Junho até a primeira quinzena deste Agosto?

     A coluna literária mais antiga e conceituada do interior mineiro, assinada há quarenta anos por Zanoto, no Correio do Sul de Varginha-MG, tem publicado, eventualmente, a coluna Eu bem te ví na rua, publicada há alguns meses pelo seu generoso Bonfim Notícias, canal de expressão deste importante distrito do município paulista de Ribeirão Preto, terra do milagroso menino Pedro! Cidade vizinha de Monte Alto, onde está o túmulo da Santa Izildinha, tão invocada na atual novela das oito... e cidade vizinha de Jardinópolis, cidade que sedia a capela do Bom Jesus da Lapa, fundada no início deste século pela polêmica e milagrosa Pequena!.. Capela da Lapa para a qual todos os anos, em 6 de Agosto, tantos romeiros e peregrinos se dirigem para lá formularem suas promessas ou lá depositarem seus agradecimentos por graças alcançadas sob as diferentes formas de ex-votos (mãos, pés ou cabeças de cera, fotografias, vestidos de noivas, muletas, fotos ou mechas de cabelos, pinturas e quadros com temas sacros.

     Por hoje é só, meus caros leitores! Abraços do professor José Luiz Dutra de Toledo.

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Miss Brasil 2001 adverte: a fome ronda os lares da classe média

     Me lembro como se fosse agora: há 30 anos, numa noite de Julho de 1969, enrolados em cobertores, deitados em colchões espalhados pela casa de nossos pais (recebíamos a visita da família da tia Celeste do Rio de Janeiro e, nessas circunstâncias, perdíamos nossas camas para as visitas) e tremendo de frio, assistimos Neil Armstrong pisar pela primeira vez na Lua. Foi uma puta emoção. Eu tinha 17 anos e 7 meses!.. E não me lembrava que, na mesma semana que o primeiro ser humano da nossa espécie pisava na Lua, realizava-se na costa leste americana o festival hippie e de Rock, com nítido caráter pacifista, conhecido como Woodstock/1969!... Trinta anos! É muito tempo, não? Um terço de um século!.. Quase que um terço de século!...

     Apocalipse e Armagedon em marcha no mundo pós-Guerra-Fria: vivemos um pesadelo traumático. As fomes e as pestes tornaram-se de massa e policlassistas. Privar-me da internet me desespera tanto quanto a fome de frutas, de amor, de pétalas de rosas e de cereais. Uma amiga octogenária agoniza em Belém do Pará. Mais uma perda às vésperas do ano 2000? Este papo alarmista já não é o papo do louco que passa gritando num viaduto ao longo do filme Paris-Texas de Wim Wenders. Vivemos o triunfo da razão paranóica. Mamãe, não chore!.. Não tem jeito!... Para a razão paranóica, para morrer basta estar vivo e tudo é possível e nada é impossível. A doença-sinal (ou sintoma) dos nossos tempos é a síndrome do pânico. Sirenes e luzes de ambulâncias, de viaturas policiais e de bombeiros eletrizam os ares urbanos, reforçando nossa disposição de não sair tão cedo de casa e de deixar o mundo estourar lá fora. Será que foram os americanos que nos legaram este impulso de instaurarmos em meio ao presente caos mundial nossos particulares e individualistas paraísos residenciais e neles vivermos a ilusão de que estamos num outro mundo, distante do mundo dos telejornais e das aulas de geografia e do mundo que começa na calçada de nossas casas? Que o nosso mundo cá de dentro nada tem a ver com o mundo lá de fora? Gostaria tanto de viver serenamente tudo, mas os nossos tempos me inquietam. Na boca de um caixa de supermercado uma menina de 14 anos levou minha caixinha de pudim diet sabor chocolate, deixando-me apenas a de mamão papaia. É o fim do mundo, gente!.. Estou desorientado de tanta raiva desta larapiazinha!.. Com a fome rondando os lares da classe média, briguei por causa de uma caixinha de pudim diet sabor chocolate!... Que vergonha, meu falecido pai comerciante!...

     Já não estou mais certo do valor literário da minha escrita. Talvez esta minha forma de expressão tenha méritos extra-literários. Esta falta de convicção sobre o valor estético do que escrevo abate-me, desprovendo-me de um dos sentidos para a minha existência. Será que o que escrevo vale como um documento revelador dos nossos tempos? Sim, claro que vale como um registro dos nossos desequilíbrios contemporâneos; responde um historiador que mora lá dentro de mim.

     O som da água despencando da torneira sobre os azulejos do tanque de lavar roupas ou uma lâmpada inutilmente acesa, as horas de conexão à internet, uma televisão ligada sem telespectadores ou um aparelho de som que tocou por várias horas e não foi ainda desligado só me causam aquele medo mensal das tarifas de água, luz e telefone. Aqui no estado de São Paulo às vezes tenho a sensação de que quem não tem tanquinho tem máquina de lavar roupa ou vice versa. Água e luz: contas que andam juntas, uma puxa a outra. Meu Deus, que mundo mais desconfortável! Tudo é máquina, ou trabalho ou conta a pagar! Cruzes!..

     Os assanhaços engaiolados talvez sejam os últimos de uma espécie de pássaros já em extinção. Um dia sonhei só com espécies de passarinhos já extintos. No meu sonho vi um que trazia uma espécie de bico ou ponta de espada retorcida no topo da cabeça... vi também um que trazia os pés guarnecidos com uns braceletes de couro preto adornados com tachinhas prateadas, estilo heavy metal. Um andaço de gripe virótica (saído provavelmente da floresta amazônica) atingiu São Paulo, deixando milhares de nocauteados, inclusive o meu amigo pugilista José Otávio Salles... Outros penderam entre a pneumonia e a tosse com febre alta por vários dias. É o fim do mundo, gente!.. Está chegando o ano 2000!..

     Há mais de um ano venho notando que meus textos estão deixando de ser publicados na maioria dos jornais que os publicava quase regularmente. Já imaginava o que poderia ser, mas hoje uma leitora paulistana, moradora nas adjacências da Av. Paulista, embora alguns a classifiquem como uma senhora de Santana, abriu o jogo quando lhe propus a compra de um exemplar das minhas coletâneas e livros artesanais: “sua literatura é inteligente mas é transgressora”. Até o stalinista Georg Luckács defendia uma literatura que enfrentasse o touro, que desse combate aos minotauros de nossos labirintos... como Garcia Lorca, André Gide, Oscar Wilde, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud e Virgínia Woolf.. e muitos mais... mas, parece que nossa hipocrisia católica é muito enraizada ou a discrição vale mais que a literatura em si. Mas, tudo bem. A revista literária vanguardista curitibana Medusa recusou minhas textuais colaborações, mas meus ensaios e crônicas, desde 1998, estão sendo publicados por revistas literárias eletrônicas como a Proa da Palavra (de Porto Alegre), a Blocos (do Rio de Janeiro), a Nau da palavra (do Vale do Paraíba) e agora Verbo (de Brasília). Uma porta se fecha, mas muitas se abrem para as minhas inquietações, aconchegando-as no vasto labirinto contemporâneo da Internet. “Jean Cocteau escreveu: “Aquele que corre menos do que a beleza só pode produzir obras medíocres; o que corre tão rápido quanto ela produzirá obras banais; o que corre mais rápido do que a beleza corre o risco de ser incompreendido, vilipendiado, objeto de sarcasmo, de ódio e de desprezo. Mas, se ele parar no meio do caminho e permitir à beleza cansada o alcançar, nascerá uma obra-prima que será o produto da fusão da beleza admitida e da beleza revelada.” (citação feita pelo artista plástico francês Georges Mathieu, nascido em 1921, expoente da “corrente artística” chamada “ abstração lírica”).

     No palco, três grupos entoam canções aparentemente desconexas. À esquerda, um grupo canta assim: “ Pára, Pedro! Pedro, pára! Pedro, pára! Pára, Pedro! Pára, Pedro! Pedro, pára! Este Pedro é uma parada!”. À direita, um outro coral entoa a seguinte cantiga: “Não aperta, Aparício, não aperta! Não aperta, Aparício, não aperta! Não aperta, Aparício, não aperta, não aperta, Aparício, não aperta, não!.....” E no centro do palco um outro grupo canta assim: “Mereces o desprezo, e nada mais! Podes chorar, podes sofrer que eu não volto atrás!.. “ (...) “ Eu vou tirar você deste lugar, eu vou tirar você deste lugar, para você ficar comigo, e não ser triste e nem pensar no que passou.. eu vou tirar você desse lugar!”.

     “Não conheço essa senhora, mas seu nome exótico, Fataumata Touray, seu país de origem, Gâmbia, e sua residência atual, a cidade catalã de Banyoles, me bastam para reconstituir sua história. (....) .. morrer tragicamente é morrer de morte natural. (...) Não preciso ir ao hospital Josep Trueta, de Girona, onde lhe estão agora soldando as costelas, os pulsos, os ossos e os dentes que ela quebrou quando saltou pela janela do segundo andar do edifício onde morava, para divisar sua pele da cor do ébano, seu cabelo duro de passa de uva, seu nariz achatado, os lábios grossos, esses dentes que foram alvíssimos antes de se quebrarem, os olhos sem idade e os grandes pés nodosos, inchadíssimos de tanto andar.

     São esses enormes pés gretados, de calos geológicos e unhas violáceas, de dermatoses com crostas e dedos petrificados, o que acho mais digno de admiração e reverência na Sra. Fataumata Touray. Estão andando desde que nasceu, lá na remotíssima Gâmbia, país que muito pouca gente sabe onde fica. Porque a quem no mundo interessa e para que pode servir saber onde fica a Gâmbia? (...) Os jovens que quiseram transformar Fataumata Touray em brasas não são racistas nem xenófobos. São farristas. Quer dizer, rapazes indóceis, travessos, malcriados. (...) Por que esses jovens doentes de tédio, nada racistas, não queimaram a casa do prefeito, o Sr. Pere Bosch? Por que esses rapazes nada xenófobos não deram uma volta, com seus galões de gasolina, pela casa do conselheiro Pomés? Por que escolheram o tugúrio de Fataumata? Sei muito bem a resposta: por mero acaso. Ou talvez porque as casas de imigrantes não sejam de pedra, mas de materiais ignóbeis, e ardem e crepitam muitíssimo melhor. (...) Tudo é possível neste mundo, até isso. Mas uma coisa de que estou inteiramente seguro é que ela não ficará para conviver com seus desconhecidos incendiários na capital do Pla de l’Estany. E que, tão logo saia do hospital, os sábios pés retomarão a caminhada, correndo rápido, sem rumo, pelos perigosos caminhos cheios de fogueiras da Europa, berço e modelo da civilização ocidental. (...) Alarmar-se com isso parece ser de péssimo gosto, uma manifestação de paranóia ou de sinistras intenções políticas. (...) Essa é uma história banal na Europa de fins do segundo milênio, onde tentar queimar vivos os imigrantes de pele, ou culturas, ou religiões exóticas – turcos, negros, árabes ou ciganos – se vai tornando um esporte de risco cada vez mais difundido. (....) A fome faz milagres, estimula a imaginação e a inventiva, atira o ser humano para as empresas mais audazes. Milhares de espanhóis que há cinco séculos passavam tanta fome quanto Fataumata, escaparam da Extremadura, Andaluzia, Galícia, Castela e realizaram essa violenta epopéia: a conquista e colonização da América.” – Mario Vargas Llosa em artigo intitulado Os pés de Fataumata, publicado na página A-2 do jornal O Estado de São Paulo em sua edição de 25 de Julho de 1999.

     O tédio juvenil bem como o cada vez mais profundo mal estar da civilização contemporânea me amedronta e me faz ver o quão próximos estamos de um abismo suicida e como o nosso destino se nos afigura repelente e asqueroso. Não sei por que algumas putrefantes almas humanas ainda se arvoram a manifestações hipócritas e tão fétidas quanto os esgotos que fluem de seus lares.

     “Desde menino achava que a literatura fosse crítica antes de ser invenção. Li Tolstói, Camus, Elliot entre os 14 e 18 anos: nos três encontrei um violento mal-estar em relação à vida social.” (...) “Até hoje acredito que a verdadeira crítica (que se distingue do estudo universitário, “científico” ou histórico da literatura) seja também crítica da sociedade.” (...) “Uma crítica literária chata e obscura é um contra-senso, uma verdadeira traição.” (...) “A grande maioria diz o que as editoras e os autores querem que se diga. E aí já estamos na publicidade.” (...) “... transformaram a poesia em assunto de seminário universitário.” (...) “Mas o que hoje mais impressiona é a quantidade de pessoas que escrevem. Parece que escrever e ser publicado é um dos direitos reivindicados: se escreve para ser aceito e não para ser realmente lido. Além do que existem hoje mais escritores do que leitores. É uma situação paradoxal e ingovernável, que paralisou a crítica.” (...) “E com freqüência acontece que os mais conhecidos, publicados pelas editoras, não são de fato os melhores. Muitas vezes se trata de razões não – literárias: relações pessoais, favores recíprocos, simples inércia, etc. ... Não apenas o público da poesia é feito somente de poetas ou aspirantes à poesia: o problema é que nem mesmo os poetas lêem muita poesia. Uma arte sem público real corre sérios riscos. Tentem imaginar o que aconteceria à música se ninguém fosse capaz de distinguir a música do ruído.... É o que está acontecendo com a poesia.” (...) “é preciso tornar a literatura presente na sala de aula.” (...) “Trata-se também de lembrar que os autores escreveram para serem lidos, não para serem ensinados. Muitos deles se sentiriam mal em relação ao uso que se faz na escola e na universidade de seus livros.” (...) “É preciso acima de tudo criar leitores. Só mais tarde alguns deles irão se tornar estudiosos. Além do mais, que tipo de estudioso será aquele que negou e matou dentro de si mesmo o leitor apaixonado? Existe um método simples para entender essas coisas. É perguntar se o estudioso de Virgílio ou de Baudelaire lê Virgílio ou Baudelaire nas horas de folga ou só os estuda nas horas de trabalho.” (trechos da entrevista de Alfonso Berardinelli, crítico literário italiano contemporâneo, ex – professor da Universidade de Veneza e que abandonou a vida acadêmica, concedida aos professores de cursinhos pré- universitários Luiz Soares Dulci e Maria Betânia Amoroso, publicada no pedante caderno Mais da Folha de São Paulo em sua edição de 25 de Julho de 1999).

     Sem dúvida, o espaço cultural literário brasileiro é cada vez mais árido ou desértico, desanimador. Escritores confundem militância esquerdista com expressão literária e incluem Chico Buarque, Jô Soares, Luiz Fernando Veríssimo e outros bem sucedidos porta-vozes de tendências políticas no rol dos escritores da literatura brasileira contemporânea. E, tendo em vista o que disse acima Berardinelli, o panorama brasileiro é parecido com o de vários países europeus, só que mais trágico e patético quando percebemos as conexões políticas entre as nossas misérias sociais, econômicas e culturais.

     (...) “... o sol é um astro radioso, porém terrível... Penso que o mal faz parte do homem, que ele é humano. Os cristãos pensam que o homem é um ser decaído. (...) Só um ser livre é capaz de crueldade. O animal não pratica o mal. Em compensação, a herança mais preciosa do cristianismo é sua concepção da pessoa: todo homem, toda mulher é um ser único e sagrado. O século 20 se esqueceu disso no nazismo, mas no pensamento revolucionário também. (...) O que impressionou de imediato nos Estados Unidos não foi a cultura, mas a vida. É por isso que gosto muito desse país, apesar de seus pecados. (...) A corrente de pensamento que mais me impressionou na Índia foi um pensamento expulso, o budismo. Para mim, o caminho de volta para o Ocidente passou pelo budismo. (...) Sempre tive uma espécie de recuo diante do monoteísmo, que é a meu ver a raiz da intolerância ocidental. Veja o cristianismo, mas também o Islã. Ora, o budismo é profundamente ateu. Não acredita em um Deus criador. (...) Porque os pensamentos políticos em sua maioria foram insensíveis às paixões humanas, aos crimes, aos amores, a vida cotidiana, a tudo aquilo que enche as páginas dos jornais. Só os poetas e os dramaturgos – Shakespeare – abordam esses assuntos. (...) Gostaria de dizer, para terminar, que o pensamento político devia ter como tarefa a reconstrução da pessoa humana. (...) ... a ciência começa a redescobrir a alma no próprio corpo. É sobre essa base que é preciso reconstituir a pessoa antes de pensar na reforma da sociedade. Não se deve recair nos velhos erros revolucionários e, no entanto, se deve proclamar que nossas sociedades precisam de reformas profundas.” – Octavio Paz, em entrevista concedida em 1996, em Paris, a Jacques Juliard.

     Tais reformas profundas não ocorrem nem no Brasil nem em Cuba nem na Argentina porque nossas elites esquerdistas e direitistas se travestem de revolucionárias para viabilizarem seus acessos ao poder, ostentam um pérfido e fingido bom gosto estético, acham chic curtir Tom Jobim ou Chico Buarque ou Astor Piazola e defendem as escolas doutrinadoras e esquerdizantes de Fidel Castro ou o sistema de saúde pública cubano (em troca do qual o governo cubano interditou as liberdades democráticas e a reflexão sobre os direitos humanos na sociedade cubana) e até promovem viagens turísticas de apoio ao regime ditatorial e militarista cubano. Gosto de ouvir músicas de Tom Jobim, mas quando vejo larápias corruptas da classe média parasitando, dilapidando e exaurindo recursos para a saúde pública, a educação e a cultura brasileira, ouvindo, em micro- computadores de repartições públicas, Cds deste clássico músico carioca, passo a sentir as vertigens de um ceticismo tão estonteante quanto a que sentiria em uma infinita caminhada pelo Inferno da Divina Comédia de Dante Alighieri. Conheço até um jovem artista do PFL de Ribeirão Preto-SP que já foi a um convescote com Fidel Castro, em Habana, gente!.. Dá para acreditar? .. .. Bem que o Glauber Rocha há 25 anos atrás nos dizia que estava em marcha em todo o mundo uma guerra na qual os ricos (de direita ou de esquerda) tentavam esmagar os pobres (de direita ou de esquerda).

     “O ecstasy, nesse sentido, é como uma metáfora, porque é comercializado, comprado e vendido, mas também é uma maneira de as pessoas se sentirem mais felizes, de se socializarem. A peça mostra personagens de um mundo em que o mercado impera, mas que buscam saídas.” (....) “Mas é claro que o teatro americano é mais conservador. Os críticos lá ainda buscam no teatro um lugar onde você possa ver pessoas gentis fazerem coisas boas (ri), o que obviamente você não tem em Shopping and Fucking”. – Mark Ravenhill, teatrólogo inglês contemporâneo, autor das peças Handbag e Shopping and Fucking, entre outras.

     “Aquilo que não me mata me fortalece.” – Friedrich Nietzche.

     “...é espantoso o que as pessoas têm de agüentar devido a seus genitores – sem falar em seus genitais... Por que fazer perguntas se as respostas não te agradam?... Seremos obrigados a deixá-lo ir embora. Já temos dois existencialistas no xadrez. (...) Ir a um pub, o Zodiac em Tower Hamlets, aconteceu quando minha memória se viu amputada, depois de me lançar num programa de dez minutos sobre a essência do conhecimento, fruto da inevitável indagação a respeito da filosofia. (..) ... este é o fim da minha permanência na filosofia, ou, pelo menos o fim de minha carreira como pensador de nove às cinco. (...) Não entendo por que as pessoas teimam em continuar fingindo que existem quatro estações nesta terra. (...) Tudo é tão descartável e chato que me espanto por minha consciência se dar ao trabalho de cumprir sua função. (...) Pareço-me com pedras de calçamento demasiadamente seculares. (...) Não há futuro suficiente para todos. (...) Carência de futuro. Um passado e tanto que me ultrapassou. Façam sua escolha. Já tive importantes lapsos muitas vezes antes. (...) Eu sucumbira a um ataque de querer descobrir o mundo de verdade, um devaneio que nos aprisiona a quase todos durante certo tempo. (...) Então o presente não estava presente. Meus sentidos foram censurados. O futuro cortou meu crédito. (...) ... e meu rosto olhava para cima. (...) O que aconteceu exatamente eu jamais consegui reconstituir. (...) ... memórias, ficção, efusões amorosas ou um guia para a Zululândia é o que a maioria das pessoas alimenta como projeto e guarda na cabeça, sob prisão cerebral, para morrerem sem escrever... (...) Under the Frog (expressão húngara que significa viver “abaixo do cu do cachorro” – título do meu livro que ironizava os regimes comunistas do leste.. e agora, com o meu livro A Gangue do Pensamento lanço sarcasmos e ridicularizo o idealismo ocidental. (...) o marxista é aquele cara que, por conta própria, resolve que é a vanguarda do proletariado e, a partir daí, acha que pode fazer o que bem quiser porque a história o apoiará. (...) E também os avisamos: ao entrarmos num banco para assaltá-lo nos proclamamos a Gangue do Pensamento. Se os bancários e banqueiros nos responderem com citações de clássicos, deixaremos o banco em paz. Nosso lema: somente a cultura poderá salvá-lo da Gangue do Pensamento. Não chame a Polícia, leia os clássicos. Não compre um alarme, compre um Zenão!... (...) Depois de todos esses anos, o que tem a filosofia, e na verdade o conhecimento humano, a dizer de si? “(...) Como todos sabemos, a solução para um problema realmente difícil é abandoná-lo.” – do escritor Tibor Fischer, em seu livro intitulado A Gangue do Pensamento, publicado em 1999, no Rio de Janeiro pela Editora Rocco.

     Encontrei agora à noitinha, quando voltava do trabalho, descendo a Capitão Salomão, o ex-aluno Glauber. Acho que falei demais ou o quanto não devia. Glauber é um barato!.. Fiquei satisfeito em revê-lo.. Agora quero ouvir Carlo Santana e tomar minha cerveja não- alcoólica Kronenbier. Hum! Que delícia! Geladíssima! Putzzz!.. Boa noite!..

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Mundividências de um habitante de uma caverna eletrônica no fim do segundo milênio

     Ouví numa noite dessas, durante o fluir da ópera La Traviata, que “o amor é o palpitar de todo o universo”. Mas também há poucas noites, ao fechar os meus olhos para tentar dormir.

     Ouví numa noite destas, assistindo à ópera La Traviata, que “o amor é o palpitar de todo o universo”. .Mas também há poucas noites, ao fechar os meus olhos para tentar dormir, às duas da madrugada, jorrou, jorrou, jorrou..... uma cascata de genitálias e carnalidades humanas: era o meu cérebro expurgando o excessivo número de imagens brutalmente eróticas que inundou as minhas vistas por muitas horas Internet- Universo – on-line. No fim do século vinte posso rever, quando quiser, graças ao vídeo-cassete e aos cd-roms, preciosidades enciclopédicas e cinematográficas como Dançando na chuva, O sétimo selo (filme de Ingmar Bergman), Spartakus, Girassóis da Rússia ou Teorema de Pier Paolo Pasolini, ouvir Karajan, Toscanini, Maria Callas ou Caetano Veloso/anos 70 em cds, beber uma cerveja não alcoólica holandesa ou operar resgates de fragmentos de minha memória de décadas atrás revendo, sem qualquer tecnologia ou máquina assistindo com os olhos fechados ao filme, franquista segundo alguns, Marcelino Pão e Vinho, por que não?

     Hoje ví, num caderno de turismo de um matutino paulistano, homens virís portugueses em tanques repletos de uvas para os pés pós-helênicos daqueles varões esmagarem .Pisoteando-as para que do seu suco fermentado se tenha o mais famoso vinho ibérico, o do Porto.

     Com esta globalização cultural a permitir que este humilde funcionário público possa visitar a minha desejada Braga via- Internet, só não estão satisfeitos os stalinistas nacionalistas e os nazi-fascistas ou os desempregados pelo próprio comodismo imobilista. (....) Não sei como nem porque, até posso estar sendo incoerente, mas admiro muito as músicas de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Milton Nascimento e a literatura de José Saramago mas há muito não concordo... com a maioria das suas manifestações políticas. Porque será que isto ocorre comigo ou com os que admiram Jorge Luis Borges e se consideram de esquerda?

     “Ainda bem que todos os nossos inimigos são mortais, todos morrerão”, disse Paul Valéry.

     Também não entendo os que combatem contra o consumis mo e o desemprego em nome de uma sociedade mais livre e “justa” (Pascal já dizia que qualquer um de nós se considera justo e o que seria a justiça em nossas conflitivas sociedades senão a sobreposição ou a hegemonia de um conceito ideológico de justiça sobre os demais conceitos e ideologias por aí circulantes?) quando se sabe que sem consumo e sem consumismos não haverá mais empregos e sem emprego ou sem as empreitadas esporádicas do futuro mundo sem empregos estáveis ninguém sobreviverá!?....

     Sou tão ignorante que não consigo decifrar a hipocrisia cínica das esquerdas que condenam as prisões consumistas engendradas pelo Capitalismo .Assim como nos evangelhos e nas guerras santas da Cristandade ansiosa por mil anos de felicidade com um só rebanho e um só pastor, ou um só partido, ou só uma central sindical,os comunistas e socialistas defendem um tal de centralismo democrático ou um unitarismo paradisíaco e milenarista, sem dores, livres de todo mal, numa harmoniosa e ditatorial partilha espontânea dos bens comunais e prescindindo de leis, do Estado e das Igrejas. P.H. Xavier ou Raul Bopp (na esplêndida crônica de P.H. Xavier, intitulada O passado é feito por nós mesmos, publicada no jornal Correio do Sul de Varginha, Minas Gerais, em sua edição de 12 de Dezembro de 1997, pág. 5 do primeiro caderno, solta uma destas: ”E tú, linda Soraya, em que ignotas solidões sem eco escondeste o teu vulto romântico de rainha triste? De minha parte, já perdí o sono muitas vezes desejoso de ir a Marienbad. Eu digo e repito que realmente o universo é misterioso.”

     Enfim, nas utópicas e milenaristas guerras santas maniqueístas da história do Cristianismo (pré e pós-franciscano) e nos regimes pós-jacobinos que nos acenaram com justos e sombrios paraísos pré ou pós-Chernobyll ou nos iludiram com promessas de resgates de paraísos perdidos, a nossa libertação não ocorreu pois só vivemos e sonhamos pesadelos totalitários e os cultos a um só pastor, a devoção e a proclamação de uma só fé trouxe mais situações inquisitoriais e infernais ao mundo atual. Leiam, a propósito do que até aquí vimos pensando, o livro do historiador francês Jean Delumeau, intitulado Mil anos de felicidade – uma história do paraíso, editora Compahia das Letras – São Paulo – 1997.

     Afinal, aqueles que prometem a felicidade àqueles que “não têm medo de ser feliz ”deviam esclarecer mais transparentemente os passos operacionais de suas mágicas utopias. É óbvio que prometem a felicidade porque quase todos nós fomos fisgados pelo anzol que nos levará mais cedo ao Éden. Prometem a felicidade porque querem o poder a qualquer custo e o povo a qualquer custo quer satisfazer suas necessidades e fantasias e desejos.

     É legítimo que tenhamos nossas aspirações mas é menos doloroso e menos infeliz realizá-los sabendo que toda conquista implica em uma opção e ao fazermos tal opção estamos aceitando alguma perda ou algum custo material, emocional ou espiritual .Mas, vejamos o seguinte, em nossos projetos de felicidade devemos conhecer transparentemente e mais nítidamente os mitos, os valores e as imagens que herdamos de antepassados e vanguardistas, entre tais mitos está o próprio mito da felicidade, ânsia milenar repassada por todas as gerações às que lhes sucederam, quimera utópica de altos custos para todos nós e para o nosso planeta.

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Ninguém diz tudo o que pensa ou sente e se o disséssemos o mundo teria um enfarte fulminante

Crônica de: Neo-barroco

”Toda pessoa que diz sempre a verdade acaba sendo apanhada em flagrante.”

Oscar Wilde

     O que eu digo é verdade e várias vezes realmente fui flagrado. Mas, como homem moderno (ou pós-moderno) omito um “mea culpa”. “Tem hora que a gente tem de se fazer de boba”, diz Diva. Departamento de Investigação da Vida Alheia. Ativando a circulação dos meus demônios através dos meus circuitos de neurônios, eu os deixo estafados e me torno angelical. O bíblico cinismo divino hoje é “evangélico”. Uma ex – adolescente disse na televisão: “se tem uma coisa que não muda é o fato de que todos os dias mudamos algumas coisas em nossas vidas. A boca do céu seria tão platônica quanto o céu da boca? O futuro será passado, o presente já foi futuro e o passado teria sido o nascedouro de muita coisa e de muitos seres que nem chegaram a nascer, abortados por desencontros imprevisíveis e, muito menos, começaram a existir e a prosperarem. E tudo se quebrou e virou um quebra-cabeça no qual cada um de nós tenta montá-lo à sua maneira. Eu aqui me limito a revelar cacos amontoados em minha labiríntica trajetória. Meu primeiro livro de cabeceira não foi da coleção Livro de Cabeceira do Homem da editora Civilização Brasileira de Ênio Silveira (coleção lançada no fim dos anos sessenta), mas, sim, o meu primeiro livro de cabeceira foi Romain Rolland par lui même, traduzido para o português, e comprado numa livraria da avenida Amaral Peixoto, no centro da então capital fluminense, Niterói. No passado, no presente e no futuro brilham os “luminosos lírios das estrelas” (Cruz e Souza), desabrochados em “faustosos brocados do Firmamento” (Cruz e Souza) como se extasiados diante das trevas que suportam “pós de lua e úmida terra” (José Lézama Lima) com o beneplácito omisso do Superior. Paul Valéry só admitia a beleza leve da pluma se a mesma ainda estivesse viva no dorso da ave que a fez brotar do inexistente. Meu vôo alienado e aleatório é um passeio pelo que me constituiu. Como a José Lézama Lima, arrepiam-me “a firmeza mentida do espelho” e o canto gregoriano do rio -enxurrada que busca o poente da foz sem gritos para ajudar na “fuga do dormir”. E acrescenta Cruz e Souza:”.... após o esmaecer da luz, a Via Láctea resplende como um solto colar de diamantes e a Lua surge opaca, embaciada, num tom de marfim velho”. Minha língua é uma labareda em desesperada busca de alívio e serenidade. O mais expressivo artista plástico brasileiro do século XX é um outro mulato, como o Aleijadinho dos séculos XVIII e XIX, chamado Antonio Bispo do Rosário, e eu sou seu Arcipreste, a regar os ciprestes dos jardins das cinzas. Meus sapatos são de um couro cinza camurçado como os pêlos de um rato comum do dia-a-dia. “Ninguém nos molda de novo com terra e barro, ninguém evoca o nosso pó. Ninguém. (..) Louvado sejas, Ninguém. Por ti queremos florescer/ Ao teu encontro.” (Paul Celan traduzido por Cláudia Cavalcante)... Só em parte concordo com Allen Ginsberg (1926/ 1997): “ o método deve ser a mais pura carne” assada com molho simbólico de champignons, mostarda, aspargos e uma pitadinha do mais autêntico curry (tempero indiano)..... regada a “raros relatos crus”. Com menos de cinco anos de idade cai sobre estacas de pés de tomate na horta da minha casa e quase furei meu olho esquerdo. Minha sala de psicanálise é na cozinha do meu local de trabalho: lá tempero alfaces calmantes com minhas lágrimas salgadas. Fui Édipo, hoje sou Saturno. É profunda e irreversível a minha descrença em relação a todas as formas e atitudes revolucionárias. Para mim o que se busca é só uma suspeita viração de mesa, quem não está no poder ou quem partilha fatias de poder (por eles consideradas insatisfatórias), assume o mando da nação totalitariamente, só isto. Eu gostava muito de inhoque e há mais de um ano não preparamos tal massa aqui em casa. Me dás champanhe em uma taça no formato de seios maternos? Minha loucura expressa me consola. Edith Piaf canta La vie en rose, mas eu prefiro outra canção do seu repertório: Non je ne regrette rien. Gosto mais desta sua canção. Hoje vou comer bolo dietético de chocolate. Há muito tempo não vejo um jogo de futebol na roça, nem vejo alguém com gumex no cabelo e nem tento mais saltar do bonde em movimento, nem existem mais bondes!.. Será que estou ficando no passado?...

     Eu gosto de mingau de fubá com couve rasgada, uma pimentinha malagueta, e feijão preto e, suando, e tomando pratadas desse mingau, muitas mães amamentavam seus bebês louros ao mesmo tempo que portavam bolsas de couro cru cheias de fraldas e babadores. Adoro até hoje a essência do talco Johnson’s. Reminiscências olfativas e proustianas da minha infância. Um mar de fé oculta anônimos naufrágios. Estudantes revolucionários da União Nacional dos Estudantes e, provavelmente da Juventude Universitária Católica, em Setembro de 1959, quando eu voltava de trem da minha Primeira Comunhão em Congonhas do Campo – Minas Gerais, ao entrarmos num túnel (e eu nunca tinha visto a escuridão de um túnel), começaram a gritar que estava ocorrendo um desastre ou que estava acabando o mundo. Danei a gritar aterrorizado. Papai custou a conter meu pânico e minha mãe, envergonhada, ria sem graça e me beliscava, dizendo: — ”Fica quieto, bobo!”.. Estes estudantes me introduziram no mundo do medo e, talvez por isso, até hoje associo arquetipicamente revolução e terror, medo e fim do mundo, modernidade e bagunça... talvez eu seja descendente de algum inconfidente mineiro ou de algum revolucionário francês guilhotinado ou tenha tido algum dos meus milhões de ancestrais sacrificados à beira de algum caminho pelos soldados de Carlos Magno.. não sei.. só sei que algo profundo me ocorreu a partir daquela desrespeitosa e agressiva instalação do medo de um desastre final em minha sobressaltada alma infantil.

     Chegar ao lugar ao qual nos destinamos é um milagre, partir é um gesto de esperança.. fluxos e refluxos em nossas dores, festas, chegadas e partidas, viagens.. Minha literatura é um “ex-voto” de gratidão pela continuidade da minha vida num mundo no qual a vida tem cada vez menos valor ou sentido. Estórias votivas ouvidas num labirinto repleto por uivantes peregrinos a baterem desesperadamente nas portas de basílicas, mesquitas e sinagogas fechadas por títeres de estados ateus. Impedidos de ingressarem naqueles espaços sagrados, banquetearam em frente de uma deslumbrante cachoeira, em torno da qual comiam, cantavam, estalavam os dedos como castanholas, dançavam e lavavam seus corpos e suas almas com água diamantina, ovelhas assadas oferecidas em lindas e longas mesas forradas com toalhas brancas ou pretas salpicadas com multicoloridas e perfumadas flores, ao ritmo de músicas dos povos do Cáucaso.

     Encostado a um muro de uma fábrica desativada, e vestindo calça e jaqueta de “jeans”, sou cortejado pelos homens que passam em carros ou em motocicletas... eles admiram o meu estilo pós-moderno diante do mundo contemporâneo, no qual volto para casa em ônibus super- lotado por aflitos seres genericamente designados como humanos. O século e o milênio estão se esvaindo na ampulheta do deus Chronos....

     As eventuais festas e comemorações suspendem as agruras do cotidiano. Ao luar, em seus reflexos sobre nuvens em formatos de carneirinhos prateados, Jesus apascenta suas ovelhas, enquanto lhe escapam, para regiões trevosas, as desgarradas de seu celestial rebanho de almas. Duas horas antes, Ângela Maria e Pery Ribeiro cantavam a Ave Maria Brasileira.. Emocionante!.. O patriarca ortodoxo, embora seja a favor do ditador da Iugoslávia, nos abençoa com o seu cajado de ouro de pastor dos eslavos cristãos e a sua capa de ouro cheira incenso e mirra da Pérsia, após décadas de rituais em meio a fumaças e odores místicos, que em formas aleatórias ascendem aos céus dos retábulos em estilo Pedro, o Grande, adornados com colunas salomônicas. Nesta hora, em minha casa russa, eu lavava meus pés em água morna, tomava leite aquecido sobre uma camada de açúcar tostado e preparava-me para dormir com os anjos num quarto com paredes da cor de salmão com arabescos dourados. Em meus sonhos, uma voluptuosa cobra ostentava um couro de onça com manchas de ouro de dezoito quilates. E quando fumei maconha pela primeira vez me imaginei sob uma chuva de pingos luminosos de ouro mineiro e na mais profunda e serena solidão.

     Enquanto no Brasil quase todos os projetos de resssocialização de pessoas idosas levam a bailes aparentemente animados por lances quase jocosos, na Inglaterra uma parcela expressiva das pessoas com mais de sessenta e cinco anos de vida, abandonadas por suas famílias, começam a consumir drogas e, outras, a praticarem assaltos à mão armada em bancos e supermercados. A caravela com a qual este Ulysses joyceano singra os mares de vinagre do mundo pós-moderno é semelhante ao arcabouço de um avestruz. Uma vez em terra, corro para a minha caverna eletrônica para navegar ao sabor das ondas da internet. E quando estou no epicentro verde azulado de um deserto de água salgada, quero caminhar a pé até os confins desse ovo planetário. Um novo golpe de estado no Quênia nem sequer alterou o fluxograma das rotas aéreas africanas. “Quando o açúcar elaborado nos caules surge no fundo das flores, como xícaras mal lavadas – um grande esforço se produz no solo de onde, súbito, as borboletas alçam vôo.” (início do texto poético A borboleta de Francis Ponge – 1899/1988). As barbáricas violências nos estádios de futebol ingleses e holandeses me levam a pensar na hipótese spengleriana de decadência do ocidente ou de declínio da civilização européia, agora tão violenta quanto os povos empobrecidos e marginalizados da Ásia, da África e da América Latina e de outros guetos de descendentes de indígenas, hispano-americanos, asiáticos e negros nas sociedades norte-americanas. Diante da ameaça de ruína que paira sobre a civilização que ainda precariamente ordena esse mundo sinto pavor diante da possibilidade de um vácuo civilizatório ou diante da emergência de despotismos fundamentalistas e ideológicos a sucederem o legado que orientou o desenvolvimento histórico ocidental após a decadência do Império Romano e a hegemonia da Igreja em questões do poder temporal medieval.

