DOSSIER PAULO OLIVEIRA



DOSSIER PAULO OLIVEIRA

As armas que comprei para Moçambique vieram da cortina de ferro

(Vera Lagoa entrevista Jorge Jardim Publicado no Jornal “O DIABO” a 12 de Abril de 1977)

Neste momento, em Portugal, continua a falar-se de Jorge Jardim como um dos homens (senão o homem) mais informado sobre as coisas de Moçambique. Claro que está bem informado. Longos anos ali viveu, ali teve papéis de relevo, considera-se moçambicano. O seu livro “Moçambique, Terra Queimada” (prepara outros) foi um “best seller” e ainda recentemente o depoimento de Silva Pais transcrito pelo “Telex” mostra o interesse que têm os jornalistas ( e não só...) pela figura de Jorge Jardim.

Estando ele e eu de passagem por Londres, impunha-se um encontro com o homem que conheço há longos anos e com quem, por motivos vários, tive ocasião de contactar muitas e demoradas vezes.

Há quem pretenda que Jorge Jardim é apenas um homem ambicioso. Eu julgo que talvez sim, talvez seja, mas acredito no seu amor por Moçambique. Talvez fale como moçambicana que sou...

Mas não sou eu quem está em causa. Vamos começar:

VERA LAGOA (VL) – Impõe-se que lhe pergunte, antes de mais nada, por que motivo não vive em Portugal? Estará proibido de o fazer? Terá medo? Ou tem algum processo contra si em curso?

JORGE JARDIM (JJ) - É fácil responder-lhe, embora sem poder ter inteiras certezas. Creio que não

há nenhum processo contra mim. Falou-se em que seria processado. Ofereci-me até, no caso de isso vir a acontecer, para me apresentar em Portugal para julgamento. Como vê, não tinha medo. De então para cá e por mais insistências que fizesse, não consegui saber novas dos processos ou do processo, nem consegui saber se realmente estavam dispostos a julgar-me.

Creio que, legalmente, posso voltar a Portugal quando quiser. Só acrescento que não vivo em Portugal, porque não quero. Porque considero que me seria muito desagradável viver em Portugal no

ambiente de que me chegam ecos todos os dias. Para ser mais claro. Creio que me faria nojo viver ali.

V. L. - Onde vive actualmente? Onde é, de facto, neste momento, o seu lar? E onde pensa viver de futuro?

J. J. - Pois, não tenho lar até agora estabelecido, com a família dispersa pelo Brasil, pela África do Sul, Lisboa e um dos meus filhos acompanhando-me em Espanha. Mas, basicamente, vivo em Las Palmas, nas Ilhas Canárias, por dois motivos. Um, o de o clima ser menos desfavorável para quem viveu tantos anos nos trópicos. O segundo, é porque as Ilhas Canárias não têm fronteira com Portugal e não pode sequer dizer-se, como algumas vezes se tem persistido em insinuar, que eu possa interferir na vida política portuguesa, sem sequer próximo da fronteira me encontrar.

V.L. - De qualquer forma, tem passaporte português...

J.J. - Sim, conservo o passaporte português e até aceitaram renovar-mo quando expirou aquele que eu tinha anteriormente.

V.L. - Há em Portugal, nesta ocasião, algum partido ( são muitos) que mereça a sua simpatia? Ou mesmo alguém de quem se sinta mais próximo? Penso que terá mais afinidades com Galvão de Melo, ou ter-me-ia enganado? Que me diz da actual falta de apoio (pelo menos nos partidos e imprensa) que tem encontrado o general?

