Pensar - Unesp



Autor: Salvatore D’ Onofrio

Título: Pensar é preciso

Subtítulo: “Reflexões sobre Filosofia, Religião, Literatura, Política, Cidadania”

Epígrafe:

Apenas a derrubada de ídolos e líderes possibilita

o surgimento de uma democracia de verdade

APRESENTAÇÃO

Apresentar um livro de um intelectual autor de vários títulos, inclusive de uma Enciclopédia, é uma tarefa difícil e, ao mesmo tempo, uma dádiva que enriquece meu currículo. Foi isso que pensei, quando aceitei o convite de Salvatore D’ Onofrio para prefaciar esta obra, que tive o prazer de saborear ao longo de sua elaboração, fazendo uma leitura prévia e dando palpites.

Fernando Pessoa diz em um poema muito conhecido que “navegar é preciso, viver não é preciso”. Entendemos esta frase como uma metáfora da nossa existência, ou seja, o importante é não abrir mão da vocação para a vida verdadeira, latente em cada um de nós, em troca da segurança medíocre de nosso dia a dia. Ao parafrasear o poeta, colocando como título desta obra que “Pensar é preciso”, o autor, por certo, pretende instigar no leitor o seu desejo de busca de um conhecimento que, partindo dos pensadores tradicionais, seja interpretado à luz de seu raciocínio e visão de mundo.

Disse antes que degustei este livro em seu original porque na realidade suas páginas vêm recheadas de um sabor intelectual tão generoso que será impossível não se apaixonar pela sua leitura. A obra pretende ser um guia para compreendermos a história da aquisição do conhecimento e, para tanto, Salvatore parte dos temas de grandes pensadores desde épocas mais longínquas até os dias atuais. Desta forma, passa em revista suas idéias pessoais a respeito da religião, da política, da filosofia, da vida em sociedade, enfim, ele pretende levar o leitor a uma esfera em que o próprio possa não só desfrutar de sua obra, mas também pensar seus próprios pensamentos a respeito da mesma. Assim, seu ponto de partida é a consideração de que o afastamento do homem das fontes do conhecimento obscurece sua visão para o mundo real, que ele mitifica para não entrar em contato com aquilo que o obrigaria a questionar-se.

Em sua obra “Introdução ao pensar”, Arcângelo Buzzi afirma exatamente isto: temos que aprender a pensar, decodificando os conceitos estabelecidos para que, decodificados, eles retornem à nossa própria experiência da verdade pensada. Naturalmente, nenhum homem deveria deixar-se levar por verdades dogmáticas, impedindo-nos de pensar e interpretar aquilo que o dogma propõe como verdade irrefutável. A obra de Salvatore propõe de forma clara esta necessidade, que se torna mais evidente quando aborda o dilema entre fé e razão, dilema que se transforma em um dos pilares básicos de seu trabalho. De fato, o autor não faz mistério quanto ao seu livre pensar e, às vezes, torna-se “impiedoso” ao não fazer aqui qualquer tipo de concessão. Esta postura, aliás, é que enriquece sua obra, torna-a autêntica, obriga o leitor a assumir uma posição às vezes dolorosa para ele e seus pares, porque choca ao levantar questões antes não pensadas.

Mas, afinal, para que serve uma obra literária se não obrigar o leitor a pensar por si mesmo na busca de soluções para seus problemas existenciais ou de qualquer outra natureza? Se a obra de Salvatore conseguir convencer o leitor de que pensar é preciso, por certo ele já se sentirá recompensado. Sem ser um livro de auto-ajuda nos moldes convencionais, “Pensar é preciso” é uma obra que ajuda o leitor a questionar o que nunca fora por ele sequer pensado.

WILSON DAHER

(Psiquiatra e membro da Academia Riopretense de Letras e Cultura)

Sumário

Introdução: A insustentável estupidez humana

I - Herança greco-romana

Mito e realidade, 6; Eros: a força cósmica do amor, 8; Júpiter: o complexo do autoritarismo, 9; Apolo e Dioniso: ordem e instinto, 10; Édipo e Fedra: o tema do incesto, 12; Tróia: Ilíada e Odisséia, 14; Atenas: o berço da civilização ocidental, 20; o pensamento reflexivo: Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicuro, Estoicismo e Cinismo, 21; Alexandria e Helenismo, 25; Roma: a cultura latina, 26.

II – Egito faraônico - Religião Oriental - Espiritismo

O Egito dos Faraós, 30; Buda: a religião na Índia, na China e no Japão, 32;

Doutrina Espírita, 36.

III – Moisés: as Tábuas da Lei e o Judaísmo

(Moisés, libertador e legislador, 40; as Tábuas da Lei, 41; a doutrina de Moisés, 44; os mitos bíblicos anteriores a Moisés (criação do mundo, pecado original, arca de Noé, torre de Babel), 49; o Patriarca Abraão (circuncisão e sacrifício de Isaac), 50; os Profetas: do Êxodo à última Diáspora, 52; o Judaísmo depois de Cristo, 53.

IV- Jesus Cristo: o evangelho do amor e a religião do atraso.

A figura humana de Jesus: quem escreveu os Evangelhos? 56; primeira fase da Idade Média: a era das trevas, 60.

V – Maomé: o Islamismo e a volta do terror

O último Profeta, 65; na caverna do monte Hira e a compilação do Alcorão, 67; a doutrina islâmica, 68; o Islamismo no tempo e no espaço 70.

VI – A Renascença da Europa: do Humanismo ao Iluminismo.

As Cruzadas, 75; o surgimento das línguas neolatinas: a lírica trovadoresca e os cantos épicos, 77; La Divina Commedia, 84; Leonardo da Vinci, 87; Camões e Os Lusíadas, 88; Dom Quixote e a novela de Cavalaria, 90; o Teatro de Shakespeare, 92; Lutero: Reforma e Contra-Reforma, 95; a Política: Maquiavel 98; a Filosofia: Descartes, Pascal, Hobbes, Spinoza, Kant, Hegel, Vico, 98; a Ciência: Copérnico, Bacon, Galileu, Newton, 103; Iluminismo, Enciclopédia, Democracia, fim da Escravidão, 105.

VII – Romantismo e Realismo

Alternância do real e do ideal, 108; Rousseau: o mito do bom selvagem, 109; o Fausto de Goethe, 110; Revolução Francesa, 112; Realismo: Flaubert, Balzac, Zola, Dostoievski, Machado, 113; Existencialismo: Kierkegaard, Heidegger, Sartre, Schopenhauer, Nietzsche, 119.

VIII - Darwin: gênese e evolução da espécie humana.

A viagem de pesquisa, 121; a tese da evolução, 122; antes de Darwin: Lineu, Lamarck, Mendel, Malthus, 123; depois de Darwin: teoria do Big Bang, 124.

IX - Freud: psicanálise e sexualidade

A estrutura da personalidade: Id, Ego, Superego, 129; as fases da libido, 132; Jung: a teoria dos arquétipos, 134.

X – Karl Marx: a utopia comunista

Traços biográficos, formação intelectual, Capitalismo e Comunismo, 136; Revolução Bolchevique: Lênin e Stalin, 138.

XI - Modernidade: proposta de um Humanismo laico

Vanguarda: Futurismo, Dadaísmo, Expressionismo, Surrealismo e Cubismo, 139; Albert Einstein: a teoria da relatividade, 142; Franz Kafka: o absurdo existencial, 144; Fernando Pessoa e os “heterônimos”, 147; choque de civilizações: totalitarismo e fundamentalismo, 152; as duas Guerras Mundiais e outros horrores (Holocausto, Hiroshima, Gulag, maio de 1968, 11 de setembro de 2001), 154; abaixo ídolos e líderes 157; pensamento alargado, 166.

XII - Construindo uma Cidadania: ensaio sobre a cegueira política

Em busca de uma identidade nacional, 170; a raiz do mal: herança de ignorância, servidão, corrupção, nepotismo, impunidade, 172; nova forma de governo: parlamentarismo e bipartidarismo, 174; enxugamento do Estado: sistema unicameral e proporção representativa equânime, 177; Estado laico e educação em tempo integral, 181; paternidade responsável, aborto, eutanásia, 183; saúde, previdência, transporte coletivo, 188; trabalho, meritocracia, justiça, 189; proposta de uma Constituinte sem políticos, 197.

Introdução: a insustentável estupidez humana.

O propósito deste trabalho é promover uma cruzada contra os políticos corruptos

e os religiosos fanáticos, os dois tumores malignos que corroem o tecido social, estimulando a busca da verdade histórica, do raciocínio lógico, do bom senso. Já foi constatado que a preguiça e a ignorância dormem no mesmo berço. O cancioneiro popular explica que a loira bonita não é burra, tem apenas preguiça de pensar. E se fosse só a moça linda e loira... Acontece que também as morenas e as feias, como os homens fortes e inteligentes, preferem usar a cabeça só para embelezar o pescoço. O homo sapiens deveria se distinguir de outros primatas (gorilas ou chimpanzés) pela capacidade do raciocínio, pelo espírito de curiosidade que o pode levar ao conhecimento do mundo em que vive, analisar sensações de prazer e sofrimento, ponderar sobre direitos e deveres. Se isso não acontecer, o que torna o homem diferente da besta? Se viver apenas para satisfazer o instinto da conservação própria e da espécie, o ser humano iguala-se ao animal que também se preocupa com a comida e o acasalamento.

Infelizmente, a maioria costuma renunciar à reflexão, acomodando-se a automatismos lingüísticos (repete palavras ouvidas de outros sem pensar no seu sentido) e ideológicos (segue piamente doutrinas pregadas por líderes carismáticos). Agimos apenas por impulsos, guiados por mecanismos inconscientes, fora do alcance de nossa percepção, dependentes do repertório de vivências anteriores, passadas de pai para filhos. Acreditamos em realidades de que nunca tivemos experiência. A frase do poeta France Paul Valéry, “que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?”, revela a dependência do ser humano de imaginárias entidades sobrenaturais.

Vivemos, assim, o dia-a-dia sem nos dar conta do absurdo existencial. Cultivamos hábitos nocivos a nossa saúde (drogas e excesso de comida e bebida), seguimos rituais religiosos com pouca fé e muita hipocrisia, escolhemos políticos que não atendem aos interesses da coletividade, promulgamos leis injustas ou impraticáveis. Os padrões de comportamento estabelecidos pela sociedade, além de serem hipócritas, não causam nossa felicidade, pois não conseguem atingir o equilíbrio entre a necessidade de satisfazer os instintos individuais e as exigências da vida em sociedade.

A experiência provinda de minha idade avançada me levou à percepção de que, para entender a realidade que me circunda, devo pensá-la do meu modo, como se a descobrisse por mim mesmo e não pela cabeça dos outros. Transcrevo literalmente um pensamento da escritora gaucha Lya Luft: “pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem superficial que nos esmaga”. Refletir é transgredir, é não acreditar no que outros disserem, se não for convincente; é não aceitar uma ordem contrária ao raciocínio lógico, à verdade histórica ou à descoberta científica; se causar infelicidade a mim ou a outras pessoas. Passei, portanto, a recusar qualquer preceito “mítico”, baseado em alguma crença que se sustente apenas pelo princípio da autoridade. Não porque “Ele” disse, seja ele Moisés ou Maomé, Hitler ou Stalin, que algo deva ser considerado verdadeiro ou bom. Também porque não sabemos ao certo quem disse, quando disse e o que realmente disse.