     (...) “É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi.” – Caetano Veloso, na letra da sua música Sampa. Tanto me excitam nossa cumplicidade e sensualidades diante dos nossos cheiros e formas culturais de existir nos trópicos brasileiros!.. A santa rebola em cima do andor ao som do dobrado da banda de música Santa Cecília, de Tabuleiro – Minas Gerais. Se a Bahia é o nosso berço, Minas é o nosso oratório, Pernambuco foi o nosso engenho, de onde saiu grande parte do açúcar que condimentou nosso sonho brasileiro. O Rio de Janeiro é a festa, a algazarra de papagaios carnavalescos. E o Rio Grande do Sul é a mais saudável configuração do vigor e virilidade da alma brasileira. O Paraná é a terra da pinha e da erva-mate dos nossos chás com torradas em nossos dias de crianças classe média com diarréia. O Mato Grosso do Sul é o cenário mais deslumbrante do paradisíaco casamento entre a terra e a água. O Mato Grosso do ouro de Cuiabá, a terra que lembra Rondon, o amigo dos índios... O Acre que foi boliviano.. o Amazonas dos bois de Parintins e da nossa mais profunda alma cabocla, o Pará da Virgem de Nazaré... O Maranhão dos babaçuais.. o Piauí, nosso berço pré-cabralino? O Ceará dos jangadeiros e do padre Cícero.. O Rio Grande do Norte dos cajueiros e de Luiz da Câmara Cascudo.. a Paraíba de Ariano Suassuna e da minha cunhada Alda... Goiás da Cora Coralina e seus tachos de goiabada e mangada.. as Alagoas de Graciliano Ramos, o Sergipe e sua Aracajú.. a Nossa Senhora da Penha de Vila Velha do Espírito Santo e suas areias monasíticas de Guarapari e os barriga-verdes de Santa Catarina, litorânea e interiorana, turística e industrial, germânica e brasileira.. E São Paulo do mundo encantado de Monteiro Lobato e das prostitutas com meias de seda preta e fábricas e rodovias super-modernas... São Paulo dramática, violenta e arrojada!...

     Quando sumirmos neste mundo, alguns dirão que cavamos covas profundas e nelas nos metemos em espirais sem fundo, sem fim. Atrás de Paul Celan. Foi lá em Conceição do Formoso que se deu a concepção de Joaquim meu pai, filho de Argelina com Pedro o formoso. Meu avô paterno se parecia um bocado com o ex-governador paulista Adhemar de Barros. Os paulistas sempre me lembram também dos bombons brigadeiros, das paçocas de amendoim de Campinas, do café de Ribeirão Preto, de Batatais, Altinópolis e de Franca e, como New York nos lembra o Empire State, Sampa nos encanta e nos amedronta com o seu altíssimo edifício do BANESPA, ou o apavorante restaurante de vidro no terraço do edifício Itália.. Brasil.. meu Brasil brasileiro!.. Meu mulato inzoneiro!...

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O enjôo paulista

     Após vinte anos de vida em São Paulo, consigo sentir um profundo enfastio e náusea abatendo a alma paulista. São Paulo decai, se empobrece. As universidades paulistas não vislumbram mais superações para suas viciosas espirais “acadêmicas”. A direita patrimonialista tucana está gritando: — ”Estão matando a nossa galinha dos ovos de ouro, gente!”

     Paul Claudel afirmava que o céu é tão azul que só o sangue é mais vermelho. Pois eu afirmo que as listras pretas da bandeira paulista não podem ser mais pretas do que as suas listras brancas.

     O confronto cultural entre Minas e São Paulo se reatualiza. João Guimarães Rosa não via a obra de Mário de Andrade como um dos parâmetros estético-literários para a sua narrativa romanesca. Rosa repelia os abrasileiramentos e os programas e plataformas de Mário, recusava seus paradígmas plebeizantes e empobrecedores da língua, apoiados numa sintaxe popular (filha da ignorância ou da indigência verbal). Leia, a respeito desta questão, o ensaio de Leda Tenório da Motta intitulado As margens do sentido em Guimarães Rosa em seu volume de ensaios Catedral em obras, publicado em São Paulo pela Iluminuras em 1995.

     Os horizontes platinos chafurdam num caótico pântano nostálgico e irreversível. A Paulicéia pós-industrial, anêmica, nem se cora diante do escuro e fétido Tietê. Seu histórico rio virou um emblema do auto-desrespeito paulista. Mazzaroppi é o Carlitos paulista. Hoje, a TV Globo é a Hollywood paulista. A Catedral da Sé precisa ser restaurada senão desaba. Falta-nos fé.

     A falta de dissimulações, o jogo aberto, pesado e ostensivo, as colunas greco-romanas-estadunidenses, a preguiça soturna após um jantar/banquete de sapecas empresários gays paulistas, nada disto, por ora, terá um Proust à altura para descrever e narrar. Hebe Camargo está muito longe de ser uma condessa Chevigné... dona Lila Covas seria a antítese da duquesa de Guermantes!... Quem seria o Swann paulista? Zé Simão? Darcy Penteado teria sido o Sainte-Beuve da Paulicéia? Creio que nenhuma dessas comparações sejam razoáveis.

     Os paulistas já nem vão mais de terno e gravata aos cinemas, nem desembarcam de trens com aquelas capas européias de gabardine..... e, se no inverno, com capas negras de lã, como as que os franceses e os alemães de Düsserldörff envergam!....

     (....) ”O amor é o espaço e o tempo tornados sensíveis ao coração... Não se ama ninguém quando se ama.” – Marcel Proust.

     Em São Paulo, o libertino “cosmopolita” cede lugar aos tarados, aos sádicos policiais, aos delegados devassos ou aos moto-boys do parque do Estado!...Assombrações sexuais esvoaçam pelas estações do metrô paulistano, por praças e saunas, relax e cemitérios paulistanos. Favos e nichos psicoterapêuticos em espigões da selva de pedra paulista não salvarão o moço que não pára de desejar os calos dos pés de um jogador de futebol. Cai a máscara da objetividade científica uspiana/unicampiana ou puquiana. (...) “Eu gostava de navegar nesse lago, avizinhar-me do rochedo imóvel, medi-lo por inteiro, encobrir-me em sua sombra espessa.” (Marcel Proust).

     Nos subterrâneos paulistas desenterro os cheiros patriarcais do passado bandeirante, peidos, hálitos matinais de bordéis, cheiros de mijos em colchões de palha de milho, baforadas caipiras de cigarros de fumo de corda ou de rolo, maus hálitos de dentes podres..... Hortas viçosas regadas com cristais multicoloridos de água dos riachos não poluídos de outrora nos proporcionavam almoços deliciosos e sonolentos. A boca de pedra da cisterna da dona Raquel, fresca como um oásis, é a espreguiçadeira dos gatos da vizinha que tosse porque nunca tira da boca o seu cigarro de palha.

     Proust pergunta se a realidade só se forma na memória. Monteiro Lobato bem que poderia ter sido o Proust paulista mas não o foi. “Às vezes na vida, sob o golpe de uma emoção excepcional, a gente diz o que pensa. (...) Pois muitas vezes desejei rever uma pessoa sem me dar conta de que era simplesmente porque ela me recordava uma sebe de pilriteiros, e cheguei a crer e a fazer crer num renascimento de afeição quando não havia mais que um simples desejo de viagem. (...) mais azul parecia a lonjura dos bosques... (...) as pessoas mais sinceras têm sempre algo de hipocrisia e ao falar com um terceiro, se despojam da opinião que têm a seu respeito, expressando-a logo que o outro se retira... (...) pois não pensamos em nós e sim em sair de nós. (...) as mesmas emoções não se produzem simultaneamente, numa ordem preestabelecida, em todos os homens. (...) “Acho muito razoável a crença céltica de que as almas daqueles a quem perdemos, se acham cativas nalgum ser inferior, num animal, um vegetal, uma coisa inanimada, efetivamente perdidas para nós até o dia, que para muitos nunca chega, em que nos sucede passar por perto da árvore, entrar na posse do objeto que lhe serve de prisão. Então elas palpitam, nos chamam, e, logo que as reconhecemos, está quebrado o encanto. Libertadas por nós, venceram a morte e voltam a viver conosco.

     É assim como o nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora do seu domínio e do seu alcance, nalgum objeto material (na sensação que nos daria esse material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca.” – Marcel Proust.

     Para Rolland Barthes, “Proust compreendeu que não tinha que contar sua vida, mas que sua vida tinha a significação de uma obra de arte.” (Cf. in: BARTHES, R. – Le Bruissement de la langue – Paris – Seuil – 1984 – p.319).

     Dialogando com o pensamento de Barthes, Proust aduz: “A verdade não precisa ser dita para ser manifestada.”

     São Paulo ainda não está em busca do tempo perdido, por isso ainda não tem o seu Marcel Proust. Ou W. Benjamin tinha razão em seu ensaio sobre a crise do discurso narrativo ocidental?

     As flores das laranjeiras de Bebedouro, as tulipas tropicais da Holambra ou os roseirais de São Roque ainda não foram traduzidos em cores e em perfumes. Os bolos formigueiros de Altinópolis-SP ainda não suscitaram catárticas e revolucionárias lembranças como as madeleines oferecidas a Proust por sua tia.

     Os Moreira Salles, os Setubal, os Piva ainda não investiram muito em arte e cultura, mas já o fazem. Na “alegria arbitrária da imaginação”, cachorrada para mim é festa. A grosseria da burguesia do interior paulista me lança ao ventre da nobreza. Em São Paulo, os ricos odeiam os pobres, sentem nojo dos pobres. E o conceito de pobre da burguesia paulista é o mais pobre deste mundo. Em São Paulo, a burguesia só imita. Aqui, mais honestamente, como no livro da Leda Tenório da Motta, “tudo é citação”.

     Em sua fazenda Pimenta, Batatais-SP, o casal Roberto/Beatriz busca alguma similitude com o perfume “stendhalino de milhares de violetas”. A imensa bacia orológica paulista é tão antiga!... O perfume das saúvas é o mais autêntico perfume caipira paulista. Acho que acabei de dar uma de amigo tamanduá das saúvas, coitadas!...

     Levei minha marquesa de São Paulo até Brasília e, de lá, com uma cunhada, ela seguiu até a sua província do Pará. Antes, tremendo de frio e com o sol raiando no Planalto Central, tomamos um café num bar da Rodoviária de Brasília. Esta minha nobre amiga sempre atribuía-me a “superior” condição de paulista. Talvez pelo tamanho do meu corpo, maior que o corpo médio dos paraenses. Exclama Marcel Proust em meus ouvidos: “Como, em psicologia, o sofrimento vai mais longe que a psicologia!...”

     Da idade das cousas à idade do couro e das cordas vocais, meu trajeto paulista ensinou-me a sentir nojo e asco pelo esnobismo grosseiro e abrutalhado dos paulistas. O poeta alemão Heine repassou a Freud e a Proust o seguinte chiste: um calista e agente de loterias (agora entendo porque conheci tantos engraxates que vendiam bilhetes lotéricos) contava, com orgulho, que tratara os calos do banqueiro judeu Salomão de Rotschild e que, durante o serviço, o tal ricaço sentara-se ao seu lado, tratando-o de igual para igual, “muito familionariamente”. Em São Paulo também os pobres fingem gostar dos ricos, puxam seus sacos e quando os encontram em semáforos, em seus caros carros importados, os cumprimentam ostentando intimidade com o bacana. É a mímese social e política paulista. Há muito não como um virado à moda paulista. “O lembrável é sem limites”, nos adverte Leda Tenório da Motta. Mas hoje comi lombo de porco assado, à moda da empregada da mãe do Raí. Um assado artesanal, caseiro.

     Adeus carne de panela oculta por banha de porco!.. “Dava-me vertigem ver, abaixo de mim e não obstante em mim, como se eu tivesse léguas de altura, tantos anos.” – Marcel Proust.

     A poesia é uma dança sem caminho, sem sair do lugar... a prosa é uma marcha, pensou Paul Valéry. E completou: “...entre a voz e o pensamento, entre o pensamento e a voz, entre a presença e a ausência oscila o pêndulo poético.”

     A poesia paulista brota na arca do negro profeta-cantor Itamar Assumpção, na língua porosa do podólatra Glauco Mattoso, nos textos da decadente duquesa Hilda Hilst ou na música da ex-roqueira e ex- marginal Rita Lee. Jatos indefinidos e imprevisíveis como a vida!..

     A literatura paulista é pobre como a sua burguesia. José Mindlin é o maior bibliófilo do país e ex- dono da Metal Leve. Uma exceção. Oswald de Andrade é o exemplo mais contundente da pobreza autoritária e modernista da literatura paulista. “O verdadeiro escritor é um homem que não encontra palavras.” – Paul Valéry citado por Leda Tenório da Motta, em obra aqui citada. “Tudo é citação.”, repito.

     O meu primeiro e infantil contato com o mundo paulista foi comendo paçoquinhas de amendoim, vendidas no interior de Minas por caminhonetes (com carrocerias azul-marinho fechadas) da fábrica de doces Campineira.

     Nunca li nada do poeta francês Henri Michaux. Mas, um reveillon interrompido por uma crise de desamor, numa aristocrática herdade dos Cintra, na zona rural de Bragança Paulista, não chegou a me traumatizar. John Lennon acabara de ser assassinado. Nunca mais esqueci os mordomos me servindo sucos à beira da piscina da fazenda, nem dos móveis art-nouveau com vidros de água de cheiro lilás. Criados mudos cobertos por frias pedras de mármore!... Será que parecer causa o aparecimento do objeto? Para o poeta Francis Ponge nossas derrotas nunca serão completas.

     Ter ou ter tido a maior parte da riqueza nacional não fez de São Paulo a capital cultural do Brasil. As universidades paulistas tornaram-se insuportavelmente enfadonhas e pegajosas. As livrarias paulistas viraram shoppings de livros ou onde se compram livros por quilo!.. Os espetáculos, shows e vernissages das noites paulistas nos são oferecidos como eventos- mercadorias da indústria cultural paulista, brasileira ou global. Em São Paulo vi concretamente que uma andorinha sozinha não faz verão. O Festival de Música Erudita de Campos do Jordão é muito frio, chocho, vazio, suntuoso e politiqueiro. Tenho um profundo desprezo por estes rituais estéreis de novos poderosos ou novos ricos da incompetente e decadente cultura paulista. Prefiro viver entre dois infinitos: os caminhos da vida e o sono perpétuo da morte.

     Desci de uma das bocas da aérea baleia da empresa de aviação uruguaia e na alfândega de Cumbica me perguntaram se era estrangeiro. Disse que não. E, em seguida, me dispensaram de apresentar documentos e me deram ”boa vinda!”. Fiquei aliviado ao voltar a pisar solo pátrio. Assim, pela primeira vez, me senti, a um só tempo, brasileiro, mineiro, gaúcho, paraense e paulista. Mas em que difeririam as almas dos bois brasileiros e as almas dos bois do Uruguay? Ser tão no sertão ou tão ser no desertão, não é essa a minha questão fundamental. Existiria uma questão que me seja fundamental?

     Não, tudo me é banal neste bananal. Tudo é bang-bang no meio deste intenso big-bang!...

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O leite das feras

     Vovó era vigiada pelos porteiros que temiam o vai-e-vem de seus namorados. Movimentado o apartamento daquela benquista senhora!... Um dia, vovó caiu de pernas abertas no assoalho encerado da sala quando exibia às suas netas mais queridas seus passos de ballet prediletos e lá ficou imobilizada pela dor e pela emoção por vários minutos. Sua filha Lígia, com uma verruga nas costas ressaltada pelo decote do seu vestido de mulher escandalosa dos anos 50, chega e a guinda ao sofá celestial no qual cessaram as dores e suas cansadas carnes reviveram conforto e alívio. Não existe o mal sem o bem e vice versa. Melancólica é a moderna descrença nos desenvolvimentos escatológicos ou teleológicos ou ideológicos. Está todo mundo querendo dançar o rock da mula manca, gente!.. Vovó misturava todos os tempos no liqüidificador da sua oficina de sabores, cheiros, perfumes e sentidos. Nunca fiz concurso para trabalhar no Banco do Brasil. Mas sempre gostei de dinheiro ou do que com ele pudesse ter. Nestor Perlonguer denunciou a perseguição de africanos em feiras de grandes cidades do norte italiano, a expulsão de portugueses da Suíça e confessou desejar que a França fosse invadida pelos árabes. Sou uma folha sem árvore. A árvore também se posta contra a peste. O Brasil é um país com nome de árvore e suicida devastando suas florestas, se drogando e seduzido por líderes mafiosos, violentos e criminosos. Este é o mais desastroso resultado do nosso machismo ignorante e irresponsável. Entediam-me os elogios ao inviável, assustam-me os vácuos de poder que em breve serão preenchidos pela truculência política das gangs de bandidos sinistramente fascistas ou stalinistas dos nossos tempos. Adeus aos meus sonhos de avelãs e aos cheiros de brinquedos novos nas manhãs de dias de Natal!... Mercados, negócios, desejos e fantasias, caminhões verdes de madeira, vozes humanas glorificando a Divindade rondam e conformam nossas inconclusas identidades. Nunca morrerei afogado no rio Ouse, Sussex, sudeste da Inglaterra.

     (....) “Não tenho aptidão para amizades. Entre dois amigos, um sempre é escravo do outro, embora (..) nenhum dos dois o reconheça; ser escravo é coisa que não consigo e mandar, nesse caso, é um trabalho enfadonho porque além de tudo ainda é preciso enganar; além do mais tenho um criado e dinheiro.” – Mikhail Liérmontov (1814/1841).

     O vestido de Marylin Monroe era tecido por fios de lágrimas diamantinas e, com as mãos postas sobre o seu sonhado tronco, serpenteava um rosário de pérolas coaguladas do leite da loba que amamentou Rômulo e Remo. A gravata do líder messiãnico esvoaça insuflada pela ventania que avassala os canaviais dos ilimitados horizontes de nossas labirínticas paisagens. A fé nos horizontalizou, nos padronizou, nos aplainou, nos esmagou. Eu teria curiosidade e interesse de presenciar uma parada militar gay em Berlin.

II

     Para Donaldo Schüller, James Joyce prepara Otávio Paz. Quando o poeta e ensaísta mexicano diz que a poesia não nega, a poesia diz, de uma vez só, sim e não. Otávio Paz diferencia prosa de poesia: a prosa diz sim e não; na poesia sim e não se eqüivalem. (Confira na página 21 da revista D.O. Leitura – São Paulo – IMESP – Agosto de 1999).

     Meu niilismo se aprofundou em minhas noites na boca do lixo. Jean Genet, Fassbinder, Lúcio Cardoso, Jorge Luis Borges, Jean Cocteau e Allan Ginsberg me mostraram a errância mutante e migrante do amor. Nunca li Jacques Derrida. Só li trechos de livros de Gilles Deleuze. Não me queira mal por isso. Apenas citarei como o fez Borges, esta frase do católico Léon Bloy: “Nenhum nome sabe quem és.” Uma azeitona dá sabor de mar ao céu da minha boca, onde passeiam os noturnos sonhos de Esmeralda, anfitriã que comigo jantou num restaurante no qual, absorto, acompanhei o enigmático caminho de um peixe cor de pêssego num deserto de horizontes, enquadrado num repugnante e monótono aquário.

     No número 26 da revista literária portoalegrense Blau – edição de Junho de 1999, Maria Regina Barcelos Bettiol critica o país que valoriza a bunda em detrimento da inteligência. Será que cocô vale mais que idéias e sonhos? Viva o músico cubano Ibrahim Ferrer!... Schreber, o político alemão e o paranóico mais conhecido da história da humanidade, delirava em seus cultos ao ouro da luz solar reverberante. Freud, cem anos após o lançamento de sua primeira obra psicanalítica, continua sendo quem melhor nos demonstrou a verdade contida nesta frase bíblica: “O que Paulo diz de Pedro diz mais de Paulo que de Pedro.” O estilista mineiro Ronaldo Fraga proclama: “O Império do Falso esparrama-se na bacia das almas e ao seu redor um coral de galinhas de camelôs da praça da Rodoviária de Belo Horizonte canta sem parar o dia inteiro, escandalizando os que chegam e os que partem da capital mineira.” O vendedor de milagres atende numa sala de ex-votos. Por que ninguém mais se lembra do Zé Arigó? E, novamente, o estilista Ronaldo Fraga aduz: “E você não precisa querer ser a mesma pessoa a vida inteira. (..) Não saio para procurar alguma coisa específica, saio para mexer. Se algum vendedor me pergunta o que procuro eu digo que não sei. Acho que o vendedor bacana não oferece o que a pessoa foi procurar, ele tem que oferecer aquilo que nem a pessoa sabia que estava querendo.” Viva Artur Bispo do Rosário!...

     Concordo com a corrente psicanalítica para a qual as pessoas histéricas serão eternamente insatisfeitas. Sobre os histéricos, nos diz Regina Teixeira da Costa, “sempre que recebem alguma coisa desejavam outra. (..) a plena satisfação do gozo, seja ele qual for, produz angústia. (..) a angústia na histeria está relacionada ao desejo de manter o poder sobre o Outro, e como objeto de desejo desse Outro, continuar a controlá-lo. O histérico não se satisfaz na relação com o Outro para tornar-se imprescindível a quem ele serve. A máscara da disponibilidade e da servidão oculta a tirania do histérico.”

III

     Um personagem do romance Timbuktu de Paul Auster adverte o seu cachorro antes de viajar:

     — “Não acredite em palavras doces. Proteção significa problema.” Talvez os cães sejam anjos da guarda e se não o forem são deuses pois dog is god, 3 letras em 2 palavras que só se diferenciam apenas por um simples arranjo gráfico, numa o “D” vem em primeiro lugar e na outra é o “G”. E se a Bíblia foi escrita por uma anônima messalina dos tempos salomônicos? Voto em Shakespeare para o título de “homem do milênio”. Jerusalém nem é o que este nome significa: “cidade da paz”. Os chefes da primeira Cruzada cristã para libertar Jerusalém da dominação muçulmana, Godofredo de Bulhões, Tancredo e Reinaldo, durante esta guerra santa, apaixonaram-se por 3 guerreiras árabes chamadas Arminda, Clorinda e Hermínia. O amor liberta. As Cruzadas cristãs contra a dominação árabe na Terra Santa suscitaram o ânimo para os reinos cristãos desencadearem as guerras de reconquista da Península Ibérica islamizada há séculos. As guerras pela reconquista sugeriram motivações para as grandes navegações dos séculos XV e XVI e suas decorrentes empresas colonizadoras, a violência do colonizador contra as culturas indígenas e negras, lastreando e projetando-se nas atuais guerras dos Balcãs, onde ainda se confrontam forças cristãs e islâmicas. As guerras santas que ainda pipocam no Oriente Médio no fim do século XX foram, em remota instância, desencadeadas pelas Cruzadas medievais e pela violenta reconquista muçulmana de Jerusalém em 1241 comandada pelo sírio-curdo Saladim. Reconquista que recolocou, lado a lado, na mesma “cidade da paz”, árabes e judeus, povos que hoje lá guerreiam um contra o outro pela posse de Jerusalém. Antes da instituição do Estado de Israel, no início do século XX, a Palestina, o sul do Líbano, a Cis- Jordânia, o território do atual país Israel serviram de cenários da guerra santa entre judeus e árabes, embate que levou Hai Amin el Husayn, líder islâmico no Oriente Médio, a apoiar Hitler e a se exilar na Alemanha nazista que trucidava àquela época seis milhões de judeus em campos de concentração. Este ódio entre árabes e judeus não é antigo. Ganhou foros de ira política e religiosa após os movimentos sionistas do fim do século XIX que pregavam o direito dos judeus voltarem à Terra Santa de onde foram expulsos no ano 70 da era Cristã pelo imperador romano Tito. Esta animosidade recrudesceu após 1948, com a instituição do Estado de Israel, reconhecida pela Organização das Nações Unidas, e que culminaria na guerra dos 6 dias na qual, em 1967, os judeus retomam Jerusalém, as colinas sírias de Golan, a Cisjordânia e o deserto do Negev na península do Sinai.

IV

     Além dos labirintos territoriais da fé e do Sagrado, convivemos ainda com os espectros industriais, as ruínas de fábricas e armazéns, palácios das gangs, guetos, metrópoles caóticas e violentas, ostentações de fortunas e misérias extremas, mediocridades se generalizando, fétidas cloacas hidrográficas e céus enfumaçados. No palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro esguichavam lança- perfume e sopravam talco para as históricas apresentações (naquele santuário da tradicional cultura carioca) de Richard Strauss, Nijinski, Sarah Bernhardt, Isadora Duncan, Bidú Sayão, Márcia Haydée, Maria Callas e Fernanda Montenegro. Eu adorava devorar barras de chocolate Diamante Negro.

V

     Certamente ocultos ou driblando as percepções humanas subjazem às realidades um número infinito e indemonstrável de universos. Desconfia-se, hoje em dia, de todas as modalidades de observação. Dentro de uma célula ou de um glóbulo branco ou vermelho do seu sangue, ilustre leitor, ou nos cromossomas de um dos seus quintiliões de espermatozóides ou óvulos, coexistem e pululam vários mundos. Especulações da física quântica contemporânea como a que acima citei, há mais de cem anos, enlouqueciam em Paris o teatrólogo sueco Strindberg (confira lendo o seu livro intitulado Inferno editado no Brasil pela Max Limonad de São Paulo em 1982). Olhos de musgo e visco indagam sobre adiamentos, concepções, hesitações, êxitos, intuitos, intuições, impulsos, bom senso, dúvidas e mistérios insondáveis. Belo Horizonte... um cisne branco na cabeça.. a lagoa da Pampulha ainda está sendo despoluída. Belíssima a ninfa da tela Galatéia, pintada em 1880 por Gustave Moreau!... Será que a Marylin Monroe teria o mesmo destino de Brigitte Bardot se sobrevivesse até a alvorada do século XXI? No carnaval do Apocalipse, Fernando Arrabal, Ruth Escobar, Louis Aragon, Roberto Drummond, Joseph Stalin, Franz Kafka e Cecília Meirelles dividiriam um mesmo camarote? Gostaria de ler o romance semiótico A Ilha do Dia Anterior do italiano Umberto Eco. Seria Deus um imenso gorila King Kong que no alto do Empire State abraça a alva e apavorada donzela humanidade, resgatando-a do abismo sem fundo do caos? Salvando o homem da “desordem geral do pensamento”? Enquanto não é possível o conforto conclusivo, prefiro a errância de um leitor das páginas de Tennesse Williams. Leda, no dorso de um fálico cisne, navega rumo a Bizâncio, sob um céu de lua minguante. “Hei de ser um pecador até o final, e pensar, no meu leito de morte, em todas as noites que desperdicei na juventude.” (...) “ Das discussões com os outros, fazemos retórica; das discussões conosco mesmos, poesia.” – W. B. Yeats. Conheci uma elucidativa parábola de Ítalo Calvino na qual um meticuloso colecionador de vidrinhos com areia de todas as paisagens e micro- paisagens do nosso mundo viu-se reduzido ao grão primordial do infinito deserto universal no qual tudo se concentra ao mesmo tempo que se dispersa na simultaneidade do caos da unidade em luta contra as caleidoscópicas diferenças entre todos os seres e universos. Será que já no século XVIII o matemático sueco Swedenborg já tinha razão, tanto quanto o jansenista Blaise Pascal? Viva Antonio Conselheiro!...

VI

     Gostarei muito se algum dia cheirar as rosas de Sevilla. Impressionado com a nudez dos santos mergulhei na nudez especial e erótica da alma humana. “Despir-se é rasgar aos olhos de Deus um véu inexistente. Não é o corpo que se despe, mas seus atos: o sujeito se humilha para expiar-se de seu lado animalesco. (..) Seu alvo é o tempo, mas também o olhar que se mancha com sangue celestial. Quem olha se põe no lugar do alvo. E enaltece o vazio enquanto goza e se desmancha na carne. Quem goza tem os olhos de Teresa d’Ávila. (...) O corpo que não goza é feito para servir. E isso Sade demonstra como ninguém. (..) A santa nudez veste-se de amor ao próximo. Este despojamento é um sacrifício. O corpo, não é livre para gozar, mas para sofrer.” – Augusto Contador Borges, em recente edição do Suplemento Literário Minas Gerais. Até hoje( Novembro de 1999) nunca consegui ver o pênis de Jesus Cristo adulto. Porque censuramos até o sexo de Deus?

VII

     O de cima sobe e o de baixo desce.. Acaba de dar entrada no hospital da Restauração o corpo moribundo do bandido Perna Cabeluda. Chegou, em seguida, Saturno, o anunciador de novos tempos. Em Ribeirão Preto alguns se divertem abandonando cachorros de rua na rodovia Anhangüera e aguardarem os seus espetaculares atropelamentos fatais... aí os caminhões passam por cima e os molambos vão ficando lá.. cada vez mais inseridos na crosta asfáltica fóssil da rodovia que no futuro revelará muitos dos requintes da nossa presente civilização.

VIII

     Emagrecer seria uma forma de se desnudar?

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O moderno realismo político de Fernando Henrique Cardoso nos sugere um adeus às ilusões

     Nicolau Maquiavel foi o prócer ou o primeiro grande arauto da moderna política ocidental. Nesta política em que os ingredientes teocráticos do estado familiar feudal vão perdendo fôlego e credibilidade o conteúdo mais enfatizado passa a ser a concretitude realista do poder em seus lastros culturais e sócio-econômicos. Na transição entre a política medieval e a consolidação do estado nacional moderno o Antigo Regime foi uma mescla de passado senhorial, cesaropapismo, absolutismo monárquico, esperneios de fanatismos religiosos ocultando interesses e tramas políticas, cinismo e amoralismo cortesão, aristocracias e vôos ou fantasias de príncipes da Igreja e do Estado. O racionalismo e o Iluminismo ainda operaram políticamente com resquícios e anseios unitários da política teocrática tradicional, endeusando o Estado, a Razão, as leis, a pátria, muitas vezes em detrimento da lógica flexível, fluente e compactuada do jogo democrático. A sucessão secular de utopias, nacionalismos, socialismos, nazi-fascismos, bonapartismos, anarquismos e sociais-democracias desaguaram nos fétidos estuários dos totalitarismos dos séculos XIX e XX. O fim da guerra-fria (1945–1990) colocou e enfatizou a periculosidade acumulativa destes processos políticos das civilizações ocidentais. Norberto Bobbio e Hannah Arendt juntamente com os sobreviventes da Escola de Frankfurt fundaram suas reflexões nas emergências totalitárias e barbáricas da Ocidentalidade. Após o Maio de 1968 e o anúncio de John Lennon de que “ o sonho acabou “, entramos na era do adeus às ilusões. No caso particular da história política brasileira o ideário do presidente Fernando Henrique Cardoso nos propõe um adeus aos populismos e corporativismos, um adeus aos puerís nacionalismos de meados do século XX, um adeus às utopias derrotadas neste século extremista, um adeus aos estatismos intervencionistas ou paternalistas, um adeus as ilusões que pautaram nossa embaraçada e controvertida agenda no século que também nos dá adeus. De Maquiavel a Fernando Henrique a modernidade requer, antes de tudo, realismo. Tudo tem um custo e alguém deve pagá-lo: eis a mais contundente lição do atual presidente brasileiro. Honestidade política hoje significa, em primeiro lugar, não ser um demagógico vendedor de ilusões nem propagador de generosos ou messiânicos discursos ideológicos. Eis aquí o que é essencial no realismo político de Fernando Henrique Cardoso.

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O que nos faz querer viver ou continuar vivendo?

crônica de: Neo-barroco

     Até um cachorrinho abandonado na rua come e teima em continuar vivendo. Até os pessimistas continuam vivos. Todos querem ir para o céu, mas ninguém quer morrer. Parece que o impulso original que lançou os espermatozóides de nossos pais sobre os óvulos de nossas mães não termina na concepção que deu início ao nosso embrionamento, continuando nos mobilizando em nossas instintivas ou ontológicas lutas contra a morte e pela prorrogação de nossas vidas. Desesperados, refugiados de guerra sobem e descem íngremes montanhas cobertas de neve; crianças, jovens, anciãos, todos em busca de uma nova vida em outro país, resistindo à limpeza étnica dos sérvios em Kosovo ou na Macedônia. Mendigos fétidos e maltrapilhos insistem em continuar vivos, vivendo nas ruas, nessas frias madrugadas do outono e do inverno de 1999, no hemisfério sul deste planeta Terra tão maltratado. O grupo Titãs, em sua música O pulso enumera uma série de doenças físicas, morais e psíquicas e em seguida afirmam: “e o pulso ainda pulsa.” Me comovo com a resistência dos que aprendem a conviver com doenças ainda incuráveis e relutam em aceitar discriminações que os conduzam às suas mortes sociais. Arrolando tantos exemplos de pessoas que atravessam adversidades e depressões, recusando-se a morrer, quase concluo que a melhor explicação para todos esses casos está na consciência ou até na inconsciência e na instintiva busca ou defesa da própria vida, numa remota ligação com o impulso espermático que consumou nossa concepção, impulso esse que se configuraria ao longo de nossas vidas numa vigilante postura de auto-valorização a nos sugerir sempre novos sonhos e novos projetos de vida e de amor. Isto é o que nos leva a querer viver ou a querer continuar vivendo, a ver motivos para seguir existindo. Quando perdermos essas íntimas e profundas motivações, morreremos ou nos suicidaremos.

     Mas, a natureza humana não é monológica, é complexa, e muitas vezes incompreensível e rica em casos excepcionais, individuais, apesar de mais de um século de massificação cultural e, talvez, milênios de manipulações sócio-políticas e dinâmicas trocas comerciais engendradoras de fetiches mercadológicos e coisificações de sentimentos e sentidos desnorteadores de nossas existências.

     Entre estes indivíduos excepcionais cujos sentidos de existir não são comuns nem perceptíveis aos olhares dos comuns mortais está a santa Lola de Rio Pomba. Mulher que tentou e viveu mais de setenta e cinco anos sem alimentos sólidos, a não ser água e uma diária hóstia consagrada a ela enviada pelo pároco de sua pequena e setecentista cidade mineira. Com a espinha quebrada após cair de uma jabuticabeira, em torno dos seus nove anos de vida, nunca mais andou, passando a viver acamada, recebendo até a sua morte, com 87 anos, o corpo de Cristo em seu leito virginal e tendo como sentido místico para a sua existência demonstrar, com humildade cristã, a efetiva possibilidade de continuar viva sem alimentar seu corpo animal. Quando eu era criança eu sonhava ser uma espécie de doutor Fausto goetheano voando com uma capa escura (que no nosso século virou a capa azul com emblema amarelo e vermelho do Super- man ou a escura capa de Bat – man ou até os sombrios trajes do morcego conde Drácula) sobre o mundo, ostentando-lhe superioridade e o gozo de ver todos reduzidos à sua pequenês lá das alturas celestiais ou, ainda, sonhava poder viver brincando vinte e quatro horas por dia sem depender de qualquer tipo de alimento. Lola realizou misticamente essa minha fantasia infantil e o seu féretro, ocorrido no dia 10 de Abril de 1999, foi um acontecimento histórico em sua região natal.

     Fiquei sabendo da sua história ainda menino. Fiquei curioso para conhecê-la. Mas a minha curiosidade nunca pôde ser satisfeita por que, reagindo e se defendendo das várias reportagens sensacionalistas publicadas na então lucrativa revista O Cruzeiro dos anos 50, adotou como norma imutável para a sua existência o isolamento ou a clausura mística. Passou a receber apenas padres confiáveis e familiares mais próximos. Quando estudava num internato federal para ensino agrícola, entre 1966 e 1968, situado próximo à fazenda em que Lola vivia com sua irmã Dorvina e um meigo sobrinho, fui várias vezes à sua casa, conversei muito com a sua irmã e com o sobrinho, pedia-lhes a água fresca de filtro de barro que sempre me davam para beber e sentia e observava, impressionado, o cheiro e o clima de igreja que se vivia naquele casarão cuja fachada ostentava mais de dez janelas envidraçadas. Imagens do Sagrado Coração de Jesus e de Nossa Senhora das Graças, além de crucifixos antigos e quadros envidraçados de santos e santas católicas enfumaçados pelo tempo e engomadas toalhas brancas senhoriais e jarras com flores me remetiam aos âmbitos propícios às vivências e aos exercícios espirituais.

     A história da santa Lola projetou-se sobre o início da minha adolescência, garantindo uma certa continuidade à minha mística e devota infância, época na qual brincava de fazer diversos santos e santas com barro e cujos olhos nasciam com o espetar de uma redonda ponta de pena de galinha na cabeça de barro sagrada. Entronizava esses santos em andores de barro revestidos com papel prateado de embalagens de cigarro e, congregando a meninada da vizinhança, convencia-a a acompanhar as procissões que eu promovia, na qual eu era a um só tempo o padre, o que carregava o andor (tinha que ser eu a carregar o andor pois, uma vez, um dos que carregavam o andor saiu correndo com o santo e, de propósito, lançou-o longe) e ainda o músico que imitava toda uma banda de música. Tais préstitos saiam de uma igreja que eu instalava num pequeno espaço coberto por telhas, usado de vez em quando para proteger a lenha que a mamãe queimava no forno em que assava quitandas para o bar do papai e, quando vazio, este espaço entre o forno e o muro que separava nossa casa da rua, virava uma basílica. Suas paredes ganhavam nichos nos quais aderia imagens de santos de barro e, não raras vezes, encontrei montes de fezes de crianças sacrílegas nesse sagrado recinto.