J.J. - Como já lhe referi anteriormente, tenho passaporte português mas não se esqueça de que, em matéria política, até me retiraram o direito de ter opinião. Porque, como sabe, até às últimas eleições legislativas, eu estava inibido de votar, quer me encontrasse em Portugal ou no estrangeiro, parece que com o fundamento extraordinário, segundo a lista publicada, de pertencer à Liga dos Antigos graduados da Mocidade Portuguesa. Nestas condições, pois, pouco interessa a simpatia que eu possa ter pelos partidos, uma vez que não tenho o direito de, pelo voto, a expressar. Mas para lhe fazer a vontade, acrescento que no actual espectro político português, dos partidos existentes, dos partidos anunciados, ou dos partidos projectados, não há nenhum que me satisfaça. Quanto às minhas simpatias pessoais, por alguns vultos políticos portugueses, tenho vários amigos que militam na política e até em partidos diferentes. Quanto ao caso que referiu do general Galvão de Melo, ligam-nos laços de amizade que vêm de longe, até porque juntos estivemos - e ambos nessa altura como voluntários – no Norte de Angola, em 1961. Não sei as razões que têm levado os partidos a não apoiar ou a apoiar, titubeando, a campanha do general Galvão de Melo sobre o caso dos presos portugueses no Ultramar, numa altura em que até os jornais ingleses, como possivelmente terá visto, publicam aqui a notícia de que há mais de mil portugueses nas cadeias e nos campos de recuperação da Frelimo. Parece-me que os partidos e certos sectores da opinião pública se preocuparam mais com os propósitos políticos que poderia ter o general Galvão de Melo e admitindo que fossem os menos aceitáveis, isso não invalida que exista uma situação gritante para centenas ou milhares de portugueses que ficaram nos antigos territórios ultramarinos. E creio que esse é que é o aspecto importante. E nesse aspecto ele tem inteira razão e merece a solidariedade de toda a gente.

V.L. - Isso é quanto aos que lá estão, evidentemente. Mas quanto aos que estão cá? Que solução preconiza para o destino a dar aos milhares - se não mais do que milhares - de refugiados?

J.J. - É uma pergunta a que é muito difícil de responder, porque não conheço, por ausência, a

problemática actual em Portugal, em relação aos retornados, ou àquilo a que se convencionou chamar, retornados, porque tiveram vergonha de chamar os espoliados.

Pois é difícil encontrar no actual enquadramento económico português forma de um país de nove milhões de habitantes assimilar essa massa de espoliados que foi forçada a ir para Portugal. E nem se pode dizer “regressar a Portugal” porque alguns nunca lá tinham posto os pés. O futuro possível das províncias ultramarinas portuguesas, hoje territórios independentes, poderá, em certa medida, vir a absorver uma parte significativa dos que ali viviam.

Sobretudo os que ocupavam funções mais qualificadas. Mas com o traumatismo sofrido, com o largo

tempo decorrido e com a desorganização existente nos ex-territórios portugueses, também creio que vai ser muito difícil a readaptação da maioria deles. Assim, à sua pergunta, só poderei responder que não sei como se possa resolver problema de tal magnitude. E, esse, creio que era um dos problemas em que deveriam ter meditado a tempo e com tempo, os apressados descolonizadores que criaram a situação. Deles é a responsabilidade e como parece que ainda têm funções influentes no país é a eles que pertence a responsabilidade de o resolver.

África – Terra de ninguém

V.L. - Um assunto completamente diferente: tem algum livro em preparação?

J.J. - Como anunciei, quando se editou “Moçambique, Terra Queimada”, é meu propósito escrever alguns livros. Não um só. E tenho vindo a trabalhar, simultaneamente, em vários deles. Mas quando se quer fazer trabalho honesto, a soma de tempo requer a classificação dos documentos, a análise, a apreciação das coisas, ultrapassa em muito aquilo que eu tinha anteriormente previsto. Pois bem, o primeiro deles que, creio, surgirá em Portugal depois das férias (grandes) refere-se à política externa portuguesa concretamente seguida em torno do caso moçambicano, nos tempos anteriores a Abril de 1974. Tive intervenção muito activa, como sabe, nessa política externa moçambicana, ou tendo Moçambique como centro de irradiação. E é meu propósito evidenciar a coerência do caminho que então se seguiu sob o governo do Dr. Salazar que foi quando se definiram as directrizes e se iniciaram certas actuações. Esse livro, possivelmente, chamar-se-á “África, Terra de Ninguém”. Porque, graças às influências estrangeiras que sobre a África convergiram, o que é certo é que podemos afirmar hoje que a África tende cada vez menos a ser Terra dos Africanos para passar a ser “Terra de Ninguém”.