Perdi a fé não apenas nos ídolos religiosos, mas também nos líderes políticos, que manobram a massa popular conforme seus interesses e vaidades. Por que tantas guerras, ódio, racismo, injustiça, desigualdade, miséria? Há alguma explicação lógica para tanto sofrimento? Há milênios que a humanidade é guiada por fanáticos religiosos ou políticos, que prometem maravilhas e, no fim, acabam cometendo os erros e as atrocidades de sempre. E isso porque o povo, como se fosse um rebanho, sente necessidade de um”Pastor” que o guie, um Salvador da Pátria. O problema é que a inteligência, mesmo conatural ao ser humano, não se desenvolve automaticamente. Ela necessita ser cultivada, aguada diariamente, como se fosse uma plantinha.

Estudar, ler, refletir: eis as atividades que deveriam ser estimuladas em todo ser humano, de uma forma constante, desde a primeira infância. A conjunção da vontade de saber (pelo estudo) com a necessidade de atuar (pelo trabalho) é que faz um cidadão de verdade. Democracia nenhuma funciona se a totalidade do povo não tiver um nível cultural satisfatório. Pouco adianta a passagem de um regime ditatorial para um sistema democrático, se a massa pobre e desinformada vende seu voto por um favor qualquer. Troca-se apenas uma ditadura (pelas armas) por outra (pelo voto). E também ajuda quase nada mudar de Comandante (Rei, Ditador ou Presidente) se o povo continuar na ignorância.

A seguinte pergunta deveria intrigar qualquer ser pensante: por que, no nosso país, o Estado, como a Igreja, nunca se preocupou assertivamente com a educação da massa popular? A resposta talvez esteja no medo da verdade. Os poderosos não conseguiriam dominar um povo esclarecido e a religião não poderia impor seu credo, se aconselhasse seus fiéis a lerem outros livros a não ser aquele que cada seita considera como “sagrado”, depositário de uma verdade incontestável.

O escopo principal deste livro é um convite para a reflexão sobre temas filosóficos, religiosos, científicos e artísticos, considerados fundamentais para o desenvolvimento da nossa civilização. A matéria é apresentada de uma forma sintética e na ordem cronológica, que vai desde o mito greco-romano até à formulação da teoria da relatividade. A exposição do pensamento de profetas, filósofos ou literatos tem apenas o intuito de divulgação cultural, sem nenhuma pretensão científica. E isso eu faço contando histórias (mitos, lendas, episódios lúdicos) que é a forma mais antiga e eficiente de educar o povo. Estou convencido de que o conhecimento do passado é indispensável para compreender o momento presente, pois não há saber sem história.

Outro motivo, portanto, que me levou à elaboração deste trabalho foi apresentar um panorama da cultura no ocidente para estimular a leitura de obras maravilhosas produzidas pelo gênio humano. Minha intenção foi estabelecer uma ponte no tempo e no espaço e entre as várias disciplinas do conhecimento. O conceito de cultura implica em abrangência, pois ninguém pode se considerar sábio, se não tiver um mínimo de erudição. Uma base de cultura geral é indispensável para o início de qualquer especialização. Daí a necessidade da interdisciplinaridade, estabelecendo um diálogo entre religião e filosofia, história e sociologia, ciências naturais e antropologia, literatura, teatro e artes plásticas.

Enquanto o pensamento reflexivo nos dá a luz, a poesia vivifica o espírito e a ciência nos aproxima da verdade. A monocultura, além de infrutífera, é muito perigosa para a vida em sociedade. Os leitores de um livro só (Bíblia ou Alcorão), não conhecendo outros caminhos, acabam se convencendo de estar em posse da verdade e de ter a obrigação de impô-la aos outros, inclusive pela violência. Do fanatismo ao terrorismo o passo é quase automático, na religião e na política.

Por isso, outro objetivo do presente trabalho intelectual reside em despertar no leitor o espírito crítico. Questionar tudo e sempre. Uma máxima filosófica diz: “enquanto o tolo afirma, o sábio duvida”. E uma frase do cancioneiro popular faz eco: “todo o mundo erra”. Quem se achar dono da verdade deve ser preso num hospício, pois, por ter perdido a faculdade do raciocínio, pode se tornar um perigo para a sociedade. A insanidade mental pode levar alguém a se achar um enviado de Deus e inventar uma religião qualquer, que proíba o homem de ser feliz, elencando um montão de pecados sujeitos a penas eternas. Infelizmente, no nosso país, as igrejas pipocam mais do que partidos políticos!

Mas este trabalho não é apenas crítico, polêmico, iconoclasta. Tem seu aspecto construtivo também. Apresentar um pequeno esboço da história da estupidez humana é o primeiro passo para tentar o melhoramento social. A reflexão sobre os erros do passado pode nos levar à libertação de preconceitos atávicos que impedem o progresso civilizacional. O último capítulo, que toca mais especificamente no momento atual da política brasileira, visa apresentar sugestões para a construção de uma cidadania de verdade. Isso só será possível na medida em que, pelo esclarecimento do povo, o sentimento de verdade e de justiça irá substituir os egoísmos individuais e de grupos.

“O que é a maioria? A maioria é tolice.

O bom senso sempre tem sido de poucos!

Convém pesar os votos e não contá-los”.

Tal constatação, feita pelo poeta alemão Schiller, 200 anos atrás, infelizmente, ainda hoje continua verdadeira. A massa popular, manobrada por líderes religiosos ou políticos, causou a morte de homens maravilhosos, como Sócrates e Jesus Cristo, e exaltou figuras sinistras, como Hitler e Stalin. Pensar é preciso para que aumente, cada vez mais, o número de gente com consciência crítica e cívica!

I - Herança greco-romana

(Mito e realidade 6; Eros e Vênus 4; Júpiter 5; Apolo e Dioniso 6; Édipo e Fedra 8; Tróia: Ilíada e Odisséia 10 Atenas 15; o pensamento reflexivo: Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicuro, Estoicismo e Cinismo 16 – Alexandria: Egito e Helenismo 20; Roma: a cultura latina 22).

Mito e Realidade: “O mito é o nada que é tudo” (Fernando Pessoa)

A pré-história da civilização ocidental pode ser entendida graças às sucessivas descobertas arqueológicas realizadas, a partir da segunda metade do séc. XIX d.C. Em Creta e outras ilhas do mar egeu, jônico e mediterrâneo, em Micenas e outras cidades da península grega, na antiga Ílios (Tróia) e em outros sítios da costa asiática. Os estudiosos remontam as origens da civilização indo-européia até o ano de 2500 a.C. A concepção religiosa desses povos primitivos talvez esteja relacionada com um culto fetichista pela crença em forças sobrenaturais alojadas em objetos materiais. Assim, adoravam-se animais, vegetais ou pedras, acreditando serem animados por espíritos que, como se fossem talismãs, tinham o poder de proteger os crentes contra tempestades ou doenças.

Por vezes, pela imaginação do homem primitivo, formas animais adquiriam feições humanas, dando origem a seres híbridos, como, por exemplo, o Minotauro, monstro com cabeça de touro e corpo de homem, nascido de uma relação sexual da esposa do rei Minos com um touro enviado pelo deus Netuno. Pela contínua evolução da mente humana, passando para um estágio mais avançado, chegamos a uma concepção antropomórfica da divindade. Entramos, assim, no riquíssimo mundo da mitologia grega, conforme descrições em poemas didáticos, épicos, líricos e dramáticos, que remontam ao séc. VIII.

O termo grego mythos significa uma “história” fantástica, de origem anônima e coletiva, inventada para tentar explicar fenômenos naturais ou comportamentos existenciais, anteriormente ao avanço da filosofia e das ciências. Assim, por exemplo, o povo grego primitivo, não conhecendo a natureza do raio, imaginava ser uma seta incandescente de Júpiter, fabricada por Vulcano, o deus do fogo, pela qual o pai dos deuses punia os homens faltosos. A narrativa mítica apresenta aspectos divinos de acordo com concepções antropomórficas da natureza cósmica e da vida humana. Contrariamente ao que nos ensinam as diferentes religiões, não é Deus que cria os homens, mas são estes que criam os deuses a sua imagem e semelhança. Por exemplo, na África, a configuração da Virgem Maria é de cor preta, de lábios grossos e de seios abundantes.

As divindades são apenas projeções do inconsciente coletivo, que inventa figuras transcendentais para expressar plasticamente seus desejos e seus temores. Mas o mito, apesar de inverossímil, não deixa de ser uma “crença-verdade”. O estudioso Mircea Eliade, na famosa obra Mito e Realidade, afirma que a narrativa mítica é considerada verdadeira, uma vez que o mito, depois de criado, passa a ser objeto do culto popular, especialmente nas sociedades mais primitivas. Ele é verdadeiro porque é vivido através dos atos litúrgicos. Os rituais, ao rememorarem as façanhas realizadas pelas divindades, exercem um grande fascínio sobre os fiéis, que se sentem tomados por um poder sagrado. Isso acontecia com as bacantes da cultura greco-romana e acontece hoje com as mães-de-santo do candomblé baiano.

Com a passagem da tradição oral para a escrita, a palavra mítica adquire o caráter de dogma de fé, não admitindo contestação: “o que está escrito, é a verdade”, pois Buda disse e, sucessivamente, Moisés, Cristo e Maomé disseram! Mesmo quando o mito contraria a lógica, em vista de que sua criação não depende da formação de uma consciência reflexiva. Trata-se de uma “protofilosofia”, porque a resposta à pergunta do homem sobre o universo e seus fenômenos é dada não pelo pensamento conceptual, mas pela fantasia criadora de imagens. Daí a relação profunda entre mito, poesia e infância, categorias estas que superam os limites do tempo e do espaço.

Com a evolução da sociedade, o homem começa a pensar e a reflexão consagra o fim da inocência mítica. Aos poucos, vai acontecendo a separação entre o Eu, Deus e o Mundo, concepções não distintas na época mítica. Uma vez perdidas as verdades coletivas e absolutas do estágio mítico, cada homem é obrigado a descobrir seus próprios valores de vida. O mito, não mais vivido, perde sua sacralidade e torna-se apenas uma lenda representada artisticamente no poema, no conto, no teatro.

Com o progresso das ciências, o papel do mito passa a ser exercido por poetas e artistas. A estes cabe lançar mão da fantasia para criar mundos imaginários, onde as aspirações do inconsciente coletivo possam se realizar. O mito pode ser definido como uma “macro-metáfora”, pois é a criação de uma história ficcional que estabelece parentescos entre realidades diferentes, para captar parcelas de sentido do mundo. Em contrapartida, qualquer texto de arte literária encerra aspectos míticos pelo concurso da imaginação, que desafia a lógica existencial. Os arquétipos míticos da luta e do triunfo do princípio do bem sobre o princípio do mal se encontram na concepção do herói épico e na idealização do cavaleiro andante da novela medieval. Estão também na inspiração do romance de amor e de aventura, na literatura de cordel, no duelo entre o detetive e o criminoso do conto policial, na configuração do herói da ficção científica, na elaboração de fábulas e personagens da telenovela.