     Mesmo após a minha formação universitária, já fazendo o meu mestrado e com quase quarenta anos, publiquei uma crônica no único jornal de Rio Pomba, falando sobre a minha admiração estética e espiritual pela história de santa Lola. Esta crônica recebeu o título Algumas fagulhas seráficas do Barroco nas Minas Contemporâneas e chegou até a ser publicada na página 4 do jornal Primeira Página de São Carlos, interior paulista, em sua edição de 11 de Maio de 1989. A seguir cito uma série de trechos desta poética reafirmação da presença santa de Lola em minha história.

     “Numa fazenda, cuja fachada ostenta grande número de janelas e um portal para a entrada de titãs, há quase sessenta e seis anos, Rio Pomba convive com o misterioso jejum místico da santa Lola, suas fortes dores de cabeça, seu olhar profundo, seus longos cabelos, seu duro leito de prazeres espirituais; seu diário banquete eucarístico. Reedição contemporânea do gozo e suplício de santa Teresa de Ávila, ao lado da santa Rosa de São Sebastião do Paraíso (sudoeste mineiro). Assim como o padre Antonio de Urucúia reeditou a trajetória de João da Cruz.

     Peregrina estática dos mistérios divinos, atraiu repórteres de todas as longitudes... .... ... Com a morte dos seus parentes mais próximos, Lola vive sua solidão mística, em seu imponente solar rural e barroco, em meio às flores, beija-flores, girassóis e cristalinos regatos ensolarados.

     À noite, grilos e sapos, corujas e galos integram, ao lado do coral de angélicos e celestiais músicos, a orquestra que musicaliza as Bodas e o Tantum ergo que esta anciã e seráfica virgem, iluminada por uma coroa de milenares diamantes, celebra diariamente com o seu Príncipe e Divino esposo.

     Luzes de candeias pontilham seu altar ao Coração de Jesus (devoção germânico-medieval institucionalizada no século XVIII, contra a qual se voltou o furor místico dos jansenistas). Com o fogo dourado, suas humildes e gloriosas caminhadas espirituais, são conduzidas pelo fervor de uma assombrante fé. Recusando o aspecto espetacular da sua ímpar experiência e as sombras dos que portam insuportáveis lamparinas bisbilhóticas de querosene, Lola dá continuidade a esta excelsa aura mística da religiosidade barroca mineira – persistente na cultura brasileira, apesar de “abominada” pelo espírito materialista-paulista. Minas ainda resiste, e remanescente na sua aura, brilham fagulhas de ouro de um passado, a um só tempo, opulento e miserável, sensual e espiritual, trágico e dadivoso.”

     Esta mesma confluência entre o “sensual” e o “espiritual”, anotada no final dessa crônica de dez anos atrás, me impressionava desde a minha infância. Quando li várias hagiografias de virgens mártires que perderam suas vidas em defesa de suas castidades, passei a refletir e a me impressionar com as histórias de santas e santos nas quais a devassidão, a perversidade e a luxúria se avizinhavam da inocência e da pureza, as obscenidades satânicas e pornográficas tentadoras e enlouquecedoras coabitavam com angélicas e castas almas como as de santa Inês (supliciada por tesudos soldados romanos) e de santa Maria Goretti, órfã de pai e morta com 12 punhaladas pelo filho de seu padrasto, Alissandro Serenelli, jovem louro e tarado que fugia da lida camponesa para ganhá-la e levá-la ao pecado e às licenciosidades que vira estampadas em revistas e cartões pornográficos que circulavam pelos arredores de Nápoles no início do século XX. Após inúteis e persistentes tentativas, desanimado e desnorteado pelos seus tentadores desejos, Serenelli matou o objeto de suas fantasias em Junho de 1906. Esta divina providência de justapor pecado e santidade animava o meu antigo interesse místico de revelar ou desvelar a identidade e o perfil ético do ‘onthos’ divino, a sua múltipla e complexa potência com perspectivas que passam pelo bem e pelo mal e ultrapassam estes arquetípicos parâmetros ou paradígmas da moralidade cristã (ainda maniqueísta). A vida pregressa de santo Agostinho é outro exemplo sublime do que acabo de colocar.

     Assim especulando, quase concluo que um dos sentidos mais profundos de nossas existências parece residir em nossas prometéicas tentativas de flagrar e iluminar a essência da alma divina e dela, se possível, se apossar. Ou seja, um dos sentidos para a humana existência parece se configurar em nossos obscuros ou opacos intentos espermáticos de chegar até Deus, solar e majestoso óvulo-nicho mistérico do calor anímico da vida, tesouro que temos e que não queremos perder.

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O último encontro de escritores

     Marta me levava ao seu vale natal. Lá me mostrou umas pedras escuras recheadas por um metal que eu jurava que era ouro. Mas era manganês. Saí do vale da Água Limpa sob o ouro do por do sol, me sentindo um Fernão Dias Pais Leme. Será que Deus teria dado, à toa, àquele pernóstico menino o que não dera ao ilusório descobridor de esmeraldas? Desde menino eu sonhei com um mapa mágico de uma mina que nunca encontrei.

     O primeiro cio da minha cachorra Saragoza me emocionou, levando-me ao pré- choro. Vou ser avô. E ela dançará ao som do agogô, sem saía e com as suas canelinhas finas de boxer tigrada que só gosta de cachorrão. Saragoza já é moça.

     Porta de Livraria era o título da coluna literária do ensaísta e diplomata comunista Antonio Olinto no jornal carioca O Globo. Zanoto assina há mais de 40 anos a mais longeva e eclética coluna literária do interior do Brasil, Di-versos Caminhos, no Correio do Sul de Varginha, Minas Gerais. E ainda me avisou que não é do ramo. Escritores!... Entre eles temos ariscos, marcianos e anti-petiscos. Eu sou anti-petista, só isso. Mas, vejam bem, já votei no Lula para governador em 82 e para presidente no segundo turno de 1989. Na próxima eleição presidencial devo votar (um tanto a contragosto, meio desalentado) num desses quatro: Jayme Lerner, Anthony Garotinho, Joãozinho Trinta ou Ciro Gomes... talvez Luiz Mott tendo como vice o godardiano Jomard Muniz de Britto. Antonio Ermírio de Moraes também seria um nome que eu sufragaria para presidente do Brasil.

     Saudades do Álvaro Lins, do Otávio Farias, do Oto Maria Carpeaux, do José Honório Rodrigues, do Gilberto Freyre, do Agripino Grieco, do Vítor Nunes Leal e do Milton Campos!.. E também do Ernane Sátiro da Paraíba, porque não? Conversei uma vez na Cantina do Lucas, na galeria do Edifício Maletta, com o contista belorizontino Murilo Rubião. Mas perdi as anotações que fizera durante e após este inesquecível diálogo. Outro papo ilustre foi com o crítico Fábio Lucas no Hotel do Senac em Ouro Preto-MG em Maio de 1993.

     Cheiro de goiaba de Fevereiro, passarinhos cantando apesar de presos em gaiolas, bolos de fubá com erva – doce assando por essa América Latina a fora e eu buscando a possibilidade da imagem sintetizadora do processo do encanto.

     “Pero en el paisaje americano... lo barroco es la naturaleza (...) Lo barroco, en lo americano nuestro, es el fiestón de la alharaca excesiva de la fruta.” – José Lézama Lima, “Corona de las frutas”, in: Imagen y posibilidad, Letras cubanas, Havana, 1981, p.34.

     Para mim o paraíso perdido tinha um sabor de salada de goiabas, jabuticabas, pitangas, mangas, pedaços de cocos da Bahia e de bacurís do Pará, encharcada em sucos de melancia e romã com cobertura de rapa de doce de leite colhida de tacho de cobre. Uma ambrosia celestial!...

     O presidente da Federação Paulista de Pugilismo cobra mil e quinhentos reais para que filmem o ringue das competições de luta livre por ele carimbadas. Gostaria de rever Rocco e seus irmãos, filme de Luchino Visconti.

     E agora, Eunice Arruda, como ficam aqueles que não fazem poupança para morrer? Nem John Kennedy Jr. esperava morrer tão bonito!.. Coitados dos dentuços expostos em cruéis féretros reveladores!.. E do seu livro Risco, publicado em São Paulo, pela Nankin, em 1998, Eunice Arruda nos responde:

     “Não podemos deixar morrer nenhum nascimento. Sob as palavras um abismo. E há ouro no céu de crepúsculo/ há um besouro que agoniza na calçada/ e ventos vindos do oeste. Tenho usado tanto este corpo / É justo que o deixe/ que eu o deite/ que o esqueçam. (...) Cabe agora morrer o corpo/ dia a dia ir me desacostumando do rosto que eu chamava meu.” Resposta pungente, de apertar o nosso coração. Se até para fazer a barba dói, imagina quando eu disser bye bye para a minha capa ontológica!...

     Zanoto, el Zorro de las Letras, me chamou de malabarista literário. Advertência ou elogio? Sei não.. mas hoje eu até falei com o José Nogueira sobre o meu prazer de viver morrendo. Ou melhor, o meu prazer de viver só diminuiu quando minha real diabetes proibiu-me goiabada cascão. Mas que a Artemísia do Prado Torres coma mais goiabada cascão, em parte por sua própria gula e noutra parte por mim, que tive tal prazer interditado. Queijo Minas fresco ou verde eu posso... Acho que vou pegar um cineminha ali na nossa sala, depois que acabar de ouvir o CD Qualquer coisa do Caetano Veloso. Vou ver os Vídeos Experimentais de Luiz Rosemberg Filho. Caetano Veloso canta Eleonor Rigby, música e letra de Lennon e Mc Cartney. O Suplemento Literário do Minas Gerais voltou a ser o melhor suplemento literário ou revista de literatura do Brasil às vésperas do ano 2000. É charmosíssimo, chiquíssimo Caetano Veloso cantando For no one, também de Lennon e Mc Cartney. Viva Elisabete Beeshop amiga de Carlos Lacerda!... Sempre o Suplemento Literário do Minas Gerais, desde 1967, nos apresentou algum padrão de excelência editorial, mas agora é diferente: em pleno governo populista de Itamar irrompe nas páginas literárias da Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais um surto de neo-barroquismo lézamiano que eu estou adorando. Em Dezembro de 1998, no texto Coral Bracho e no poema Água de Medusas de Josely Vianna Baptista tem início este surto/ciclo. Caetano Veloso canta Lady Madonna e eu queria saborear chá de beladona. “Muito terá sido por causa de você, viu Nicinha?!...” – canta Caetano Veloso, Caetano Velô, Caetano Vê, Caetano, Caeta, Cae.. C Cosmopolitismo é o nome do surto que grassa no Suplemento Literário do Minas Gerais. Os intelectuais e escritores mineiros, desde o Aúreo Throno Episcopal de 1748 (quando poemavam temas babilônicos), já eram barrocos e cosmopolitas.

     Mergulho na música colonial brasileira. Ladainha em Fá de José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita. Embora reconheça o valor dos anônimos e deletados, não posso negar a minha idolatria pela vida e a obra de José Maurício Nunes Garcia. O cosmopolitismo pós-moderno é a atualização da visão barroca de Santo Ambrósio sobre o feminino na transição da Idade Média para o Renascimento: uma vitrine de amostras de belezas saudáveis de todas as partes deste rico e devastado planeta. Labirinto feminino de trompas, nichos e ninhos insondáveis de ovos da vida e da morte.

     Leila Miccolis é sincera, séria, madura, leal e minha amiga. Confidente e conselheira. Uma das minhas na corte da literatura alternativa brasileira. Eduardo Waack, nessa corte, está com uma cara de Dom Pedro I devasso!.. Hugo Pontes seria o Dom Pedro II do nosso império da poesia visual; até agora não sei quem reencarna João do Rio um século depois da sua existência. Serei eu? Paulo Valadares, de Campinas, é o meu Gershon Schöllen. O negócio é ir direto ao néctar volátil das flores. Tudo é efêmero. Até as letras? Entrei na sociedade de mercado, convivo com riscos, não encontro sereias distraídas nem céu com azul de Cândido Portinari!... Quero vender minhas mercadorias poéticas, quem as quer comprar? “Mãe, eu vendo bananas, mãe! Mãe, mas eu sou honrado, mãe!..”, canta Ney Matogrosso... Ai que platônica vergonha ao decidir vender minhas mercadorias poéticas, meu Deus!.. Cadê o meu filme de Sergei Paradjanov que não chega de New York, my God!... Não me esqueço de Jeanne Marie Gagnebin, autora de vários ensaios sobre a impressionante obra de Walter Benjamin. Jean Claude Bernardet: eruditamente acadêmico e anti-acadêmico. As conexões entre as altas, médias e baixas culturas brasileiras hodiernas não têm merecido o necessário interesse dos nossos intelectuais. Me sentiria muito honrado em sendo reencarnações de João do Rio, Adolfo Caminha, Crus e Souza, Alphonsus Guimaraens, frei Jesuíno do Monte Carmelo de Itú-SP ... Eu me sinto tão cru!.. Sonho ser São João de la Cruz!.. Glauco Mattoso ou Pedro o Podre dá no mesmo!..

     Não consigo entender o P. T. Agora há dois meses soube que grupos de contaminados pelo HIV em Porto Alegre tiveram que recorrer a uma instância judiciária federal para que a prefeitura petista da capital gaúcha lhes oferecessem remédios anti-AIDS. E no discurso eleitoral petista defendem os direitos sociais e humanos dos soropositivos e/ ou imunodeprimidos. Ao mesmo tempo, o P. T. se relaciona muito bem com Fidel Castro que não trata humanamente nem os doentes de AIDS em Cuba nem os dissidentes e/ou oposicionistas. Stabat Mater – Andante Moderato de João de Deus de Castro Lobo me emociona. Por outro lado, o P. T. acusa o prefeito de Ribeirão Preto de insensibilidade neo-liberal mas prefeitos petistas também demitem e, outra, salários de funcionários da C.U.T. são reduzidos!... Em nome da estabilidade. Entendem? ..

     Quanto aos vídeos experimentais do Luiz Rosemberg Filho: são muito contundentes, denuncistas e operam no limite tenso do fio da navalha entre o sangue quente na veia e o cadáver gelado do I.M.L., muitas palavras dando a entender que as imagens não falam por si...trilhas musicais melhor trabalhadas que as imagens, algumas vezes repetitivas... vídeos entre o sacro e o profano .. o rural e o urbano.. o teleológico, o teológico e o ideológico.. com desarvoros glauberianos dos últimos dias. Com o fluxo das vanguardas dos anos 60 e 70, hoje o cinema de Luiz Rosemberg Filho seria tachado de manifestação da “cultura da reclamação” pelo crítico australiano Robert Hughes.

     Tensos como as evoluções das ondas, desmitificadores e demolidores, esteticamente corrosivos e subliminares, com a eletricidade dos raios e dos relâmpagos faiscando nas tensões das cópulas entre corpos terrestres e celestiais, porcos da lama, porcos dos mangues da pornografia açougueira, porcos dos palanques, porcas da TV, do cinema, gatos e gatas do cinema pornográfico universal, Hitler esgrimando com Godard, Pasolini estocando Paulo VI, o Rio em guerra contra São Paulo. O cinema de Luiz Rosemberg Filho é carioca? É esquerdista e maiakovskiano na tensão entre o panfletário e o não-panfletário.

     Agora a luta de classes está sendo encenada no programa do Ratinho do SBT. Adoro receber o meu cachê. Eu prefiro ir na casa do cliente. Nós vamos voltar amanhã com mais um programa do Ratinho. Viva o meu cachorro de estimação! Antes se gritava: Viva Tenório Cavalcante! Viva Arraes! Agora gritam: Fora F.M.I.!... As pichações perderam sentidos.. os press-releases das ONGs viraram monólogos estéreis e doutrinários.. descrença em tudo e em todos é o clima humano e histórico da pós-modernidade cínica? Morra o gato do vizinho! Viva Lanúcia!.. A outra tem a petulância de vir na TV pedir a Deus para nunca ser velha, chata, insuportável e ridícula, ou rabugenta. Rico ri a toa. Peço licença para não chorar, eu tinha tirado um tumor do rim direito, assim passei a rir direito, e se você não puser os óculos você não enxerga nada. Sorria!.. Não se lamente nem reclame da vida!.. Quem reclama muito da vida não tem Deus no coração. Fecham-se as cortinas do teatro ideológico – televisivo na noite de 20 de Julho de 1999. Eu sou jovem há muito mais tempo que você . Bye – bye! Tiau!.. Beijinho, beijinho, queijo/ queijo, pão/ pão.. de queijo caído eu choro pela minha nação desamparada por seus Geraldo Vandrés.. Ai que horror!.. E agora, José? .. A festa acabou...

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Os cachorros não são racistas

     Prefiro me relacionar com pessoas e não com justificativas. Em vez de justificativas prefiro iniciativas. Embora os formatos corporais dos tipos mais diversos de cachorros nos levem a classificá-los por “raças” (apuradas algumas vezes por manipulações e experimentações de geneticistas), entre eles todos se reconhecem como cachorros. Simplesmente cachorros!... Se um passa lá do outro lado da rua, o nosso cachorro já se manifesta do lado de cá. Latem, latem sem vergonha da cachorrada em que vivem...Para mim a risada canina é a mais engraçada dentre os sorrisos do nosso mundo animal. Galinhas dos ovos de ouro dos veterinários, os cachorros foram condecorados com o título de melhor amigo do homem. Joguei há pouco as cascas de uvas que chupei no lanche da tarde...lancei-as na grama do quintal para as pombas que por lá ciscam possam levá-las para os seus animados sabaths....A pomba rola ou ‘o fogo apagou’ Maria Anacleta do Amor divino foi a primeira a levar no bico dois bagaços de uvas para o seu ninho.

     Sinto necessidade de reler e relembrar as corajosas teses do ex-comunista francês Roger Garaudy, o admirável. Me lembro da Revolução dos bichos de George Orwell (livro ainda atual para entendermos o que se passa na Sérvia, em Cuba, na Coréia do Norte e sua presente dinastia comunista, na China a um só tempo comunista e capitalista, na Indonésia, no Iraque, na Líbia, na Síria, no Irã e nos partidos que louvam utopias historicamente derrotadas).

     Desde o Tratado de Polícia escrito em París no ano de 1783 por Delamare, a virtude passou a ser ostensivamente uma questão de Estado, um problema que até hoje o Estado vem tentando resolver encarcerando infratores ou transgressores. Aos desviados e transviados foi oferecido o rótulo de ‘doentes’ circunscritos em hospitais e manicômios. Ainda valem as divisas ideológicas de Howard e de Mayense: “ Se fomos um dia capazes de dominar animais ferozes, não devemos perder a esperança de corrigir o homem que se desviou. “A visão puritana sobre o ser humano justifica a visão animalesca sobre os ‘desviados’ ou infratores da ordem ou da desordem vigente. O ‘laissez – faire’ referenda o caos mafioso dos traficantes de drogas e de pornografias fascistóides...Ninguém ousa encarar o que existe atrás do espelho. “ O material humano desgasta – se mil vezes mais rápido que as máquinas, mas ele é substituído ainda mais rapidamente.” (André Glucksmann in A cozinheira e o canibal – Rio de Janeiro – Editora Paz e Terra – 1978 – pág. 114). Em todas as tendências ideológicas autoritárias se confunde espírito ou postura crítica com olhar policial ...isto há vinte e cinco anos era afirmado por Cacá Diegues em seu conceito de patrulhas ideológicas.

     Viva o direito a livre expressão!!... Resistência contra a diáspora internacional de vampiros bolcheviques disseminadores de desesperanças e, contraditoriamente, progadores da devoção ao santo Ernesto Che Guevara!...

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Os inesquecíveis perfumes de uma das minhas bisavós

     Eu lhe dei um daqueles adeus displicentes sem sentir o peso de um adeus que era irreversível. Um adeus final para nunca mais.

     Não sei quando o sertão em que nasce o Rio São Francisco começou a comer ossos humanos..... só sei que foi bem antes da cabeleira da minha bisavó Ambrosina esvoaçar disseminando aos quatro ventos os fétidos cheiros das bostas das escravas por ela surradas ... e muito depois da tarde em que quase virei personagem de romances de Franz Kafka tentando trocar uma nota de dez reais por duas de cinco e o dono da quitanda da praça dos táxis julgou-me aleatoriamente, acusando-me de repassar notas falsas quando as notas que possuía eu as passava de mão em mão no citado empório e as recebera de um banco paulista e de uma agência dos Correios e, como é impossível eu diferenciar a minha nota de dez das que ele possuía em sua máquina registradora, como provar que cabeça de cavalo não tem chifre e até conseguir tal prova quantas chibatadas não teria já sofrido? Quem não tem maldade não vive decorando número de séries nem detalhes de cédulas monetárias e o que tenho a ver com o fato de poucos dias antes da minha chegada a esta cidade por aqui terem passado elementos de quadrilhas de farsantes? Além do mais, não sou desconhecido; já publiquei dezenas de artigos no único jornal local... por que haveria de me expor numa cidade em que tive propriedade, onde muitos me conhecem, ou por que haveria de lidar com negócios transgressores se trabalho diariamente em projetos nos quais levo fé e se cá estou de férias? Em terra de tolos estrangeiros são sempre trapaceiros. Em horizontes subdesenvolvidos os nacionalistas são os vigaristas e os chantagistas. Kafka continua atualíssimo nesta virada de século. Apesar da penúltima virada de século ter sido tão marcada por Dostoievsky, Flaubert, Thecov, M. Proust, Oscar Wilde, León Tolstoi, Émile Zola, Guy de Maupassant e André Gide, nesta virada de século e de milênio nossas bocas ainda podem estar tão marcadas pelo mal hálito da mesma tuberculose que vitimou Franz Kafka!.... Os mercenários de falsos remédios sociais continuam atuando nos mercados eleitorais. O caminho passa necessariamente por saúde, educação, informação, habitações, transportes etc... mas toda auto-estima deve estar referenciada na real aptidão para criarmos valores, riquezas, conceitos, softwares, bens artísticos e culturais ou objetos civilizatórios. A auto-estima sem tais potencialidades e experiências é mais auto-engano que auto-estima. As bandeiras do óbvio ainda atraem e ainda não foram desmascaradas pelos raros inimigos das ilusões baratas. Aqueles que glorificam escatológicas utopias em nome de revoluções progressistas são os piores adversários da esperança pois nos levam, demagogicamente, a confundir paraíso com tragédia ou nos levam a desconfiar de todos que venham até nós com projetos viáveis e em andamento. Revolução não é tomar o poder sem saber o que fazer com o brinquedo tomado na marra. Para falar a verdade: quando aconteceu alguma revolução que não tenha sido, antes de tudo, pacífica mutação nos parâmetros existenciais, cotidianos, estéticos e tecnológicos? Só os totalitários e seus ingênuos seguidores, militantes e manipulados, ainda apelam para a violência mágica e irresponsável das armas, dos saques e invasões de terras, ocupações de bancos e de prédios públicos . Não creio na paz dos cemitérios, nem nos voluntarismos espontaneístas nem, muito menos nos forçadores de barra, obscurantistas e oportunistas. Não creio em falsos remédios totalitários. Mas tais falsos remédios estão acalentando barbáries cancerígenas. Supressões de defesas diante dos inimigos da palavra como ariete dos que lutam contra a ignorância. Os superados pela história recente em terra de cegos ainda reinam apesar de saberem que o pior cego é aquele que não quer ver. Na caverna de Platão não existem apenas sombras mas também uma inquieta vizinhança com diversos tons de luminosidade. A alvorada não foi socialista mas o meio dia capitalista nos encaminha para um por-de-sol de medos, aflições e sinistros transplantes de memórias, máquinas loucas e escassês de oxigênio, racionamento de água potável e a maior crise humana de identidade de todos os tempos. Não deixarei de pedir ao jardineiro que não esqueça de plantar pelo menos mais cinco mudas de arruda em volta da casa.... avisar-lhe que replantei as mudas de bico de papagaio em lugares nos quais não escureçam a sala e se tal possibilidade de penumbra exagerada na sala se apresentar que se sacrifique o coqueirinho que se robustece um pouco abaixo do rumo da janela da sala. Determinações do darwinismo vegetal excludente e eliminatório. Algumas prefeituras do interior paulista sacrificam, cada uma, em seus departamentos de combates a vetores de zoonoses, mais de 40 cachorros diariamente!.... Santa Brigite Bardhot!....

Nossos pulmões são nossas asas

     (....) ” O círculo está despedaçado em 4 ângulos. .... escombros dos jogos infantís.”- Ladislav Novomesky.

     Sonhar é voar ao paraíso onde nossos pés não pisarão. Viajar implica em passagens de tempos e espaços. Meus pés são raízes passageiras e salientes, minha cabeça contém antenas que me fazem um ser celestial. Meu esperma é uma goma ou mingau de inhame cósmico. Aquelas folhagens que aparecem em coroas fúnebres estão brotando junto às escadarias que dão acesso às nossas casas de Ribeirão Preto e de Piumhi-MG. Para mim o mais lindo jardim do mundo é o meu. Acho isto por que fiz neste nosso jardim sertanejo de Piumhi uma mistura aleatória de coqueirinhos, samambaias, bambuzinhos, avencas, funcho, hortelã, arbustos de cerrado, cactáceas de colorações verde-azuladas e róseas, ouriços espinhosos usados em fachadas agressivas mas com florações amarelas e cercas de espadas de São Jorge guarnecendo algumas bordas destas touceiras vegetais caóticas. A voragem do tempo é um caminho louco. A máquina do mundo ficou desnorteada. O moto contínuo ficou descontínuo. Os caminhos argilosos e secos não me são mais familiares. Os trovões não ribombam como outrora. Nossas montanhas tornaram-se apocalipticamente ocas. O P. T. é o pior quebra mola da História do Brasil. O M.S.T.U. é apenas o braço armado das forças do retrocesso atuantes em nosso país. Viva Ingmar Bergman!... Por trás do P.T. séculos de conservadorismo católico (absorvido por stalinistas ou por anti-stalinistas)nos contemplam. E por trás de mim uma incômoda vizinhança in bus; um bando de maritacas patricinhas rumo ao aeroporto dos Confins fazendo questão de alardear sua viagem à Disneyworld-Flórida-USA (roteiro classe-média Julho-Brasil). Belo Horizonte ainda me cheira a bala -de-côco, a roupa engomada e a hóstia ainda não consagrada. No alto do morro do sítio do tio Zé Bonifácio, na varanda do engenho de açúcar e rapaduras nada restou.... nem fornalha, nem tacha e nem roda do moinho.... nem a árvore que oferecia floradas róseas às abelhas e em cujos galhos li a novela A Granja de Stepanchkovo de Fiodor Dostoiévski existe mais. O tempo passou na janela e só Carolina o viu. As longas mãos, os longos dedos alvos e as longas e alvas unhas das mãos da passageira sentada na poltrona da frente no ônibus em que viajo para a Zona da Mata mineira me lembram raízes retorcidas, delgadas e nervosas . Quase tudo no universo humano é inexato, impreciso, caleidoscópico, aleatório e irrotulável. O vento do fio do tempo no labirinto das nossas ontogêneses é frio, acelerado, inclemente como a neve que quase congelou o rei Henrique sob a janela do papa Gregório há quase mil anos. Minha cidade-natal, Tabuleiro do Rio Pomba, é a configuração mais realista do fim de meus sonhos primordiais. Foi na minha cidade que a Ana do Zézim Lianôra, mulher das pernas cabeludas e das mãos calejadas de puxar enxada, ameaçou várias vezes se jogar debaixo de carros em altas velocidades porque bloquearam seus proventos previdenciários com a morte de uma senhora que tinha o mesmo nome dela. Parte da mata que cobria a serra do Rola-Moça pegou fogo. Mineiridades em cinzas.

Os gritos dos peixes nos dicionários do mundo

(texto dedicado à alma do mártir theco Jan Palach)

     Os tesouros do diabo barroco Salvator Rosa estiveram entre os tesouros da raínha Cristina da Suécia. Descí o rio Sulphur comendo queijadinhas adoçadas com aspartame. As barbatanas do meu guarda chuva vieram de um peixe do mar Báltico, minhas calças foram feitas de sacos de empresas ensacadoras do porto de Rotterdã, comí frutas chilenas, ví leões africanos, cheirei Almíscar da Birmânia, tenho um relógio despertador de Taiwan, a pimenta que usei no creme de moranga do almoço veio do México, os cajús que saboreei nas primaveras dos últimos anos 80 deste século chegaram de avião expedidos de Belém-do-Pará pela amiga Esmeralda.. Ganhei da mesma senhora paraense diversos perfumes franceses. Nem sei quantas vezes comi arroz do Ceilão. Já ouví músicas marroquinas e palestinas. Não me esqueço da linda lenda caucasiana do Achik Kheribe contada em filme paradisíaco pelo russo Sergei Paradjanov. O livro de ensaios mais impressionante que lí em 1997 foi do cubano José Lézama Lima. O mais belo livro sobre Espanha que lí nos últimos 3 anos foi escrito pelo crítico australiano Robert Hughes. Eu teria uma noite de terror se presenciasse a invasão noturna dos caranguejos gigantes da ilha Trindade, o ponto extremo do Brasil no Atlântico Central. Gostaria de ver nas Filipinas a luxuosa e a mais cara coleção de sapatos femininos do mundo, formada pela sua ex-primeira -dama Imelda Marcos. O mundo entrou em mim por todos os poros e assim vivemos o ideal moderno de ter agregados aos nossos corpos e às nossas mentes pedaços-reliquias e riquezas de todo o mundo. Santo Ambrósio achava que este ideal era feminino mas, sei lá eu, a modernidade é moda, sex-appeal, é charme e escândalo e tudo isto é feminino. O masculino é o reduto dos resquícios do passado traduzidos pelo universo pós-moderno.A primavera de Praga foi a última utopia do século XX. A deposição de Alexander Dubcek e a auto-imolação de Jan Palach me trouxeram prostração e descrença. Logo em seguida à invasão da Tchecoslováquia pela URSS, a Frente Ampla de Oposição articulada no Brasil por Carlos Lacerda e Juscelino Kubtschek era desmantelada. No fogo que consumiu Jan Palach ouví ecos dos gritos dos peixes nas entranhas esverdeadas dos oceanos. Nunca mais acreditei em paraísos nesta terra.

Triunfo sobre escombros

     (......) “ Terrível momento/ quando a vida/ num impulso tardio/ quer revisitar a memória./ inutilmente.” (do poeta gaúcho Tarso Fernando Genro, em seu livro “ Luas nos pés de barro). Tabuleiro – Minas Gerais é a última paróquia do Arcebispado de Mariana na Zona da Mata mineira. Seu pároco é o resoluto e erudito conhecedor do imaginário e das mais belas configurações dos cenários litúrgicos codificados pela milenar Igreja Católica. Logo a seguir entraremos na Arquidiocese de Santo Antonio do Paraibuna e do Juiz de Fora. No dia de Corpus Christi do ano do Senhor Jesus Cristo de 1998 o setecentista arraial de Tabuleiro, banhado pelo Rio Formoso, afluente do Rio Pomba que, por sua vez, deságua no Rio Paraíba do Sul, comemorou com pompa e ostentação litúrgica a simbologia máxima da unidade católica, o Triunfo da Eucaristia sobre os escombros da modernidade aparente. Um lampejo, uma última fagulha do mesmo ardor e luxo que mobilizou Ouro Preto em 24 de Maio de 1773 para o ostentatório préstito que levou o Santíssimo da igreja do Rosário dos Pretos à igreja do Pillar que, naquele célebre evento triunfal, era inaugurada. Deslocando-se por uma paisagem estranha aos olhos dos nativos ausentes, a procissão de Corpus Christi deste ano deteve-se junto às moradas do Sr. Marcílio J. Mota, da sra. Leida e do sr. Aderito Gonçalves onde foram montados altares de opulência barroca com flores, cantoneiras, castiçais e toalhas de linho com finos e raros bordados onde tivemos apropriados cenários para bençãos do Santíssimo com hinos eucarísticos, cantados em latim, pelo padre Paulo César Salgado, Enira Siqueira, Teresa Medeiros, Lucíola Albino, Lurdinha Gonçalves Pinheiro (tabuleirense radicada em Volta Redonda-RJ) e Marcílio Júlio Mota. O gestual litúrgico sacerdotal levou às lagrimas vários participantes desta secular procissão católica. Precisamos enfatizar, com esta breve notícia, os riscos de barbáries provocadas pela perda de contato com a tradição e pelo fim da transcendência da arte, incorporada à vida. Tais advertências vêm sendo emitidas desde o início do século XX pelo crítico marxista da Escola de Frankfurt Walter Benjamin e que aquí encontraram eco nas obras de José Guilherme Merquior e de Sérgio Paulo Rouanet. Este último Secretário da Cultura no governo Fernando Collor, foi incisivo em seu artigo O falso irracionalista publicado no caderno Folhetim da Folha de São Paulo de primeiro de Setembro de 1985: “ Quem não pode lembrar do passado não pode sonhar com o futuro e portanto não pode criticar o presente.” Se o sonho da razão só produziu monstros, é preciso aprender por imagens nas escritas fragmentárias e estéticas dos escombros amontoados pelo progresso da demência.

A cabeleira esvoaçante da morta de alegria (e podre de rica) se assanha nas sineiras da fálica torre da igreja oitocentista de Rio Pomba-MG

     Morte; espetáculo ou tabu? Tristana é o nome da mulher buñelesca que comanda as redes desencadeadoras de pesadelos entre os moradores de uma aldeia da Galizia espanhola. A gorda capada é um reservatório de graxas e banhas. Casas da Banha, é lá que eu quero comparar. É lá que eu quero comprar. Os arautos da liberdade revolucionária escondem intenções autoritárias e os racionalismos ocultam irracionalismos e passionalismos sinistros e os irracionalismos podem ser difusores de novos modos racionalistas de ver o mundo, de pensá-lo. Ver é pensar? 32 tetravós mais 16 trisavós mais 8 bisavós e 4 avós e meus 2 pais me geraram e eu não gerei ninguém, mas nem assim, eu me sinto estéril muito menos impotente. Meus tetravós viveram no século XVIII. Meus pentavós (ao todo 64) viveram entre os séculos XVII e XVIII e me legaram geneticamente palavras e imagens de seus tempos e espaços. Se retrocedemos no tempo nossos ancestrais se multiplicam geométricamente. Como podemos retroceder e reencontrarmos Adão e Eva? Tanto Adão quanto Eva foram múltiplos, coletivos e inúmeros!... Só os individuos que não se projetaram no futuro gerando filhos sentem o peso cósmico da solidão atemporal no dia a dia!... Minhas doenças resultaram destas ancestrais coletividades doentias. De genealogias desconhecidas, nossas doenças foram maleficadas .

     O último luar único verdadeiro e atemporal ocorre em Dezembro 1998. A partir daí brilharão sobre o hemisfério Norte as luas-espelhos que os russos lançarão para desequilibrar o meio ambiente e ameaçar a vida no Ártico que, assim, deixará de ter uma longa noite de seis meses a cada ano!...Depois de arrasar as florestas de carvalho e exterminar os bisões da Lituânia e de impor ao mundo o pesadelo Chernobyll os incompetentes e embriagados burocratas russos querem acabar com a emoção de apreciarmos o luar que nos nina há milhões de anos com a mesma névoa láctea e deslumbrante arco-iris noturno!...

     Hoje, à noitinha, no ônibus em que voltava do trabalho, ví Édipo (o Rei) já com uma de suas vistas vazadas e morte e vida Severina. A última vinha com cara de militante profissional do M.S.T. (paga por entidades católicas alemãs e de outros países europeus). Acho muito coerente o endosso de Delfim Neto às teses petistas: entre ambos existem mais afinidades do que a nossa vã filosofia possa especular. Uilcon Pereira me lembra azeitonas, bacalhoadas, ciganas e véus esvoaçantes durante danças do ventre e licores da Europa Mediterrânea. Boris Casoy é terrivelmente independente, por isto muitos o avaliam como o mais perigoso dos formadores de opinião neste país. Concluindo; o diabo não é tão feio como se pinta. Conheci na Internet na noite passada mais um Rodolfo...

Com a transformação do Sagrado em espetáculo de noite clara, eclode uma revolta da carne numa dança das trevas, prazer total dentro da grande solidão dos vizinhos da morte!...

(...) ”O olhar é o fundo do copo do ser humano.” – Walter Benjamin.