O caso do “Angoche”

V.L. - Subitamente houve um grande interesse pelo célebre caso do Angoche. Dizem que você é uma das pessoas que mais sabe sobre o assunto. É verdade? Tenho mesmo razões para pensar que sim, embora pense que me vai declarar que não.

J.J. - Tem razão em pensar que lhe vou dizer que não. Não tem razão em pensar que sei alguma coisa sobre o que passou com o “Angoche”, para além do que tem vindo a público. Se eu sou das pessoas melhor informadas sobre o caso do “Angoche”, então posso afirmar-lhe que ninguém sabe nada.

V.L. - A propósito do “Angoche” fala-se muito, como deve saber, de Vítor Crespo. Que pensa dessa figura? Que pensa de Rosa Coutinho? Que pensa de Costa gomes (dessa tenho uma ideia do que pensa...)? De Vasco Gonçalves? De Otelo? E de Melo Antunes? Não falo no capitão-general Lourenço, porque julgo que o conhece pouco. Será assim? E já agora, tenho a impressão de quem você conhece bem é o Pezarat. Não é? Você é de facto uma personagem incómoda...

J.J. - Nesses nomes todos que citou, há alguns que não conheço de todo. Como é o caso do general Lourenço, do general Vasco Gonçalves. Há outros que mal conheço, como é o caso do comandante Vitor Crespo e o caso do major Otelo Saraiva de Carvalho. Há outros que conheço, como o Almirante Rosa Coutinho e o general Costa Gomes. Por último, e para a primeira série dos que referenciou, há o caso do major Melo Antunes. Não o conheço pessoalmente, mas pelo que tenho acompanhado atentamente da sua actuação, creio poder afirmar que o considero hoje como o mais perigoso de todos. Quanto ao brigadeiro Pezarat Correia, conheço-o bem. Não quero acrescentar mais nada. Não o devo fazer. Se quiser, pergunte-lhe.

V.L. - Logo que tenha oportunidade, não deixarei de lhe perguntar. No caso concreto da forma desastrosa como foi conduzida a descolonização, quem considera os principais responsáveis?

J.J. - Sempre que me tenho referido à descolonização, tenho-me referido ao caso de Moçambique. Os outros casos conheço tão bem ou tão mal como os conhecem as pessoas que não tiveram intervenção directa no assunto. Mas, no que se refere a Moçambique, quanto à condução da descolonização não tenho dúvidas de que o principal responsável, como o escrevi mo meu livro - e ninguém até hoje foi capaz de desmentir - foi o general Costa Gomes. No entanto, o homem que urdiu a teia final, o homem que impediu que Moçambique pudesse ter a solução digna que em Moçambique ambicionávamos para a

independência, foi sem dúvida o major Melo Antunes. No entanto, em Portugal, agora, também me parece que vai havendo uma demasiada antimilitarite. É que não são só os militares os responsáveis. Por favor, não se esqueça de que o dr. Almeida Santos, foi um dos obreiros da descolonização de Moçambique, para depois continuar, persistentemente, no governo, em cargos variados e sem ter sequer a desculpa de se poder dizer que não conhecia os problemas moçambicanos.