Fernando Pessoa, no poema Ulisses, ao recontar a lenda do herói grego que, durante a viagem de volta de Tróia para Ítaca, sua terra natal, teria fundado a cidade de Lisboa (evolução fonética do nome Ulissipona, “cidade de Ulisses”), afirma que o mito é o “nada” (pois não existiu no plano histórico), mas é “tudo”, porque foi a figura aventurosa do herói grego que estimulou os lusitanos a desbravar “os mares nunca dantes navegados”, deslocando o eixo do comércio do Mediterrâneo para o Atlântico.

EROS: a força cósmica do Amor

Eros é uma das “Divindades Primordiais”, aquelas que pertencem à “pré-história” da Mitologia grega. Segundo o pensamento órfico (de Orfeu, figura mítica que deu origem a uma doutrina filosófica e religiosa), Eros teria nascido do Ovo primordial (o Caos), engendrado pela Noite, cujas metades se separaram, dando origem à Terra e ao Céu. Ele é o princípio da atração universal, que leva as coisas a se juntarem, criando a vida. Eros é a força que assegura a coesão interna do Cosmo e a continuidade da vida na terra. Para o filósofo grego Platão, ele seria um dáimon, um demônio, uma força espiritual intermediária entre a divindade e a humanidade. Na cultura romana, Eros é confundido com Cupido, filho de Vênus (a deusa do amor) e de Marte (o deus da guerra), representado como uma criança alada, nua, armada com arco e flechas ou com espada e escudo, símbolo da paixão arrebatadora.

Vênus, a grega Afrodite, conforme narra o mito mais tradicional, nasceu da espuma do mar formada pelo esperma derramado pelo deus Céu (Urano), quando seu filho Saturno (o Cronos grego = deus do Tempo: passagem da eternidade para a temporalidade, início da História) lhe cortara os testículos. A deusa do amor e da beleza casou com Vulcano, o feioso deus do fogo, mas o traiu seguidamente: com Marte teve Cupido; com o mortal Anquises teve Enéias, o maior herói troiano e o fundador da raça latina; com Baco gerou Priapo; com Hermes (Mercúrio) deu à luz Hermafrodito, o ser bissexuado.

Com o passar do tempo, o sentido etimológico da palavra “erótico” se desfigurou, reduzindo o conceito a um tipo de satisfação carnal proibida (“sexo sem pecado é como ovo sem sal”, diria o cineasta Luís Buñuel), à nudez, à sacanagem, aos filmes pornôs. Confundiu-se Eros com Priapo, o deus do sexo, representado com um falo enorme, protetor dos reprodutores e símbolo da procriação. O Eros verdadeiro é o deus do amor no seu sentido integral, que engloba corpo e alma. A atração puramente física é animalesca e não humana. É apenas o bicho que tem o período do cio. O homem e a mulher se amam (ou deveriam se amar!) sempre e em todos os lugares por uma comunhão de sentimentos que transcende o aspecto corporal.

O erotismo, que verdadeiramente funciona e faz perdurar a atração recíproca por longo tempo, está no olhar apaixonado, na admiração que o amante sente pelas qualidades físicas e espirituais que consegue enxergar na pessoa amada. A função erótica, que estimula o desejo de uma forma mais duradoura, está evidenciada na poesia lírica, na pintura, na dança, nos filmes sentimentais, na arte em geral, pois supera o nível do real e penetra no mundo da fantasia, do sonho, do vago sentimento do inacessível. Por esse prisma, os Cânticos de Salomão e a poesia trovadoresca são mais eróticos do que o Kama Sutra. O erotismo está mais no sugerir do que no mostrar totalmente, no claro-escuro, na promessa do idílio, no mistério a ser desvendado, na repetição do ato do amor como se fosse sempre pela primeira vez. Como diz a poeta Adélia Prado, “erótica é a alma”! Só que conhecer o espírito de alguém é bem mais difícil do que lhe conhecer o corpo. Manuel Bandeira nos oferece uma reflexão interessante a respeito:

“Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque corpos se entendem; as almas, nem sempre”.

E, sobre a necessidade da renovação do desejo erótico, esta bela imagem do poeta Mário Quintana: “amar é mudar a alma de casa”. Enfim o erotismo, entendido como prática do amor num sentido bem geral, é onipresente a qualquer atividade humana bem sucedida. A escritora existencialista francesa, Simone de Beauvoir, companheira do poeta-filósofo Jean-Paul Sartre, é quem melhor define a essência da relação carnal: “O erotismo implica uma reivindicação do instante contra o tempo, do indivíduo contra a sociedade”.

JÚPITER: o complexo do autoritarismo

“O Estado sou Eu” (Luís XIV)

Zeus na Grécia e Júpiter em Roma, o maior personagem da mitologia greco-latina foi definido pelo poeta grego Homero como “o pai dos deuses e dos homens”. A história lendária de Júpiter é muito semelhante à de seu pai Saturno, o que salienta o caráter repetitivo dos mitos. Como Saturno desposou a irmã Cibele, assim Júpiter casou-se com a irmã Juno (Hera). Mas, além deste matrimônio "legítimo", foram atribuídas a Zeus várias relações extraconjugais com deusas, ninfas e mulheres mortais, sendo inumerável sua prole. Sua fama de conquistador incorrigível aparece artisticamente retratada na comédia Anfitrião, do escritor romano Plauto, encenada no Brasil pela companhia teatral de Tônia Carrero e Paulo Autran com o título “Um deus dormiu lá em casa”.

A peça narra o estratagema usado por Júpiter para seduzir a linda e virtuosa Alcmena, a princesa de Micenas, casada com o soldado Anfitrião. Usando do seu poder divino, fez com que o jovem esposo fosse para a guerra. A seguir, tomando a figura de Anfitrião, Júpiter apareceu a Alcmena e fez amor com ela. Numa manhã, o marido verdadeiro estranhou a frieza sexual de Alcmena. Esta, então, disse-lhe que estava exausta, pois passara com ele tórridas horas de sexo quando, na noite anterior, o marido, ao voltar da guerra, lhe trouxera o rico colar que estava em cima da cômoda. A comédia termina com a revelação do engano, inocentando Alcmena pelo adultério. Na cultura ocidental, o personagem Anfitrião passou a significar o hospedeiro, aquele que faz as honras de casa.

Além da concupiscência, o pai dos deuses tinha como atributos a onipotência e a previdência. A iconografia o representa como homem maduro, majestoso, barbudo, que tem como emblema o raio (símbolo do domínio sobre as forças atmosféricas e de sua força vingativa), o cetro (o poder) e a águia (a longevidência). Na cultura grega, o correspondente humano ao autoritarismo do deus Zeus é Agamenão, o prepotente rei de Micenas, que se dispôs a sacrificar a filha Ifigênia, comandou a liga grega na guerra contra Tróia, brigou com o herói Aquiles e, ao retornar para sua pátria, foi assassinado pela esposa Clitemnestra.

Na Psicologia, o mito de Júpiter passou a exprimir o arquétipo do chefe da família patriarcal, denominando-se "complexo de Júpiter" à tendência do subconsciente ao autoritarismo, que pode se encontrar na figura do governante, do juiz, do pai, do marido, do professor. A experiência da vida em sociedade nos ensina que o abuso do poder cria neuroses que atacam principalmente os homens públicos. Todo autoritarismo, de esquerda ou de direita, acaba estabelecendo relações desumanas, estimulando a corrupção e a violência. O despotismo se encontra não apenas nos governos absolutistas (monarquias hereditárias, ditaduras militares, oligarquias religiosas), mas também em regimes democráticos.

No Brasil, podemos apontar casos recentes de manifestação pública do mito de Júpiter: um coronel do exército que interrompe a decolagem de um avião civil e ordena que dois passageiros cedam seus lugares para ele e a esposa; um juiz do Supremo Tribunal Federal que manda calar a boca a um depoente numa seção de Comissão Parlamentar de Inquérito; um Ministro de Estado que solicita a quebra do sigilo bancário de um caseiro; Presidentes da República, Governadores e Prefeitos que usam a máquina do Estado para se reeleger.

Outras formas de atualização do mito de Júpiter podem ser encontradas no bullyng americano e na ação dos pitboys cariocas: um tipo de comportamento cruel e ameaçador, muito usado entre traficantes de drogas, marginais, presidiários. Infelizmente, a postura jupteriana é muito mais generalizada do que se possa pensar. Encontra-se na violência familiar e na prepotência dos poderosos, como também nos garotos musculosos que, especialmente depois de beber ou tomar drogas, praticam assédio sexual ou outras formas de intimidação. Enfim, sofre do complexo de Júpiter todo ser humano que lança mão da lei da selva, da razão do mais forte, não sendo educado a respeitar o direito e a vontade do semelhante.

A Suprema Corte do Afeganistão, país que se acha vítima da violência do sistema capitalista, recentemente, ratificou a condenação à morte do cidadão Abdul Rahman por ter rejeitado a fé islâmica. Que todos os fanáticos do mundo reflitam sobre o que disse Napoleão: “a maior parte daqueles que não querem ser oprimidos quer ser opressora”. Que dizer, então, do regime Talibã que ainda considera as mulheres propriedade do macho, podendo ser apedrejadas em praça pública, caso namorem fora do casamento? Infelizmente, apesar do reconhecimento dos direitos da mulher, o machismo ainda predomina em sociedades presas a tradições milenares. Casos recentes de seqüestros e assassinatos de moças por maridos ou namorados enciumados demonstram como a prepotência masculina ainda está enraizada em nossos costumes.

É preciso não confundir “autoridade” com “poder”. O étimo de auctoritas vem do verbo latino “augere”, que significa aumentar, crescer, desenvolver, adquirir beleza e fama. O príncipe Caio Otávio, sobrinho de Júlio César, foi denominado “Augusto” pela grandiosidade de sua personalidade, que deu paz e prosperidade ao povo romano. Já seus sucessores, os imperadores Nero, Calígula etc., tiverem o poder, transmitido por herança genética, mas não autoridade, pois foram tiranos cruéis, nocivos à nação. Numa democracia, o poder vem do povo mediante eleições para a escolha de representantes. Mas nem o voto nem a nomeação dão autoridade, que se consegue somente através do mérito, do empenho pessoal. Podemos atribuir a um governante, político ou religioso, poder, mas nem sempre autoridade.

Apolo e Dioniso: a ordem e o instinto, a luz e as trevas.

Entre as criações míticas da Grécia antiga, as que mais contribuíram para a formação da civilização ocidental são as configurações de Apolo e Dioniso, que estão ao centro de duas concepções de vida. Apresento alguns traços da “biografia” ficcional dos dois deuses, que apontam sentidos possíveis de vida, a partir de seus símbolos. Apolo, também chamado de Febo (deus da luz), Hélios (nuance das cores) e Sol (solus = o único), nasceu de uma relação adúltera de Júpiter com a jovem Latona, que por isso foi perseguida pela ciumenta Juno. O deus-astro tinha a missão de trazer para a terra a luz, o calor e a vida. Diariamente, um coche dourado transportava o Sol para o alto do céu e, à noite, guardava-o atrás das montanhas. O Cosmo devia a ele não só a alternância dia / noite, mas também a mudança das estações: o inverno era causado pela ausência de Apolo, que ia passar férias no extremo norte do planeta.