     Abaixo a cultura da reclamação!... Viva a dúvida!.. “Ter fé é esperar contra toda esperança.”- Romanos. "Gnoto Sum Autum” ou ” Conhece-te a tí mesmo!.."(Sócrates).O tuberculoso escritor existencialista argelino Albert Camus, autor de O Estrangeiro, O Mito de Sísifo, O Avesso e o Direito, A Peste e da peça teatral Calígula, era filho de uma faxineira.(...) “Jamais aceitei pertencer a um partido político....Minha vida pode ter parecido a alguns confusa e, para falar a verdade, perfumada com o enxofre do demônio... A única diferença entre um louco e eu, é que eu não sou louco..... O corpo humano é uma insondável fábrica de odores de santidade que fica adormecida à partir de seu nascimento e começa a funcionar após a sua morte.... A beleza será comestível ou não será. Eu sei o que como, eu não sei o que faço....Eu só gosto de música ruim pomposa ou de música confusa, exagerada, paroxística, que faz ruídos e que parece, quando o disco está bem arranhado, o som que se faz quando estamos a fritar sardinhas. É ótimo!..Todo o meu corpo vive preso em minhas roupas. Só o bigode as ultrapassa. Plantados como duas sentinelas, os meus bigodes protegem a entrada da minha pessoa.”- Salvador Dalí. (...) Glauber Rocha é o Doutor Fausto mais profundo da cultura brasileira. Como Salvador Dalí, Albert Camus nunca se comprometeu com ideologias dogmáticas e ideológicas e a sua então incurável tuberculose o tornava mais ainda um estranho na vida. No seu frio e sombrio jardim de lírios brancos sob frondosas mangueiras, o fotógrafo tabuleirense Aliaúdes Dias de Oliveira fazia os seus jogos entre luzes e sombras. O mais trágico nas trajetórias dos espíritos humanos foi descoberto por Chesterton: louco é alguém que perdeu tudo, exceto a razão. Também vejo lucidez no ensaio O Mito do Intelectual Niilista escrito por Vamireh Chacon e no qual concluiu que “pior que a morte da fé, só a morte da dúvida.’ À noite, em meu quarto escuro, fecho os olhos e experimento o pavor de ficar cego. Sou um homem da era das imagens/informações. Na Idade Média, o abade cisterciense Richalm dizia que quando fechava os olhos sentia em torno de sí enxames de demônios. Corazón Santo, tú reinarás em nosso encanto sempre serás!!.. Mãezinha do Céu, eu não sei rezar, mas trago esta coroa prá te coroar/ Azul é o teu manto, branco é o teu véu. Eu quero ser tua Mãezinha do Céu!... Oh Doce Jesus amado, do Céu Eterno Pai, aceita este resplendor, que eu Te ofereço com todo amor!!.. Senhor das Medalhas, Torre de Marfim, Arca da aliança, Senhora dos Remédios, Advogada nossa, Divina Providência, Mãe de Misericórdia, Vida e Doçura, Esperança nossa, Senhora da concórdia e da Consolação, Rainha dos aflitos, Deusa da Fecundidade, Sara do Novo Testamento e Fonte do mais lácteo elixir dos deuses a amamentar todos os acolhidos na primitiva Arca de Noé! Rogai por nós!... (...) Talvez os perfumes litúrgicos de nossas vidas sejam inventos ao longo de nossas lutas contra a morte (livre putrefação crescentemente fétida) ou mais um recurso para escamotear os cheiros da nossa humana animalidade. “As imagens desprendidas de todas as conexões mais primitivas ficam como preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso entendimento tardio.”- Walter Benjamin in: Rua de mão única – Obras Escolhidas vol. II – São Paulo – Edit. Brasiliense-1987.Porque contêm segredos, as relíquias não são sinais de morte, assevera Andreas Huyssen. O frontispício da igreja do Bonfim, mesmo com o seu óculo e apesar do seu imponente frontão com medalhão, afigura-se-me como um precipício que me catapulta aos céus. Seus livros de pedra sabão me transportam à mais arquetípica Caldéia pré-Bíblica!.. Sou um camelô de imagens sacras e profanas há muito por mim continuamente escavadas em camadas bem fundas e seculares de nossas sensibilidades.

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Ossos, músculos, vermes e flores...

     Quando pude ir a praia pela primeira vez eu ainda brincava de encher um balde plástico vermelho de areia...e, naquela época de anos dourados cariocas, entusiasmava-me ao brincar com barcos de plástico na banheira lá de casa...era tão gostoso!!...

     Os filmes do diretor alemão Wim Wenders estão cada vez mais belíssimos. Tão lindíssimos estão os filmes de Wim Wenders que já me convencí da inutilidade de ficar lamentando o afastamento de Ingmar Bergman das lides cinematográficas, ou desistí de me entregar a choradeiras pelas mortes de Pasolini, de Visconti ou de Fellini ou ainda sobre a ineficácia de reclamar da falta de oportunidade de ver o filme de Martin Scorcese sobre o Tibet.

     O rock do grupo U-2 é o mais representativo deste final de milênio e do encerramento deste nosso século XX. Como ainda não nasceu ninguém do século XXI, podemos dizer que somos contemporâneos de Antonim Artaud, Sigmund Freud, Jacqueline Kennedy, Aldo Moro , Palmiro Togliathi, João XXIII, Mahatma Gandhi, Bill Gates, Chou-En-Lai, Fidel Castro, José Lézama Lima, Severo Sarduy, Miguel Angel Asturias, Michel Foucault, Tennessee Williams, Capitão Virgulino Ferreira Lampião e sua Maria Bonita, João do Rio, Franklin Delano Roosevelt, Winston Churchill, Charles De Gaulle, Emiliano Zapata, Octávio Paz, Mário Vargas Llhosa, Alejo Carpentier, Martin Luther King, Nelson Mandella, Desmond Tutu, Yukio Mishima, Evita Perón, Getúlio Vargas, Fernando Henrique Cardoso, Juscelino Kubitscheck de Oliveira, Carlos Lacerda, a fera da Penha, Madame Satã, Cara de cavalo, o bandido da Luz Vermelha, Jorge Luiz Borges, Yoko Ono, The Rolling Stones, Mário Quintana, Jean Cocteau, Thomas Mann....e de Joseph Brodsky.

     (...) “Não me massacres mais, não me massacres mais...pois eu sou o Lampião cultural destes sertões paulistas!“ (recado de uma bichinha louca prú Eduardo de Matão).

     No meu banho noturno sentei-me no chão do banheiro, cruzei minhas pernas como numa meditação yoga, bem debaixo do chuveiro aberto...e, voltados para o vitrô, meus olhos se entusiasmavam com os relâmpagos a anunciarem tempestades. Perto do ralo dançavam espirais de espuma de sabonete e meu corpo se libertava de uma incômoda malha de gordura formada em torno do mesmo após um dia de calor sufocante...Agora os trovões ribombam como os canhões de Navarone...falta pouco para a meia – noite ...daquí a pouco estaremos na madrugada de 14 de Janeiro de 1998.

     Uma noite destas, se não me engano foi na noite de 9 de Janeiro de 1998, no cine Brasil da TV Cultura de São Paulo, Sylvio Back, ao explicar as cenas nas quais adolescentes da juventude nazista apareciam nús em seu filme Aleluia Gretchen (sobre a influência nazista e integralista na vida política brasileira em seu período getuliano) disse que este costume dos jovens hitleristas expressava uma tentativa de convívio com as energias naturais. Mas Back não explicou com clareza as origens arqueo-genealógicas dos conteúdos desta tentativa nazista de resgate das forças naturais. Vou tentar explicà-la fundamentado na leitura do livro Paisagem e Memória de Símon Schama:

     A Germânia era vista pelos antigos romanos como terra de povo bárbaro e soturno, povo rude dos pântanos e das florestas do centro da Europa, nação truculenta e grosseira porém sincera e pura, gente não- apta à vida urbana, ou seja, os germanos eram para os romanos um povo selvagem.

     Dentro deste estereótipo e dentro deste estígma criado pelos romanos a respeito dos ancestrais dos atuais alemães, imagem muito recorrente na literatura clássica romana – principalmente no livro Germânia de Tácito – estes povos surgiam barbudos e hostís do fundo de florestas e pântanos, guerreiros destituídos das artes retóricas dos latinos, sem as urbanidades cerimoniosas e a ritualística artificiosa das paisagens marmóreas e frias dos centros do poder romano e dos demais embriões judáicos e gregos da atual civilização ocidental e muito menos teorizavam sobre direitos e dignidades de estranhos ou desconhecidos. Os nazistas em seu nudismo explícitavam a tentativa de resgate desta vida sem subterfúgios, busca de uma vida em contacto direto com a natureza (princípio e postura defendida pelos grupos de jovens alemães desde o final do século XIX – grupos que contaram com a participação do futuro pensador marxista Walter Benjamin), o retorno à bruta sinceridade original ou o retorno à nudez ostensiva dos bárbaros de então.

     É claro que os nazistas ficaram bem caracterizados pelos assombrosos prenúncios ou como arautos anunciadores de décadas e séculos de novas barbáries contra a humanidade e contra todas as formas de vida neste mundo. Só para completar esta nota, no mesmo programa de televisão no qual discutia seu filme, Sylvio Back disse que todos nós temos alguns venenos nazistas circulando em nossos sangues.

     Existiria alguma situação mais dramática do que a cena na qual um ignorante que só sabe comer e fazer filhos caminha tão seguro de sí como se levasse em seu tórax todas as certezas e verdades deste mundo?

     A presente onda de instigantes conquistas científicas (como a possível clonagem de seres humanos, drogas que retardam a velhice e novos tratamentos para a AIDS e o Câncer, as fotos do telescópio Huble, o teletransporte de um fóton em um laboratório de pesquisadores austríacos, a perspectiva de imortalidade para os que implantarem num computador um sistema que reproduza fielmente todas as suas estruturas de vida emocional e intelectual, etc...) parece que veio ocupar o espaço antes destinado às utopias paradisiácas de felicidade terrena ou simplesmente o encanto de ideologias que tudo explicavam e que para tudo ofereciam respostas e certezas infalíveis e a-históricas, ou, mais academicamente falando, os chamados paradígmas teórico- ideológicos.

     O sonho acabou e ao finado adveio uma nova era de apogeu científico para mais uma espetacular e futurista onda de mitificação das ciências ou a espera de um bem-estar social com o avanço técnico-científico até que novas guerras (agora seriam com armas nucleares e mais destrutivas?) e o advento de novas epidemias que eliminarão milhões de seres humanos e demais animais, até que um novo Titanic afunde de novo no meio de algum oceano, até que reapareçam novos Frankesteins e novos doutores Marbuses para nos horrorizarem e nos fazerem novamente descrentes no progresso desta espécie tida por alguns cientistas como biologicamente inviavel...porque afinal Sísifo se fez homem em sua eternamente repetida tentativa de escalar e depositar pedras no alto de uma montanha na qual possa reconstruir sua ponte para os céus.Tentativas etenamente seguidas por novas voltas ao ponto de partida, ao zero primordial e assim por diante. A fissura entre utopia e ciência continuará a existir...

     Durante a ditadura militar e civil no Brasil, entre os anos de 1964 e 1985, as elites conservadoras de então alegavam que o nosso país não estava preparado para a democracia. Agora, em 1998, as elites corporativistas das nossas esquerdas estão repetindo o mesmo argumento dos seus adversários no passado, ou seja, estão defendendo a tese do despreparo do nosso país para entrar em rítmo de globalização. Estas esquerdas ainda não entenderam que tal preparo se dá ao longo de nossas caminhadas históricas e não ficando como Pedros pedreiros a esperarem os trens-balas do Japão para nos salvarem do nosso atraso secular. Quem diria que os argumentos conservadores do passado valeria para os pretensos transformadores da nossa sociedade!!??...

     As salas de bate-papos da Internet são amostras muito contundentes e representativas do desnorteio existencial da juventude dos grandes e médios centros urbanos do nosso país. Panoramas tão assombrantes nos vêm do visor como as borbulhantes imagens de nossos labirínticos circos de horrores neo-barrocos. ... Há uma semana tive de escolher entre dois cds: um do Sinhô, pai do samba carioca e outro do Luiz Gonzaga, rei do Baião. Escolhi o cd do Sinhô e me arrependí. suas letrinhas repetitivas e popularescas me desanimaram a ouví-lo de novo.

(16 a 17 de Janeiro de 1998)

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Out-doors dos meus caminhos

     Sete homens e um destino, Ben-Hur, O fugitivo, Ron Montilla, Smirnoff, Saratoga, Coca Colla, Renner, Mappin, Hollywood, Good Year, Ron Merino, Dunlop, C. L. – 65, Bosch, O Direito de Nascer, White Horse, Pullman, Merlin, Itacolomi, Facit, Shell, Kolynos, Casas da Banha, Bic, Philco, Ford, Mitsubish, Petrobrás, J. K. – 65, Casa do Rádio, Sudamtex, Ponto Frio, Óticas Fluminense, Casas Sendas, Hi – Fi, Rin – Tin – Tin, Leite Moça, Maionese Helmans, TV Excelsior, Grapette, Master Card, Crush, Swift Armour, Pirelli, Esso, Pão de Açúcar, Minister, Shelton, Beba Laranja Fanta, Carrefour, KLM, BASF, VARIG, Tostines, Montoro, São Luiz, Piraquê, Jornal do Brasil, TAM, White Martins, Trans Brasil, Brahma, VASP, Volkswagen, DKW Vemag, Perdigão, Drink Drehër, Sadia, Walitta, Massas Adria, Suita, All Star, Adocyl, Jardim da Saudade, Carlton, Forum, Sul América Seguros, América Fabril, Mococa, Caixa Econômica Federal, Fiat, 51, TV Aratu, Olho, Fiat Lux, Xarope de Mussambê, Dr. Kildare, Soutien Du Loren, cuecas Zorba, VISA, Meias Luppo, cuecas Mash, Othon Palace, Beverly, Kodak, Collor, Fiat Allis, Phebo, Fuji Films, Colírio Moura Brasil, Hilton, Zottis, GBOEx, Diretas já!..., Arisco, Martini, Maggi, OMO, Vodka Orloff, Rocha Hotel, Cine Prolar, pensão Santa Maria, Ney Matogrosso, Povo desenvolvido é povo limpo, Este é um país que vai para frente, A noviça rebelde, Frente Brasil Popular Lula-Brizola, Rock in Rio, Halls, Richter, Rinso, Bom Bril, Firestone, Ipiranga, óleo Violeta, Bardhall, Texaco, Confort, Philips, Pepsi, Sorvetes Kibon, Minuano, Olderich, Ziv, Strasburger, Samello, HB, Dünhill, Sabonete Lux – o sabonete das estrelas..., Ice Kid Hortelã, Casheemeere Bouquet, Rastro, Doriana, All Day, Pantanal, Vick Vaporub, pastilhas Valda, Cinzano, Chevrolet, Lojas Americanas, Royal Label Extra, Dancing Days, Casas Pernambucanas, O submarino amarelo, Colgate, Bat Masterson, Scaramouch, Os canhões de Navarone, Ney Braga, Colégio Machado Sobrinho, Gazeta, Itaú, Titanic, Banco do Brasil, Baby do Brasil, Elba Ramalho, Adubos Mannah adubando dá..., Rochágua, Trevo, D Paschoal, Citro Suco, Santa Marina, Cerâmica Porto Ferreira, Papa léguas, O gato de botas, Mercedes Benz, Itapemirim, Jell-o, Otcker, Gordura de coco Cristal, biscoitos GELCO, Catupiry, Polenguinho, Adidas, UOL, tênis Rainha, Capivarol, União Fabril Exportadora, Instituto Universal Brasileiro, Sandoz, Hipoglos, Azeitonas Vega, Anthony Garotinho, Ipilube HD, Nestlé, Programa do Faustão, Nescafé, Baú da Felicidade, Papa Tudo, Arquivo “X”, Denorex, Grescim 2000, Molho de tomate Etti, Piza Hut, American Airlines, Pomarola, O pequeno Buda...

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Ouvindo Elvis Presley num ônibus com ar condicionado, no fim de Novembro de 1999

(...) ”Na Idade Média tudo é signo e o visível só vale porque esconde o invisível.”

Emile Male

     O volume I – número 2 da Revista Brasileira de Lingüística Teórica e Aplicada – editado em São Paulo-SP pelo Centro de Lingüística Aplicada e Instituto Yázigi – em Dezembro de 1966 é um documento bibliográfico precioso para os estudiosos das línguas e culturas indígenas brasileiras, interesse intelectual linguístico, antropológico e sociológico que se intensifica, curiosamente, antes, durante e após o movimento militar ou golpe civil e militar no Brasil de 1964. A guerra fria levava as esquerdas e as direitas a desentocarem os índios, ou melhor, leva-as aos confins ou aos redutos indígenas mais remotos. Táticas e estratégias para dominar todo o mundo, tempos e espaços de uma nova guerra santa pelo bem e contra o mal.

     Dez anos após a queda ou demolição do muro de Berlin (1989), expoentes da esquerda (diga-se P.T.) afirmam, pela primeira vez no Brasil, que já não consideram mais válidos os postulados teóricos e as posturas metodológicas e estratégicas do marxismo.

     Estamos no fim de 1999. No entanto, nos lembra o jornalista Janer Cristaldo, desde os anos 30, vários intelectuais esquerdistas já denunciavam a esclerose e a caduquice totalitária, o oportunismo, a demagogia e a safadeza pseudo-vanguardista dos intelectuais e líderes políticos comunistas. Entre os que, há 70 anos, já não acreditavam mais em paraísos utópicos socialistas podemos citar Panaïti Istrati, André Gide, Albert Camus, Arthur Koestler, George Orwell, Ernesto Sábato, Jorge Luis Borges, Carlos Lacerda, Walter Benjamin, ex-surrealistas e muitos outros. Em 1949, com a affaire Kravchenko, comprovava-se a existência em todo o paraíso stalinista de vários infernos chamados gulags, campos de concentração. Nos anos 50, a invasão da Hungria pelo Pacto de Varsóvia (URSS e aliados do leste europeu) e as denúncias do premier Nikita Kruschev sobre os crimes, os massacres e os expurgos na Rússia stalinista (até 1956) vinham desmascarar, de uma vez por todas, os adeptos das ditaduras de proletariados burocratas. Assim acelerava-se e encaminhava-se o presente adeus ocidental às utopias totalitárias inspiradas em Marx, Engels, Lênin, Stalin, Trotsky, Mao, Gramsci, Fidel e outros títeres. Nos anos 60, os líderes dos movimentos estudantis que pipocaram principalmente na Europa, América do Norte e América Latina – mais notadamente os que ocorreram em 1968 – mais a dramática invasão da Tchecoslováquia e o esmagamento da Primavera de Praga vieram desmentir os burocratas partidários da revolução truculenta e expropriatória dos países comunistas da Europa, Ásia, África e América Latina (bloco comunista anti-capitalista). A revista Seleções do Readers Digest tinha razão. A onda hippie, a Contra-Cultura underground e a revolução sexual e comportamental, mutações nos costumes, crise familiar, os movimentos das chamadas “minorias” gays, negras e indígenas bagunçavam também os coretos das bandas internacionalistas das esquerdas. O movimento feminista, a pílula anti-concepcional, a queima de soutiens pelas seguidoras de Betty Friedan, o tabagismo ganhando os hálitos femininos, a moda unissex, a era do laquê e das máscaras da modernidade, o rock and roll e a explosão no consumo de drogas também levaram as esquerdas a outros becos sem saída. A derrota de Che Guevara em 1967 na Bolívia (onde os camponeses se aliaram aos militares no combate à guerrilha guevarista) e, pouco depois, o golpe militar e o assassinato do presidente socialista chileno Salvador Allende e a década ditatorial da direita chilena mostravam que a guerra fria não acabava com a derrota americana no Vietnã. Nos anos 70 e 80 ruem em quase todos os continentes longevas ditaduras (como as ditaduras franquista na Espanha e a salazarista em Portugal, esmorece-se o furor dos ditadores latino- americanos e vários títeres subservientes aos EUA na África e na Ásia e na América Latina vão, como num jogo de dominó, caindo, um a um.. Somoza, Selassié, os coronéis gregos, os ditadores brasileiros, argentinos, peruanos, chilenos, haitianos, dominicanos, panamenhos... e por fim, liquida-se o Apartheid, regime racista da África do Sul9o fim do Apartheid já se deu nos anos 90). Concomitante a esta queda de títeres subservientes ao Capitalismo, também como num jogo de dominó, começam a cair os ditadores comunistas da Romênia, da Bulgária, da Polônia, da Hungria, da Alemanha “Democrática”, da Tchecoslováquia, da Iugoslávia, da Albânia, do Vietnã, do Camboja e por pouco não cai o governo comunista chinês que, para se manter no poder, massacra uma rebelião estudantil na praça Celestial de Pekin ante o olhar atônito e emocionado de todo o mundo. No fim dos anos 90, começam a avançar os acordos entre católicos e protestantes na Irlanda e entre israelenses e palestinos no Oriente Médio ao mesmo tempo que ainda sentimos o cheiro das valas comuns nas quais lançaram os mortos nas guerras da Bósnia e da Tchechênia e de Angola e de outros países da África e da Ásia (mais notadamente no Timor Leste que se emancipa politicamente da Indonésia). Em meio a esta caótica desordem mundial pós-guerra fria, as esquerdas brasileiras preferiram se aninhar mais aconchegantemente nas centrais sindicais, nos partidos e nas universidades, onde ainda imperam politicamente e intelectualmente apesar de estarem flagrantemente, no mínimo, ultrapassadas e corroídas pelo fluxo histórico. Agora, nem tudo é ideologia.

     Se na Idade Média o imaginário representava o irrepresentável e o invisível, hoje tudo é imagem, tudo é máscara, tudo é simulacro, tudo é uma forma de configurar um Way of life, tudo é virtual, até o real é virtual!...

     No século XIX, dizia Stendhal, “vivemos numa sociedade hipócrita: quem libera a energia que possui, quem tenta vivê-la o quanto ela merece supera a palavra com suas mentiras, mas com isso se desliga da vida social, escolhe(?) a morte social, às vezes a própria morte. E no entanto, nesse destino árduo, o apaixonado é o mais feliz dos homens.”

     No século XX, o ensaísta e cineasta italiano expulso e discriminado pelo Partido Comunista Italiano, Pier Paolo Pasolini, refutou radicalmente a política cultural fascista baseada na regra da dupla moral: uma moral para a arte e uma moral para a vida.

     “Qualquer amor é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.” – João Guimarães Rosa.

     Num tempo no qual quase tudo é permitido (recusa-se ainda ao doente de AIDS o direito de amar e de viver a sua sexualidade), nos escreve a educadora e ensaísta Nilza Amaral: “ os criadores de ficção não deixam o transgressor, nesse caso o apaixonado e não o causador da paixão, sem o castigo merecido pelo prazer de viver contra as regras estabelecidas. É o preço da paixão. Ou da inveja, que é outra paixão.” (Confira: ).

     Os tempos são outros, eu sei, mas Elvis Presley ainda me emociona. Como diria Janer Cristaldo, “nos albores do terceiro milênio”, me sinto, me vejo, me percebo em plena perda das minhas perspectivas. Tal perda decorre da minha consciência da imensidão cronológica de um novo milênio no qual só existirei por uma ínfima parcela ou átimo de tempo. Isto me desnorteia. Preciso reler as seis propostas para o próximo milênio, na verdade cinco escritas e uma no ar, obra clássica da ensaística do italiano Ítalo Calvino.

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Porque evitamos os porquês?

     Porque não nos preocupamos com a sorte das formigas? Porque é sempre o pedestre que tem de se deter diante de um carro em movimento? Porque só gostamos de comer aquilo que não podemos? Porque temos vergonha de nossas sensualidades e sexualidades? Porque nunca dizemos sobre nossas diárias defecações? Porque nunca gostamos da companhia de pessoas deprimidas? Porque evitamos os porquês?.... Segundo F. Dostoievski, em Crime e Castigo, feliz é aquele que não tem o que fechar. E eu completo: nem o que esconder. Sobre o seu personagem Raskólnikof imaginava o velho monge anarquista russo: ”Talvez a força dos seus desejos o fizera crer outrora que era desses homens a quem é permitido mais que aos outros.” E, por isso, “não escuta até ao fim o que se lhe diz: nunca se interessa pelas coisas que interessam a toda gente.” ... Quem sabe, sabe, conhece bem, como é gostoso gostar de alguém. É maravilhoso o cd-rom Pop Filosofia de Jomard Muniz de Britto, principalmente na música A lua luta por Lula, com letra sua e de Ricardo Silva. Como ainda não podes ouví-los, caros leitores, ouçam alguns fragmentos da letra desta composição poético-musical-filosófica e política: “A luta de classes não é mais dialética do que a luta dos corpos / A lua luta no céu da boca/ beija o estudante e mija o operário/ ou, pelo contrário, beija o operário e mija o estudante”. Neste e noutros trabalhos, Jomard exercita desmontagens poéticas das palavras, explorando o paraíso labiríntico da língua portuguesa abrasileirada, deixando à vista resquícios de camadas subterrâneas do formalismo pós-estruturalista.... É belíssimo este e outros livros, ensaios e poemas de Jomard e seu grupo recifense. A morte é pior que a doença. Tenho dito...

     A vamp-model é o anjo da morte. Uma fonte nascida do nada dá à luz uma água purificadora que lava nossos crimes e impiedades. Misericórdia é, a um só tempo, uma palavra e uma disposição cordial em extinção. O politeísmo é o pai de uma visão fragmentada e caoticamente desconexa e labiríntica do Universo. O Monoteísmo é a busca da ordem unitária e centralista, racionalista. Um dos álbuns mais lindos editados no século XX acaba de circular na Alemanha. É o álbum Testamento do corpo no qual o fotógrafo Dino Pedriali expõe fotos de Pier Paolo Pasolini nú em seu castro.

     O discurso dos mais primitivos grupos humanos é politeísta. As tragédias desencadeadas nestas comunidades primitivas são coletivas, atingem individualmente a todos. Quem crê enxerga o desejo e entende o absurdo e mais facilmente é lavado pela fonte do nada. Se temos os genes de nossos antepassados, como explicar que nossas células morrem e em um período de 7 anos recompomos todo o nosso corpo, com exceção de nossos permanentes cérebros de Parmênides? O passado, a cada sete anos, é zerado mas permanece no nada zerado ou zen de nossos genes, divino absurdo da existência, Jomard!!..

     Ninguém é culpado. Tudo é lavável ou descartável!.. Isto nos deixa à deriva, abalroados. Pairar acima do bom senso e das lógicas convencionais é a melhor forma de visualizar a mediocridade hegemônica. Entre luzes e escuridões, o homem é um indefeso e minúsculo inseto. Oh! Patrícia Patrística Agostiniana!... Até as nossas organizações sociais nos levam a nos vermos como insetos sujeitos, o tempo todo, a qualquer tipo de tragédia. O abismo se chama agora e Ágora, canta Jomard Muniz de Britto. O trágico é a configuração do impossível? O homem debate-se convulsivamente diante do silêncio anódino e inodoro de Deus. Celebrar a vida inclui a constante lembrança e presença da morte. Jogar xadrez com a morte é estar movido pela fé e pelo intúito de vencê-la, vivendo-a a cada segundo.. vivendo-a e degustando-a profundamente. A primitiva intimidade do homem com o Divino enlaçava homem e natureza e garantia o fluxo purificador da fonte misteriosa e cambiante do nada ontológico. Desta fonte adveio a nossa necessidade de imaginários. A morte é uma das mãos de Deus? O buraco é Baco. Baco no beco da fome!, exclama Jomard!.. Vocês sabiam que cada um de nós humanos carregamos para lá e para cá, todos os dias, uma bunda?

     A morte é sublime, impressionante, patética ventania fria e sombria do inevitável e pútrido futuro de todos nós!... A minha morte se desenrola ao som da abertura da ópera Parsifal de Wagner. Sinistra, misteriosa e cínica como Deus em sua vitória atemporal. Todos passarão e ao 2000 chegarei. Até lá chegando, o resto não me importa, já serei um homem do século passado. Já realizei a minha infantil meta. À Índia fui em férias passear, tornar realidade um sonho meu.. Nunca fui a uma loja Soho. Sofisticada e insidiosamente lúdica, como a morte, é a moda contemporânea dos costureiros mortais e terminais de nossos tempos. A rua Oscar Freyre é um dos caminhos da morte. As flores têm cheiro de morte, mas nos encantam tanto!..

     O perfume da morte é francês e parece conter um pouco da essência ácida do limão. O gogó do defunto é uma cartilagem inútil. O nariz do morto ostenta dois túneis desativados. As mãos sobre o tórax do falecido significam nada mais a fazer, nada tenho com isso, não é comigo, morreu, pronto, fim de papo. Estou indo... fui. Para que moscas desocupadas não utilizem os túneis das narinas desativadas para suas andanças marginais (sobre os restos mortais da sopa conceptiva feita corpo pôrraloucamente andante até se configurar na sua versão final cadavérica) colocamos nesses orifícios nasais nauseantes dois chumaços do mais alvo algodão setecentista do Maranhão, chumaços urgentes, os que mais ao alcance de nossas aflitas e preventivas mãos estejam. Alvos chumaços simbolizadores da assepsia purificante do óleo escorregadio do nada, do vazio, do outrora existente, do desativado. Viva Augusto dos Anjos! Para que a poesia não padeça dos cursos de Letras ou em suplementos Mais ou menos literários...

     Muitos poupam para assegurarem seus caixões, passam por necessidades para poderem morrer. Não penso no dia de amanhã nem no dia final. Dizem também que não têm medo de morrer. Não faço tais poupanças para reter vida para eu morrer porque me disseram que os civilizados não deixam seus mortos insepultos. Por isso clamou Antígona no deserto. Deus dá o frio conforme o cobertor e passarinho que come pedra sabe o cú que tem. A morbidez do tema aqui expresso fica por conta do freguês que prefira a morbidez da ilusão mentirosa, do falso conforto da fuga do real e concreto futuro que se avizinha... sorrateiramente como Drácula!.. Incômodo assunto, mas, queiramos ou não, toda civilização se inicia com a ritualização de funerais para os seus mortos. Antes os mortos eram devorados por formigas ou por vermes e fungos. Hoje temos geladeiras para cadáveres, crematórios que nos levam mais rapidamente ao pó ou às cinzas de onde brotamos. Somos pó e ao pó retornaremos e nos alimentamos com pó de milho, pops filosofias, leite em pó, adoro leite em pó, gelatina em pó, suco de uva em pó, ovo em pó e até da dor de Jó. Pois sempre encontramos alguém que sofre muito mais que nós, nem que seja lá no Antigo Testamento. O tempo pole a pedra mó da metrópole. E a vaca muge: mommmm!.. monnnnn! monnn!... bééé!!.. onnnnnnnnnnnn........

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Precisamos de uma sociedade que seja melhor que as drogas!...

     A sociedade brasileira, como um todo, está perdendo vergonhosamente para as drogas o seu veio de ouro mais valioso: os seus filhos mais jovens. Provavelmente os nossos preconceitos raciais, comportamentais, morais ou imorais e sexuais, a nossa mania de rotular desrespeitosamente e simplistamente o outro (para discriminá-lo e estigmatizá-lo) além das nossas hipocrisias e políticas comportamentais equivocadas (e formadoras de guetos, gangs, antros, bocas, zonas e ONGs) são os ingredientes culturais que mais venenosamente e profundamente engendram uma cultura propiciadora de vícios, fugas, dependências e compensações (por drogas) para o nosso mal estar social.

     Não creio que uma cultura preconceituosa e policialesca derrote o prazer suicida que a droga tem trazido a uma crescente e imensa população de drogados neste nosso Brasil do fim do século XX.

     São inúmeros os escritores, artistas, músicos, intelectuais, cientistas, empresários, políticos e militares que consomem ou consumiram drogas e este dado (inquestionável) me leva a crer que nenhum projeto cultural será bem sucedido se explicitar uma proposta de confronto e combate contra o universo dos drogados. Aqueles que ainda consomem drogas são cada vez mais numerosos, o que para mim revela o fracasso das atuais campanhas de prevenção contra os danos reais detonados pelo uso de drogas. Mas, por outro lado, precisamos acompanhar, com interesse científico e humanista, as discussões médicas sobre benefícios da maconha no tratamento da AIDS e do câncer e, também, adotarmos uma postura mais sensível e verdadeira para admitirmos que as reações individuais a este ou àquele tipo de droga não são as mesmas, o que desfaz os mentirosos estigmas e mitos do drogado como alguém sempre agressivo e perigoso para a coletividade.

     Muitas vezes a propaganda contra as drogas veicula mentiras ou dados discutíveis e cai no descrédito crescente daqueles que são os alvos preferenciais dos traficantes (jovens e crianças) e, assim, tal propaganda faz gol contra, em vez de prevenir e combater a disseminação do consumo das drogas, acaba por favorecê-la de forma irreversível.

     Investir na divulgação de idéias religiosas ou de projetos artísticos, literários, educativos ou culturais (como a oferta de bibliotecas, discotecas, videotecas e acessos a internet) sem uma perspectiva que combata os preconceitos, os moralismos, as hipocrisias marginalizadoras de legiões de pessoas e as discriminações indignantes só irá aumentar ainda mais o mercado consumidor de drogas, alcoólicas ou não, tabagistas ou não, químicas ou não. Precisamos deter o nosso furor inquisitorial contra drogados e traficantes para que possamos, pelo diálogo, superarmos o atual estágio de derrota de quaisquer valores (novos ou velhos) que venham a compor nossas necessárias e vitais posturas existenciais e humanistas diante do outro. Em nome da verdade... e do prazer de viver em paz e poeticamente....

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Projeto mais sapos para o bem do Brasil

     O crescimento dos grandes centros urbanos brasileiros no fim do século XX está muito aquém da explosão demográfica dos pernilongos. A multiplicação geométrica dos insetos que zunem noturnamente e até diurnamente em nossos ouvidos, além de nos picar nos mais imprevisíveis pontos ou nos lugares mais difíceis de coçar, é mais um sinal dos novos tempos. Eu vou morrer e não vou ver tudo!...

     Antigamente era mais limitada a proliferação desta população de insetos. Os nossos córregos, ribeirões, riachos e regatos eram menos sujos e alguns eram ainda límpidos e cristalinos, com águas potáveis e cantarolantes!.. À beira destes riachos de águas insípidas, incolores e inodoras, prostravam-se centenas ou milhares de sapos, rãs e pererecas que, inconscientemente, concorriam para o bem estar brasileiro, esticando suas línguas (como se brincassem com aquelas línguas de sogra que ganhávamos em festas de aniversários) e deglutindo milhares de borrachudos e pernilongos. Assim, beneficiavam estes sapos o lazer dos pescadores e o sono dos justos. Antigamente dormia-se de toca branca em cama com dossel à prova de muriçocas e pernilongos remanescentes das caçadas dos batráquios acima citados. Estes anfíbios e feios animais úteis foram dizimados pelo chamado bom gosto do homem urbano que sempre viveu dando chiliques contra a feiura e os sustos que lhe causavam estes montes de músculos, dedos e possantes pares de olhos vigilantes e caçadores, optando pela multiplicação insalubre dos pestilentos pernilongos.

     Como os ribeirões de nossas paisagens encontram-se tão entupidos de lixo, esgotos e outros dejectos civilizatórios (como nossas veias e artérias internas, nossas veias externas estão também congestionadas de gás carbônico), os sapos tornaram-se espécie em extinção e a super-população de pernilongos está se proliferando num ritmo descontrolado e ilimitado. Nosso sono sagrado está ameaçado pelos pernilongos nascidos nas águas podres de nossos ribeirões putrefatos. Nossa saúde pública, mais uma vez, pode ser derrotada por estes mosquitos, que podem nos trazer de volta até a secular febre amarela!... Nossas coceiras e as picadas destes pernilongos estão nos stressando e abalando nossa produtividade cotidiana.... Mas, para comer tantas legiões de pernilongos, haja sapos!.. Mas... para que haja sapos, precisamos de córregos, riachos e ribeiros límpidos e cristalinos. Mas para que um só riacho se torne de novo potável, cristalino e cantarolante como os de antigamente, nossas ambições precisam refluir a níveis ambientais mais educados, nossa política sanitária e ambiental e nossas novas posturas diante do mundo se tornarem mais coerentes e eficazes. Sérias mesmo.

     Será que o mal cheiro ribeirinho, o hálito cloacal dos mangues e o odor putrefato dos brejos poluídos (onde não vicejam mais os lírios de são José) se coadunam com a progressiva e triunfal trajetória da modernidade? Quando eu era pequeno e vinha consultar, periodicamente, um oftalmologista na Cidade Maravilhosa, saindo dos puros vales da zona da Mata mineira, enfrentando a sinuosa e asfaltada estrada que ligava Juiz de Fora ao Rio de Janeiro, ao acabar de descer a serra de Petrópolis – RJ e adentrar pela baixada fluminense e Av. Brasil, eu sentia aquele chic e moderno cheiro de cidade grande, hálito de capital cultural e ex – capital federal, aquele bafo de mangue, esgotos, refinaria, fábricas, carros e ônibus fumacentos e a baia mais bonita do mundo cheia de entulho, lodo, dejectos e todos os tipos de rejeitos urbanos e uma aura de progresso, atmosfera catinguenta, fedorenta e de autêntica carniça me dava motivos para contar vantagens aos amigos de minha aldeia original, vaidoso e feliz por passar alguns dias em uma das cidades mais populosas e importantes do mundo!...em tão impressionante cenário político e sócio-cultural!... O mal cheiro era o que indicava a chegada da metrópole carioca. Só as grandes cidades cheiram mal!.. As cidades pequenas cheiram a rosas de vovós, a altares de Virgens e Senhoras das Dores e das Graças, a berço de neném com talco Jonhson ou Pom – pom e a mulheres com cremes faciais esperando seus maridos em finais de tardes.... Cidade pequena cheira a funcho, a hortelã, a horta caseira, a chiqueiro de porco, a estábulo de bovinos e eqüinos, a bailes com mulheres perfumadas com águas de cheiro do tempo do onça, cheiram a sacristia e a silêncio de ciprestes de cemitérios, a leite de garrafa, a cambuquira, a ora-pro-nobis, a quiabo com angú com carne de porco.... e a tudo que de mais delicioso que o saudável passado presentificou em nossos hábitos e costumes provincianos.