J.J. - Sabe que não quero engrenar na atitude normal dos expatriados que sonham que mantém as posições de que dispunham anteriormente. É impossível saber-se efectivamente os apoios de que se dispõe dentro de Moçambique, até porque não se sabe onde é que param as pessoas, com mais de cem mil moçambicanos em campos de concentração. O que lhe posso afirmar é que tenho em Moçambique ainda muitas amizades, estejam onde estiverem e que tenho certamente pessoas com muitas afinidades com as ideias que nos conduziam anteriormente à revolução de 1974, sobretudo entre as massas africanas.

V.L. - Tenho a impressão de que o ouvi um dia destes falar em que voltaria a viver em Moçambique. Tem esperanças de voltar a viver em Moçambique? Tem esperanças de que isso possa vir a acontecer em breve?

J.J. - Quanto ao meu desejo de voltar a viver em Moçambique, posso afirmar-lhe que é coisa em que penso todos os dias. É mesmo a única terra em que sei viver. Considero-me, como já lhe referi, moçambicano. E nisso, tenho até o mérito de não ter na cor da pele a certidão de moçambicano. Nasci em Portugal. Não renego a minha origem portuguesa. Estimaria ver Moçambique manter laços estreitos com Portugal, no interesse comum. Mas fiz uma opção consciente e que foi definitiva. Pertenço a Moçambique e só o interesse de Moçambique me move em todos os instantes. Quanto a quando se verificará a oportunidade de regressar? Há uma virtude que se aprende em África e que é saber esperar. É preciso não haver precipitações. E é preciso, sobretudo, que não se criem ilusões quanto à possibilidade duma rápida alteração de situações que consinta o regresso dos moçambicanos que tiveram de se expatriar. Temos por isso de estar preparados para resistir moralmente o tempo que seja necessário e se me perguntar quanto tempo vai ser necessário, pois só lhe posso responder: aquele que seja indispensável para tornar Moçambique um país verdadeiramente livre e independente.

V.L. - Navego nas suas ideias. O que penso a seu respeito é que, por mais que publique os seus livros, você guardará sempre - até que um dia isso lhe sirva de trunfo definitivo – alguma coisa que não revela. Engano-me?

J.J. - Creio que não. Aí pode estar certa. Tem-se dito de mim muita coisa, mas o que sou ninguém disse até hoje é que sou estúpido. E pode ter a certeza de que não o sou inteiramente.

V.L. - Você conheceu bem a diplomacia portuguesa em África, antes da descolonização, evidentemente. Que sabe a esse respeito?

J.J. - Na diplomacia portuguesa com quem contactei muito intimamente, podem apontar-se casos notáveis de capacidade profissional, como o fiz, aliás, quando escrevi o meu livro, que as apontei e nomeei. E pode apontar-se ainda a condução superior da política externa. Mas houve, infelizmente, e infelizmente foram a maioria, casos lamentáveis de total incompreensão dos problemas africanos e de total incompreensão das características que deveriam conduzir as relações entre Portugal e os estados da África Negra. Se eu lhe disser que vejo hoje embaixadores qualificados nos mais altos postos de confiança, como foi o Brasil ou como seja a ONU, funcionários diplomáticos que fracassaram em África de forma terrível, porque não compreenderam o problema africano, funcionários diplomáticos que faziam de suas embaixadas agências da polícia secreta portuguesa e contra os quais me insurgi, verá que tenho razões para dizer que em muitos esses que hoje se mostram mais descolonizadores e que hoje evidenciam como os mais democratas, foram os grandes culpados de certas impossibilidade de convívio harmónico que se verificaram ao longo dos anos. Tiveram muita culpa. São hoje os mais premiados.

V.L. - É normal. E não se importa de me dizer nomes?

J.J. - Poderia citar-lhe alguns. Mas para não alongar muito esta entrevista, creio que se personificar isso no símbolo da incompreensão pelos problemas africanos e no símbolo da precipitação de se afirmar democrata e descolonizador, refiro-me ao dr. Futscher Pereira que por pouca sorte nossa, ainda por cima foi enviado para o Brasil e agora está nas Nações Unidas.

PÚNGUÈ – 24.08.2006

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