Apolo era uma divindade essencialmente luminosa: pela luz cósmica, protegia a vida vegetal, animal e humana (patrono dos agricultores, dos pastores e dos navegantes); pela luz intelectual, era o protetor dos médicos e dos artistas; pela luz divina, era o deus dos oráculos, desvendando os mistérios da natureza. Apolo, com a musa Calíope, gerou Orfeu, poeta e músico, venerado pelos gregos porque seu canto abrandava a dor e fascinava homens e animais. A dor de Orfeu pela morte da amada Eurídice constitui uma das páginas mais líricas da mitologia clássica.

Nas artes plásticas, Apolo é esculpido ou pintado como um belo jovem completamente nu ou coberto por arco e lira, com uma coroa de flores na testa. Tal iconografia de Apolo atesta o conceito de beleza clássica entendida como harmonia de formas: abstraindo de vários efebos (jovens bonitos) as partes corporais mais bem acabadas, os artistas gregos procuravam chegar à criação de um modelo de beleza masculina, universal e absoluta, em que o todo fosse resultante de partes harmonicamente estruturadas. Apolo é apresentado, portanto, como o deus de todas as faculdades criadoras de formas. A arte que nele se inspira — a apolínea -- tem como fundamento o sonho, a imaginação, a ilusão, um radical otimismo, a confiança nas forças do homem, considerado capaz de alcançar a vitória sobre o mal e a mentira.

Contrastando com o deus Apolo, Dioniso, o romano Baco, teve uma vida bastante acidentada. Conforme o mito, ele foi duplamente filho de Júpiter, daí o apelido de ditirambo (“aquele que nasceu duas vezes”), que era também o nome do hino religioso a ele consagrado. O pai dos deuses, em outra aventura amorosa, seduziu a princesa tebana Sêmele. Sua esposa Hera, então, roída pelo ciúme, provocou a morte da bela jovem grávida de seis meses, instigando-a a solicitar que seu amante noturno lhe mostrasse sua verdadeira identidade. Ao ver o senhor dos deuses em toda sua majestade, Sêmele caiu fulminada, não suportando a intensidade luminosa dos raios celestes. Júpiter, então, realizou a primeira cesariana: abriu o ventre da princesa morta, recolheu o feto e, porque naquela época não havia estufas, com a mesma faca, fez um corte na sua coxa esquerda, onde colocou o prematuro, dando continuidade à gestação.

Fruto híbrido de um amor divino-humano, Dioniso não foi aceito no Olimpo e precisou conquistar o direito à imortalidade por suas próprias forças. Errou pelo mundo até então conhecido e conseguiu o caminho da glória pela descoberta da uva, ensinando os homens a produzirem o vinho. Tocando flautas ou tamborins, acompanhado pelo cortejo de sátiros, bacantes, centauros e pelos deuses Sileno e Pã, Baco propiciava aos homens e aos deuses alegria e felicidade. Enquanto durava o estado de embriaguez, seus devotos sentiam a presença do deus do vinho dentro de si e se deixavam levar pelos ritos orgíacos, entrando em transe histérico.

Dioniso sempre foi considerado pelos gregos como um deus subversivo, pois personificava a desobediência à ordem e à medida, a vida do instinto, a liberdade e o prazer sem limites, a inversão dos valores sociais. O espírito dionisíaco encontrou sua primeira manifestação artística no coro ditirâmbico que, segundo a maioria dos estudiosos da literatura grega, foi o embrião da tragédia antiga, quando o mito de Dioniso, no lugar de ser apenas cantado (poesia lírica) e contado (narrativa), passou a ser também encenado (teatro). As pessoas que compunham o coro dionisíaco se sentiam transformadas pela embriaguez e punham de lado a máscara social, manifestando sua verdadeira personalidade. No estado dionisíaco, nos momentos de excitação orgíaco, esquecido de seu status, o homem sentia-se membro de uma comunidade universal em que se quebravam as barreiras de classes. Assim, o homem divinizava-se, o escravo emancipava-se, a crueldade tornava-se prazer, o grotesco misturava-se ao sublime. Este espírito dionisíaco, vivido também nas saturnálias romanas, persiste em todas as manifestações carnavalescas da cultura ocidental.

O mito de Dioniso invadiu a Literatura e as outras Artes, ao longo da nossa história. A obra do filósofo-poeta alemão F. Nietzsche (1844-1900) está toda ela impregnada do espírito báquico, ele mesmo definindo-se um “demônio dionisíaco”. Duas de suas obras são fundamentais para entendermos a importância do mito de Baco na evolução do pensamento e da arte européia: A Origem da Tragédia e Assim falou Zaratustra. Nietzsche remete à oposição “apolíneo vs dionisíaco” duas posturas perante a vida: viver conforme a razão e as ideologias sociais (código cultural) ou de acordo com o instinto que privilegia a busca da satisfação individual (código natural).

O contraste entre as duas divindades está evidente no mito da disputa entre Apolo e Pã (deus dos bosques, amante da lua e, como Priapo, deus do sexo, participante do cortejo de Baco). A tensão representa não apenas a vitória da lira sobre a flauta, da música suave e harmoniosa sobre os acordos rudes, da beleza com relação a feiúra, mas também o triunfo da civilização grega sobre a barbárie asiática. Em psicanálise, usando a linguagem de Sigmund Freud, podemos associar o id (a força do instinto, o código natural) ao mito de Dioniso e o superego (o conjunto das normas culturais) ao mito de Apolo.

Édipo e Fedra: o tema do incesto

A atração natural do filho pela mãe ou da filha pelo pai que, a partir de Sigmund Freud, passou a ser objeto de estudo da psicanálise, antigamente já fomentara a fértil imaginação dos gregos, dando origem a vários mitos ou histórias fantásticas sobre relacionamentos endógamos. O mais famoso é o mito de Édipo: Jocasta, a esposa de Laio, rei de Tebas, informada pelo oráculo de Delfos que o nascituro estava destinado a matar o pai e casar com a mãe, ordenou que um serviçal desse fim ao bebê. Mas o criado ficou com dó, abandonando Édipo (o “dos pés atados”, como se fosse um franguinho) no campo. Criado por pastores, o belo jovem, quando ficou sabendo do oráculo, achando que era filho de Políbio e Peribéia, se afastou da casa dos pais putativos e, por ironia do destino, foi parar na cidade de seus pais verdadeiros.

Ao chegar em Tebas, numa encruzilhada, teve uma altercação com um senhor de idade e acabou matando o velho sem saber que Laio era o rei, seu pai. Ao entrar na cidade, enfrentou a Esfinge, um monstro metade mulher e metade leão, que devorava os estrangeiros que não conseguissem desvendar o enigma: “Qual é o animal que tem quatro pés de manhã, dois ao meio-dia e três à tarde?”. Édipo respondeu: “é o homem”, pois na infância engatinha, depois anda e, quando velho, usa a bengala. Vencido o desafio, o forasteiro é acolhido como herói e, porque acabara de ser assassinado o rei Laio, é-lhe ofertada a bela viúva Jocasta em casamento. Édipo casa com a rainha de Tebas, sem saber que era sua mãe natural, e com ela tem quatro filhos.

Após longos anos de felicidade conjugal e de sábio governo, o rei tem que enfrentar uma terrível desgraça: a cidade de Tebas sofre de uma misteriosa epidemia que dizima homens e animais. Consultado o oráculo de Apolo, a resposta é de que a peste não cessaria enquanto o assassino do rei Laio ficasse impune. Édipo ordena que se investigue o caso e o adivinho Tirésias esclarece que o culpado é o próprio rei. Perante tal monstruosa revelação, Jocasta se suicida e Édipo fura seus olhos e abandona a cidade. O mito de Édipo foi explorado por escritores e artistas ao longo dos 25 séculos da cultura ocidental. Mas a melhor representação ainda é a peça do dramaturgo Sófocles, Édipo Rei, que remonta ao século V a.C. e foi submetida a diversas interpretações pelos exegetas. Os versos da fala de Jocasta a Édipo:

“Não tenha medo da cama de tua mãe:

Quantas vezes em sonho um homem dorme com a mãe!”

inspiraram Sigmund Freud na formulação do famoso “complexo de Édipo”, onde o médico austríaco explica que o sonho é a realização disfarçada de um desejo recalcado e que o seio materno é a primeira fonte de prazer do ser humano. Além do tema do incesto, a peça de Sófocles apresenta outros motivos recorrentes. Na fala do adivinho Tirésias a Édipo, aparece o tema do saber, a busca da própria identidade:

“Sabes, ao menos, de quem és nascido?”

O drama fundamental do protagonista, que reside em querer descobrir sua verdadeira filiação, simboliza o questionamento filosófico do homem: Quem eu sou? De onde venho? Para onde vou? Por que vivo? O tema da fatalidade, do destino inelutável:

“O que está por vir virá”

perpassa o drama de Sófocles de ponta a ponta. A lição transmitida pela peça é que é inútil lutar contra os desígnios do Fado, configurado como uma força cósmica superior à vontade dos próprios deuses. O que caracteriza o mito trágico é a coexistência dos contrários: Édipo é culpado, pois matara o pai e casara com a mãe, mas, ao mesmo tempo, é inocente, pois não sabia. O motivo do inocente-culpado tem sua explicação, pois a culpa não é individual, mas atávica: Édipo paga o preço de um pecado cometido pelo seu progenitor. Narra o mito que Laio, o pai de Édipo, durante umas férias, raptou, seduziu e abandonou o jovem Crisipo, filho do rei da Frigia, que acabou se suicidando. O pai do rapaz amaldiçoou o raptor, pedindo aos deuses que ele nunca tivesse um filho; mas, caso o tivesse, que ele fosse a causa da sua morte. O que estava escrito nas estrelas aconteceu: o parricídio e o incesto de Édipo são o castigo pela violência homossexual praticada por Laio. A lenda de Édipo nos lembra o mito bíblico do pecado original: Adão comeu a maçã e toda sua descendência herdou, não apenas a pena, mas também a culpa! Outro tema importante é o da catarse, a purificação pela dor, o sofrimento como condição indispensável para a felicidade:

“Enquanto alguém deixar esta vida sem conhecer a dor,

não pode dizer que foi feliz”.

Estes dois últimos versos da peça Édipo Rei nos ensinam que, se o conhecimento da verdade nos leva ao sofrimento, de outro lado, será somente através deste que o homem, adquirindo a verdadeira dimensão de sua essência, terá condição de ser feliz. O brilho de Édipo, o decifrador de enigma e o bom governante de Tebas, era falso, pois fundado sobre o desconhecimento da própria identidade. O herói trágico se encontra verdadeiramente na dor, na fraqueza, no abandono: reencontrar-se na impotência, nisso reside o supremo saber. Na última peça de Sófocles, Édipo em Colona, a cidadezinha perto de Atenas onde o herói se refugiara, feliz na companhia da filha Antígona, sentimos certa identificação do poeta com o protagonista mítico: Sófocles escreveu este drama com mais de 80 anos, consolado na sua velhice por uma jovem e bela hetera (cortesã de costumes livres).

O mito de Édipo, que explora o tema do incesto, tem o seu equivalente feminino no mito de Electra, que trata da atração da filha pelo pai, e de Fedra, que aborda relações sexuais entre membros da mesma família. Electra é filha de Agamenão e Clitemnestra, soberanos de Micenas. Durante a longa ausência do rei, que fora comandar a frota naval grega na Guerra de Tróia, a rainha se apaixona pelo cunhado Egisto e juntos maquinam o assassinato de Agamenão, quando do seu regresso. Electra ajuda o irmão Orestes a vingar a morte do pai, causando a morte da mãe adúltera e do tio assassino.