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Proust e a doença – 1914-1921

(colagem de trechos de cartas de Marcel Proust montada por José Luiz Dutra de Toledo – El Citador)

     (...) “Cheguei, infelizmente, àquele estágio de falta de saúde no qual o egoísmo é a condição da conservação.” (...) ”Estou consternado com a doença da Sra. Gallimard. Espero, do fundo do coração, que Bize lhe faça bem. Ele é de um saber infinito, mas modesto demais, pois falta-lhe um certo grau de charlatanismo, muitas vezes útil para ficar com os doentes em suas mãos. Em todo caso, esteja certo de que seu exame será perfeito.” (....) ”O grande aborrecimento com o estenodatilógrafo é que, se começar agora a ditar quatro volumes e a reler sua datilografia, com minha saúde, meus olhos etc., isso nos atrasará em pelo menos um ano (e mais ainda, acredito).” (....) ”Caro amigo, Tive uma recaída e não pude responder-lhe. E uma noite, quando estava relativamente bem, levantei-me e saí; então tentei ir vê-lo, pois não era tarde.” (...) ”Há quatro dias tenho um acesso de febre muito violento, com grande sofrimento. Assim, é com grande dificuldade que lhe escrevo.” (...) ”Se hoje não estivesse com tanta dor nos olhos, eu lhe contaria em detalhes como fiquei feliz, emocionado com essa carta em que o senhor me diz coisas tão simpáticas, tão delicadas, com tanta simplicidade, doçura e força.” (...) ”Aliás, sinto muita dor nos olhos para ler e para escrever, mesmo cartas. E como estou doente demais para ir consultar um oculista, isso me parece irremediável.” (...) Em carta, de fim de Abril de 1916, a Gaston Gallimard, o romancista Marcel Proust diz: “em suma, nunca lí nada de Shakespeare.” (...) ”Embora um pouco cansado de escrever tantas cartas,...” (...) ”Fiquei tão doente nestes tempos que, realmente, escrever uma linha, assinar um livro, era demais para meu odioso mal-estar.” (...) ”Como lhe disse em meu pneumático de sábado, uma fadiga repentina me impediu de responder antes à sua carta.” (...) ”Caro amigo, fiquei muito triste em saber, por sua carta, que o senhor estava doente. E tenho remorsos. Pois o senhor se cansou para me responder. Parecia-me ter-lhe dito que não valia a pena. Caro amigo, não quero ser indiscreto ao falar de sua saúde, mas minha experiência de doença, dos médicos, etc.., se me é inútil, porque eu não quero o que sei, e também porque, como creio ter lhe contado, a respeito de Robert Gangnat, costumo sair-me bem quando se trata de outra pessoa, mas fracasso quando se trata de mim. Então, se o senhor quiser que falemos de saúde e de médicos, estou às suas ordens. Mas se o senhor tiver um bom médico, e preferir não esticar, em conversas vãs, a área melancólica já bastante vasta que a doença traça ao redor do doente, não acrescente, sobretudo ao me escrever para dizer isso, mais uma fadiga às já existentes.” (...) ”Uma língua que não conhecemos é um palácio fechado, onde aquela que amamos pode nos enganar.” (...) ”Não imaginava estar tão certo quando lhe dizia: ”O senhor verá que só receberei as provas quando não puder mais corrigi-las.” Vou conseguir, assim mesmo, pois essas primeiras crises se acalmam, deixando só a febre, que não impede, de modo algum, a correção das provas. Mesmo assim, não espero começar antes de 48 horas, e irei de vento em popa. O senhor esteve inacessível, eu o estou agora, por pouco tempo; penso no senhor com imensa amizade.” (...) ”Há dez dias, não pude participar do último júri do Prêmio Blumenthal, pois estava com mais de quarenta graus de febre.” (...) ”Acertei em me cuidar, pois minha febre cedeu completamente, e também a tosse.” (...) ”Desculpe-me por um ligeiro agravamento de meu estado de saúde esta noite que me força a ditar este bilhete.” (...) ”Gosto tanto de falar com o senhor que, agora que fiz o esforço de começar a escrever(depois, no entanto, de um dia e uma noite de crise sinistra, são 4 horas da manhã) eu lhe diria de bom grado quais são, em literatura, as 4 piores coisas que há muito eu não lia. Mas quero guardar minhas forças (!) para o trabalho e poupá-las da tagarelice literária.” (...) ”uma linha, em meio a horríveis crises de asma..” (...) ”Celeste deve ter-lhe telefonado (neste momento ela está descansando, pois minhas horríveis crises de asma dia e noite não lhe dão folga)...” (...) ”Caro amigo, a fadiga por haver sofrido tanto, de uns dias para cá, me faz parar. Transmita minha afeição a Jacques Rivière, a quem não pude responder e fique com uma boa parte para o senhor.” (...) ”A felicidade tomada como um fim se destrói inteiramente. Ela flui livremente naqueles que não buscam a satisfação e vivem desligados de sí mesmos, voltados para uma idéia.” (...) “Caro amigo, tive terríveis crises de asma nestes dias, aliás sem relação com o meu estado geral, por isso sinto-me incapaz de lhe escrever hoje e de trabalhar na minha Prisioneira que refaço pela quarta vez.” (fragmentos de cartas de Proust a seu editor Gallimard, selecionados durante a leitura do livro de correspondências Proust/Gallimard – São Paulo – EDUSP/Ars Poetica – 1993 – 605 páginas.)

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Quem tem medo de Itamar Franco?

     Cada estado da federação brasileira tem o seu merecido Jânio Quadros. O Rio Grande do Sul já teve o seu Brizola. Alagoas o seu Collor. O Ceará o seu Ciro... e assim por diante.. Minas ganhou o seu Itamar. O Jânio mineiro chegou com um Vice bem ao estilo Adhemar de Barros: Newton Cardoso!... Como disse Daniel Piza, “com ou sem Itamar, já tava mar.”

     Quando o Vice de Collor o substituiu foi notável a pouca motivação executiva do novo e complementar mandatário. A imprensa achava mais interessante o namoro de Itamar com a Júnia Drummond e a ida do casal ao cinema “X” de Brasília do que os assuntos propriamente governamentais. Só depois de se despedir da Presidência, em primeiro de Janeiro de 1995, Itamar foi picado pela mosca transmissora da vontade de poder. Assim como Jânio da Silva Quadros, após a renúncia, se candidatando ao governo paulista e anunciando a sua disposição de voltar à Presidência...

     Para Daniel Piza, colunista do caderno Fim de Semana do jornal paulistano Gazeta Mercantil, só os chicanistas alardeiam por aí que, finalmente, temos uma oposição. “Que oposição? Itamar? O ex- Vice de Collor que tomou como símbolo de seu governo o renascer do Fusca? O Mário Fofoca que foi flagrado num camarote de bicheiro acompanhado por uma modelo sem calcinha? O Pilatos do Pão de Queijo que não quer assumir as contas legadas por seu antecessor e lava as mãos num momento como este?” E, concluindo a sua nota, afirma: “Continuaremos nos comportando de acordo com a frase daquele embaixador americano: “Os brasileiros gostam de ir até a beira do abismo, e então recuar.”

     O ex-prefeito de Juiz de Fora e ex – senador emedebista triunfante em 1974 saiu do PMDB porque foi derrotado pelas tramas de Newton Cardoso na Convenção que indicou o ex prefeito de Contagem ao governo mineiro em 1986 – quando Newtão e Quércia provocaram o nascimento do dissidente PSDB. Itamar, divorciado e sem namorada, convidou a ex – namorada Júnia para acompanhá-lo em sua posse no (anteriormente várias vezes sonhado) governo mineiro. José Aparecido, assessor do presidente Jânio Quadros e ex – secretário da Cultura no governo Tancredo Neves e embaixador do Brasil em Portugal durante o mandato tampão de Itamar, volta à cena política ao lado de Itamar no governo das Alterosas.

     O topete esvoaçante de Itamar não me convence de que Itamar veio praticar o lema do oligarca juizdeforano Antonio Carlos, que, em 1930, conclamou assim as elites da “era café com leite”: “Façamos a Revolução antes que o povo a faça!” Itamar está mais para “fi-lo porque qui-lo” e never more. A Juiz de Fora de Murilo Mendes e de Pedro Nava merecia um Hamlet shakespeareano e não mais um Jânio Quadros paridor de crises!.. Que tal mais um cineminha com a “ex”, hem Governador?

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Salvador Felipe Jacinto Dali i Domenech, um dos mais impressionantes e patéticos cronistas do Inconsciente no cotidiano derretimento do tempo no espaço atemporal

     Salvador Dali, além de todos os graus e degraus da sua irreverente fama, foi um dos mais expressivos e graduados contestadores da mesmice entre os animais simbólicos da humanidade contemporânea. Pontífice articulador de irrealidades, realidades e sub-realidades, nas crônicas mais instigantes e impressionantes do inconsciente humano, Dali supervalorizou e assumiu papéis inusitados como os de amante incondicional da mítica Gala Eluard, conde louco, arauto do mundo dos escândalos, criador de perfumes, polêmico devorador e criador de imagens a um só tempo delirantes, históricas e metafísicas. Dali viveu de 1904 até Janeiro de 1989 e nasceu na Catalunha, província do leste espanhol conhecida pela sua milenar tradição de libertária autonomia em relação ao poder central, agora instalado em Madrid. Dali e Juan Miró são 2 frutos muito representativos do espírito catalão.

     Ideólogo do politicamente incorreto, desconhecedor cínico das patrulhas ideológicas, crítico desnorteado, assombrosamente espetacular, monarquista e aristocrático, Salvador Dali trabalhou em suas pinturas, esculturas, desenhos, croquis, fotografias, filme feito com o surrealista compatriota Luiz Buñuel e em seus objetos e painéis aberrantes e bizarras amálgamas desconcertantes entre fragmentos simbólicos dos imaginários católico e erótico, legados míticos e ícones clássicos da história da arte, técnicas renascentistas e vorazes perspectivas labirínticas de atualizado e vertiginoso barroquismo orgiástico, atemporalidades metafísicas e ontológicas num imenso liqüidificador/exaustor de imagens do século XX e de outros tempos e espaços contorcidos pelas voragens desnorteantes e incessantes do espírito humano.

     Salvador Dali viu e se pasmou diante dos escombros de duas guerras mundiais, do apogeu da cultura de massa, da guerra fria, da persistência bimilenar do imaginário católico, do universo onírico da contracultura, da falência das utopias, do psicodelismo hippie, da alvorada da era da Informática e suas multimídias, da crise das vanguardas e da pós – modernidade e da Pop – Art. E, em tudo isto, Dali buscou temas, colagens, amálgamas aparentemente incongruentes e incrustações estéticas enriquecedoras da sua arte. Dali, genial como Leonardo da Vinci, pintou, esculpiu, filmou, fotografou, desenhou, escreveu sobre nosso mundo e as múltiplas visões que possamos ter sobre uma só paisagem... Um transgressor desafiador de cânones e um dos primeiros artistas a beberem da pródiga fonte da psicanálise freudiana. Se a psicanálise nos revelou as formas coercitivas pelas quais as civilizações se impuseram aos indivíduos, Dali, em cima destas constatações psicanalíticas, fêz da sua arte uma busca estética da superação das deformações e mutilações existenciais e simbólicas em nós operadas historicamente.

     Como Antonin Artaud, S. Freud, Jung, André Breton, Jean Cocteau, Max Ernest, Pablo Picasso, Juan Miró, Federico Garcia Lorca, Luiz Buñuel e muitos outros vultos de sua geração, Dali nos escancarou uma revelação: do caos coletivo só um avanço humano é possível e evolutivo: a individualização dos nossos universos no confronto com alteridades e diversidades. Entre buscas dadaístas, surrealistas, abstratas e cubistas estes artistas não restringiram o lastro estético das suas obras aos limites europeus. Na tela Abaporú de Tarsila do Amaral, pintora modernista brasileira, lemos alguns laivos do surrealismo de Dali, porque não? Tanto Dali quanto Tarsila sacudiram as cortinas de couro ou de veludo das academias que sobreviveram ao século XIX.

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Sobre a mesmice dos dias

     Uma perna adiante e outra atrás: assim caminha há muito tempo a humanidade. E nesta caminhada, alguns dos seus exemplares foram destacados: Sócrates, Comenius, Thomas Hobbes, Gamal Abdel Nasser, Lin Piao, Roberto Carlos, Madonna, Mandela, Caio Julio César e muitos mais. Andy Wharol chegou a prever que no futuro cada um dos seis ou mais bilhões de seres humanos(?) teriam pelo menos seus 15 segundos de fama, mas não sei não... Em cada cultura se estrutura um ou vários sistemas de legitimação do poder e dos valores que se fizerem hegemônicos e, assim, se processam e se instituem prêmios, espaços em mídias ou outros procedimentos pelos quais se destacam os feitos de uns em detrimento das obras de outros vultos relegados ao anonimato cotidiano.

     Quando adolescente, li e folheei várias antologias e em nenhuma delas vi explicitados os critérios e/ou cânones que orientaram a eleição dos poetas e cronistas que até às suas páginas chegaram. Foi aí que comecei a perceber que por trás da fama agiam mãos propulsoras que aclamavam triunfalmente uns e não consagravam os demais.

     Entre 1969 e 1976, quando estudei em Juiz de Fora – MG, graças à generosa confiança de uma de suas irmãs, pude conhecer a obra inédita de um obscurecido poeta pós-romântico e boêmio chamado Washington Novais. Poeta e cronista da Manchester mineira na primeira metade do século XX. Um Álvares de Azevedo tardio na terra de Murilo Mendes, Pedro Nava e Fernando Gabeira.

     Ainda nos anos 70, li o ensaio O Sistema Intelectual Brasileiro de Luiz Costa Lima, publicado na natimorta revista literária carioca José, no qual, pela primeira vez, tomei conhecimento da existência de sistemas de legitimação ou desvalorização de obras artísticas e culturais. Ao mesmo tempo ficava intrigado: porque alguns artistas só ganham notoriedade após várias e renhidas décadas de trabalho e outros nem assim conseguem ser reconhecidos? Outros só conseguem ser lembrados às vésperas de suas mortes ou postumamente. Citado em recente artigo de Rubens Ricupero para o Caderno de Economia da Folha de São Paulo, o vaqueiro Riobaldo Tatarana, personagem de Guimarães Rosa, alude, de passagem, às nossas múltiplas demandas sócio-culturais: “Medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento... Tanta gente – dá susto de saber – e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons.” Nem mesmo os mais humildes deixam de sonhar com o reconhecimento ou com a fama e vitórias na vida. Outros passam quase a vida inteira no mais injusto anonimato e só aparecem no fim de suas trajetórias tardiamente enaltecidas. Entre estes milhões de casos, um dos mais recentes é o fenômeno Zé Côco do Riachão, chamado por um documentarista alemão de o “Beethoven do sertão”.

     Músico de vários instrumentos, compositor de dobrados, valsas, polcas, mazurcas, calangos, lundús e outros gêneros sertanejos e artesão polivalente, José Côco do Riachão só recentemente, no início dos anos 80, teve a sua obra valorizada e, assim, conseguiu gravar 4 discos. Grande parte de sua obra se perdeu ou ficou sem ser registrada. Morto agora em Setembro de 1998, em Montes Claros, capital das Minas áridas e nordestinas, sua genialidade musical permaneceu desconhecida até poucos anos antes da sua partida. E talvez nem seja porque vivesse lá nos cafundós ignorados e remotos dos nossos sertões: Clementina de Jesus, no Rio de Janeiro, teve destino semelhante ao seu.

     Também temos outros casos nos quais o reconhecimento veio muitos anos após as suas mortes. Exemplos: Kilkerry, Sousândrade, Mestre Piranguinha, Qorpo Santo e vários outros. A cultura brasileira não é a única na qual ocorreram ou ocorrem tão inexplicáveis ignorâncias e obscurecimentos, desconhecimentos, ingratidões ou trágicas distorções em nosso sistema de legitimação de legados ou obras de valor cultural. Na Rússia soviética e pós – soviética, ignorou-se ou escondeu-se a transgressora obra cinematográfica do diretor Sergei Paradjanov. Na Alemanha, Hans Henry Jahnn (1894 – 1959), músico, construtor famoso de órgãos, grande narrador e dramaturgo de linguagem poderosamente barroca (segundo observação feita por Anatol Rosenfeld em sua História da Literatura e Teatro Alemães), anarquista e anti-militarista, cronista das torturas impostas aos seres “ flagelados por impulsos demoníacos”, é outro exemplo literário de injusta condenação ao anonimato, alvo de obscuras rejeições.

     No Brasil, temos muitos exemplos de escritores esquecidos em caixas ou cantos de estantes ou nos porões de Academias ou não citados em monografias e teses sobre a história da Literatura Brasileira. João do Rio, Adolfo Caminha (agora reeditado pela curiosidade atiçada pelos movimentos gays), o excêntrico e surpreendente João de Minas e muitos poetas, contistas e cronistas do chamado circuito alternativo permanecem esquecidos pela crítica literária dos grandes centros urbanos brasileiros. Só alguns exemplos: Leila Miccollis, Almandrade, Uilcon Pereira, Sebastião Nunes, Márcio Almeida, Hugo Pontes, Zanoto, Cláudio Feldman, Djanira Pio, Teresinha Peron Bueno, Jomard Muniz Brito de Recife e muitos mais. Glauco Matoso do Jornal Dobrabil teceria uma lista ainda mais numerosa.

     Zé Côco do Riachão morreu sonhando com a fortuna de ser dono de uma fazenda. Deixou na casa de sua filha, moradora em Montes Claros, uma caixa com mil CDs não vendidos. Poucos dias após a sua morte, antes que sobre a sua obra fosse estendido o longo lençol do esquecimento, a TV Cultura de São Paulo reapresentou a sua participação num grande encontro de violeiros ocorrido no ano passado no SESC Pompéia (rua Clélia) e a altaneira e saudável Inezita Barroso prestou-lhe outra merecida homenagem Daqui para frente, Zé Côco passa a ser peça obrigatória nos acervos dos musicólogos e pesquisadores da fértil cultura musical brasileira. E, no mais, mais um dentre os pouco lembrados e esquecidos. Numa cultura na qual “irmão desconhece irmão” nada do que exponho é rara barbaridade. Uma plêiade de músicos brasileiros (como Naná Vasconcelos, Egberto Gismonti, Tom Zé, Itamar Assumpção, Jorge Mautner e Nego Nelson) continua fazendo mais sucesso no exterior do que aqui, onde se formaram. De Cuba conhecemos ou ouvimos falar muito mais do ditador Fidel Castro do que do erudito ensaísta José Lézama Lima... e assim por diante... dá tudo na mesma... a vida é mesmo assim, alguém tem que perder para outro entrar no jogo....São inúmeros os Zés Côcos pelos ocos sertões de nosso mundo!....

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Sons de tambores excitavam anões num cortejo de Folia de Reis

     Ao ouvir o coro do séquito da Folia de Reis, sentiu irreprimíveis ímpetos de choro lacrimejante e compulsivo. Tudo é pura adrenalina, mas eu prefiro água de cheiro sem anilina. Praticante da escritura espontânea, adverte-me Olavo de Carvalho, corro o risco de perder o melhor de minha verve, como ocorreu com sua amiga Hilda Hilst. Ferrugem é a cor do passado. As rugas são as eternas marcas do efêmero. Naquela cidade o passado era tão presente que até era confundido com o futuro. O enfermeiro, com cara de nojo, veio ver se o soro do meu cachorro está acabando. Saiu com cara de dentuço que comeu jiló.

     Ornella Vanucci indagou-me uma vez: será que a pipa tem vida própria ou é só o vento o seu alento? Tomar, uma vez por semana, dois pratos quentes de sopa de fubá com mostardas rasgadas e ovos estrelados é revigorante. A testa proeminente de uma pálida e simiesca mulher alta e magra, que acompanhando a procissão de Nossa Senhora das Dores passou por minha janela, me impressionou tanto que não admito a possibilidade de esquecê-la. Nem quando estiver passeando com Lautreamont por Montevidéu.

     Gostaria imensamente de visitar alguma biblioteca de Vilna, capital da Lituânia, terra de florestas (famosas pela outrora fartura de glandes de carvalhos) nas quais viveram os mais puros e derradeiros rebanhos de bisões, bisonhos diplomatas devorados pelo permanentemente ameaçador urso russo. A água salgada do mar continua fria sob o mais inclemente bafo solar, e, numa praia do extremo leste sueco, um velho pescador arrasta, encurvado, um longo e gordo bacalhau. Foi isso que impressionou Ernest Hemingway? Acho que Hemingway nunca tomou Emulsão Scott, nem óleo de bacalhau, mas, certamente, usava Hipogloss contra queimaduras após banhos de sol em praias cubanas e africanas. Puig Gross, autor de Nem Luz nem Trevas – um clássico estudo e reflexão dialética sobre a Idade Média, foi o reitor da Universidade de Buenos Aires durante o curto governo de Hector Câmpora. É isto mesmo?

     Pois é, o Eugênio era tão formosamente inocente que, aos 18 anos, ainda dormia emborcado no bercinho no qual o embalaram em sua infância. Dormia ao lado da cama dos seus pais. Não era porque sentia medo dos sinistros soldados nazistas em suas elípticas evoluções motociclísticas em pavorosos globos da morte fabricados na Nürenberg nazista. Eugênio era tão formoso e ruralmente forte que seus filhos hoje são robustos troncos de jequitibás do Córrego dos Almeidas. Na varanda da cozinha da fazenda do Júlio e da tia Anita (pais do Eugênio) eu avistava dois morros afundados num eterno brejo. Estes dois montes estavam cobertos por um infindo bananal. Cenário que me remetia aos de Gabriel Garcia Marques, em seu livro Cem anos de solidão, romance que acabara de ler numa viagem a Piranga, Calambau e Catas Altas da Noruega (1971). Por onde andei vi tesouros da juventude em escuros porões de velhas casas, nas quais saboreei inesquecíveis broas de fubá com erva doce.

     Os alfarricoques ribeirãopretanos que me perdoem: para uma cidade tão pujante quanto a capital do nordeste paulista a prolongada hegemonia de vossas mediocridades pesará muito em breve nas cacundas burguesas destes ribeirinhos que tomam Toddy com sucrilhos e andam com bermudas de brim cáqui que nem escoteiros escrotos ou como membros da juventude nazista e a exibirem meias de coloridos berrantes sob sandálias franciscanas.

     Os cheiros de tinta fresca me lembram meus brinquedos de madeira recém pintados e que, igualmente, me sugerem fantasias com nítidas alusões às nossas freudianas fases anais (principalmente a cor marrom, que tanto inspira os cacófagos!). A mania de limpeza das senhoras é, para mim, uma clara expressão de ânsia de pureza, porque culposamente se vêem arrastando na cotidiana sujeira sexual dos seus leitos conjugais. Como vêem sujeira em suas sexualidades, gastam quotas absurdas de água potável para lavarem suas casas e calçadas, enquanto este precioso líquido começa a escacear nos maiores conglomerados urbanos brasileiros em 1999. Chuvas ácidas e torrenciais desabam com freqüência sobre os cemitérios de automóveis das pesadas barras das periferias metropolitanas asiáticas, africanas e latino-americanas no fim do século XX. Às vésperas da anual revolução anal-carnavalesca de Orfeus, Eurídices, Medusas e ninfas cariocas. O filme do tempo é, mais rapidamente, corrompidos pelo tempo tropical. Saturno impera nos novos, efêmeros e proliferantes tempos labirínticos e financeiros da Contemporaneidade. As cinzas dos pavios douram as páginas amareladas de um livro de 1756 que tem os seguintes dizeres em sua página de rosto: Tratado Ceremonial da Missa Rezada Conforme as Rubricas do Missal Romano reformado. Offerecido à Seráfica, e Mystica Doutora S. Theresa de Jesus, pelo Padre Manoel Correa de Azambuja, Cura da Freguezia de N. S. da Graça da Torre de Val de todos. Lisboa, Na Officina junto a S. Bento de Xabregas – Anno 1756 – com todas as licenças necessárias.

     “Vida nova, um desejo muito americano”, garante o crítico Robert Hughes. Meu quarto e sua janela são a minha sacada, da qual contemplo o que mais próximo está do meu pessoal antro. Quem não tem as suas perdições? Ou estou rotundamente enganado? Ou depravado? Ou angelicalmente casto e em busca da transparente inocência paradisíaca da minha infância? Ou alguém a fim de exorcizar a maldição, o pecado e a morte às quais fomos condenados?

     Para mim, todas as cidades deveriam contar com um obelisco continuamente atualizável por camadas sucessivas de pastas temáticas de hemerotecas recentemente organizadas. “Os monumentos morrem quando negligenciados.” (Robert Hughes).

     Italianos adoram camisetas listradas. Tirei esta discutível conclusão vendo um álbum de fotos de imigrantes italianos estabelecidos entre 1875 e 1910 no nordeste paulista.

     Admiro muito os Quakers da América do Norte Anglo-Saxônica . Parece que tal admiração começou na minha infância quando passei a saborear mingaus de aveia Quaker e tal admiração seria reforçada no início dos anos 70 do século XX quando li um ensaio sobre o liberalismo sexual e comportamental dos quakers numa revista da Editora Paz e Terra – do Rio de Janeiro.

     Os céus do entardecer são tão tristes!.. A suntuosa arquitetura pública do Capitollium de Washington – D. C. reatualiza a floresta de pernas das telas setecentistas em suas caneluras, colunas e canelosas arestas e fachadas imponentes e monumentais, metáforas arquitetônicas sobre um grande Império e seu espetacular apogeu reatualizador da Pax Romana americanizada. Tudo em nome dos restos adulterados da nossa milenar civilização ocidental cristã. Caezare Palace Hotel.. foi num hotel que assassinaram o senador Robert Kennedy.. e no hall do Senado Romano apunhalaram Caio Júlio César.

     As lambadas das serpentes são tão inesperadas quanto as traições fatais dos céus. Mas nenhum espetáculo será mais majestático como um relâmpago em céu noturno. Inesquecível como a música caipira Lembranças de Zé Fortuna!... Funerária “Descanse em paz” cuida disso tudo, pode deixar com eles!.. Até lavam se for o caso. Minha cadelinha correu amedrontada para debaixo da cama. Estou procurando uma roupa excitante. — ”Do seu tamanho estamos em falta.” Uma luz no fim do túnel é mais um clichê, caboclada!.. Os parentes têm vergonha quando morre alguém dentre os seus. Não vejo sentido em ver os coveiros como um horror, Sugar Baby!.. Assistam logo que puderem ao filme Estação Doçura (alemão). Neste filme a atriz principal é a mesma atriz gorda e também a personagem mais destacada no filme Bagdá Café. Lindo é pouco, é maravilhoso este filme, gente!.. Próxima estação: a felicidade fora dos trilhos.

     Viajarei brevemente para Montevidéu em busca do poeta neo-barroco Conde de Lautréamont, nascido na capital uruguaia e que no início da sua juventude migrou para Paris onde viveu seus últimos anos. Este poeta morreu há cem anos. Quero procurar em sebos e velhas livrarias de Montevidéu algumas obras deste poeta que tanto admiro e pouco conheço!..

     Para a minha cachorra Saragoza tudo é comestível, tudo é bebível, qualquer hora é hora de dormir ou de brincar ou de morder ou de sonhar ou de correr ou desbravar o quintal, arrancar plantas, destruir jornais e esconder sapatos e sandálias. Ela ainda está no paraíso. Por isso ela irrita e subverte o mundo dos adultos. Ela é uma revolucionária sapeca, uma infanta sem causa e uma noviça rebelde e inconformada com os arreios nos quais a metemos. Coitada! Ela começou a perder irremediavelmente o seu Éden!.. Agora mesmo, enquanto eu usava o vaso sanitário eu pensava: como é que pode, não é? Atrás da parede na qual flui os nossos dejectos fisiológicos está o meu computador!... E por falar nisto, a Parecidinha Pereira da Silva cagou atrás da bananeira! Que primitivismo adolescente de porta de banheiro público, meu Deus! Que vergonha, gente!..

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Textos Mineiros

     1 – Saudades da Loção Glostora.

     Na noite de lua cheia da Quinta-feira santa, indo para o sudoeste de Minas Gerais, passei de ônibus em frente ao Royal Park Motel de Passos – MG. Um pouco depois de passarmos por esta casa de prazeres efêmeros e eternos ou desprazeres duradouros, uma moça disse para um rapaz muito intrépido e ousado: – ”O mal não é o que entra mas, sim, o que sai da boca do homem.” Aí tive vontade de perguntar: e o que entra e sai, entra e sai? É mal ou bem? Mas, como ia dizendo, além de não privadas, as conversas que rolavam eram plenamente audíveis e descontraídas. Tão descontraídos vinham os passageiros mais jovens que uma moça de Capitólio, aparentando ser de boa família, apagava as luzinhas que focavam sua poltrona usando os pés em vez das mãos. Atitude inconcebível em uma moça direita de cem anos atrás, nos tempos que as moças que andavam a cavalo, para não abrirem as pernas, cavalgavam numa cadeirinha aveludada com as duas pernas voltadas para um lado só.

     Mais ou menos como esse meter os pés pelas mãos é ou funciona (?) o sistema de licitações nos serviços públicos: vence a concorrência a empresa que oferecer os preços mais baixos e, quase sempre, o barato sai caro. E quem paga esse barato que acaba saindo caro é o povo. Assim os gestores dos estatutos e códigos do serviço público premiam a falta de qualidade ou o atraso tecnológico nos produtos e nos serviços licitados. Mas algo ainda mais sério ocorre nas Minas Gerais: o novo governador manda projeto para a Assembléia Legislativa no qual o governo mineiro anistia e premia com aposentadorias precoces (pagas pelo povo mineiro) os policiais e oficiais da Polícia Militar de Minas Gerais que, rebelados em meados de 1997, transformaram Belo Horizonte numa praça de guerra. Assim, o atual governo estadual mineiro comete mais um ato desastrado: o de beneficiar policiais insurgentes contra o governo anterior, abrindo brechas ou abrindo precedentes favoráveis a novas desordens e indisciplinas de policiais que desconhecem a hierarquia e a história de mais de duzentos anos da corporação policial militar mineira. Em nome da segurança pública, desde o governo de Eduardo Azeredo, policiais mineiros, em vésperas de feriados prolongados, param os ônibus que trazem aqueles que vêem de outros estados para passarem a Semana Santa com os seus parentes ou amigos ou para conhecerem o tradicionalismo religioso mineiro e, aleatoriamente, escolhem cinco ou seis passageiros em cada ônibus com quase ou mais de 50 passageiros (no ônibus que eu vinha, um pedreiro e pai de família com dois filhos com menos de seis anos, que mora na periferia de São Sebastião do Paraíso e trabalha na região de Ribeirão Preto já foi vistoriado por mais de oito vezes consecutivas) e os submete a um ritual de busca ou a uma vistoria geral em público, sob os olhares apreensivos e constrangedores ou constrangidos dos demais passageiros, numa situação no mínimo vexaminosa. Além disso, como ficam os direitos constitucionais de ir e vir de um cidadão adoentado que transporta alimentos e medicamentos perecíveis e que tem alterados os horários de suas medicações comprometendo até o desfecho dos seus tratamentos? Aquele que resistir a este tipo de inspeção ou abordagem policial pode ser preso, prevê a legislação vigente. No meu ponto de vista, todos deveriam ser vistoriados e todas as bagagens deveriam ser vistoriadas. Mas, o ônibus só saiu da Rodoviária de Ribeirão Preto após mais de meia hora de embarque de todos os passageiros que levavam bagagens preparadas nos dois dias que antecederam àquela viagem...o que, calculo eu, para serem vistoriadas todas as bagagens e passageiros, os cinco policiais demorariam no mínimo dez ou nove horas, o que constituiria um abuso ou um desrespeito frontal à liberdade da maioria que não é viciada em drogas nem comete ostensivas transgressões ao atual sistema legal. Isto configuraria toda blitz policial como um ato ilegal ou um ato sujeito à incorrências discriminatórias, ou as tornariam impraticáveis e ilegais. Pareceu-me que tais intervenções têm efeito muito mais teatral do que de segurança pública, como se viessem mostrar serviços, enquanto a violência só aumenta, alguns policiais entram no ônibus, intimidando a maioria dos passageiros, pois a maioria dos brasileiros se sente insegura inclusive diante do aparato policial e judiciário que penosamente ajuda a manter e que nada faz para minorar a insegurança pública. O que não entendo é porque alguns desses policiais, durante essas batidas, ficam fora do ônibus conversando descontraidamente e rindo, enquanto olham e se divertem sadicamente com o medo imposto àqueles passageiros indefesos e até apavorados. Diante dos policiais, ninguém sabe como reivindicar, para cada um, o respeito que todos nós cidadãos brasileiros merecemos. O respeito que todo policial militar nos deve. Nossas polícias nos amedrontam quando nos deveriam proporcionar segurança e nossas leis continuam por nós desconhecidas e nosso sistema judiciário cada vez mais lento e injusto ou, em muitos casos, nos proporcionando uma justiça de qualidade jurídica questionável. Aumentam os casos de juizes presos por crimes assombrantes e apavorantes. Nossa justiça também tem sido acusada de ser vulnerável aos interesses dos segmentos mais poderosos deste país. Vulneráveis àqueles que solapam as bases materiais e morais sobre as quais construiríamos um presente menos indecente e um futuro mais culto, civilizado ou menos barbárico. Embora não deseje a paralisação das votações do Congresso Nacional, que deve continuar votando e apreciando propostas de reformas fiscais, tributárias e políticas, e ainda saiba sobre as motivações demagógicas dos que estão propondo as comissões parlamentares de inquérito sobre desmandos e irregularidades nos sistemas judiciário e financeiro ou bancário, sou a favor de uma jacobina devassa pública dos bastidores e demais âmbitos dos sistemas e dos poderes judiciário e bancário nacionais e internacionais. Em todos os níveis: no plano municipal, estadual e federal. Assim como nos demais poderes da República: Legislativo e Executivo. Com apenas um adendo: sem prejuízo das atividades legislativas mais prioritárias e emergentes, como, no caso, as reformas acima exemplificadas. O absurdo está muito presente nas decisões judiciárias. Franz Kafka, um dos escritores que melhor expressaram a perplexa e estonteante vertigem autoritária da humanidade no século XX, não escolheu a toa a prepotência que flui nos processos da justiça que se desfaz nesse mundo de miseráveis poderosos. A justiça é cega, por isso tenho medo da justiça imperfeita que apenas afirma interesses humanos parciais e muitas vezes escusos. Desumanos e interconflitantes. Olavo de Carvalho indaga: como pode um mesmo artigo do código penal exigir o fim de todas as atitudes discriminatórias contra posturas comportamentais e sexuais, religiões e etnias se os muçulmanos, judeus e evangélicos, em suas doutrinas religiosas, não têm como aceitar os procedimentos prazerosos dos homossexuais, dos pedólatras, dos pedofílicos, sado-masoquistas, necrofílicos e coprófagos e exibicionistas e nudistas? Temo, a um só tempo, a justiça e a cegueira, a demagogia e o populismo. De esquerda ou de direita. Porque ambos são nojentamente oportunistas.

     Se o cego tem de lutar para dar uma forma ao mundo, a justiça busca ou tenta se justificar monumentalizando-se em palácios e envergando pomposas togas seiscentistas e retóricas cada vez mais pobres e medíocres, avessas à poesia ontológica do mundo em curso. Nem tudo é verdade, pois a realidade sempre escapa e escorrega quando a tentamos apreender pela informação, pela intelectual e filosófica abordagem de seres e coisas que em nós e em torno de nós orbitam e não desmentem o que disse Blaise Pascal: a verdade é infinita. Talvez, por isso, o cineasta holandês Johann van der Keuken diz que “até uma pessoa altamente visual é cega. Como cineasta, luto para produzir uma imagem que possa conter alguma verdade, ainda que por alguns segundos. Quando você olha para os rostos das pessoas, o que vê é um grande mistério.” Assim, por esse motivo misterioso pelo qual as verdades se esvaem e se evaporam inexplicavelmente em brancos e átimos imperceptíveis, Keuken nos garante que a única e possível verdade em seus “documentários” é a sua presença por trás da câmera. Isto se ele de fato estiver lúcido e de fato presente no manuseio ou no deslocamento desta máquina de tempos e imagens. Ninguém é capaz de explicar tudo no mundo, principalmente quando construímos explicações antes do entendimento. Práticas retóricas comuns aos legisladores, ideólogos e jurisconsultos.

     2 – Sobre tudo e sobre nada, Aninha costura a vida e a morte.