A psicanálise, assim como apresentada por C.G.Jung, denomina “complexo de Electra” à atração sexual não sublimada que uma filha possa sentir pelo próprio pai. Depois de uma fase de fixação afetiva na mãe, quando da amamentação e na primeira infância, a menina pode passar a sentir um sentimento mórbido pelo pai, em quem constrói a imagem do homem ideal. Electra simboliza a tendência a um amor incestuoso da filha pelo pai, quando o sentimento de apego não é resolvido de uma forma adequada, podendo causar neuroses. O mito de Electra, como o de Édipo, inspirou muitas obras de arte dramática e plástica, através dos tempos. Citamos apenas a peça O luto fica bem em Electra, do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill, representada pela primeira vez em 1931. No Brasil, esta peça foi encenada com o título Electra e os fantasmas.

A figura de Fedra, irmã de Ariadne, está ligada ao mito do pai Minos, rei de Creta, e de Teseu, o maior herói de Atenas, famoso por inúmeras aventuras de luta e de amor. A façanha mais conhecida foi sua vitória sobre o Minotauro, na ilha de Creta. Matou a socos a fera, fechada no Labirinto e de lá conseguiu sair graças à ajuda da esposa Ariadne, que lhe deu um novelo de fio para marcar o caminho de volta. Mas, ingrato, abandonou a jovem na ilha de Naxos, onde ela morreu de dor. E pagou por isso, de acordo com a justiça cósmica. Já velho,Teseu casou com a cunhada mais nova, Fedra, que, enquanto o marido participava da expedição dos Argonautas, se apaixonou pelo jovem enteado Hipólito. O rapaz, que tinha feito voto de castidade a Diana, deusa da caça, não quis saber da madrasta. Sentindo-se repudiada, ela apela pela vingança: escreve uma carta ao marido, acusando o jovem de assédio sexual. Hipólito é executado e Fedra se enforca.

O que mais impressiona no mito de Fedra, largamente representado na cultura ocidental, além do alto grau de violência a que pode levar uma paixão louca não correspondida, é a maldade possível no coração de uma mulher: ela acusa o rapaz justamente daquilo que ele não quisera fazer, transformando a vítima num agressor. Esta lenda me faz tecer um paralelo com a trama do filme Assédio sexual, onde a atriz Demi-Moore representa o papel da bela executiva Meredith Johnson, que destrói a carreira de um jovem subordinado por ele não ceder a sua sedução, preferindo manter-se fiel à esposa. O mito de Édipo, como outros mitos, enquanto arquétipos de ações humanas, vive se repetindo continuamente ao longo da nossa existência.

Tróia: Ilíada e Odisséia

Tróia é o nome latino da antiga Ílion, próspera cidade situada na costa da Ásia Menor. No séc. XII a.C., a cidade troiana sofreu um assédio por uma frota de navios gregos que, depois de dez anos de luta, conseguiram expugná-la e incendiá-la. A guerra de Tróia é um fato histórico, documentado por resíduos arqueológicos, ao redor do qual, ao longo de quatro séculos de tradição oral, a fantasia popular foi inventando histórias fabulosas sobre deuses e heróis, gregos e troianos. Só em meados do séc. VIII, a Grécia já tendo uma língua escrita, um rapsodo “costurou” ( “rapsódia” significa juntar partes) vários episódios de heróis divinos e humanos, deixando para a posteridade documentos de alto valor poético e civilizacional. Se este rapsodo foi Homero ou os dois poemas épicos foram escritos por vários autores e em épocas diferentes, é assunto da proverbial “questão homérica”, que deu tanto trabalho a exegetas. Mais importante do que descobrir a autoria, é admirar a beleza da obra.

Antes de expor fatos, personagens e sentidos dos dois poemas, acho didático lembrar a história mítica criada para justificar a agressão grega ao território troiano. A guerra contra Tróia estava escrita nas estrelas, pois diretamente relacionada com o mito de Vênus e de outras divindades. Mitos divinos se misturam com lendas humanas, no céu e na terra. Narra o mito que o último rei de Tróia foi Príamo, casado com Hécuba. Quando a rainha estava grávida de seu 50° filho, sonhou com chamas e um adivinho aconselhou o casal a matar o nascituro, pois ele seria a causa da destruição de Tróia. Mas o servo encarregado da morte ficou com dó do recém-nascido e o abandonou no monte Ida, sendo criado por pastores, que lhe deram o nome Páris, “o que protege” o gado. Aqui se dá o cruzamento do mito humano com o divino. Houve uma festa de casamento, lá no Olimpo, para a qual não foi convidada Éris, a deusa da Discórdia (pudera! quem convidaria uma encrenqueira?). E ela, por vingança, pela janela do salão de festas, lançou um pomo com a escrita “para a mais bela”. As três principais deusas do Olimpo, Atena (Minerva), Hera (Juno) e Afrodite (Vênus), começaram uma briga, cada qual achando que o pomo era para si. Júpiter, então, escolheu como juiz um ser humano, o belo jovem Páris que, não sabendo de sua verdadeira filiação, vivia no meio de pastores.

Para obter a vitória, cada deusa tentou corromper o juiz, oferecendo o que possuía: Minerva lhe prometeu a sabedoria, Juno o poder e Vênus o amor. Páris entregou o Pomo da Discórdia a Afrodite, em troca da promessa da posse da mulher mais bonita da terra. Naquela época, por acaso, a miss mundi era a linda Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, irmão do poderoso Agamenão. Para cumprir a promessa, Vênus armou o encontro dos dois, que se tornaram amantes. Páris, já reconhecido como filho pelo rei Príamo, apesar dos tristes presságios da irmã Cassandra que tinha o dom da profecia, levou Helena para Tróia, sua cidade natal. Para vingar a honra maculada, uma coligação de príncipes gregos assediou Tróia. O mito, evidentemente, foi inventado para justificar a sanha expansiva dos gregos. É por causa dessa lenda que, na poesia épica grega, romana e lusitana, encontramos sempre Vênus protegendo os troianos e seus descendentes, os latinos, enquanto as outras duas deusas protegem o exército grego.

Mas, neste ponto, deve ser inserido outro mito fundamental da cultura ocidental: o de Ulisses, o grego Odisseu, o protagonista do outro poema épico, A Odisséia, e, talvez, o maior herói humano de todos os tempos. Ulisses nasceu como conseqüência de uma dúplice artimanha, preparada pelos dois homens mais inteligentes da Grécia da era pré-histórica: Sísifo, rei de Corinto, para vingar-se de Autólico, que lhe roubara o rebanho, seduziu-lhe a filha Anticléia. Mas isso era tudo o que o próprio Autólico tinha planejado, pois desejava ter um neto que herdasse a astúcia de seu rival Sísifo. A moça Anticléia, já grávida, abandonada por Sísifo, desposou Laertes, rei de Ítaca, que assumiu a paternidade da criança.

O jovem Ulisses, educado pelo sábio centauro Quirão, na idade de contrair núpcias, apaixonou-se por Helena, a mulher mais bonita da Grécia; mas, por serem muitos os pretendentes, desistiu da competição, estabelecendo o famoso “pacto”: os concorrentes à mão de Helena se comprometiam a respeitar a vontade da moça na escolha do esposo e a defender a união do casal. Helena escolheu como marido o príncipe grego Menelau e Ulisses casou-se com Penélope, prima de Helena. Declarada a guerra dos gregos contra Tróia para a reconquista de Helena, raptada pelo príncipe troiano Páris, Ulisses foi obrigado a participar do assédio de Tróia, vítima do acordo por ele próprio inventado. De sua inteligência nasceu o estratagema da construção do famoso Cavalo de Tróia. Mais façanhas de Ulisses encontram-se no poema que leva seu nome como título. Voltemos, agora, à apresentação do primeiro poema homérico.

Ilíada significa “sobre Ílion”, o nome antigo da cidade de Tróia, mas o poema se limita apenas a descrever alguns episódios e não a história dos dez anos que durou a briga entre gregos e troianos. O poema começa com a invocação:

Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles...

Observemos que Homero não diz “eu canto”, mas coloca como narrador da história a própria divindade. E isso por uma questão de coerência: como um ser humano poderia saber o que se passa lá no céu, estar presente em todos os lugares e em épocas diferentes? Ele se considera apenas um ser inspirado, um vate que recebeu o dom de ser o intermediário entre a divindade e a humanidade. É claro que se trata de um fingimento poético (e Fernando Pessoa bem dizia que “o poeta é um fingidor”, que finge tão bem ao ponto de enganar a si próprio), mas, pergunto eu, a sensação de sentir-se inspirado por uma força divina no ato de escrever não seria comum também aos líderes e escritores de textos considerados sagrados pelas várias religiões? Poeta é Profeta, e vice-versa: religião e arte sempre andaram juntas!

O assunto do que trata o poema Ilíada está anunciado nas duas palavras citadas acima: “a cólera de Aquiles”. Este é o protagonista do poema, filho do rei Peleu e da deusa Tétis que, segurando o recém-nascido pelo calcanhar, o banhou nas águas do rio Estige para torná-lo invulnerável. Portanto, o único ponto fraco ficou sendo o calcanhar que não recebeu a água sagrada. Daí, o proverbial “calcanhar de Aquiles”. Sua “cólera”, ira ou raiva está relacionada com a perda da bela escrava Briseida pelo prepotente chefe Agamenão (Helena, Briseida, Cleópatra, Cremilda... sempre elas, as moças bonitas, causas e vítimas de desgraças: cherchez la femme, dizem os franceses, quando buscam o motivo de um crime).

Os gregos, para se proverem de comida, roupa e mulheres, costumavam saquear cidadezinhas perto de Tróia. Na divisão de um butim, Agamenão e Aquiles ficaram com duas belas jovens, feitas escravas. Mas, a que ficara com o chefão, Criseida, era filha de um sacerdote de Apolo, que pediu vingança. O deus, então, lançou flechas envenenadas que começaram a dizimar homens e animais no acampamento. Para aplacar a ira divina, o conselho dos gregos obrigou Agamenão a devolver Criseida. Mas o poderoso chefão exigiu em troca a escrava Briseida, que era a concubina de Aquiles. Este, louco da vida, se retirou do combate. Os troianos, percebida a ausência do valoroso Aquiles, saíram dos muros da cidade e atacaram os gregos em seus acampamentos na praia. O herói troiano Heitor, filho do rei Príamo, acaba matando Pátroclo, amigo de Aquiles. Este, então, para vingar a morte de seu amigo, volta a combater os gregos, dirigindo sua ira especialmente contra o inimigo Heitor, encurralando-o até os muros de Tróia e matando-o, após uma luta singular e dramática. O poema acaba com os funerais de Heitor, pois o velho rei conseguira comover o raivoso herói grego, que lhe entrega o cadáver do filho.