     Nos filmes de Johann van der Keuken nada é explicado ou contextualizado porque no incessante labirinto dispersivo da fragmentária mente humana tudo é aparentemente desconexo, ampliável e infinito. Assim como o número de nichos de “ethos”, estéticas, ícones e plásticas visões caleidoscópicas, flexibilidades elásticas e caóticas como a dos fractais concêntricos e não-concêntricos, descontínuos ou segmentados irregularmente. Nesses filmes também não se urdem juízos de valor. Isto perturba os que consomem seus “documentários”. Catalisadoras de perplexidades e nada reveladoras nem denunciadoras, as películas de Keuken registram o vácuo ideológico que a tudo envolve, o silêncio ou o burburinho significativo de um mundo sem rumos, múltiplo, desconexo, complexo, intrincado e perplexante, que nos coloca ou nos faz atônitos diante do visível e do invisível que a tudo permeia, a instaurar dúvidas e mistérios. Explicações fora de hora ou que antecedam ao entendimento, matam o frescor instantâneo e volátil da emoção que as imagens, palavras e cheiros, sons e idéias nos sugerem. Mesmo aparentemente desconexo e fragmentário, o “documentário” de Keuken não deixa de ser um estilo de narrativa, por que não? Tudo é descontrolável, inclusive nossos olhares e nossas mentes. Ainda bem. Imagine a humanidade controlada por cabrestos e arreios mentais, ideológicos e comportamentais. E se, de repente, e sem mais nem menos, entre quatro paredes, tudo pode acontecer, você me tomaria como um louco desparafusado? E se, em seguida, novamente não estabeleço qualquer nexo entre o que dizia acima e simplesmente lhes digo, sem verticalismos nem horizontalismos seqüenciais, que concordo com o historiador James Billington quando ele classifica o “politicamente correto” como uma obsessão fixa e unilateral de sub-culturas intelectuais cultoras de preconceitos ideológicos, metodológicos e conceituais, há 20 ou 30 anos superadas mas que até hoje não se deram conta da sua esclerose fossilizante? Mas, ao mesmo tempo, a crença mítica em revoluções transformadoras do mundo virou uma religião que agoniza entre ressentidas e magoadas utopias fantasmagóricas fracassadas. Para James Billington, a revolução por métodos violentos; sonho de ideólogos passionalmente racionalistas e, desde as revoluções européias dos séculos XVII e XVIII, cultivadas prometeicamente; não é mais levada a sério no mundo de hoje. “Tanto o conceito de revolução social quanto o de revolução nacional foram desacreditados”, assevera Billington. Mesmo assim alguns setores intelectuais influentes nas universidades brasileiras no fim do século XX e amplos segmentos dos formadores de opinião nas mídias e nas religiões continuam norteados por mitos e imaginários revolucionários alardeados com sucesso até trinta anos atrás. Porque será que tais mentes (que se auto-avaliam como privilegiadas) sejam assim tão renitentes quanto a lavadeira que, afogando-se e morrendo, ainda esfregava os dedos como se esmagasse pulga, só para chamar a sua inimiga, que a atirara no rio no qual se afogava, de pulguenta? Ou piolhenta? Piolhenta!.. Piolhenta!..

3 – Emoções ao ouvir músicas cantadas por Louis Armstrong

     Abandonei o útero da rede indígena e deitei no chão ladrilhado com falsas páginas de granítico existir. Arrepios de emoção universal. Ah! Sei lá!.. Pode ser... mas os nacionalismos balcânicos de eslavos em confronto bélico com cristãos, latinos, muçulmanos e, certamente, judeus, me sugerem a hipótese pela qual a humanidade pós-moderna contemporânea esteja atada e ainda envolvida com mentalidades, sensibilidades, legados míticos e imaginários milenares e, no fio da navalha, oscila entre a impersistência e as longas durações, o efêmero volúvel e volátil versus as tradições. E eu me coloco, como se colocou Ezra Pound, a favor da paixão poética, mas não a favor de uma paixão fascista ou bolchevique ou ideológica, mas, sim, por uma paixão não-racionalista, questionadora dos vigentes estatutos do “humano” e que ame viver dançando, trabalhando, comendo, fazendo sexo virtual e/ou real, lendo, vendo um filme interessante, viajando num avião boeing, falando ao telefone via satélite ou navegando na internet com pessoas com as quais se afine e que questione o espírito coletivista-utópico e busque novas quebradas no labirinto da existência, nichos aconchegantes que nos livre momentaneamente do fluxo de vai-vens auto-destrutivos e inter-destrutivos... ou nada disto, que seja tudo diferente do que vem acontecendo. O auto-conhecimento através de uma masturbação na frente de uma alongada elipse espelhada. E terminarei girando como as hélices de um ventilador italiano Rinnai, da múltipla fragmentação acelerada e inexplicável até a plenitude da unidade eucarística não-barbárica. A revalorização de barroquismos, neo-barroquismos e expressionismos. De 4 hélices me farei um disco pleno em movimento giratório como o sol, senhor de seus filhos e planetas. Sou tarado por iniciações sexuais e, para mim, a vida é uma contínua iniciação sexual. Os seres assexuados não gozarão os céus.

     Na noite de Sexta-feira santa, em pleno sertão enluarado do sudoeste mineiro, acompanhei a multidão desencontrada que se acumulou na procissão do Nosso Senhor Morto ou no fúnebre préstito ou cortejo ou enterro do filho do Pai dos Céus. Abril de 1999. Esta multidão, que oscilava entre a ostentação de dignidade religiosa, ou de efêmera credibilidade ou confiabilidade interpessoal, a militância política esquerdista e esclerosada do tal clero progressista e uma diminuta resistência das tradicionais e até simpáticas beatas feiticeiras (que ainda medem o corpo do Senhor Morto com barbantes e linhas coloridas), este desencontrado préstito passa na frente das funerárias Sagrado Coração e Santa Rita. Escrever e ouvir música do padre José Maurício Nunes Garcia é um desperdício proporcionado pela mania de querer escrever tudo aquilo que se passa no meu sombrio e exultante, pessimista e otimista, intimista e escandaloso, preconceituoso e ousado, cérebro masculino dotado de alma masculina livre de estereótipos sexistas. Politicamente correto e incorreto. Vou parar e ouvir uma fúnebre missa do padre José Maurício Nunes Garcia.

     O grande tema de todas as religiões tem sido as eleições e as dinâmicas unitárias ou fragmentárias, o poder e o não-poder; a mafiosidade aética e o puritanismo ingênuo ou devasso (como o de Tartufo, por exemplo) e desconhecedor da satânica e lautréamontiana ou maldororiana alma humana, super-humana ou sub-humana. Uma cultura com imaginário fúnebre sofisticado e antigo revela muito da sua história. O mais intrigante em tudo isso é que quanto mais perto da morte (como ocorre com todos nós) mais intensamente vivemos. Comerei agora fatias ou nacos de queijo Minas fresco. Quer? O professor de Música do padre José Maurício Nunes Garcia nasceu e veio de Cachoeira do Campo (perto de Ouro Preto) para o Rio de Janeiro, onde muito contribuiu para a formação estético-musical de um futuro mestre-de-capela real da corte de D. João VI no Rio de Janeiro (1808/1820). Tal corte ou a sua história não bate com a versão caricata e pedante da carioca europocêntrica Carla Camuratti. Mas também estava longe de ser como a dramática, infausta e faustosa corte lisboeta de D. João V. José Saramago é mais um místico candidato a santo em meio ao tiroteio ideológico deste final de século XX. Será que viverei em dois distintos séculos? Ficarei ainda mais vaidoso de mim se tal possibilidade se realizar. O efetivo virou efêmero e tudo é insegurança e incerteza, daí o meu vivo veio e viés conservador(?) ou aparentemente conservador? Por isso gosto do cinema de Sylvio Back, de Júlio Bressane, de Rogério Sganzerla, de Glauber Rocha, Alex Vianny, Humberto Mauro e Nelson Pereira dos Santos... A religião do comunista Dyonélio Machado tinha ritual para cheirar rapé de Moscou e cerimônia de lava-pés no Kremlim e não em Guaxupé, onde se chupa pé. Todos os subversivos foram conservadores defensores de ditaduras partidárias militarizadas, isso é que é.. Coca Colla é pior que Crush... Quem bebe Grapete repete.. E quem bebe Crush repete e repete até se estourar de beber e não se satisfazer com a delícia incessante que é beber e beber sem parar... Crush.. mais Crush... mais um Crush...

     4 – O enfastio de informações nublou meus horizontes.

     Vivemos num mundo no qual as informações sobre todos os itens e verbetes de enciclopédias, dicionários, atlas e revistas valem tanto quanto nenhuma informação ou um nada informativo ou uma total e arrasante banalização da informação. Estar ou não estar informado parece dar no mesmo. Avalanches de informações nos massacram e nos desnorteiam. Parece que está em curso uma estratégia pela qual seria cada vez mais complexo e difícil se formar uma nítida visão de mundo pós-ideológica, ou, até pelo contrário, seria tão fácil e cômodo insistir nas velhas visões ideológicas de mundo, simplistas e postiças, artificiais e forçadas, que tenderemos a comprar momentâneas e funcionais visões de mundo destituídas de paisagens e memórias, o que desembocaria no mesmo Ter ou não Ter uma contemporânea visão de mundo, apenas uma a mais ou uma a menos na Babel cognitiva ou na Babel massificante de nossos horizontes cor de cobre... como no filme Querelle de Fassbinder...

     5 – Tristeza no fim do século.

     Não me canso de ouvir o Trio em Mi Bemol KV498 composto em 1786 por Wolfgang Amadeus Mozart (1756/1791) para piano, clarinete e viola. Andante. Menuetto e Trio. Allegretto rondeaux. O céu é o fundo imensurável onde caminham cintilantes e peregrinas estrelas e planetas, satélites e aviões. Estou com medo de uma nova guerra mundial se alastrar a partir da guerra entre etnias, nações, culturas, religiões, cidades e micro-estados da ex-Iugoslávia (Kosovo, Macedônia, Croácia, Sérvia, Herzegovna, Eslovênia, Montenegro, Bósnia, etc..) e outros mesquinhos e fascistas interesses fermentados ao longo de décadas de comunismo repressor e autoritário. Derramei um pouquito de óleo de eucalipto em vários cantos da nossa casa mineira para espantar os maus espíritos que nela possam Ter adentrado acompanhando uma insistente e saltitante perereca fria e repugnante. Cruzes à beira das estradas no Domingo ensolarado de Páscoa de 1999. Saí perfumado do banho de banheira, durante o qual tomei várias canecas de guaraná diet. Sinto que essa nossa casa piumhiense está requerendo novas cores, novas pinturas, ampliações e reformas. As faremos aos poucos, sem solavancos. Quando a minha cadelinha de 5 meses vai comigo ao supermercado ou aos correios, ela me transforma em sua carruagem e ela se transforma em vigoroso e ousado corcel que, aos pulos e saltos, vai me arrastando, apavorando alguns ou fazendo com que outros riam dessa cena engraçada. Ouvir os Beatles com os meus 47 anos e alguns meses, em pleno 1999, me afigura como um exercício de nostalgia masoquista. Desfiz-me das velhas roupas que colecionava em nosso guarda-roupa centenário, estilo art-decot: elas serão mais úteis nos corpos dos que delas necessitam. Entendo, tudo passa, até os nossos objetos pessoais, nossas roupas e nossos momentos... mas será que nossas essências são permanentes?

     6 – Cacos poéticos pinçados dos livros clássicos do romano Ovídio

      (pinçagem feita por José Luiz Dutra de Toledo em textos traduzidos pelo grande poeta José Paulo Paes).

     “Das janelas, em parte abertas, em parte cerradas, vinha luz semelhante à que há dentro das matas. À luz mortiça do crepúsculo, após Febo sumir, ou de antes de a noite ir-se sem que seja dia. A esta luz é que se hão de mostrar as jovens tímidas; nela o pudor medroso espera achar refúgio... Tu, de tão grande, lembras as antigas heroínas e ocupas todo o leito ao nele te deitares... Colocou, por entre beijos de línguas cobiçosas, sua coxa lasciva debaixo da minha.. E me chamou seu dono e me disse umas coisas ternas com palavras vulgares para me excitar. Qual se tocados por cicuta glacial, meus membros em frouxidão, abandonaram seu propósito; tronco inerte ali fiquei, um fantasma, um peso inútil, sem nem mesmo saber se eu era corpo ou sombra... Mediante afagos, ela poderia despertar o carvalho, o rochedo, o diamante insensíveis; despertar tudo quanto tem virilidade e vida: porém nem vida nem virilidade eu tinha... Foi se lavar para esconder a humilhação... Diz-lhe que estou vivo, mas não bem de saúde: o próprio fato de eu estar vivo é dádiva de um deus... Se a causa não é boa, a defesa a piora... Quando eu era feliz, alentava-me o amor de um título, movia-me o desejo de alcançar o renome; baste hoje eu não Ter ódio à poesia, que me foi fatídica: o exílio devo-o ao meu talento... É difícil dizer se deves usar remo ou brisa... Mais que o mar hostil, a terra me dá medo... Minha alma fez frente aos males e deu ao corpo força de suportar o que era quase insuportável!... O cavalo decrépito pasta nos campos.. Eu desejava Ter uma velhice plácida... Desde a infância ilustrávamos a mente; fez-nos ir o pátrio zelo a Roma e aos seus mestres insignes. Com seu ardor de jovem, meu irmão tinha nascido para a eloqüência, as pugnas verbosas do foro. Mas a mim, criança ainda, atraiam os mistérios do céu e, às escondidas, a obra das Musas. ... Meu pai dizia: “Porque tentas um estudo vão? O próprio Homero não deixou riqueza alguma.” Tal fala me tocou; larguei o Helicão de vez e tentei escrever palavras sem cadência: por si mesma, vinha a cadência certa do poema; saia em verso quanto eu buscasse dizer... Se extintos, tudo quanto de nós sobra é só um nome.. No estudo conforto minha alma, iludo minhas dores... Não nega o mundo terem os poetas são juízo e não sou eu a melhor prova desse dito? O gladiador ferido deixa as lutas, mas esquece pronto as velhas feridas e retoma as armas.... O náufrago que diz não quer mais saber de mar. Em pouco puxa remos na água onde nadava. Assim também persigo, com constância, um vão labor e volto às deusas que quisera nunca honrar.. A força está na mente e não no corpo débil.. E nega ao duro jugo o pescoço noviço. A mim o fado acostumou-se a usar tão cruelmente que há muito já não sou novato para os males... Magna é a causa, amigos, a que não vos atrevestes... Aqui não cobrem os olmos os pâmpanos da vide; fruto algum faz pender os galhos com seu peso... Disformes, os campos só produzem tristes absintos; Quanto é amarga a terra, mostram-no seus frutos. Assim, por toda a margem esquerda do Ponto Euxino, não há nada que possa enviar-te o meu zelo. Mandei-te, porém, fechados num carcás, dardos cíticos: possam eles fazer sangrar teus inimigos....”

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Tomo leite com açúcar queimado com o Czar Nicolau II e esfrego os meus pés nos dele

     Parece que, após 500 anos da chegada de Pero Alvares Cabral à Bahia, as nossas mídias continuam lamentando tal desembarque, como se estivessem a nos dizer que preferiria que o Brasil continuasse virgem e indígena como há cinco séculos, preferindo o isolamento deste nosso imenso território em relação às múltiplas redes mercantis que então eram tecidas entre os cinco continentes deste planeta. Em vez de preferirem ir adiante, múltiplos setores sociais brasileiros, devidamente influenciados por estas mesmas mídias, querem andar para trás votando em Lula em Outubro. Pior que isto, apostam numa recaída, trocando o que já conquistamos pelo delírio oportunista dos demagogos populistas que preferem o caos inflacionário; apoiam os privilégios corporativistas das legiões da classe média do funcionalismo público incompetente; optam pelo caos e pelo ataque agressivo contra os agentes da riqueza se investindo o papel messiânico de salvador dos pobres e miseráveis que, há séculos, vêm sendo usados por todos que buscam o poder pelo poder, cegos diante da derrota histórica das suas utopias sucateadas pelo elitismo autoritário dos ditadores comunistas de todo o mundo contemporâneo (Fidel Castro, os secretários – gerais do PC soviético encastelados no Kremlim, os mandatários imperiais da Coréia, do Norte, China e Indochina e os sultões anti – Ocidentais do Oriente Médio dos terroristas xiitas, Hesbollahs e Aiatolás). Parece até que sina brasileira sempre foi a de dar 2 passos adiante e 20 para trás e depois começa a chorar, com a barriga cheia, denunciando as potências capitalistas globalizadoras como se nós não tivéssemos nenhuma forma de participação nas contínuas recaídas ocorridas em nossa história econômica de sucessivos retrocessos, ressentidos e imaturos. Não sei quem foi que disse um dia destes que o espírito vira-lata se apossou de novo do Brasil. Nada tenho contra os vira-latas. Tenho um aquí em casa, ao qual amo mais do que a muitas pessoas há muito conhecidas pelo seu espírito predatório e suicida. O Oriente está falido, super-populoso e super-explosivo. Fora do Oriente resta o Ocidente em frangalhos, aos cacos e em plena barbárie. Fora do Ocidente o vácuo de poder pode antecipar o Apocalípse nuclear. Tudo isto tem a ver com o desfecho do processo eleitoral brasileiro em 1998. Assim como na Copa do Mundo na França 1998, no mundo contemporâneo nada ou ninguém, a priori, é favorito ou vencedor em potencial!... A barbárie desencadeada pelos torcedores ingleses em Marselha no dia 14 de junho me revelou a globalização da violência.... o globo da morte banalizada. O cenário dourado dos patriarcas eslavos da Rússia Czarista: os últimos céus e paraísos aos quais muitos são chamados e poucos os escolhidos. Todos os paraísos são apenas para diminutas elites (nem sempre elites sócio-econômicas) e todos infernos nos envolvem desde o parto de luz até as nossas trevas sepulcrais. Meu Czar, adoro tomar leite quente com açúcar queimado!... Ah!.. vamos esfregar os dedões cascorentos de nossos pés de virís machos uns nos outros? A noite está tão fria e chove lá fora!.. E uma saudade imensa não vai embora!.. Vou descendo por todas as ruas... talvez eu volte.. Eu vou me embora sem medo daquí.. Gal Costa tem cara de quem gosta também de beber leite quente fervido em açúcar queimado.

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Traduzir não é trair, é propiciar diálogos, é reescrever o irremediável abismo profundo a separar as línguas e gentes do mundo, propôs Paul Celan

     Em plena inauguração do novo espírito da unidade européia entre Eros e Tánatos, ouvimos um Requien Aeternam. O filho de um empresário de Niterói que aluga carros das primeiras décadas do século XX para cenas de novelas e seriados da TV Globo desconhece as factíveis arqueo-genealogias proustianas das nossas sucessivas camadas geracionais de nostalgias. Aos que se refugiam nos nichos protetores e sacralizadores das Universidades: a Civilização pode estar retornando à sua condição original de um monte de fragmentos, cinzas e pó. (?) Ocupados com a nossa própria desaparição, somos derrotados pelo irreversível vício da autodestruição.

     No século XIX, quando requisitadas sexualmente por seus maridos, e não querendo satisfazê-los, as mulheres alegavam alguma enfermidade. No fim do século XX, quando as sociedades temiam a propagação das preferências homossexuais, a AIDS foi usada para a construção ideológica da “peste gay”. Após uma curta chuva de mangas, noventa e cinco por cento dos homossexuais continuavam vivos e a mais temida epidemia dos anos novecentos atingia e incapacitava fetos, bebês, adolescentes, senhoras casadas, mulheres solteiras ou divorciadas, homossexuais, viciados em drogas injetáveis, hemofílicos, machos bissexuais e heterossexuais adultos e idosos. Artistas e intelectuais famosos e pessoas comuns. Hoje muitos homossexuais se vêem como doentes pois, assim como as citadas mulheres do século XIX, na realidade sã não encontram seus justos lugares. Parodio aqui um dos argumentos da escritora austríaca Elfriede Jelinek – Prêmio Büchner 1998. Para esta solitária militante das causas femininas, a emancipação da mulher não foi mais que um movimento intelectual ou acadêmico, tão passageiro quanto uma ventania chamada de chuva de mangas no sudoeste mineiro. Não repercutindo mais amplamente nas sociedades e culturas nas quais perduram milenares machismos. Jelinek se indigna também porque não consegue se impor com aquilo que diz. Também disse:” Para escrever temos que desenvolver um outro Eu, um Eu que fale. Em suma, uma proteção contra a realidade.” Escrevendo, nos desaparecemos e, em seguida, ressurgimos das cinzas, com nossos irrevelados e silenciosos perfís. Para Ernst Jünger, a verdadeira causa das nossas posturas e atos está na relação com que cada um mantenha com a morte. “Em alguns atua como estímulo, em muitos como nojo.” (12 de Agosto de 1988). Para o teuto-boliviano Eugen Gomringer, o abismo insuperável que profundamente separa as milhares de línguas e dialetos dos povos humanos deste mundo poderia ser ultrapassado pela criação poética concretista, em sua aspiração de um sistema de comunicação que paire acima das barreiras linguísticas. Para os arautos dos nacionalismos e autoritarismos, elevar seus narcisismos à categoria de fundamento de Estado, construir espelhos de autosatisfação e exterminar maciçamente ou individualmente o não-ignorável passou a ser a única e arrogante saída: holocaustos e carnificinas. Isto ocorria ou ocorre quando não existem barqueiros tradutores que nos levem a conhecer e a dialogar com as nossas distintas cercanias e vizinhos ou “bárbaros” distantes de nossos horizontes. Traduzir e propiciar diálogos entre pessoas e diferentes povos é o ofício do barqueiro – escritor João Silvério Trevisan, em sua discutida e eloqüente novela Ana em Veneza (que em alguns aspectos me lembrou a temática de Leila Perrone Moysés em seu livro 50 luas, sobre a viagem sem retorno de um índio Carijó de Santa Catarina, iniciada em 1502, levado à França por um comerciante, do qual seria herdeiro). Barqueiros condutores das naves ébrias de nossas civilizações em tormentosas águas. Como as que vi no fim do filme Aurora, de F. W. Murnau. Os muros e as muralhas e as portas de cavernas de tesouros ou de tumbas de todos os tempos ruíram, ruem ou ruirão... levadas pelos ventos da leveza. Aquilo que os cegos não conseguem escrever nem têm coragem de ditar jamais poderá ser escrito. Talvez ou mui certamente, o escritor venezuelano Arturo Uslar Pietri é crível quando diz: “ A Torre de Babel é uma identidade. Meu grande problema é saber quem sou eu, qual é esta sociedade na qual vivo, no que temos acertado, em que temos nos equivocado e em esforçar-me para que os outros entendam meu ponto de vista. (Aqui neste ponto Uslar Pietri me lembra Pasolini que disse: ”Morrer não é desaparecer mas sim não ser mais compreendido.”). ... Há gente sensível às cores, há gente sensível aos sons e há gente sensível às palavras... Depois de tudo, o fato fundamental que muitas vezes perdemos de vista é que o universo que temos, tudo o que sabemos ou pretendemos saber, tudo que conhecemos ou pretendemos conhecer está em palavras. Não podemos ir além, nem um ponto além ou aquém da palavra. Para o que não temos palavras, não temos nomes e não temos conhecimento. O Universo para nós é um conjunto de símbolos de palavras. Há um momento inconsciente, no qual uma pessoa que esteja descobrindo o mundo, descobre esse jogo misterioso no qual o mundo pode se fazer e se desfazer com palavras. Depois vem a necessidade de por as coisas por escrito.” Por tudo isso e mais aquilo talvez tenha dito o escritor alemão Heirich Böll: “As convicções são grátis.” (...) ”Estamos em busca de uma linguagem habitável em um país habitável.”. Por isso, na história da humanidade, livros, línguas, palavras, idéias e imagens foram, são e serão interditadas por todos os séculos, Amém?

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Um cachorro faminto bate à minha porta

     Numa entrevista concedida ao jornalista Roberto D’Ávila o culto e erudito frei Leonardo Boff se equivocou citando o filósofo Blaise Pascal como um homem do século XVI, quando este místico jansenista viveu no século XVII .

     Este descuído esquerdista com relação ao conhecimento historiográfico é um sinal inequívoco e preocupante de decadência do humanismo e evidência de que vale agora é só a luta pelo poder.

     Um cachorro faminto bate à minha porta e o olho desconsolado por saber que não posso acolher todos os cachorros desamparados neste mundo materialista em que vivemos e diante deste cachorro e de seu olhar pungente me desespero porque nada poderei fazer por ele e pelos demais seres vivos em risco de vida aquí e agora.

     A antropologia de Darcy Ribeiro constatou a não – existência de vacas abandonadas e a inexistência de cabritos abandonados, mas não enxergou os milhões de cachorros abandonados em nossas ruas e bairros rurais...roças e sertões.

     A “juventude com certeza “ é uma tristeza. Não tenho saudade da brancura Rinso, só lamento a dificuldade hodierna em se encontrar e comer fatias de goiabada cascão. Que saudades eu tenho da dobradinha goiabada cascão com queijo Minas fresco chamada nos bares sujinhos do bairro paulistano de Santo Amaro de Romeu e Julieta!!...

     Mas, quem podia prever que nos alagados arrozais do sul brasileiros fossem criar peixes? De tanto se envolverem com os cachorros internados numa clínica veterinária, os enfermeiros assumem feições fisionômicas caninas.

     Os hábitos fazem os monges!!... Eu estava propenso a votar em Marta Suplicy para governadora do estado de São Paulo mas...com a participação do seu esposo – senador Eduardo Matarazzo na manifestação que reuniu aposentados e o direitista Arnaldo Faria de Sá e que tentou invadir o palácio do Planalto numa sugestiva simbologia putschista ...risquei o nome da deputada petista da minha lista de alternativas político – eleitorais para 1998.

     A selvageria juvenil (seja de “esquerda” ou de “direita”) foi alvo das últimas preocupações terrenas de Pier Paolo Pasolini (morto por um adolescente italiano na praia de Óstia – Roma no inicio de Novembro de 1975 .

     (...) “Antes de os relógios existirem, todos tinham tempo. Hoje, todos têm relógios. “– Eno Theodoro Wanke – ainda o melhor sal de fructa contra nossas indigestões cotidianas. (....) “Músicas tocam na minha cabeça. O baile está vazio. “ – Eduardo Waack – Matão – SP.

     Em vez de criticarem o dedicado presidente da República, dr. Fernando Henrique Cardoso, pelo fracasso nas votações das reformas da Previdência durante a presente convocação extraordinária da Câmara dos Deputados Federais, deveriam, com mais justiça, acusar os deputados oposicionistas do PT, PC do B, PDT, PPS, PSB e alguns do PMDB e do PTB, deputados que fazem oposição sistemática e, assim se portando, defendendo interesses corporativistas, fazem obstrução dos trabalhos legislativos, inviabilizando suas votações por falta de quorum ou impedindo a ocorrência de um número mínimo de sessões para a discussão e votação destas reformas constitucionais que reduziriam o custo Brasil e viabilizariam o orçamento previdenciário nacional para os próximos meses e anos. Estes oposicionistas são os verdadeiros responsáveis pela inútil gastança federal com a convocação extraordinária do Congresso Nacional.

     Quanto as denúncias do ditador anti – capitalista Fidel Castro sobre a penúria cubana ocasionada pelo bloqueio comercial imposto há quase quatro décadas pelos Estados Unidos ao governo comunista que expropriou várias empresas estadunidenses que operavam na ilha caribenha até a ditadura corrupta de Fulgêncio Baptista, me chamam a atenção pelas contradições que encerram em sí mesmas: se o regime cubano é contra o capitalismo porque depender de relações comerciais com o país capitalista mais poderoso no mundo contemporãneo??...

     Em pelo menos um ponto Fidel Castro e o Papa João Paulo II estão de acordo: ambos condenaram aos infernos terrenos os homossexuais. Pelo menos por isto ambos podem fumar cigarros da marca Free...um ponto em comum entre o catolicismo medieval do papa e o puritanismo pós – soviético de Fidel Castro...

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Um cavalo amarrado às margens de uma avenida olha o matagal ressecado e queimado e montes de lixo e não vê água para beber

(....) ”Se todo animal inspira ternura, o que aconteceu com os seres humanos?”

João Guimarães Rosa.

     Eva viu a saúva e não tem saúde. O sertão é o oeste, o interior do continente. O sertão é terra de gente que come feijão rosinha. O sertão tem paisagens profundamente horizontais e tristes. Eu não agüento mais redigir textos que nem sairão em jornais. A poeira vermelha das estradas cobre de pó de cobre os seres vivos e os inertes das paisagens estéreis e desmemoriadas. A cauda de bronze do inseto lava-bunda não é pesada e as paredes descascadas escondem camadas ignotas de tempos e sombras de antanho. Lancaster segue sendo para mim um perfume agressivo. O sertão me lembra Marlboro, Pepsi-Cola, Blow-Up de Antonioni, Paris-Texas de Wim Wenders, cheiro de couro, anos 60, vastidões solitárias e aparentemente silenciosas e abandonadas. Esculturas de temas arquetípicos orientais de G.T. O (Geraldo Teles de Oliveira) não se chocam com touros revestidos com malha de aço protetora de arsenais tecnológicos sofisticados a imitarem vísceras bovinas. Os mais distantes confins do mundo, em termos de tempo e de espaço, são os cenários dos mais remotos diálogos entre a antropologia, a psicanálise e a lingüistica, diálogos que suplantaram as conhecidas perspectivas evolucionistas. Tranças indígenas geometrizadas, cabaças de água do Uakiti e fitas de couro multicoloridas em funerais indígenas..... lí quando tinha 13 anos vários contos sobre investidas de brancos contra aldeias indígenas norte-americanas na inesquecível revista Seleções do Readers Digest. .... Como o tempo voa!... Locomotivas e vagões de passageiros já plenamente enferrujados na abandonada ferrovia Madeira – Mamoré viraram fantasmagóricas estufas para plantas amazônicas ou alpendres sertanejos para curtir o por do sol. Bananais sul americanos verdejam nas escarpas mineiras da serra da Mantiqueira. Um universo civilizado por trágicas e patéticas interrupções perplexantes ou boquiabertas, lacunas e reticências ... Há tanto tempo passei por Paranapiacaba que já nem me lembro mais daquela vila de ferroviários com arquitetura inglesa. Hilde Weber, na Onirarte da década de 40, São Paulo – SP, compôs com 16 azulejos o mais belo mapa ilustrado do Brasil. As montanhas redondas da azulejada capela de São Francisco – Pampulha – Belo Horizonte – MG me trazem lembranças de amores frustrados e desnorteios existenciais incontroláveis. Saudades de Roberto Burle Marx... lembranças de Djanira... O som do mundo eu só ouço com as conchas das minhas mãos abobadando as saídas dos labirintos cavernosos dos meus ouvidos. E me pasmo com o som do mundo, Raimundo!.. O sertão é um mar de terras secas, de promessas e de espinhos, rosas e cipós e robustas Anas anti – Bergmanianas apreciadoras de ovos fritos de patas. Anas coradas e sonolentas se espalham em colchões de palhas. Secas e sussurrantes. Ai que saudade, meu Deus!.. Nada é ausência de tempo e de espaço. Tudo é presença de vida e de morte. Sinto dores na coluna jônica de meu ser, sinto um nó no coração e uma vontade triste de chorar até esvaziar as minhas bolsas de lágrimas, meu Senhor Bom Jesus de Bouças!.. O calor me desnorteia e me desanima. Não há o que possa ser feito para dirimir o meu desespero. Um desespero de Verônica Voss, de Fassbinder, de Ana e os lobos de Carlo Saura, de Ana de Gritos e sussurros de I. Bergman... Ai que dor, ai que dor, ai que dor!... Uma quase certeza de que quase tudo soa em vão. Sei lá, não sei, sei lá não sei não... a vida é muito mais do que os nossos olhos conseguem perceber, cantava Clementina de Jesus... Uma sauna ou uma nebulização me fariam bem. E como fariam!.. A vegetação em torno da estrada de chão está amarelada de poeira. Caminhamos para uma belle – epocque e nela teremos uma nova art nouveaux .. um novo Paul Klee, um novo Kandinsky e tudo se repetirá por mais que cem anos de solidão. Admiro uma amarela elipse ovalada de urina espumante no fundo do vaso sanitário. O mito do tesouro perdido é mais um fragmento do grande mito do paraíso perdido. Folhas de comigo ninguém pode e outros feitiços e fetiches. Os que não vivem sem ar são como os peixes que não vivem fora da água. Nossa água é o nosso ar. Em outras imagens é o que nos mostra Antonio Maron Júnior com estas impressionantes palavras: “Um bando de pombos públicos atravessa o firmamento, ruidosos imitadores de peixes gordos alados.” – Cf. in: Ficar aqui sem ser ouvido por ninguém – edições Planet cópias e imagem – 1998. O passarinho trina carinho vibrando de pleno gozo de viver um fim de tarde quente e desconsolador. Quase desolador. Um asceta sobre suas finas e ressequidas canelas avermelhadas e vivas. E arremata Antonio Maron Júnior: ”Ou seria mais honesto e divertido afogar – se na verdade dúbia? Todos enganam todos. As maiores verdades são inventadas. Procurando livrar-se dos papéis da inteligência, nesta fronteira entre o homem e a palavra, o barman crê que há de achar a narrativa capaz de libertá – lo do mal estar existencial, da sede de conhecimento e do espetáculo da morte.” (Cf. in: op. cit., pág. 21).

     Coluna Eu bem te ví na rua – apresentada semanalmente por José Luiz Dutra de Toledo no jornal Bonfim Notícias de Ribeirão Preto-SP.

     Recebí com muito prazer e interesse de lê-lo o terceiro volume da coleção Teatro Brasileiro editada em Belo Horizonte pela Hamdan Editora, com o patrocínio de várias empresas capitalistas que não apostam mais na ignorância como fator favorável aos seus lucros, conforme ainda proclamam os nefastos arautos do autoritarismo socialista. Neste terceiro livro da série temos as seguintes peças teatrais: O Homem Imortal de Luiz Alberto de Abreu, O médico camponês ou A Princesa Engasgada de Márcia Frederico, Vida Privada de Mara Carvalho e Aniversário de casamento de Sérgio Abritta. Maiores informações na Hamdan Editora- rua Leopoldina, 312/02 – Santo Antonio – Belo Horizonte- MG 30330230.

     “Prenúncio de chuva

ou dias magros que gritam

cai cai tanajura.”

Antonio Mariano de Lima – João Pessoa – Paraíba.

     “Uma solução é a velhice arguta? O barman acredita que não é possível confiar no conhecimento, nem nos homens. Tudo é absurdo, porém de uma absurda luminosidade.” (Antonio Maron Júnior – poeta bahiano radicado em Londres). *************** História Universal: nunca soubemos amar em pleno vôo como as andorinhas/ nem no auge do prazer pairar e se absorver no antídoto dos instantes/ então escolhemos em vez do coito (viveiro de constelações)/ lágrimas nos olhos e um banquete de asas.” (Antonio Mariano de Lima). ************** Supercongestionada a temporada do teatro D. Pedro II de Ribeirão Preto. ************* Belíssima festa do folclore, com danças e desfiles de trajes típicos de diversas regiões brasileiras (com a orientação de uma folclorista cearense radicada em Olímpia), exposição de medicina caseira e de fitomedicina popular, painéis com trovas, mensagens de pára-choques de caminhões, mesa de doces e bolos, homenagens ao escritor Monteiro Lobato no cinqüentenário da sua morte (estavam lindas as 16 Emílias multicoloridas que lá apareceram.. tínhamos Emílias gordas, magras, japonesas e negras e brancas mas todas bem atrevidas e saltitantes), mostra de desenhos de figuras do folclore brasileiro( lobisomens, mulas sem cabeça, Iara, botos, o homem do saco, sací – pêrêrê e curupiras), mostra de círculos com criativas perguntas do tipo “O que é, o que é?” e um vasto e rico levantamento e mapeamento das mitologias brasileiras foi o que ví, com admiração e esperança, na festa promovida na manhã do sábado 29 de Agosto de 1998 pela Escola Municipal de Primeiro Grau Elisa Duboc, do Conjunto Habitacional Jardim João Rossi de Ribeirão Preto/SP. Estão de parabéns todos os alunos, pais, professores e a diretora e dedicada professora Diana, evento que foi além do ritual didático-pedagógico, muito bom!... Quero mais!..

     Até a próxima!...

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Um macho grita para o outro: — Desmaia, anda, desmaia! Desmaia logo, cara!...

     Um ancião anão usa um telefone orelhinha (para crianças) e uma policial sueca adverte ao mundo sobre os riscos que assumimos ao usar um telefone público com teclado encerado por uma mistura química de LSD com estricnina que, uma vez tocada, entram em nossa corrente sangüínea. Em nosso sangue as partículas de LSD nesse amálgama vão liberando a estricnina e nos matando. Mas esta policial sueca, chamada Tina, esqueceu-se da adrenalina que nossos pavores cotidianos lançam em nossa corrente sangüínea toda vez que alguém nos agride emocionalmente com piadinhas nojentamente preconceituosas. As pessoas não querem aprender mais nada e fogem dos livros clássicos como o diabo foge da cruz. Vi uma foto de uma homossexual sadomasoquista amarrado de cabeça para baixo numa cruz sendo penetrado e chicoteado por outros parceiros de tara. Quem quer vender apólices federais, estaduais e municipais da Dívida Pública da República dos Estados Unidos do Brazil? Pois é, há dez anos explodia tragicamente a usina nuclear ucraniana de Chernobbyl. Os olhos da minha cadelinha Saragoza revelam a alma infantil de uma anã competitiva. Gostaria muito de ler poemas e ensaios do escritor polonês Zbiniew Herbert (1924/1998). Escritor escorraçado pelos sucessivos governos nazistas e stalinistas da Polônia... Não podemos confundir humanismo ou tradição humanista ocidental com ideário socialista-marxista: são âmbitos distintos e dissociáveis. Vejo uma garrafa de vodka atirada aos pés de um longo muro escolar. Minha casa é um canil e eu adoro uma cachorrada. Se vivemos numa sociedade de risco, eu, indivíduo de risco, dependo cada vez mais de uma rede de contatos. Faça diariamente o seu network. Ocorre uma guerra dentro de mim. Meu pênis é o meu totem. À falta de uma cultura da palavra, prevalece a cultura da força e do cinismo sinistro. A ausência ou a escassez de meios de expressão foi intencionalmente provocada pelos educadores “marxistas”, para os quais a instituição escola só teria valor enquanto agência doutrinadora num regime político socialista (no qual esses “educadores” estariam alojados no poder). Como estamos numa economia de mercado (leia Capitalismo), os educadores “marxistas” apostam no esvaziamento da escola enquanto espaço das expressões sócio-culturais das nossas depressões bergmanianas, das nossas perplexidades pós-modernas, dos nossos conflitos jeanlucgodardianos , dos nossos desejos pasolineanos, da nossa elegância viscontiana e das nossas oníricas e barrocas fantasias felinianas e, assim, favorecem e fomentam a eclosão de violências sem palavras, sem idéias, sem humanismos, sem sentidos e sem causas!... Como todo marxista que se preze só enxerga luta de classes pela frente, só vê conflitos entre interesses antagônicos, adeus literatura não panfletária!... Bye bye Haendel!.. Adeus Mozart e Bach!.. So long Beethoven!.. Ciao Pirandello!.. Au revoir Verdi e Wagner!.. Nunca mais Chopin, J. L. Borges, F. Pessoa, F. Kafka ou Samuel Beckett!... Kant então, nem de leve. Spencer, Kierkgaard, Poe, A. Comte, C. Darwin e Durkheim sumariamente censurados em nome de uma perspectiva construtivista!.. Olavo Bilac, está decretado, só foi patrono do Serviço Militar e escritor parnasiano reacionário e fim de papo. Sem discussão. Quanta pobreza cultural a nossa esquerda nos proporciona, magnânimo Joãozinho Trinta!.. O senhor tinha e continua tendo razão: quem gosta e fomenta misérias são os intelectuais quase sempre de esquerda!..

     Filosofia de esquina da Baixada da rua José Bonifácio – Ribeirão Preto-SP: “ onde um rema, outro não pode remar, se não, não vira....” Foi no prefácio do clássico ensaio A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo de Max Weber que li: qualquer sistema, seja capitalista ou não, que apresente qualquer brecha que favoreça alguma corrupção, conhecerá e sofrerá o ônus sócio-político e cultural da corrupção. Não é este ou aquele governo, ou este ou aquele regime ou sistema que é ou não é corrupto, mas terá corrupção todo e aquele sistema que deixe brechas para atos ilícitos ou aéticos. Nesse caso, investiguemos os autores ou propiciadores dessas brechas, que, em última instância, foram eleitos pelo povo e devem refletir uma certa endemia de desonestidades sociais. Sem tais vigilantes investigações, todo poder corrompe. Seja aqui ou na China, em qualquer lugar.

     Um jato risca um caminho de plumas de algodão na aveludada capa noturna e enluarada da mãe Terra e eu, cá embaixo, na estrada da morte que liga São Paulo a Curitiba, vivo sucessivos pesadelos em curvas e novos e infinitos roncos de gigantescas carretas ou jamantas de cem pneus a trepidarem numa faixa asfáltica esburacada, estreita e ameaçadora como a foice de Saturno. Sinto inveja dos que sobrevoam este inferno rodoviário.

     Um vento lautréamontiano me recebeu em Curitiba. Folhas secas chovem nas praças secas mas verdes e onde, às vezes, flores de outono resistem à proximidade do inverno. Curitiba é metida a Boston. Curitiba é metida a Barcelona. Curitiba é metida a Miami. Curitiba é metida a besta... tem um jeito híbrido de Mazzaroppi casado com polonesa. ... ou me sugere a hipótese de uma extensão bem sucedida do vale do Ribeira (d’onde aliás provieram alguns de seus vultos históricos) ... ou uma planície repousante atrás da íngreme e sombria costa que sobe desde o Uruguai, a guarnecer uma crosta continental que se envelhece cristalinamente à medida que se afasta das fozes dos rios Amazonas e do Prata..... rumo ao norte e longe dos estuários citados, crosta que ganha altura orológica e velhice geológica... Ao sul de Curitiba, a foz do Prata, um estuário, uma enchente de fertilidade e fartura também provinda das águas paranaenses, prosperidade de celeiro... Estou em Curitiba, mas com olhos voltados para a Montevideo de Lautréamont!....

     Mas.... Curitiba vagueia andeja com capa alemã nas canelas e tem um clima meio gótico, meio barroco, pós ou pré-Montevideo ... seus cemitérios são belíssimos!... É de fato criativa e ousada como Barcelona e Miami em sua arquitetura e urbanismo, sua gente a ama e dela se orgulha e pouco a suja.. Curitiba é ecologicamente respirável, apesar de alguns terrenos baldios com lixo... E Curitiba me recebeu com alvoroçantes ventos lautréamônicos.... lautréamontianos...

     Oratório Bach – fica na entrada do bosque do Alemão, ao lado da torre dos filósofos, é, para mim, é a amostra mais singela da arquitetura mais mística e germânica de Curitiba! O oratório Bach está para Curitiba assim como a igreja de São Francisco da Pampulha está para Belo Horizonte.

     Sua Ópera de Arame é a mais requintada paisagem urbanística e cultural da Curitiba do fim do século XX. Todos os faróis do saber de Curitiba me levam a pensar que o sucesso desse projeto cultural exige liberdade de expressão e criação e, ainda, um substrato cultural que pouquíssimas cidades brasileiras têm neste momento.

     Obras das administrações de Jaime Lerner e Rafael Grecca (políticos que fazem história no PFL!..) que muito me impressionam. Matuto enquanto se sucedem, na janela do meu ônibus, as sombrias elevações das serras prostradas entre Curitiba e São Paulo.... serras que me trazem tristezas como as que acometiam Lautréamont seguindo aos 14 anos para estudos em liceus provincianos franceses, passando pelo íngreme litoral paranaense ou dele se distanciando, sem sequer ver Paranaguá.. .. indo cegamente para o Norte.. para a morte aos 24 anos!.. Sua mãe morrera com a mesma idade.

     Curitiba tem um ar vampiresco, germânico, polícia gentil e polida, ar de Polônia dos trópicos já sem araucárias... até russos existem em Curitiba!... Suas casas, com decorações arquitetônicas inusitadas, eruditas, ecléticas, modernas, barrocas, pós-barrocas e européias, seculares algumas, me levam a paisagens urbanas da costa báltica. Mas, mesmo assim, Curitiba não é cosmopolita e ostenta um vanguardismo provinciano... Que o digam Domingos Pellegrini Jr., Helena Kolody, Paulo Leminsky, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Wilson Martins...qual a cidade de porte médio brasileiro que possa ostentar tão portentoso time literário como este elenco de escritores paranaenses!.. Mas, como dizia o profeta árabe Mohammad, “ há na Terra uma imensidão de boas ações mas são poucos os que disso se beneficiam.” Ou seja, o bem estar curitibano requisita substrato cultural cada vez mais raro por esses sertões brasileiros... Cito de novo Mohammad: “A verdade é amarga e difícil de realizar; a Falsidade é doce e fácil de conseguir.” Tenho dito.

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Uma Babel de olhares suplicantes e de bocas desejantes e de esqueletos de peixes eleva-se ao cyber-espaço: olho por osso e dente

     (.....) “Aquele que corre menos que a beleza só pode produzir obras medíocres; o que corre tão rápido quanto ela produzirá obras banais; o que corre mais rápido do que a beleza corre o risco de ser incompreendido, vilipendiado, objeto de sarcasmo, de ódio e de desprezo.

     Mas, se ele parar no meio do caminho e permitir à beleza cansada o alcançar, nascerá uma obra-prima que será o produto da fusão da beleza admitida e da beleza revelada.” (citando o artista plástico francês Georges Mathieu, nascido em 1921, expoente da corrente artística conhecida como “Abstração Lírica”).

     A seguir, eu passo a exibir a minha lista com os cinqüenta cemitérios mais impressionantes do Brasil no fim do século XX:

     _Cemitério de escravos da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Salvador- Bahia.

     _Carneiros da igreja da Conceição da Praia de Salvador – Bahia.

     _Carneiros da igreja de Nossa Senhora do Pillar de Salvador – Bahia

     _Carneiros da Ordem Terceira de São Francisco de Salvador – Bahia

     _Carneiros da igreja da Ordem Terceira de São Domingos de Salvador – Bahia

     _Carneiros da Santa Casa de Misericórdia de Salvador-BA

     _Catacumbas da Ordem Terceira do Carmo de Salvador-BA

     _Cemitério do Campo Santo de Salvador-BA

     _Cemitério da Quinta dos Lázaros de Salvador-BA

     _Cemitério Inglês de Salvador-BA

     _Cemitério Alemão de Salvador-BA

     _Cemitério de São Tomé das Letras-MG.

     _Cemitério do Morumbi – São Paulo-SP

     _Cemitério de Mathias Barbosa – Mathias Barbosa-MG.

     _Cemitério de Piau – Piau-MG

     _Cemitério de São Miguel e Almas – Partenon – Porto Alegre-RS

     _Cemitério de São Borja – São Borja-RS

     _Cemitério do Bonfim – Belo Horizonte-MG

     _Cemitério de São João Batista – Botafogo – Rio de Janeiro-RJ

     _Cemitério do Caju – Rio de Janeiro-RJ

     _Cemitério de Jacarepaguá – Rio de Janeiro-RJ

     _Cemitério da Ordem de São Francisco de Assis de Ouro Preto-MG

     _Cemitério do Poço Rico – Juiz de Fora-MG

     _Cemitério da Consolação – São Paulo-SP

     _Cemitério São Paulo – Pinheiros – São Paulo-SP

     _Cemitério da Vila Formosa – São Paulo-SP

     _Cemitério de Perus – Perus-SP

     _Cemitério de Canudos – sertão bahiano

     _Cemitério de Joazeiro-BA

     _Cemitério de Joazeiro-CE

     _Cemitério Municipal de Petrolina-PE

     _Cemitério de Palmeira dos Índios-AL

     _Cemitério de São Roque-SP

     _Cemitério de São Roque de Minas- S. Roque de Minas-MG

     _Cemitério de Piumhí-MG

     _Cemitério do Centro de Franca – Franca-SP

     _Cemitério Central de Curitiba – Curitiba-PR

     _Cemitério de Cássia – Cássia-MG

     _Cemitério de Pratápolis – Pratápolis-MG

     _Cemitério de Batatais – Batatais-SP

     _Cemitério de Altinópolis-SP

     _Cemitério de Santa Rita do Passa-Quatro – Santa Rita do Passa-Quatro-SP

     _Cemitério do Bonfim – Salvador-BA

     _Cemitério da Av. Saudade de Ribeirão Preto – Ribeirão Preto-SP

     _Cemitério do Araçá – São Paulo – Capital-SP

     _Cemitério de Congonhas do Campo – Congonhas do Campo-MG

     _Crematório da Vila Alpina – São Paulo-SP

     _Cemitério da Soledade – Av. Serzedelo Correa – Centro – Belém do Pará-PA

     _Cemitério da rua Gentil Bittencourt – perto da praça Cônego Baptista Campos – Centro – Belém-PA

     _Cemitério de Ananindeua – Ananindeua-PA

     _Cemitério Santa Isabel – ao lado da Faculdade de Enfermagem da Universidade Estadual – Guamá – Belém-PA

     _Cemitério Israelita da Av. Serzedelo Correa – Centro – Belém-PA

     _Cemitério de Xapuri – Xapuri-AC

     _Cemitério Bom Pastor – Ribeirão Preto-SP

     _Cemitério da Boa Morte – igreja da Boa Morte de Barbacena-MG

     _Cemitério da Ordem de São Francisco de São João del Rey – S. João del Rey-MG

     _Cemitérios de Mariana-MG

     Em vez de engolir os remédios na hora certa, eu quase tomei o relógio despertador para engoli-lo. Levei um susto!...

     Conta de Joaquim Ribeiro de Toledo Netto (meu pai) nos dias 29 e 30 de Maio de 1958 na Farmácia do José Motta de Tabuleiro-MG:

     29/5 – uma lata de Vick Vaporub – 350,

     29/5 _ um vidro de Clistin xarope _1762,

     30/5_ Instantinas............................._ 150,

     _ um vidro de leite de magnésia de Philips – 400,

     _ um vidro de água oxygenada ..... _ 250,

     _uma ampola de Soro Glicosado 500 ml. _ 1884,

     Sulfadiazinas........................................................._ 120,

     Soma....................................................._4916,

     José Motta, esposo da farmacêutica Janira Floriano Motta.

     As contas de farmácia também revelam as histórias das famílias. Em qualquer época.

     Ainda não entendi por que a família do Di Cavalcante não permite a liberação do filme Di-Glauber, um obscurantismo babaca e que contraria a postura existencial do antepassado morto, avesso a todo tipo de ordem ou contra todo tipo de censura estética ou moral. O tabu da morte é outro ingrediente na interdição dessa magistral obra de arte glauberiana!... Quanto atraso, my God!...

     Outro dia, no meu trabalho, ouvi uma senhora, horrorizada, se referir ao fato de, no passado, se tirar foto de velórios. Aí eu lhe disse que a mamãe tinha a foto do velório do seu irmãozinho Salvador, morto com crupe, aos 2 anos, deitado no caixãozinho branco com uma mosca pousada em seu nariz. Ela ficou arrepiada de pavor. Nestas horas sinto vontade de gargalhar, mas não é sadismo não, creia!... Agora em Abril de 1999, vi no jornal O Imparcial de Rio Pomba-MG a foto do velório da Santa Lola. De vez em quando os jornais sensacionalistas voltam a estampar fotos de velórios de crianças, jovens e adultos vítimas da onda de violência e criminalidade que assola todo o Brasil ou talvez todo o mundo contemporâneo. A morte, banalizada, ainda é espetacular. Recentemente comoveu-me o choro de Mikhail Gorbatchev diante do caixão de sua mulher Raissa. Fiquei com dó daquele que considero um dos maiores estadistas do século XX expondo a sua dor particular aos olhares invasores das mídias e intrusos.

     (....) “Não fui ao seu velório, noite quente e maravilhosa. Não tive curiosidade de vê-lo como Nico Horta, uma figura de cera na sua límpida imobilidade.” (....) “Móveis, tapetes, retratos, objetos que te acompanharam sempre, que foram de parentes e ancestrais, cenário familiar sem o qual sucumbirias, cenário algo misterioso, algo fúnebre, impregnado de sândalo e incenso _ o retrato da menina morta sobre o desafinado clavicórdio que te dei, os castiçais funerários eretos num canto, o anjo que foi de um cemitério fluminense velando teu sono solitário, pois que vivias só naquele tempo.” (...) “O cupim paulistano metera os dentes na talhadíssima mobília de um certo rei Faissal, mobília negra e insentável. Atacara também o porta – bibelôs de laca da Marquesa do Paraná e as molduras das pinturas que ela legara, frutos do seu próprio diletântico e nobiliárquico pincel. Também um outro cupim mais sério começava a nos invadir.” (trecho da crônica intitulada Cornélio Pena, escrita por Marques Rebelo, pseudônimo do escritor Eddy Dias da Cruz, nascido em 6 de Janeiro de 1906 na cidade do Rio de Janeiro e autor de uma das obras mais deliciosas da História da Literatura Brasileira: Cenas da vida brasileira). Citando Marques Rebelo eu presto a minha homenagem a um dos escritores que tantos prazeres literários pôde me proporcionar e, ainda, faço referência à minha admiração crescente pelos cronistas brasileiros do início do século XX: Olavo Bilac, Coelho Neto, João do Rio e Marques Rebelo. A minha admiração pelo trabalho jornalístico e literário de João do Rio é aqui, pela enésima vez, reafirmada.

     No dia de Finados de 1999 eu lamento que não tenhamos vivido o dia do Juízo Final, única oportunidade para conhecermos um número incalculável de mortos que aqui neste mundo nos precederam ou de nós se despediram ou que nem tempo de se despedir de nós tiveram, Nosso Pai Eterno!...

     Hoje somos seis bilhões de mortos-vivos neste planeta!....

     Queria comungar com os mortos, na vida eterna, Amém!......Mas não foi possível. Que pena!... Asas de aves queimadas no cerrado carbonizado e fumegantes como os destroços de uma aeronave!...

     Queria ver os mortos vindo à tona, ressuscitando de suas abissais tumbas oceânicas, interrompendo uma infinita e colossal sucessão de marés, ondas, ressacas e maremotos. Mas não foi possível. Lágrimas de sal oceânico!......

     Queria ver ressurgir, intactos, das chamas dos incêndios, guerras, tufões, terremotos, atentados terroristas, explosões de artefatos nucleares em Hiroshima e Nagazaki e de acidentes aeronáuticos, todos os mortos queimados pelo fogo da natureza, pelo fogo das ambições humanas, pelo fogo das nossas falhas tecnológicas, pelo fogo dos nossos intentos suicidas!.. Ah, mas não consegui ver cena tão dantesca. Gemidos de dor, sem alívio, lançados aos céus!...

     Queria assistir à gloriosa ressurreição dos que morreram esmagados pelo rolo compressor dos estigmas que nossas sociedades engendraram para sufocar e matar mais rapidamente os que foram acometidos pela hanseníase, pelo câncer, pela sífilis, pela tuberculose e pela AIDS!.. Mas esta ressurreição já ocorre entre aqueles que estão tecendo suas armaduras com fibras de vidro, dignidade, acrílico, auto-valorização e megabites em redes de comunicação e intercâmbios de informações, emoções e prazeres!....

     Asas sobrevoam incêndios, garrafas com mensagens humanas flutuam durante maremotos, os livros dos mortos continuam legíveis. Nós que aqui estamos por vós esperamos. Imprimir.

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Uma história com começo, meio e fim, certinha, bonitinha, seqüenciada, escatológica, teleológica, linear e moralista como um conto de fada é ideológica e manipuladora

     Para o crítico alemão Walter Benjamin, desde o fim do século XIX já era detectável uma crise na narrativa romanesca ocidental. Depois de Thomas Mann, Proust, Tolstoi, Dostoievski, Flaubert e Balzac poucos e raros romancistas tivemos com suas envergaduras clássicas. Ulisses de James Joyce talvez seja o melhor documento literário desta crise da narrativa romanesca clássica ocidental. Ainda para Benjamin, que considerava a história um sucessivo amontoamento babélico de fragmentos significativos ao longo de um incessante furacão, a formação histórica dessa montanha de cacos-letras codificando uma escrita, descritiva e narrativa, das nossas paisagens e memórias, num labiríntico e caótico mundo de ícones, signos e representações coletivas, é a mais viva árvore genealógica do universo humano neste planeta. Na mística judáica é fundamental o ato de recolher os cacos do vaso sagrado quebrado na queda vertical dos céus à terra. No catolicismo assim como noutras tradições espirituais do Extremo Oriente são arquetípicas as simbologias e as buscas humanas da unidade, o que consagra ou afirma o caráter milenar da fragmentária alma humana. Na psicanálise freudiana se considera a hipótese da multiplicidade de eus coabitando ou abrigados em uma mesma individualidade. Ao tratarmos da cultura brasileira, Alceu de Amoroso Lima, Ariano Suassuna e Pedro Nava vislumbraram uma espécie de espinha dorsal unindo as culturas populares e as representações coletivas do inter-regional vale sanfranciscano. Guimarães Rosa ressaltava o caráter plural das Minas Gerais e Carlos Drummond de Andrade via o Brasil como um arquipélago cultural. Mais uma vez, em torno dessa dualidade entre unidade e fragmentação das culturas e civilizações, volto a citar uma série de trechos, expressões e metáforas que me chamaram a atenção no Sexto Canto de Maldoror do conde franco-uruguaio Lautréamont, ei-los:

     “Dramáticos episódios de implacável utilidade!.. Nosso herói advertiu que, ao freqüentar as cavernas e ao tomar como refúgio os lugares inacessíveis, transgredia as regras da lógica e caía em um círculo vicioso. Pois sim, por um lado, favorecia assim sua repugnância pelos homens, graças à compensação da solidão e do alheiamento, e circunscrevia passivamente seu limitado horizonte, entre retorcidos arbustos, por outro lado, sua atividade não alimentava nem nutria o minotauro de seus perversos instintos. Em conseqüência, decidiu aproximar-se das aglomerações humanas persuadido de que, entre tantas vítimas lá dispostas, suas distintas paixões falariam ou decidiriam como se satisfazer. Sabia que a polícia, esse escudo da civilização, o perseguia com perseverança há muitos anos e que um verdadeiro exército de agentes e espiões estava no seu encalço. Mesmo sem conseguir encontrá-lo. Também desfazia, sua assombrosa habilidade, com suprema elegância, as artimanhas mais indiscutíveis do ponto de vista do seu êxito, e das disposições da mais sábia meditação. (...) Não há outro: era Maldoror!.. Hoje está em Madrid, amanhã em São Petersburgo e depois em Pequim!.. poético Rocambole!.. Esse bandido Maldoror está, talvez, a 70 léguas daqui, porém, quem sabe?, esteja a poucos passos de vós? Não é fácil conseguir que os homens morram por completo, e aí estão as leis; porém, com paciência, se pode exterminar, uma a uma, as humanitárias formigas. Agora bem sei, desde os dias do meu nascimento, quando vivia com os primeiros antepassados da nossa raça, desde os mais longínquos tempos, colocados mais além da história, nos que, com sutis metamorfoses, assolava, em distintas épocas, as regiões do globo por meio de conquistas e matanças, e propagava a guerra civil entre os cidadãos... membro a membro, ou coletivamente, a gerações inteiras cuja inumerável cifra não seria difícil conceber? O radiante passado fez brilhantes promessas ao porvir: as cumprirei. (...) Simples e majestosos cavaleiros, sua agraciada boca enobrece quando brota dos seus tatuados lábios... Acabo de provar que nada é ridículo neste planeta. Planeta grotesco ainda que soberbo. (...) porém sabei que a poesia se fala em todas as partes onde não está o sorriso... Mervyn, filho da ruiva Inglaterra, ... Como pôde o poente do Carrossel manter a constância da sua neutralidade, quando ouviu os desgarradores gritos.. O relógio da Bolsa deu oito: não é tarde! Escutada a última badalada, a rua Vivienne se enche com seus pedestres se apressando e se retirando pensativos para suas casas. Uma mulher desmaia e cai sobre o asfalto. Ninguém a levanta: todos têm pressa para deixar esse lugar. Os portões são impetuosamente fechados e os habitantes se agasalham com suas mantas. Diria-se que a peste asiática revelava a sua presença. Assim, embora a maior parte da cidade se disponha a nadar nos gozos das festas noturnas, a rua Vivienne fica logo gelada e petrificada. Era visível a extinção ou a interrupção da vida como um coração que deixa de amar... e um fosco silêncio se abate sobre a augusta capital francesa... Aonde estavam os lampiões de gás? O que foi feito das mercenárias do amor? Nada... Solidão e treva!.. (...) As tendas da rua Vivienne expõem suas riquezas ante nossos maravilhados olhos iluminados por numerosos lampiões de gás. Os cofres de caoba e os relógios de ouro lançam, pelas vitrines, raios de deslumbradora luz. (...) A soma dos dias já não conta quando se trata de apreciar a capacidade intelectual de um rosto sério. Sei ler a idade nas linhas fisionômicas da face: tem 16 anos e quatro meses!.. (...) a ratoeira perpétua do tempo.. .. Mervyn, filho da ruiva Inglaterra, volta de uma aula de esgrima em casa de seu professor.. são oito e meia: é uma grande presunção de sua parte fingir estar seguro quanto ao futuro. Não pode, acaso, interpor-se em seu caminho algum obstáculo imprevisto? (...) como o boomerang da Austrália... como uma máquina infernal... porém regressou com nova sanha... Mervyn ignora porque suas artérias temporais palpitam com força e apressa o passo, obcecado por um espanto cuja causa, vós e ele, buscais em vão. (...) vê um velho gato musculoso, contemporâneo das revoluções às quais assistiram nossos pais, contemplando melancolicamente os raios da lua, que se abatem sobre a dormente planície, avança, e faz um sinal a um cachorro que mexe, satisfeito, com o rabo. O nobre animal de raça felina aguarda, com valor, seu adversário e vende cara a sua vida. (...) Mervyn complica mais, todavia, o perigo com sua própria ignorância... sem dúvida, lhe é impossível adivinhar a realidade... não é profeta, não digo o contrário, e não se atribui a faculdade de o ser... um invencível estremecimento percorre meus cabelos.. percorre o pátio, coberto de fina areia, e sobe os oito degraus da escada.. Aquele que renegou tudo, pai, mãe, Providência, amor, ideal, para só pensar em si mesmo, cuidou para não seguir os precedentes passos.. Por fim, o pai levanta seu bastão e lança sobre os presentes um olhar cheio de autoridade... O brumoso Tâmisa transportará e acumulará todavia notável quantidade de limo antes que minhas forças estejam completamente esgotadas. Nesta inóspita paisagem não parecem existir preservadoras leis. (...) o distanciamento dos combates marítimos, minha espada de comodoro, colocada na parede, todavia não oxidou.. melhor farias fechando o conduto de tuas glândulas lacrimais... “Filho, te suplico, reconhece tua família, é teu pai quem te fala”... a mãe se mantém afastada e, para obedecer as ordens do seu dono, tomou um livro e se esforça por se tranqüilizar na presença do perigo que corre aquele a quem deu à luz sua matriz. (...) meias de seda vermelha(...) vou buscar em minha alcova um frasco cheio de essência de trementina, de que habitualmente me sirvo ao voltar do teatro ou quando leio narração comovedora, consignada nos anais britânicos da cavalheiresca história dos nossos antepassados(...) a corredeira de uma pessoa das classes inferiores(..) e volte ao meu lado com rosto alegre.. o frasco que talvez contenha o licor da vida entre suas paredes de cristal.. um lenço indiano umedecido rodeia a cabeça de Mervyn com os volteios da seda.. se ouvem os alegres gritos de uma caturrita das Filipinas colocada no espaldar da janela. (...) “Acaso uma tumba suporta meus entorpecidos membros? Levo todavia ao ventre o medalhão com o retrato da minha mãe? Solta os cachorros pois, esta noite, um reconhecível ladrão pode entrar em nossa casa enquanto estivermos sumidos no sonho. “Pai e mãe meus, os reconheço e os agradeço por vossos cuidados. Chama meus irmãos menores. Comprei para eles uns bombons e quero beijar-lhes” Depois destas palavras, cai em um profundo estado letárgico. (...) os raios do sol refletem suas prismáticas irradiações nos cristais de Veneza e nas adamascadas cortinas. (...) caranguejo ermitão recusa grãos de ervilha cozidos. (..) esse decápodo utiliza uma concha de molusco para proteger seu exposto estômago. (...) Abre o piano, faz correr seus afilados dedos pelas teclas de marfim. As cordas de latão não ressoam.. “Jovem, me interesso por você. Quero plantar sua felicidade. O terei como companheiro e juntos empreenderemos longas peregrinações por ilhas da Oceania. Mervyn, sabes que lhe amo e não preciso provar-lhe. Me concederá sua amizade, disso não duvido. Quando me conhecer melhor, não arrependerá da confiança que terá me dispensado. Lhe protegerei dos perigos que sua inexperiência corre. Serei para você um irmão e não lhe faltarão os melhores conselhos.. Não mostra essa carta a ninguém.” Três estrelas no lugar da assinatura! – exclama Mervyn -; e uma mancha de sangue ao pé da página” Abundantes lágrimas caem sobre as estranhas frases que seus olhos tinham devorado e que abrem ao seu espírito o ilimitado campo de incertos e novos horizontes... Esconde a carta no seu peito. Seus professores observaram que aquele dia não parecia o mesmo; seus olhos se escureceram muito e o veio da reflexão excessiva caiu sobre a região periorbital. Cada professor se ruborizava com o medo de não se achar à altura intelectual do seu aluno.. apoia um cotovelo na mesa e permanece absorto em seus pensamentos, como um sonâmbulo. (...) O cachorro lança um lúgubre latido pois essa conduta não lhe parece natural, e o vento do exterior, penetrando desigualmente pela fissura longitudinal da janela, faz vacilar a chama, coberta por duas cúpulas de cristal rosado da lâmpada de bronze. .. Porém se é conveniente aceitar a amizade de uma pessoa de mais idade, também o é fazer-lhe compreender que nossos caracteres não são os mesmos... me apressarei a obedecer vossa incontestável prudência.. Porém, não é confessável a familiaridade no caso de uma ardente e forte intimidade, quando a perdição é séria e convicta? (...) Tenho curiosidade em saber como averiguou o lugar onde mora minha glacial imobilidade.. uma bala cilindro-cônica atravessará a pele do rinoceronte, apesar da mulher de neve e do mendigo. E é que o louco coroado haverá de dizer a verdade sobre a fidelidade dos 14 punhais. (...) Que me deixe baixar pelo rio do meu destino, através de uma crescente série de gloriosos crimes... Assim se realizará a profecia do galo, quando vislumbrou o futuro no fundo do candelabro. Peça ao céu que o caranguejo ermitão alcance a tempo a caverna dos peregrinos e lhes comunique – em poucas palavras – o relato do trapeiro de Clignancourt. (...) O espelho da suprema convulsão da agonia. (...) exagerações do medo materno (...) cálculos do meu espírito. (...) Dizem que estou louco e imploro a caridade pública. A única coisa que sei é que o canário já não canta. (...) Os traços da felicidade se desenharam em seu rosto. (...) O homem de lábios de bronze se retira. Qual era seu objetivo? Ganhar um amigo à toda prova... (...) Batiam seu temporal refúgio(...) Eu sou só uma substância limitada enquanto que ninguém sabe de onde vem o outro e qual é seu objetivo final. (...) Reflexões que encontraram eco até na cúpula de azul(..) seus olhos indecisos e errabundos traem sua origem seráfica (...) uma montanha de chifres de veados levantada por índios, amontoada em teu coração(...) havia maquinado, muito tempo antes, um golpe pérfido(...) Negra como a asa de um corvo (...) Era, em verdade, comovedor ver esses dois seres, separados pela idade, aproximando suas almas graças à grandeza dos sentimentos. (...) inventar uma poesia completamente à margem do ordinário curso da natureza (...) Se a morte acaba com a fantástica delicadeza dos dois grandes braços dos meus ombros... quero ao menos que o enlutado leitor possa dizer-se: “é necessário fazer-lhe justiça..” (...) O que haveria de conseguir se tivesse vivido mais? (...) as enfurecidas ondas do mar maldororiano (..) viu com horror como o horizonte de seu pensamento se ampliava, confusamente, em círculos concêntricos, pela matinal aparição do rítmico golpear de uma bolsa icosaédrica contra seu parapeito calcáreo. (...) elípses superpostas (...) obelisco de bronze (...a boa qualidade do cânhamo. (...) em forma de meia-lua (..) “ide a ver-lo vos mismo, si no me quereis crer” (..) um descarnado esqueleto permanece suspenso na superfície esférica e convexa da cúpula do Panthéon: quando o vento o balança, segundo se diz, os estudantes do bairro latino, temendo uma semelhante sorte, elevam aos céus uma curta prece. São insignificantes rumores que, ninguém está obrigado a acreditar, e aptos só para assustar crianças. The End de uma série de seis artigos ou textos-collages nos quais citei fragmentos, trechos, metáforas e outras figuras de linguagem usadas pelo Conde Lautréamont em seus 6 Los Cantos de Maldoror, que foram finalizados entre 1868 e 1869, um ano antes da morte do seu autor, em Novembro de 1870, num quarto de hotel em Paris. Causa mortis: ignorada. Lautréamont, Severo Sarduy, Ovídio, Rimbaud, Garcilazo de la Vega, Joseph Brodsky e Fernando Pessoa foram os poetas exilados que mais fundo falaram ao meu coração no fim dos anos 90 do século XX.

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Uma procissão apocalíptica

     À frente do préstito um crucifixo de troncos de carvalhos lituanos e, n’ele, vinha um macaco crucificado de cabeça para baixo. Todos marchavam ao som da música Satisfaction do grupo de rock inglês The Rolling Stones.

     Logo depois vinha um séquito de homens bons (ou comerciantes) de Barcelona. Atrás, seus serviçais empurravam um carro que levava um brônzeo globo da morte e dentro deste rodopiavam sem se entrechocar quatro motoqueiros skin-heads

     Em seguida, uma extensa ala de prostitutas arrependidas desfilava portando posters de Marylin Monroe, de Santo Agostinho de Hipona, de Ramon Llull, de Fiodor Dostoievsky, de Maria Magdalena, de Maria Bonita – a rainha do cangaço, de Lou Salomé, de Josephine Baker, de Buda ou Sidarta Gautama, de Santa Teresa d’Ávila e de Jacqueline Bouvier Kennedy Onassis.

     Aquelas contritas damas e ex-súditas do deus Bacco eram sucedidas por um novo círculo de veículos, agora por automóveis dos áureos tempos de Chicago dominada por All Capponne, mais ou menos lá pelos anos 20 e 30, carros que giravam e avançavam no rumo do cortejo e eram dirigidos por gangsters de chapéus, capas de chuva no estilo de Humphrey Boggart, fumando charutos cubanos e, de vez em quando, tomando uns tragos do mais fino e legítimo whiskey escocês.

     Vinham atrás deste assombroso círculo automobilístico, os confrades anãos e seus filhos, um esquadrão de descendentes dos moradores de Hiroshima e de Nagasaki à época das explosões atômicas dos Estados Unidos e, logo após, um bando de mulheres árabes dançando a dança do ventre e, ao mesmo tempo, atiravam á multidão que se acercava do préstito um punhado de galhinhos de manjericão, de alfazema, de funcho e de pétalas de rosas. Depois um grupo de hippies vinham fumando maconha calçados com tênis feitos com fibras de cânhamo.

     E, por último, a Legião das filhas de Maria Santíssima vinham carregando Nossa Senhora das Dores com uma espada de prata cravada no seu coração num ostentatório andor de véus, cetim, flores e bambuzinhos. A Virgem cambaleava em cima daquele luxuoso andor carregado por suas filhas no fim daquele impressionante e inesquecível cortejo apocalíptico.

A ponte do poente

     O calor por aquí está infernal. só falta agora os diabinhos pipocarem no asfalto (com suas motos e calças ou perneiras de couro preto no estilo sado-masoquista deste final de milênio).

     A Beatriz me disse que Deus é sádico e com tal afirmativa vindo dela fiquei até chocado. A medusa assusta a Santuza que canta a Vanuza no reservado de uma sala de Internet.

     A ponte entre o céu e a terra alcança no poente o seu transitório apogeu com graduações de luzes, de cores, de trevas e de massas constelares.

     Blade-Runner é aquí mesmo. Os traficantes dominam esquinas e calçadas. Meu único refúgio é a intimidade do reservado-virtual. Mesmo assim as internets ou suas redes ficam nos sugerindo dicas de segurança.

     Se o terrorista Unabomber é tão radicalmente contra o avanço tecnológico, como ele explicaria o uso que tem feito da tecnologia para cartas-bombas?

     Ouví um chocalhar de navalhas e de tesouras. Acontecia uma briga entre travestís. Crizete rolava no asfalto quente e mal cheiroso agarrada aos seios de silicone da Paulete.

(escrito entre 5 e 8 de Janeiro de 1998)

Em busca de uma história filosófica do cinismo

     Estou aquém da genialidade de Jorge Luiz Borges, autor da História Universal da Infâmia, e provavelmente o meu papel aquí não iria além de propor uma questão ou um tema interessante.

     Se reconhecermos um potencial subversivamente a-ético na evolução desta cínica faceta ontológica do humano e a percepção filosófica da multiplicidade caótica de seres e estares, egos, super-egos e alter-egos contidos em cada um de nós, creio que entenderemos a validade epistemológica e existencial de rastrearmos a historicidade dos conteúdos cínicos na genealogia dos humanismos e nos estilos filosóficos de viver, pensar e ser em constante sondagem das profundezas e complexidades de nossas almas. Muitos poetas e pensadores chegaram a detectar bandos de bichos vivendo ao mesmo tempo que nós em nosso próprio corpo. Outros viram como nós somos, a um só tempo, bestas e anjos. Na Alemanha um artista provoca escândalos de teores éticos e estéticos expondo esculturas feitas com camadas e peças de cadáveres humanos recobertas por material sintético transparente.

     Parece-me, ao iniciar ou ao apresentar o tema que nos interessa, que a arte de sofismar enfrentou cínicamente a razão clássica greco-romana. Bizâncio, tensamente acuada pelo oriente teocrático e pelo ocidente (tensamente conflituado pela dualidade Igreja/estado familiar feudal), fêz avançar a história da retórica sofística como arte de convencer, confundir, especular, enganar ou impor ortodoxias.

     Na Idade Média as estratégias de subversão cínica visavam aprimorar a arte do adultério para que se atingisse um alvo todo poderoso: o estado-familiar feudal – cristão .A este respeito leia Il Deccamerón de Giovanni Boccaccio e ainda as obras que fazem a reflexão medieval sobre a dualidade entre a essência e a existência, quais sejam: A Divina Comédia de Dante Alighieri, os livros de São Boaventura, santo Agostinho, Ramon Llull, Santo Tomás de Aquino, de Duns Scotto e de Petrarca.

     No realismo de Nicolau Maquiavel teríamos uma nova gênese do cinismo realista, o cinismo da modernidade. No racionalismo cartesiano-iluminista a última tentativa ocidental de reforçar a barragem filosófico-intelectual que tentava ocultar o lado obscuro e irracional da alma ocidental, um reino caleidoscopicamente instável e tormentoso, ludica e perigosamente irracional, os ilusionismos disfarçados pelos museus de cera e exposições de aberrações flagrantes e delineadas, espetáculos de anões e aleijados, desenhos de monstros do Novo Mundo, telas de Jerônimus Bosch, passionalismos étnicos pós-tribais, unitarismos totalitários e falsos, etc...