Este pequeno resumo apresenta apenas uma pálida idéia da beleza poética e humana da Ilíada. Contar episódios de vida de deuses e homens que participaram da Guerra de Tróia é a forma que o poeta encontra para fixar para sempre, por virtude da arte literária, a galeria de heróis e de posturas humanas que a tradição oral foi criando e transmitindo ao longo de séculos e que se tornaram arquétipos na cultura ocidental. Aquiles, o protagonista deste poema épico (o nome certo deveria ser “Aquileida”, título de um poema do escritor latino Estácio e de outros imitadores de Homero), representa a força física, a perícia na guerra, o sentimento de honra, o caráter indomável que não se dobra perante a prepotência do chefe Agamenão, nem face aos desígnios do destino: mesmo conhecendo o vaticínio que anunciara sua morte logo após a de Heitor, ele mata o herói troiano para vingar a morte do amigo Pátroclo.

Aquiles encarna o homem na idade juvenil que se deixa dominar ora pela violência das paixões (ódio e agressividade), ora pela delicadeza dos sentimentos (amizade e piedade). Helena, a moça grega, que passou à história como Helena de Tróia, também ela semideusa, pois fruto do relacionamento de Júpiter com a mortal Leda, embora seja o pivô da guerra, não é considerada culpada. O próprio sogro dela, o rei Príamo, que mais sofre com a desgraça que está caindo sobre Tróia e sua imensa família, tem muito carinho por ela e sempre a defende, pois entende que Helena é vítima do destino, contra o qual ninguém pode. Ela é a representante humana da deusa Vênus, que simboliza o instinto, a força da paixão amorosa que vence qualquer norma moral. Helena é o símbolo da mulher fatal, seduzida e sedutora, que vive apenas em função do sexo. O mito narra que, após a tomada de Tróia, quando o marido Menelau a procura no palácio para vingar-se da traição, ela, sem falar uma palavra em sua defesa, simplesmente se despe: a visão da beleza do seu corpo transforma o ódio em novo amor.

Além de Aquiles e Helena, outros personagens importantes da Ilíada são: Agamenão, o prepotente chefe da armada grega; Heitor, o maior herói troiano, que luta bravamente para defender sua família e sua cidade; sua esposa Andrômaca que, contrastando com Helena, é a mais bela configuração de fidelidade conjugal, antecipando a Penélope de Ulisses, personagem da Odisséia; o belo Páris, que não sai da cama de Helena, preferindo fazer o amor em lugar da guerra, embora tenha sido ele a causa dela; Menelau, o marido traído, caracterizado como homem indulgente e sensato, preocupado em preservar os valores ideológicos da união conjugal e do respeito pelos bens alheios, pois, independentemente de qualquer sentimento amoroso, a mulher era considerada posse do esposo.

O segundo poema homérico, a Odisséia, narra a viagem do herói grego Ulisses (nome latino de Odisseu) que, cumprido a missão da reconquista de Helena e da destruição de Tróia, começa a caminhada de regresso a Ítaca, sua terra natal, onde o espera a virtuosa esposa Penélope. Conforme a tradição mítica, o herói grego leva dez anos para retornar. Somados aos dez da Guerra de Tróia, perfazem 20 anos de ausência do lar. Ítaca, ilha do mar jônico, não fica tão longe de Tróia, situada na costa da Ásia Menor. Mas era vontade divina que o herói grego tivesse uma viagem de volta bem acidentada.

A narração das aventuras de Ulisses não procede conforme a ordem cronológica. O poema começa quando o herói chega náufrago na ilha dos Feácios (a atual Corfú), após sete anos de sua partida de Tróia. Encontrado na praia pela bela princesa Nausica, Ulisses é acolhido na corte do rei Alcino e, durante um banquete, conta retrospectivamente suas aventuras. Este recurso técnico de narrar uma história começando pelo meio, in medias res, próprio da poesia épica, como veremos na Eneida, de Virgílio e nos Lusíadas, de Camões, será utilizados também pelo conto policial ou de suspense e pelo cinema.

Vou tentar reconstruir e resumir a fábula da Odisséia, colocando os principais acontecimentos na ordem cronológica para facilitar seu entendimento. O náufrago Ulisses, acolhido na corte dos Feácios, durante um banquete, ouve o aedo Demódoco contar como os gregos enganaram os troianos, construindo um enorme cavalo de madeira, dentro do qual esconderam dúzias de soldados. Convenceram, então, o rei Príamo a permitir sua entrada na cidade, pois se tratava de um presente divino. Como se pode ficar, aos poucos, os episódios da guerra de Tróia começaram a ser objetos de cantos populares.

Ao ouvir esse canto, Ulisses não resiste à comoção e começa a chorar, revelando que é ele o herói da história. Conta, então, como, após o incêndio de Tróia, junto com outros gregos, em doze embarcações, inicia o caminho de volta para sua terra de origem. Após várias tempestades, os ventos jogam Ulisses e seus companheiros no Sul da Itália. Perto da ilha da Sicília, numa região vulcânica, são capturados pelo ciclope Polifemo, monstro antropófago com apenas um olho na fronte, que encerra os gregos numa gruta e toda a manhã come um forasteiro. O astuto Ulisses, que lhe diz chamar-se “Ninguém”, embebeda o ciclope e lhe enfia um pau no olho, conseguindo escapar do antro com o restante dos companheiros. Polifemo pede ajuda aos outros ciclopes, gritando “Ninguém me cegou”. Os irmãos, pensando que ele, bêbedo, estava brincando, não o acodem e os gregos conseguem alcançar os barcos e fugir.

Chegam à ilha de Éolo, o guardião dos ventos (daí o nome da energia “eólica”), que fecha num odre os ventos adversos para facilitar a chegada a Ítaca. Mas seus companheiros furam o saco, pensando conter vinho. E, mais uma vez, os ventos contrários os desviam do caminho certo. No litoral do Lácio, desembarcam numa ilha onde vive a feiticeira Circe, que transforma os companheiros de Ulisses em porcos. O herói, passado um ano feliz nos braços da bela deusa, resolve continuar a viagem, indo parar no golfo de Nápoles, numa localidade onde se acreditava estar o reino dos mortos. Feito um sacrifício ritual, desce numa gruta onde encontra as almas de figuras míticas: Tântalo, Sísifo, Agamenão, Aquiles, entre outras, cada qual contando sua história. Ao atravessar o estreito de Messina, entre os escolhos Cila e Caribdes, que separa a ilha da Sicília da península italiana, Ulisses coloca cera nos ouvidos de seus companheiros. Por sua vez, pede ser amarrado ao mastro do navio para não sucumbir ao irresistível canto das sereias, grandes pássaros com cabeça de mulher, que costumavam atrair os marinheiros contra os recifes.

Chegados na Sicília, a ilha consagrado a Hélios, o deus Sol, acabados os mantimentos, os companheiros de Ulisses matam e comem as vacas sagradas, sendo por isso condenados a uma morte violenta. Salva-se apenas o herói que respeitara a ordem divina. Após nove dias de naufrágio, Ulisses chega na ilha Ogígia (talvez a atual Gibraltar), no limite extremo do Ocidente, perto da península ibérica, o fim do mundo até então conhecido. A patroa da ilha é a bela ninfa Calipso que se apaixona perdidamente pelo herói grego, estando disposta a desposá-lo e a conceder-lhe a imortalidade.

Mas a deusa Atena, lá numa assembléia do Olimpo, exige que o destino seja cumprido e que Júpiter tome as providências necessárias para o retorno de Ulisses a sua pátria. Obediente à vontade divina, Calipso aconselha o herói a construir uma jangada e iniciar a viagem de volta para Ítaca. Mais uma vez o deus Netuno provoca uma tempestade que arrebenta o barquinho. Atena salva o herói providenciando um véu que o impede de afogar. A nado e exausto chega na ilha Esquéria, onde é protegido pela bela Nausica, a princesa dos Feácios.

Eis o resumo da narração em flash-back, a retrospecção dos fatos que Ulisses conta ao rei Alcino, na ilha dos Feácios, situada no mar Egeu, não muito longe de Ítaca. A partir daí, a narração dos fatos continua no tempo linear. Ulisses recusa a oferta de casamento com Nausica, desejoso de, finalmente, após quase vinte anos de aventuras, retornar ao seu lar. Um navio feácio leva o herói adormecido na praia de Ítaca. Em sonho, a deusa Atena aconselha Ulisses a não revelar sua identidade, pois há mais inimigos a enfrentar, também na sua terra. Ele, então, assume a feição de um fugitivo da ilha de Creta e pede hospitalidade, sendo reconhecido apenas pelo velho cão Argos e pelos escravos Eumeu e Euricléia.

Apresentado ao filho Telêmaco, os dois preparam a vingança contra os pretendentes à mão de Penélope. Acontecera que, devido à longa ausência de Ulisses, pensando que ele estivesse morto, vários nobres de Ítaca queriam que a bela rainha escolhesse outro marido. Mas o coração de Penélope lhe dizia que o esposo estava ainda vivo e um dia voltaria. Por isso ficava adiando a escolha, dizendo que só se casaria de novo após terminar uma mortalha para seu sogro Laertes. Mas ela desfazia de noite o que tecia de dia. Os pretendentes, após descobrirem a artimanha, ficaram violentos, dilapidando o patrimônio da corte.

Quando seu pai chegou disfarçado, Telêmaco aconselhou sua mãe a escolher como esposo o vencedor da prova do machado: usando o arco de Ulisses, os candidatos deviam fazer atravessar uma flecha pelo buraco de doze machados enfileirados. Ninguém conseguiu superar a prova. O estrangeiro, então, pediu permissão para também ele tentar. Ulisses superou o desafio, revelou sua verdadeira identidade e, com a ajuda do filho e dos antigos servos, acabou com os pretendentes. Penélope só se convenceu que ele era seu verdadeiro marido quando Ulisses lhe revelou segredos de alcova. O poema épico termina com a intercessão da deusa Atena junto a Júpiter para que uma paz duradoura reine sobre os soberanos e os habitantes da ilha de Ítaca.

O valor estético e educativo da Ilíada e da Odisséia é atestado pelas contínuas reedições dessas obras nas línguas mais diferentes dos cinco continentes. Apenas os livros da Bíblia superam os poemas atribuídos a Homero no mercado livresco internacional. E isso porque gregos, troianos, latinos e seus descendentes encontraram na poesia épica, além da beleza artística, ensinamentos de vida. Enquanto a Ilíada é a epopéia da guerra, a Odisséia é a epopéia do mar. O primeiro poema de Homero, mais antigo, retrata a luta dos gregos para a conquista de novos territórios. Neste estágio de civilização, o heroísmo guerreiro era fundamental.

Já a Odisséia espelha uma fase posterior, quando os gregos, deixando de ser nômades, se fixaram em cidades, chamadas póleis. Passaram, então, a descrever a vida nas cortes e nos palácios, usos, costumes, utensílios. A viagem marítima de Ulisses durou dez anos porque o poeta estava mais interessado em mostrar como viviam as várias povoações por ele visitadas do que o retorno do herói a sua terra natal. Enquanto na Ilíada predomina o valor dos homens nos campos de batalha, na Odisséia encontramos a valorização da família. Ulisses prefere o amor da esposa aos atrativos de deusas e rainhas, pois é a mulher que dá estabilidade ao lar. Vejam-se as belíssimas caracterizações de figuras femininas, como Penélope, Nausica, Calipso, Circe. Enfim, estamos perante uma concepção ética predominantemente conservadora e aristocrática, baseada na nobreza de sangue, na virtude, na honra, na sabedoria, na beleza. A presença dos deuses, que nasceram no tempo, mas se tornaram imortais, concebidos como representações de ideais humanos levados ao seu maior grau, atesta o desejo de superar a precária condição humana.

Atenas: o berço da nossa civilização

A cidade mais importante da Grécia leva o nome de uma divindade, Atena, cultuada em Roma com o nome de Minerva. Deusa da sabedoria e da guerra, nasceu já armada da cabeça de Júpiter, que lá a colocou para esconder o fruto de seu adultério com Métis, a personificação da Prudência. Apenas o s final distingue o nome da cidade do da deusa. Ao longo de longos séculos obscuros, ocorreu a unificação de vários povoados que, a partir do séc. VI, deram origem a uma cidade com uma estrutura política consistente. O apogeu deu-se sob o governo de Péricles (495-429). Em pouco mais de meio século de liberdade política, Atenas, que já tinha a herança da poesia épica (Homero) e didática (Hesíodo), criou a poesia lírica (Safo, Píndaro), trágica (Ésquilo, Sófocles, Eurípides), cômica (Aristófanes), as artes plásticas (especialmente a arquitetura), a historiografia, a retórica, as olimpíadas.

Sem dúvida alguma, a maior conquista da Grécia foi a instituição do regime democrático, que possibilitou alcançar tão alto grau de civilização. Péricles entendeu que o melhor tipo de governo é aquele baseado na vontade da maioria e não apenas de um indivíduo ou de uma elite dominante. E o sustento da democracia é a “meritocracia”, cada qual ganhando conforme o mérito, independentemente da classe social a que pertencer. Mas, no mesmo tempo em que o grande estadista estimulava o sentimento cívico, enaltecendo os valores da igualdade de todos perante a lei e a justa recompensa pelo trabalho realizado, ele, na prática, cultivava a demagogia, que se tornou a maior praga da democracia. Para angariar votos, ele inventou a “mistoforia”, a remuneração para quem ocupava cargos do governo, o financiamento público de espetáculos teatrais e outras formas de ajuda à massa popular. Este tipo de populismo foi condenado pelo filósofo Sócrates que censurou Péricles por tornar os cidadãos de Atenas preguiçosos e corruptos. E não sem razão, pois o estadista acabou sendo condenado por prática de peculato. Os atuais políticos brasileiros têm gloriosos antecedentes!

O espírito inventivo dos gregos transformou os principais mitos sobre deuses e heróis, transmitidos pela tradição oral, em obras de arte literária e plástica, tornando-os eternos. Mesmo quando acabou a crença no politeísmo grego, ficou sua mensagem cultural pela ação transformadora e indelével da arte. A partir do séc. IV, com a perda da independência (batalha de Queronéia, 338), submetida a Felipe II da Macedônia, Atenas começou seu declínio. Seu espírito inventivo se transformou em reflexivo, produzindo grandes filósofos, como veremos a seguir.

A capital da Grécia, então, se tornou centro de debates, passando a questionar as verdades religiosas, antes aceitas sem discussão. Atenas deu origem à primeira forma de Humanismo, pois o parâmetro para a vida em sociedade passou a ser o homem e não mais a divindade. A cultura grega apresenta a idéia inovadora de que os padrões existenciais estão embutidos na própria realidade, perceptíveis pelo raciocínio, sem precisar recorrer ao sobrenatural. Com o culto da filosofia, o pensamento se descobre a si próprio, se acostuma a refletir e dialogar, substituindo os dogmas religiosos pelas leis da lógica e do bom senso.

Sócrates (470-399): “Sei de nada saber”

O pensamento reflexivo, pelo qual os gregos começaram a questionar seus mitos sobre as divindades do Olimpo e a procurar a origem e a formação do universo, a partir da própria natureza cósmica, começou com os filósofos pré-socráticos. Mas, como afirma o escritor latino Marcuss Túlio Cícero, foi Sócrates

“o primeiro a fazer descer a filosofia do céu e a instalou nas cidades e a introduziu nos lares, obrigando-a a indagar acerca da vida e dos costumes, do bem e do mal”. O pensamento do primeiro grande mestre de filosofia está contido nos Diálogos do seu discípulo Platão que, por sua vez, foi mestre de Aristóteles. Esta tríade de pensadores gregos lançou a base de toda a filosofia no Ocidente. Sócrates não deixou nenhum escrito, por dois motivos: ele achava que não sabia nada e que se aprende algo só através do diálogo, da discussão. Seu método de ensino tinha duas etapas: pela “ironia”, ele fazia perguntas a seus discípulos, criando a dúvida sobre seus conhecimentos; pela “maiêutica” (= parteira, a profissão de sua mãe), fazia com que a verdade, que estava no espírito do interlocutor, viesse à luz da consciência.

Ele foi, portanto, o criador da “autognose”, o conhecimento a partir de si próprio, pois o saber está dentro de nós, não vem de fora. Ele nos ensinou a pensar com a nossa própria cabeça, questionando a doxa, a opinião comum, que é enganosa, e legitimando o “paradoxo”, o pensamento que vai “além” do parecer, buscando uma verdade verdadeira. Por colocar em dúvida as crendices e os valores morais da época foi acusado de corruptor da juventude e condenado à morte, tornando-se o primeiro mártir do livre pensamento. Sua figura é comparada à de Jesus Cristo, também ele vítima de uma massa ignorante que se deixa influenciar por líderes fundamentalistas, contrários a qualquer forma de evolução.

Para dar um exemplo do funcionamento do método socrático de ensinamento, praticado por perguntas e respostas, transcrevo um trecho da peça do comediógrafo grego Aristófanes, As Nuvens, adaptado por Christopher Hitchens (Deus não é grande, pág.237):

“Um fazendeiro das vizinhanças (da escola de ceticismo, em Atenas) se sai com uma das habituais perguntas obtusas feitas pelos fiéis, como: se não há Zeus, quem manda a chuva para regar as plantações? Convidando o homem a utilizar sua cabeça por um segundo, Sócrates (o filósofo funciona como personagem da peça) destaca que, se Zeus pudesse fazer chover, poderia haver chuvas em céus sem nuvens. Como isso não acontece, deve ser mais sábio concluir que as nuvens são a causa da chuva. Tudo bem, diz o fazendeiro, mas então quem coloca as nuvens em posição? Certamente deve ser Zeus. Não, diz Sócrates, que explica os ventos e o calor. Bem, nesse caso, replica o velho rústico, de onde vêm os raios para punir os mentirosos e os que agem errado? Os raios, é gentilmente explicado a ele, não parecem discriminar justos e injustos. De fato, freqüentemente é noticiado que eles atingem os templos do próprio Zeus olímpico. Isso é suficiente para derrotar o fazendeiro, embora ele depois abjure sua falta de reverência e queime a escola com Sócrates dentro”.

Também, pudera! O autor da peça, Aristófanes (445-386), era um rico proprietário de terras, crente reacionário e misógino. Conseqüência da postura filosófica de Sócrates era sua concepção da moral, que devia ser liberta de qualquer superstição religiosa. Ele achava que o único pecado do mundo era a ignorância, vista como a causa de todos os males. A maldade, dizia o velho mestre, não existe em si, sendo apenas o desconhecimento do que é o certo. Quando o homem comete uma atrocidade é porque ele não sabe o que está fazendo ou, melhor, ele pensa de estar fazendo a coisa certa. Efetivamente, quanto mal não se comete, pensando de fazer uma obra de bem. Hoje diríamos que de boas intenções está cheio o inferno!

Platão (428-348): o mundo das idéias

O discípulo mais famoso de Sócrates foi Platão, um rico aristocrata, fundador da Academia (do nome do herói Academos, amigo do mestre), um parque de Atenas onde se juntavam, além dos esportistas, também pensadores, poetas e artistas. Platão começou sua atividade de filósofo questionando a democracia de Atenas que condenara à morte Sócrates, “o mais sábio e o mais justo de todos os homens”. Politicamente, ele propunha uma república comunitária, onde seria abolida a propriedade privada, inclusive dos filhos que seriam educados pelo Estado. Na sua República, os cidadãos seriam divididos em três classes, de acordo com as três partes da alma humana: a razão, própria dos filósofos, a coragem dos guerreiros e o instinto dos trabalhadores. O Estado encaixaria cada indivíduo numa classe social conforme sua aptidão natural. Evidentemente, o governo da cidade estaria a cargo dos filósofos, a classe privilegiada.

Como se vê, apesar dos melhores propósitos, também os gênios escrevem besteiras, propondo uma ditadura educacional exclusivamente estatal, sem a participação da família, num contexto cultural eugênico de elite. O problema de Platão é que ele foi essencialmente um sonhador, vivendo no mundo das idéias, que ele inventou de uma forma gratuita, apenas como pressuposto teórico, sem nenhuma sustentação no plano da realidade. Foi por isso que o qualificativo “platônico” passou a ser sinônimo de ideal, utópico, algo inatingível. Sua teoria do conhecimento está baseada em duas hipóteses completamente indemonstráveis: a existência do mundo das idéias, essências puras e eternas, das quais os objetos do mundo real seriam apenas cópias imperfeitas; e a reminiscência, pela qual a alma humana, preexistente ao nascimento da parte material do homem, teria contemplado as idéias antes de juntar-se ao corpo, considerado a prisão do espírito.

Para o filósofo grego, portanto, saber é “recordar” o que a alma sabia antes da encarnação. Talvez, Platão, ainda ligado à tradição grega de criar mitos divinos para explicar comportamentos humanos, tenha inventado o “mito da caverna”, para entender o processo psicológico da aprendizagem, que se dá pela repetição e recordação. Geralmente, nós não aprendemos pela primeira vez. Precisamos voltar no tempo para que imagens e sensações amadureçam no nosso espírito. Um livro, um filme, uma música adquirem uma compreensão bem melhor quando revistados após anos de experiência. No livro VII de seu diálogo República, o filósofo narra a seguinte alegoria: numa caverna há homens amarrados por correntes, de frente para uma parede e de costas para a luz. Na parede são projetadas apenas as sombras dos objetos. O ser humano só percebe a aparência (os fenômenos) das coisas, pois a realidade (as idéias) está fora da caverna, na luz do sol, somente atingível pela atividade intelectual, pelo pensamento reflexivo. Na unidade do Sol estaria contida a trindade das idéias fundamentais: a do bom, do belo e do verdadeiro, que interagem, pois não existe Bondade sem Verdade ou sem Beleza.

Aristóteles (384-322): alma e corpo inseparáveis

Já Aristóteles constrói um sistema filosófico oposto ao do seu mestre Platão. Ele se recusa a aceitar qualquer raciocínio por hipótese, negando qualquer tipo de transcendência. Para ele nada existe além da natureza observável. As idéias das coisas estão na própria realidade, sendo percebidas pelo princípio da abstração, que separa o geral do particular. Por exemplo, a idéia de árvore está na própria árvore e não num outro mundo. Pela operação mental da abstração, posso distinguir o que é próprio de uma árvore específica (tamanho e cor das folhas, tipo de ramificação) do que é comum a todas as árvores (raiz, folha e tronco). O que é genérico me fornece a idéia da árvore, sem precisar recorrer a um mundo transcendental.