     A expansão militarista e colonialista da Cristandade européia trouxe aos europeus uma outra forma de crise de identidade perante o outro totalmente desconhecido até então, o homem do Novo Mundo, tão estranho e exótico como os e.t.s de nossos tempos. As guerras religiosas na Europa em meio às suas assombrações e orgias barrocas desencadeando as tramas do cinismo da ambigüidade cortesã e o ostentatório e massacrante charme absolutista do Ancién – Regime e, mais tarde, a deflagração de conturbadas afirmações de identidades étnico-nacionais, tudo isto foi expressão desta patética crise de identidade da Europa pós – século XVI .

     Afirmações étnico-nacionalistas desencadeadas após o terror jacobino e pela índole napoleônico-burguesa e que desaguariam no amplo e fétido estuário da primeira guerra-mundial (1914-1918).

     A declaração nietzcheana do óbito de Deus e a visão kafkaniana sobre o absurdo totalitário serviriam de parâmetro para revermos o cinismo nazista que, reconhecendo a identidade de destinos entreo Criador e suas criaturas, criou o primeiro impasse do pensamento filosófico do século XX, qual seja, a concreta impossibilidade ou viabilidade existencial de um homogêneo estatuto do ser humano. Karl Jaspers, Martin Heiddegger, Samuel Beckett, Eugene Ionesco, Jean Paul Sartre em sua peça teatral As mãos sujas, Franz Kafka e tantos outros escorregaram dramaticamente nesta árdua e sinistra questão.

     O mais terrível em tudo isto é que a crise da filosofia ocidental na primeira metade do século XX foi oportunisticamente aproveitada pelos intelectuais nazistas para desencadearem suas sinistras e cínicas atrocidades. Tal crise servia como justificativa para a monstruosidade racista, anti- semita e massacradora de individualidades minoritárias ou incomuns...Mas George Orwell em 1984 nos mostraria que este pesadelo sinistro não ocorria só no mundo nazi-fascista, mas também na URSS...O Arquipélago Gulag de Alexander Soljenitzin e a obra literária de Joseph Brodsky serviriam para nos revelar o fascismo de esquerda....fascismo este até hoje elogiado por muitos intelectuais brasileiros super-consagrados...Não vou citá-los, todos conhecemos estes títeres acadêmicos...

     Retomando-se a estratégia pendular dos dualismos realimentadores da história ocidental (por exemplo: Ocidente x Oriente; Turcos x Cristãos; Católicos x Protestantes; Capitalismo infernal e mafioso x Comunismo paradisíaco e justiceiro, etc...), o mundo na Guerra-Fria apunha mitos longevos e arquetípicos, veiculando-os numa cultura massificante fabricada por partidos, empresários, publicitários ou marketeiros, ideólogos, eminências pardas, militantes e complexos industriais-militares .

     O desnorteio na chamada ‘crise dos paradígmas’ e da pós-modernidade no mundo pós-guerra-fria e pós-tudo reflete o desmascaramento destes cínicos e oportunistas dualismos ocidentais entre inimigos que se realimentavam mutuamente. Dualismos e maniqueísmos irreais, relativos, dinâmicos, realimentadores de sistemas inter- beligerantes.

     Eis, neste sumário texto, a minha visão histórica que precederá os estudos que tal temática nos sugerirá. Eis o trajeto histórico que pretendemos percorrer e estudar para podermos oferecer alguma reflexão interessante e dígna de credibilidade sobre o que nos envolve intelectualmente neste momento: Filosofia e Cinismo: historicidades e arqueo-genealogias de nossas estruturas intelectuais.

Quando a natureza se vinga ou quando o mundo nos apresenta o preço de nossa conta

     No sudeste mineiro, a população de Tabuleiro não consegue dormir no meio de uma super-aquecida floresta de edifícios de dois, três e até quatro andares e ruas asfaltadas e poucas ou nenhuma árvore, floresta urbana que substituiu de forma grotesca à paisagem bucólica ou histórica de cidade pacata e estagnada após a decadência do seu coronelato.

     Muitos procuram as sacadas de seus apartamentos para dormirem ao relento e acordarem molhados de suor com a luz do sol batendo em seus olhos. As matas nativas que cercavam a cidade foram dizimadas pelos interesses de carvoeiros, ambições clericais e pela ignorância a respeito dos efeitos dos desequilíbrios ambientais em nossa qualidade de vida . Se neste verão Tabuleiro não pegar fogo, nada nos garante sobre o que possa ocorrer nos próximos anos...Resta saber se após o império dos Neros tabuleirenses a cidade ressurgirá das cinzas devidamente arborizada e com a sua bela praça coronel João Floriano restaurada. Infelizmente só alguns descendentes de Sebastião Neto, Aliaudes Dias de Oliveira, Anália Neto, Adí Garius, Pedro Toledo, sr. Roldão terão mangueiras, coqueiros, goiabeiras e laranjeiras, árvores com copas frondosas e acolhedoras e frescas sombras para se refugiarem durante o tórrido apocalípse tabuleirense. seus paióis serão mais disputados e caros que os apartamentos da Vieira souto em Ipanema, anotem aí e depois vocês me dirão se tais profecias não se cumprirão... Que tristeza!!... O pior é que santo de casa não faz milagres.

Cinismo e ceticismo

     Alguma coisa me faz suscitar a idéia pela qual o cinismo sempre esteve associado ao niilismo e ao ceticismo ou simplesmente às nossas descrenças. Não foi à toa que ao descrédito e aos impasses da República de Weimar adveio o sinistro nazismo e seus holocaustos. Se alguém se faz descrente dos valores morais hegemônicos, subverte e transgride o legado mítico da sua civilização e não crê mais em nenhum cânone ortodoxo (seja ele moral, político ou religioso 0 tal pessoa passa a exercitar a diabólica retórica cínica e a emitir sarcásmicas ironias...Esta idéia parece vigorar em todo o Ocidente há pelo menos dois mil anos....Por falar nisto, desde a Idade Média se diz que muito riso é sinal de pouco siso.

(7 de Janeiro de 1998)

Pontos em comum entre a história da Catalunha e a história do Rio Grande do Sul

     O autonomismo pós – Revolução Farroupilha dos gaúchos brasileiros me lembra a milenar independência cultural e política da Catalunha. Além disto, uma outra curiosa coincidência aproxima as histórias destes dois povos cujos imaginários, em várias áreas, se interseccionam:

     No fim do século XIII, o versejador Jaume Roig, fundamentado nos anais jurídicos de Barcelona, faz alusão a versão barcelonense da lenda de Sweeney Todd na qual, segundo o arquiteto australiano Robert Hughes, autor de erudito volume intitulado Barcelona, um diabólico barbeiro que transformava seus fregueses em tortas....isto lá por volta de 1285....ou um pouco antes. Então, este diabólico barbeiro teve algumas seguidoras na Barcelona daquela época. Uma estalajadeira e suas duas filhas figuram como personagens centrais dos seguintes versos de Jaume Roig:

(...) “Dos que vinham e alí bebiam,

matavam alguns; com a carne picada

faziam pastéis e das tripas

faziam salsichas ou lingüiças, as mais finas” (...)

     No equivocado bicentenário de Porto Alegre, comemorado precipitadamente em 1941, Deusino Varella deu-se ao louvável trabalho de recolher crônicas que Achylles Porto Alegre publicara em vários jornais da capital gaúcha e a sua coletânea de crônicas do Achylles intitulou História Popular de Porto Alegre.

     Pois é neste livro, reeditado em 1994 pela Unidade editorial da Secretaria Municipal de Cultura da prefeitura Municipal de Porto alegre-RS, temos uma curiosa crônica do autor citado e que tem como t´tulo: As lingüiças de carne de gente. Crônica que resgatava a assombrosa memória de nauseantes crimes cometidos por Ramis que, servindo-se dos encantos físicos da sua esposa Catarina, incitava-a a atrair forasteiros vindos do interior do Rio Grande do Sul para a capital da província. Catarina atraia-os até a sua casa e, em dado momento do idílio amoroso, num determinado cõmodo, abria aos pés destes amantes incautos um grande alçapão pelo qual caiam num porão onde Ramis retirava-lhes todo o dinheiro, jóias, roupas e calçado, exibia sua pilhagem à sua vaidosa e tentadora Catarina e depois, esquartejava-os, separando, com os golpes de sua machadinha e suas facas, as vísceras, carnes, sebo e tripas e com isto fazia as caras e gostosas lingüiças que por muito tempo foram consumidas nos mais saudáveis lares porto-alegrenses.

(7 de Janeiro de 1998)

O medo popular diante da desapropriação estatal dos nossos corpos

     Aparentemente não ocorre nenhuma relação entre estes três exemplos de prepotência autocrática ou totalitária. primeiro; nos meios universitários ainda se invoca o princípio do ‘notório saber’ para a seleção de palestrantes e professores visitantes. A CPEN do rumoroso escândalo petista também adotava o mesmo “critério”. Segundo: documentaristas da maior rede de televisão do Brasil impõem classificações antropocêntricas às evoluções dos vôos dos beija- flores denominando-as de ‘ o ballet dos beija-flores’......como se toda a natureza tomasse a nomenclatura humana como referências para as suas ações e existências. Terceiro: no Senado Federal brasileiro é aprovada a lei proposta pelo stalinista – petista sergipano José Eduardo Dutra pela qual todos os brasileiros que não estejam contaminados por quaisquer doenças infecto-contagiosas (aí temos um precedente que pode até reforçar posturas discriminatórias) e que não se dispuserem a enfrentarem quilométricas filas para ressalvarem em suas cédulas de identidade que não serão doadores de seus órgãos após as suas mortes serão, portanto, considerados doadores ‘presumidos’ após o diagnóstico de morte cerebral emitido por uma junta médica não- envolvida com os interesses de médicos ou de pacientes interessados em órgãos para transplantes.

     Logo no início da vigência desta lei que estatiza de forma bem stalinista os corpos de brasileiros (criada a Corpobrás), em Janeiro de 1998, enormes filas de brasileiros temerosos, a maioria deles oriundos de camadas populares, passaram a se formarem nos postos onde requererão uma nova carteira de identidade que registre sua opção pela não-doação post-morten de seus órgãos. muitos dos brasileiros que não aceitam a doação ‘presumida’ temem o mercado negro de órgãos que visceja em torno de ambientes médico- hospitalares não confiáveis.

     Esta autêntica afirmação individual de cidadania me sugere uma reflexão mais aprofundada sobre o livro do historiador bahiano João José Reis intitulado A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, editado em São Paulo pela Editora Companhia das Letras no ano de 1995. Eis o fato motivador das pesquisas de João José Reis:

     “Extraordinário acontecimento teve lugar na Bahia do século passado: uma revolta contra um cemitério. O episódio, que ficou conhecido como Cemiterada, ocorreu em 25 de Outubro de 1836. No dia seguinte entraria em vigor uma lei proibindo o tradicional costume de enterros nas igrejas e concedendo a uma companhia privada o monopólio dos enterros em Salvador por trinta anos.

     A Cemiterada começou com uma manifestação de protesto convocada pelas irmandades e ordens-terceiras de Salvador, organizações católicas legais que, entre outras funções, cuidavam dos funerais de seus membros. Naquele dia, a cidade acordou com o barulho dos sinos de muitas igrejas. Os mesmos sinos usados na convocação para missas, procissões, festas religiosas e funerais eram agora dobrados para chamar ao protesto coletivo. A reunião fora marcada para acontecer no terreiro de Jesus, no adro da igreja da Ordem – Terceira de São Domingos. De suas sedes, marcharam para alí centenas de membros de Irmandades.”

     A imposição racionalista e irracional de uma concepção mais ‘moderna’ de higiene e de asseio detonou em 1836 na capital bahiana a eclosão da Cemiterada, uma revolta popular contra a medicalização damorte. A morte deixava o âmbito subjetivo – religioso e era deslocado para o âmbito estatal ou privado da ‘saúde pública’. Tem ou não tem a ver com a tradição cultural brasileira estes dois lances?

Serviço de divulgação da boa música clássica

     Embora já tenha consumido fragmentos da música de George Gershwin (1898/1937), só hoje ouvi a sua Rhapsody in Blue inteirinha, executada pela Orquestra Ferde Grofé e com Leonard Bernstein ao piano. Belíssima!... Não há nada melhor do que um dia depois do outro, apreciando e aprendendo...

     Gershwin é o mais novo ídolo do meu templo pagão. Neste meu templo ofereci nichos para J.S.Bach, Wolfgang Amadeus Mozart, Ludwig van Beethoven, Frederic Chopin, Tchaikovsky, Vivaldi, Offenbach, frei Jesuíno do Monte Carmelo, padre José Maurício Nunes Garcia, Carlos Gomes, Francisco Mignone, Zequinha de Abreu, Pixinguinha, Lamartine Babo, Luiz Gonzaga, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Assis Valente e Heitor Villa Lobos. Agora Gershwin acaba de ser entronizado em seu merecido nicho. Ouça-o! Vai ficar maravilhado.

(9 de Janeiro de 1998)

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Uma tarde feliz

(.....) “A câmara regurgita de vates, o hospício tem dúzias de versejadores, as escolas grosas de nefelibatas, a cadeia fornadas de elegíacos. “(...) “Já em tempos tive vontade de escrever um livro notável sobre o lugar da janela na civilização carioca.”(João Paulo Alberto Coelho Barreto, vulgo João do Rio – mulato, gordo, homossexual, não tinha estampa para o Itamaraty, cronista, ensaísta, jornalista, viveu entre 1881 e 1921 no Rio de janeiro, obviamente)"

     Há dias venho ouvindo seguidamente cds. com músicas interpretadas por Carmem Miranda. Estas músicas, longe de me enjoarem, me trazem uma certa nostalgia feliz e um certo orgulho por conhecer tão bem e há tantas décadas o nosso maravilhoso Rio de Janeiro. Lí também, a quase mil quilômetros da capital cultural brasileira, uma inesquecível crônica de Carlos Heitor Cony sobre a biografia e a obra do meu conterrâneo Ary Barroso (nascí em Tabuleiro, perto da sua mineira e deliciosa Ubá). Na tarde do domingo, trinta de Novembro de 1997, viví uma das mais felizes tardes de toda a minha vida de quase 46 anos. Fui à gostosa praça da Vila Tibério, praça com o poético nome de Coração de Maria do Rosário... Lógico, estou em Ribeirão Preto, estado de São Paulo, onde vivo e trabalho. Nesta praça da Vila Tibério fui passear com o meu cachorro. Este meu cachorro Aragão, de quase treze anos, corria e deitava entre árvores, arbustos e relvas, plantas decorativas. Eu ficava perdido, quase sonolento e à beira de um sonho, com uma deliciosa ventania sob um sol inclemente; o ondular das gramas, capins e plantas decorativas assanhadas pelo vento; as meninas gangorrando seus ancestrais anseios de aves voadoras em tempos que prenunciam nossa chegada ao planeta Marte. Olhando estas insaciáveis gangorradeiras pensei como as brincadeiras infantís nos ajudam a nos ajustar ao mundo prático da vida que só os caminhoneiros conhecem. Ainda vive dentro de mim o deslumbramento de menino que acaba de ganhar inesquecíveis caminhões e carros que eram movidos a corda.

     Chegando em casa com o Aragão feliz e com a língua de fora, tomei um lanche (granólia, leite, suco de maracujá e biscoitos sequilhos) . Ouvindo Carmem Miranda tomei um delicioso banho com sabonete Biocrema e logo depois, bebí uma cerveja não-alcoólica (de latinha).

     Recortei os jornais e arquivei os recortes colhidos neste fim de semana, reservei alguns destes recortes para as hemerotecas das escolas municipais ribeirão pretanas, escreví esta crônica que meu amigo Walter irá digitá-la (ou, quem sabe?, eu mesmo o faço). E, aí sentí aquela feliz sensação do dever cumprido; sensação de um dia bem vivido; com liberdade para aliviar o calor deitando no chão frio da sala!... Mas, nada de restrições!... Hoje foi um dia de exageros, gulodices, pratos altos como torres babilônicas ou aztecas. E é a extravagância que me felicita. Não saberia viver o tempo todo com sapatos, meias, carpetes, lenços, paletós, gravatas, cartões de créditos e outros cipós da nossa civilização. Outra coisa feliz = ouvindo Carmem Miranda cantando a música de Lamartine Babo intitulada Isto é lá com Santo Antonio percebí a deliberada intenção do mitológico compositor de criticar a corporativista burocracia do Estado Novo!... Fiquei em êxtase.

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Vários contos num só conto ou leia um e pense em vários outros

conto de Neobarroco

     Eu tenho muitos casos para contar. Primeiro: quando eu morava na rua Frei Santo, minha lavadeira era uma senhora idosa e viúva que nunca se cansava de se lembrar do marido e que tinha como mais próximo e fiel amigo o seu papagaio de 28 anos de idade. Todos os dias, esta senhora colocava o seu louro com gaiola ou puleiro na árvore que existia na frente da sua casa. Um dia, dona Lúcia, a dona do papagaio, foi recolhê-lo e cadê? Roubaram o único amigo que lhe restara!.. Que covardia!...

     Segundo conto: minha tia Dilma parecia com uma atriz de Hollywood e, por ser tão bonita, fez questão de se casar com um cara estranho que fumava cachimbo, fazia filmes e fora um dos coroinhas mais amado pelo padre da igreja de São Matheus. Casou sem saber que seu marido João era homossexual... E com ele teve um casal de filhos. Brigavam muito. Um dia, ou melhor, uma noite apanhou o seu marido na cama com um dos motoristas da sua frota de táxi. Entrou com um processo na Cúria Arquidiocesana de São Paulo para anular o seu casamento com o João e teve a sua petição aprovada pelo Vaticano. E casou-se com o amante do seu marido. E, anos depois, misteriosamente, seu ex-marido João apareceu morto com 28 punhaladas num casarão numa rua central da cidade, numa cama rodeada por dois dos seus cachorros mais fiéis. Quando o casal de filhos da tia Dilma ganhou idade e começou a se casar e a se descasar sucessivamente, ela estava com câncer na boca . Seu mal obrigou-a a submeter-se a uma cirurgia de alto risco no pescoço. Durante a cirurgia o médico cometeu alguns equívocos que prejudicaram radicalmente a mobilidade dos seus membros superiores e a mutilou de forma tão trágica que tia Dilma tinha seguidas crises de desespero. E seus filhos em vez de lhe darem todo o apoio merecido, afastaram-se... sumiram... Até o filho Denilson, que pouco antes do diagnóstico da doença ser conhecido morava num apartamento no fundo da casa da mãe, tratou de mudar-se de residência, indo morar bem longe da mãe. Sem empregada e sem o apoio que esperava dos seus parentes, tia Dilma morre de depressão e de câncer, após cinco décadas de intenso tabagismo e diário convívio com produtos químicos usados em salões de beleza.

     Terceiro: um escorpião escuro matou o filho de uma empregada da mamãe. Foi assim, sete horas da noite, este menino da Felinha jantou e foi dormir com a barriga cheia. Eles moravam numa casa de pau-a-pique e sapé. O escorpião saiu de uma das fendas da parede de barro e picou o menino que logo logo começou a ter uma enorme quantidade de manchas roxas pelo corpo. Levaram-no para o hospital mais próximo, que estava na vizinha cidade de Rio Pomba, mas de nada adiantou. Já chegou lá morto.

     Quarto: quando vou à cidade em que nasci e da qual saí há mais de trinta e três anos lá chegando eu me sinto um estrangeiro. E onde eu moro sou considerado um forasteiro. Quem sou eu ou de onde sou eu? Eu sou de algum lugar ou meu lugar é dentro de mim mesmo? Bem diziam os sábios medievais para os quais a vida humana na Terra é essencialmente um desterro, um exílio.

     Quinto: uma colega de trabalho vive a louvar e a citar passagens da biografia da cantora lírica Maria Callas. Para ela, além dos seus méritos artísticos, Maria era resoluta e determinada. Uma mulher empedernida que teve a coragem de negar ajuda à própria mãe, que lhe explorara no início da sua carreira.

     Sexto: conheci a mãe da parteira que me tirou de dentro da minha mãe. Vivia na casa da dona Maricota, mãe da parteira que todos na minha idade chamavam em minha cidade natal de vovó Lilica. Sua casa tinha cisterna com boca de pedra, baús recheados de revistas com fotos em várias tonalidades de azul e de marrom, datadas das duas ou três primeiras décadas do século XX. Revistas que eu não me cansava de folhear. As camas destas anciãs eram de ferro com design cheio de linhas voluptuosas, bem ao estilo belle époque. Nem sei como elas vieram a morrer.. ou..nem me lembro mais das suas mortes.. mas que já morrerem há muito tempo, isso já, é lógico... senão já estariam com mais de 150 anos, o que é inconcebível em nossa presente condição humana. Mas quanto mais me aproximo do meu meio século de vida menos gente viva em meu passado eu localizo. Está próximo o meu fim.

     Oitavo conto: eu sei que o número oito é um dos símbolos do infinito, mas neste oitavo conto trato de narrar o meu enterro. Morri num hospital, longe dos meus. Antes de morrer, colecionei fios de meus cabelos e lascas das minhas unhas para os meus amigos eternizarem tais partículas do meu ser em seus relicários. No dia em que acordei morto e roxo, a manhã estava fria e nublada como quando papai morreu. O maior incômodo trazido ou ocorrido após a minha morte foi a correria dos raros amigos que se dispuseram a providenciar a documentação para a execução e ritualização do meu enterro. Indiferente a tudo isso permaneci em meu caixão até tamparem-no e me levarem para um cemitério. Poucas pessoas e umas insistentes moscas participaram do meu velório. No mais, foi como nos outros féretros... um rito para afirmar minha civilidade, pois não lhes custa lembrar que as primeiras civilizações nasceram quando começaram a organizar os enterros de seus mortos. E, assim, com estas notações sobre o meu humano enterro, encerro esta coletânea de contos que dão o que pensar. The End.

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Vertical – Horizontal

     De dia, acordados pela razão solar vertical, hierarquizamos o mundo, ordenando-o com nossos valores-simulacros.

     À noite, pelos pesadelos envolvendo seres sensuais e peludos como animais, nos defrontamos com as grades e as máscaras curriculares e corriqueiras, horizontalizamos paisagens dos nossos mundos fragmentários, vivemos plenamente o caos labiríntico da desordem infinita e horizontal.

     O mapa linguístico brasileiro, com os múltiplos escrachos e desleixos que cometemos com a nossa língua portuguesa, estaria revelando, até hoje, as intensas ou as agudas resistências tupi-guarani e afro-brasileira à língua dos brancos, cristãos e colonizadores?

     (....) ”Eu defendo um olhar alucinado sobre a história, um olhar que não aceita a história como arquivo.” – poeta Horácio Costa.

     Na noite passada sonhei muito com a satisfação do meu desejo de comer muito bolo de milho com erva-doce, ou broa ou cubú – como dizem lá onde nasci. Em meio a esses sonhos eu conversava animadamente com a minha avó paterna, a falecida dona Argelina. Quantas saudades dos papos que entabulávamos!...

     Será que Hegel tinha razão quando pensou que a concentração de passado no presente constitui a natureza humana? O lembrar, às vezes, é aleatório aliciamento de Alices despencando nos abismos involuntários da memória. Meu paraíso agora é todo de goiabada e de Monteiro Lobato. Não busco mais o tempo perdido: eu vivo o tempo que perderei. Nós que aqui estamos por vós esperamos. Abluções são eventos fisiológicos desconsiderados por Calderón de la Barca em A vida é sonho. Abluções são lavagens superficiais refrescantes que nos aliviam epidermicamente para melhor sentirmos a leveza de um momento de prece pelo mundo.

     O conteúdo assírio-babilônico do patriarcalismo bíblico e cristão não me leva a acreditar nos clichês dualistas e comparativos entre Oriente e Ocidente. A retórica clerical barroca se referia amiúde a este conteúdo mesopotâmico agregado às complexidades do homem contemporâneo.

     Minha avó, depois de morta, foi morar na lua. E lá é vizinha de uma amiga que sonhava com ciganas esparrachadas em salões ladrilhados de hotéis turcos.

     Os pássaros são tão expressivos!... A alma requer expressividade. Fingir é trair-se, é autodepreciar-se. Um primo horrorizava-se com a voracidade brutalizante do meu animalesco apetite. Quando lia textos de Simone de Beauvoir, eu sentia que ela era estrangeira, de outra classe social e avançada em sua fidelidade a si mesma. Já a escrita de Marguerite Duras, julgava, estava mais próxima da minha.

     O ressurgimento de literaturas enigmáticas e exóticas, pós- surrealistas, seria um processo de reciclagem estética do passado? Uma ruminância do homem do final do século XX? Kafka nos mostrou um mundo kafkaniano pós-pré-cambriano e muito craniano e cerebral. Não sei se, após a minha morte, irei morar num deserto lunar ou em Saturno. Adoro anéis planetários de poeira cósmica!...

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Viva a baronesa das frutas!...

(...) “ Os americanos representam grande parte da alegria existente neste mundo...Americanos não são americanos, são os velhos homens humanos chegando, passando, atravessando...”

Caetano Veloso

     Sua sala tinha marinhas e anjos, além de sofás recobertos com couro colorido de verde e braços de madeira envernizada e cheiro de cachorros anciãos. Era magra e usava saia estilo Olívia Palito, sampaca, dentuça e egiptomaníaca. Descendente da aristocrática família dos Malta de Minas Gerais e Rio de Janeiro, ocupava um solar branco, com janelas verdes, e mal conservado. Uma casa antiga, ilhada por edifícios da rua Dr. Constantino Paletta, no centro de Juiz de Fora – Minas Gerais. Seu nome: Dila. Acolhia em seus domínios legiões de patos, gatos e cachorros. Dois quartos da sua casa tinham até beliches para cães e gatos. Salvá-los da indigência e da violência das ruas era a última nobreza que o mundo contemporâneo reservou-lhe em sua decadente existência. Embora fosse prima da Julimar, esposa do ministro juscelinista Vítor Nunes Leal (autor da clássica tese sociológica intitulada Coronelismo, enxada e voto) e estivesse na condição de prima emprestada do crítico e futuro imortal Antonio Olinto e ainda descendesse de outro titular de cadeira na Academia Brasileira de Letras, sobrinha de Silva Mello, falecido confrade da mansão literária de Machado de Assis, Dila Malta nunca passou de uma humilde pintora agregada à Sociedade de Belas Artes Antonio Parreiras de Juiz de Fora e órfã da professora Malvina do colégio Batista da Tijuca, Rio de Janeiro. E viuva de um eletricitário alcoólatra e homossexual chamado Antonio, com quem dormia acompanhada por alguns gatos e um romântico casal de cachorros formado por Cecí e Perí.

     (...) “Meus 36 anos como psicólogo me ensinaram que em todas as sociedades há alguns indivíduos que estão sintonizados, por natureza, com atitudes que visam à inovação, e não ao conformismo...” – Timothy Leary – 1920/1996.

     Pior destino coube a Aurora Bruzon, pianista de conceito internacional, sempre acompanhada por seu vampiresco e obeso amante anônimo. Os conheci no “hall” do antigo Palace Hotel de Juiz de Fora, em 1969!.. O sorriso triste de Aurora me comove até hoje. Seu acompanhante tinha aquelas grossas sobrancelhas de francês e cheirava a fumo holandês para cachimbo. Bochechudo, pescoço atarracado, aspecto exageradamente robusto. E ela, Aurora, fina, aristocrática, infeliz, meiga e nostálgica ao me mostrar as fotos da sua marcante carreira de pianista, visivelmente interessada em que os dados que fosse me passando figurassem na reportagem que sobre o seu recital eu escreveria. Para tanto mantinha-se sempre aquiescente. E, nesta hora, Carlos Santana delirava multidões hippies em Woodstock com seus ritmos alucinantes e psicodélicos. Nesta mesma época, no trem Vera Cruz que ligava o Rio a Belo Horizonte, eu começava a ler Cem anos de solidão. E através do Waltinho do grupo Novo C.E.C. (Centro de Estudos Cinematográficos), grupo fundado por Décio Lopes, Carlinhos Miranda e outros intelectuais de Juiz de Fora nos anos 50 e que projetava filmes de arte na Galeria de Arte Celina Bracher, eu passei a conhecer mais que a música de Janis Joplin e Jimmy Hendrix, com ele mergulhei fundo pela primeira vez no universo intelectual da Contra- Cultura. Hoje Waltinho é um jornalista e crítico de arte do jornal Estado de Minas lá de Belo Horizonte. E também nesta época, como já deixei acima mais ou menos implícito, eu já escrevia e trabalhava como repórter da Gazeta Comercial de Paulo Lenz e Théo Sobrinho, de Juiz de Fora. E fazia no colégio estadual Sebastião Patruz de Souza o curso secundário chamado Clássico, para os que fossem seguir carreiras da área de Humanidades. Reminiscências de 30 anos atrás!..

     Cai de pára-quedas no labirinto metrópole São Paulo – 1999... São Paulo é um cemitério com torres faiscantes em cima dos seus edifícios – túmulos. O desespero de Verônica Voss... Meu amigo José Otávio Salles passeia de carro comigo. Ele, sem querer, foi me levando por onde eu e meu amigo Walter vivíamos há quinze anos!.. Cenários perdidos em minha história em cacos como esta metrópole... cenários que ainda me ferem, me doem lá dentro. Nostalgia mata. Bixiga, Moema, Maurício Villaça, cinemas, teatros, restaurantes, ruas, praças, estações de metrô, avenidas, centros culturais, sinagogas, igreja ortodoxa do Paraíso, saúnas, terminal rodoviário do Tietê, Arouche, minhocão, Glauco Mattoso, hotel de uma rede espanhola de hotelaria que, por um sistema de holofotes, troca de cor a toda hora, barracas de frutas, edifícios espelhados, self-service, nhocs, Ipiranga, Aclimação de Hudnilson Jr., Perdizes, vila Mariana, Água Branca, túnel Ayrton Senna... não há self-service que console minha fome. “A reputação talvez seja a principal forma da arte.” – Harold Brodkey. (...) “Quando deixarmos de roncar feito vespas em enxame

ou nos volvermos cauda de redemoinho,

ou quando terminarmos por escorrer sobre a terra

como um relâmpago de mortos,

então

talvez chegue a todos o remédio.”

(Juan Rulfo – 1918/ 1986 – escritor mexicano).

     Estamos próximos de uma grande confusão ou já nela estamos emersos. Já não consigo diferenciar o bem do mal. O mal contém o bem. O bem, por sua vez, contém o mal. Não sei mais o que é ilegal nem o que seja legal. As leis são conveniências noturnas congeladas em instituições mortas. Já não sei o que seja humano ou desumano e, muito menos, o que diferencia o justo do injusto, pois todos querem a mesma coisa: o poder. Há muito não sei o que é mocinho nem o que é bandido. Há muito não creio em príncipes nem em princesas encantadas. Mas adoraria experimentar o sabor do sapatinho de diamantes da Cinderela.

     Uma mosca gorda listrada com as cores branca e preta veio posar no meu nariz de defunto e uma prima chamada Ângela, uma magrela nojenta, veio espantá-la. Dizem que a vagina desta minha prima é aveludada... argh! que nojo! Ela foi criada lá na Serrinha!..

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Yoga para nervosos

conto de: Neo-barroco

     Só quem leu João do Rio, Lautréamont e Baudelaire sabe explicar o meu descaso em relação aos escritos de Luiz Fernando Veríssimo. Só Freud explicaria o que eu vi na rua hoje: pai e filha vestindo roupas com cores idênticas!.. Só uma cultura a-crítica como a que tínhamos à época dos sucessivos governos militares e a que ainda temos nesses tempos de desnorteios político-administrativos explicariam o fácil sucesso das músicas censuradas de Chico Buarque de Hollanda em suas “corajosas” e mártires investidas contra o autoritarismo militar-consumista do Brasil 1964/2000 ou a confusão entre mídias poderosas, literatura e humorismo pretensamente crítico na grande vendagem dos livros de Jô Soares. Mas nem Sherlock Holmes, nem Agatha Christie explicariam convincentemente as ocorrências que passo a lhes relatar.

     Dona Júlia era uma elegante e vaidosa bibliotecária numa repartição pública de uma grande cidade do interior paulista. Roupas vaporosas, perfumes franceses e cortes de cabelo coadunantes com o seu perfil pessoal de uma senhora católica viajada e de classe-média alta. Nas proximidades da sua mesa de trabalho afixava santinhos e, mesmo sobre a sua mesa, espalhava estampas com temas sacros do imaginário católico, livros sobre temas espirituais e religiosos, Dicionário de Bons Conselhos, Aforismos e Máximas do moralista Emerson, jarrinhas com flores secas e delicadas, um rico exemplar da Bíblia Sagrada com dorso dourado e aberto em algum salmo destacado por uma fitinha dourada, lencinho branco com meigos bordados típicos objetos de uma senhora quase idosa e chic...além de um perfumador de ambiente e alguns outros objetos ou coisas que sugeriam fé, requinte e cultura.

     Não era muito sociável. Seus trajes esvoaçantes e seu jeitão de mulher orgulhosa a afastavam da maioria dos funcionários que trabalhavam na sua repartição. Como a biblioteca era pouco freqüentada, ela lá se trancava e por lá ficava lendo, recortando textos xerocopiados, enviando ou recebendo malotes de livros de escolas ou, simplesmente, observando a bucólica paisagem do bosque municipal (onde homossexuais, drogados e outros grupos marginalizados iam para cometerem suas transgressões), cenário verdejante habitado por pássaros cantores e por macaquinhos famintos (aos quais atirava as cascas das frutas que levava para o seu principesco lanche das dez), ponto turístico amplamente visível da única janela da sala da biblioteca na qual dona Júlia trabalhava só pela manhã.

     Embora faltasse de vez em quando ou não cumprisse rigorosamente seus horários de serviço público, mantinha-se altaneira, silenciosa, quase arrogante e isolada na sua sala de livros, antiga cela de mosteiro beneditino. Passava lépida, leve, ostentando passos nervosos de uma garça humilhada (mas resistente, heróica e independente) toda vez que usava a passarela do poder, ou seja, os corredores da sua repartição, para se comunicar com seus superiores ou com funcionários a ela subalternos, para assinar o ponto ou para pedir xerocópias de textos ou, ainda, se comunicar com usuários dos seus serviços. Assim era a sua funcional rotina. Impassível e imutável e, às vezes, ausente, apática e muito formal, quase cerimoniosa. Isto até que... ... ....

     Numa manhã de sexta-feira, por volta das dez e meia, sem que da sua sala ninguém ouvisse qualquer rumor ou ruído, vencendo todo o seu arrogante orgulho e com voz de pessoa agonizante e gravemente acidentada, Júlia- surpreendentemente- alcançou com dificuldade a porta da sala de Neide, em relação a qual sempre mantivera a sua aristocrática mania de economizar gestos afetuosos, lhe implorando socorro, toda ensangüentada! ... Neide trabalhava na sala mais próxima do local de trabalho da dona Júlia e não ouvira nada de anormal que explicasse tamanho estrago ou acidente vitimando sua colega de trabalho. Melhor dizendo, Neide era vizinha de claustro de dona Júlia.

     Com um dos cantos da sua boca afundados (como se tivesse levado um violento soco) e os dentes fora dos arcos gengivais, gotejando sangue e falando com dificuldade, Júlia foi socorrida por uma outra funcionária que desempenha neste órgão público o papel de relações públicas.

     Quanto mais tentava explicar o ocorrido, mais denso permanecia o misterioso e inexplicado evento. Júlia disse que tropeçara numa cadeira mas isto não seria suficiente para lhe trazer tamanho trauma físico. Se tropeçasse numa cadeira com pés deslizando sobre rodinhas teria, em redor, mesas, estantes e outras cadeiras para ampará-la e os seus vizinhos de claustro ouviriam seus tropeções e, dependendo do que percebessem, iriam até a sua sala para verem o que estava ocorrendo.

     Num exame acurado no cenário ensangüentado do seu acidente feito por algumas funcionárias daquela repartição algumas hipóteses foram sugeridas (principalmente pela Neide): dona Júlia teria sido surpreendida por um início de espasmo ou derrame cerebral seguido por um súbito desmaio, cuja duração ninguém podia imaginar, e na queda perdera não só a memória mas, também, a integridade física da sua boca, dilacerada e obstruída por escuras placas de sangue coagulado. Outras sugeriram uma reação nervosa de Júlia à displicência de um guardinha que não atendera prontamente ao seu pedido de xerocópias.

     Horas depois do traumático e misterioso acontecimento, soubemos que o seu estado era delicado, havia se submetido a uma cirurgia reparadora das regiões labiais lesionadas (uma cirurgia plástica para reconstituir o lábio esquerdo e o arco gengival que o sustentava em termos de arquitetura fisionômica facial) e que ainda seria submetida, após a redução do inchaço na região machucada, a novas avaliações de odontocirurgiões. Dona Júlia ficará pelo menos quinze dias tomando só alimentos líquidos e, no mínimo, trinta dias afastada do trabalho.

     Sobre sua mesa, na tarde de sexta-feira, ainda continuavam junto com os objetos já arrolados, um copo plástico descartável contendo uma parte do açúcar usado na tentativa de deter o sangramento em sua boca e um livro, de grossura média, com o seguinte título: Yoga para nervosos.

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Maio – 2000

©2000 José Luiz Dutra de Toledo

joluduto@.br

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