O sistema filosófico de Aristóteles se baseia no “ilemorfismo” (ilê = matéria e morfê = forma), a conjunção da matéria com a forma, do corpo com a alma. Os dois elementos são distintos, mas inseparáveis. É como se fosse uma folha de papel: conseguimos distinguir uma face da outra, mas não é possível separar os dois lados (esta imagem é do lingüista suíço Ferdinand de Saussure, 1857-1913, aplicada à distinção entre significante e significado). No ser humano, distinguimos a alma (a parte espiritual, que nos faz sentir, amar, pensar) do corpo (a parte biológica e vegetativa), mas não conseguimos imaginar como seria a existência de um corpo sem alma, nem de uma alma sem o corpo. Esta concepção filosófica de Aristóteles é a matriz de correntes realistas, positivistas e materialistas que se sucederam ao longo da cultura ocidental, enquanto seu mestre Platão será o inspirador das correntes idealistas, românticas e espiritualistas. Realmente, Aristóteles, o pedagogo de Alexandre o Grande, pode ser considerado o maior pensador da Grécia antiga. Em Atenas, deu aulas no Liceu. Sua escola era chamada de “peripatética”, porque discutia com os discípulos sobre cultura passeando pelos pórticos. Dante Alighieri, o imortal poeta da Divina Comédia, define Aristóteles como “o pai dos que sabem”.

Epicuro (342-270): o culto do prazer (hedonismo)

Carpe diem (aproveite o momento que passa): este verso do poeta latino Horácio, um admirador entusiasta de Epicuro, se tornou proverbial, pois sintetiza uma doutrina que coloca na busca do prazer a finalidade de qualquer atividade dos seres vivos. O homem estuda e trabalha para adquirir posição social e dinheiro, de que se serve para satisfazer, da melhor forma possível, seus dois instintos básicos: a conservação própria, pela alimentação, e da sua espécie, pelo acoplamento sexual. Sábio, porém, é quem usa o prazer de uma forma ponderada, pois qualquer excesso é prejudicial: se comer menos do que precisa, pode sofrer por inédia ou anorexia, se comer mais, estará sujeito aos males causados pela obesidade. Portanto, in médio stat virtus (a virtude está no meio-termo), citando outro verso do epicurista Horácio.

As poucas notícias sobre o filósofo grego Epicuro, considerado, como Sócrates, um “mestre” de vida, nos foram transmitidas por discípulos e admiradores. Sabemos que lecionou em várias cidades da Grécia, em Atenas inclusive, pregando o Atomismo de Demócrito, com uma postura materialista. Mas ele passou à posterioridade pela sua doutrina moral, fundamentada no Hedonismo (do grego hedone = prazer), que prega o equilíbrio entre os prazeres possíveis. Epicuro foi o primeiro pensador ocidental a negar claramente a possibilidade da existência de uma “providência transcendental”, de um Deus preocupado com suas criaturas. Num fragmento de seus escritos, lemos:

“Ou Deus pode e não quer evitar o mal: então não é bom;

ou quer mas não pode: então não é onipotente.

Em cada qual das duas hipóteses: ele não existe!”

A contradição da existência do mal, junto com a crença na bondade divina, inquietou não apenas Epicuro, mas também muitos sábios posteriores que procuraram encontrar uma explicação racional. Santo Agostinho tentou resolver o dilema pela teoria do livre arbítrio: Deus deu ao homem a liberdade de fazer o mal e, portanto, ele pagaria o preço pela maldade cometida. Mas, e quando não há culpa pessoal? Como acreditar num Deus Onipotente e Misericordioso face à dor das vítimas inocentes de um terremoto ou de um desastre aéreo? Que dizer, então, da mortalidade infantil, de genocídios, de ódios étnicos, de bolsões de miséria extrema?

Em verdade, o mal, em qualquer uma de suas formas, constitui um mistério racionalmente inexplicável para quem acredita na existência de um Ser Transcendental que, por ser Deus, deve necessariamente ser “Perfeito”, possuindo todas as virtudes, no máximo grau, na virtualidade e na ação. O epicurista prefere não se inquietar com problemas religiosos insolúveis à luz da razão, com a morte e a hipótese da existência de outra vida, vivendo apenas o momento presente, da forma mais natural e prazerosa possível, atento apenas em respeitar a liberdade e os direitos do seu semelhante. Se alguém me perguntasse qual é meu credo, não teria dúvida em responder: não sou judeu, ateu, cristão ou islamita: considero-me apenas um epicurista!

Estoicismo: a virtude, acima de tudo!

Na Grécia antiga, quase concomitante com o Epicurismo, surge outra importante doutrina filosófica, mas em direção oposta. Enquanto o mestre Epicuro exaltava o prazer, Zenão de Cítio (335-264) ensinava que o sumo bem estava na virtude, no desapego aos bens materiais. Ele fundou a Escola do Pórtico (stoá, significa “pórtico”, o átrio sustentado por coluna onde o mestre discursava sobre filosofia) e teve ilustres seguidores, especialmente na Roma do 1° e 2° séc. d.C: Sêneca (60-39), Epicteto (55-135), Marcus Aurélio (121-180).

Conforme alguns estudiosos, a “teoria do justo”, apregoada pelo Estoicismo, estaria na base do Direito Romano, disciplina ainda hoje estudada nos cursos de jurisprudência. Os estóicos, como a maioria dos pensadores antigos, não acreditavam na existência de um ser fora do universo, preexistente e criador, pois, para eles, Deus era a própria totalidade do mundo. Todos os seres existentes (homens, animais, plantas, pedras) participariam desta forma de panteísmo (Deus está em todas as coisas), cada qual sendo uma partilha cósmica, de acordo com sua natureza. A morte, para os estóicos, não é aniquilamento, mas transformação, uma passagem para outro estado, no seio do universo. Segundo um profundo estudioso de Epicteto, Luc Ferry (Aprender a viver), as duas grandes fontes de infelicidade, apontadas pelos estóicos, são o peso do passado e as miragens do futuro. É preciso viver o momento presente, deixando de lado quer a carga pesada das tradições inibidoras, quer as ilusões de uma vida feliz num além misterioso.

Mas a doutrina estóica, também ela, não consegue superar a angústia existencial, causada pela finitude do ser humano. A idéia da transmigração da alma de um corpo para outro, que já se encontrava no Budismo e será retomada pela Doutrina Espírita, além de não ter nenhum fundamento lógico, não é satisfatória. O homem não gostaria de ser transformado num fragmento cósmico indiferenciado, nem, após sua morte, reencontrar os entes queridos sob forma de legumes. Por isso, o estoicismo, como as outras doutrinas morais da antiguidade, foi superado pelo nascente Cristianismo, que prometia ao homem um final bem mais feliz.

Cinismo: vida de cão!

A doutrina cínica tem muito em comum com o pensamento estóico, tanto que Crates de Tebas (365-285), discípulo de Diógenes de Sínope, o maior expoente do cinismo, foi mestre de Zenão de Cítio, o pai do estoicismo. A diferença pode residir no fato de que os estóicos construíram um sistema teórico-cosmológico acima do que os cínicos consideravam apenas uma prática de vida, uma moral sem nenhum fundamento filosófico. A origem etimológica do termo “cínico” é kunós, que em grego significa “cão”, o animal mais impudico. Na verdade, o cinismo defende um retorno à vida da natureza, com base apenas no instinto, rejeitando qualquer forma de cultura ou civilização, ensinando a viver naturalmente. Narra-se que Crates chegava a fazer sexo em público com sua esposa Hiparquia, imitando os animais.

Em verdade, o que houve foi uma crise de valores, pois os cínicos passaram a desacreditar nas instituições jurídicas, religiosas e sociais, incapazes de proporcionar felicidade ao homem. Apelaram, então, para formas de autarquia, às vezes chegando à anarquia. Ensinavam e praticavam a auto-suficiência, dispensando tudo o que fosse desnecessário para viver. A libertação não era apenas dos objetos materiais, mas também com relação aos sentimentos, não se preocupando com o sofrimento, a saúde ou a morte nem de si próprios, nem dos outros, familiares ou amigos Por isso, a palavra cinismo adquiriu a conotação, que ainda persiste hoje em dia, de indiferença e insensibilidade ao sentir e sofrer dos outros.

Alexandria: Helenismo (difusão da cultura grega)

Com a perda da independência da Grécia, ocupada pelos macedônicos, o centro de irradiação da cultura ocidental se deslocou de Atenas para Alexandria, cidade fundada em 331 a.C. por Alexandre Magno, no Delta do rio Nilo. Pela sua posição geográfica privilegiada, na confluência entre Oriente e Ocidente, a metrópole se tornou o ponto nevrálgico de diferentes civilizações. Ao Egito “faraônico” (de que trataremos no próximo capítulo) sucedeu o Egito helenístico, seguido sucessivamente pelo Egito romano, bizantino, muçulmano e, enfim, moderno.

Hélade, do grego Hellas, era o nome restrito à região central da Grécia antiga. Mais tarde, o nome heleno passou a ser usado como sinônimo de grego, em geral. Historicamente, os termos helenismo e helenístico indicam a difusão da cultura grega no período que vai das conquistas de Alexandre (331-323) no Oriente Médio e na Ásia até à dominação romana, que começou a partir do ano 31 a.C. Neste sentido, falamos de período helenístico como sinônimo de alexandrino. Ao contato com o mundo grego, os egípcios começaram a deixar de lado as antigas crenças, cultivando artes, ciência e filosofia. Alexandria, depois de Atenas e antes de Roma, tornou-se o centro irradiador de cultura, conservando e difundindo o patrimônio artístico, literário, filosófico e científico produzido pela criatividade do povo grego ao longo dos séculos anteriores. Na sua famosa Biblioteca se reuniam os maiores sábios da época (Arquimedes, Apolônio de Rodes, Teócrito, Calímaco, entre outros).

Mas o mundo helenístico, construído por Alexandre Magno, não se limitou ao Egito, pois ele levou a civilização grega para toda a bacia do Mediterrâneo e Oriente Médio, renovando culturas de vários povos que viviam nas margens dos rios Tigre e Eufrates. Babilônios e assírios, anteriormente à dominação dos grandes impérios da Pérsia (o atual Irá) e da Macedônia, devem ter tido uma civilização semelhante à dos egípcios. Escavações efetuadas, a partir da segunda metade do séc. XIX, colocaram em luz ruínas de antigas cidades (Assur e Babilônia, entre outras), exumando templos e palácios e revelando uma multidão de textos cuneiformes, com data provável a partir do ano 3.000. Tais descobertas contribuíram para o entendimento de vários trechos do Velho Testamento e de relatos de historiadores não religiosos. O helenismo teve o mérito de amalgamar as antigas civilizações formadas à margem dos rios Nilo, Tigre e Eufrates, realizando um sincretismo religioso entre elementos indígenas, politeísmo grego e a incipiente cultura latina. O deus grego Zeus é identificado com o romano Júpiter e o egípcio Osíris, assim como Afrodite com Vênus e Ísis.

A lição que podemos aprender de tal sincretismo é que a natureza humana é essencialmente a mesma, apesar de suas diferentes manifestações no espaço e no tempo. Não conformado com suas limitações, fraquezas e sofrimentos, o homem imagina a existência de seres sobrenaturais e de uma outra vida após a morte. Ele ergue os braços aos céus ou se prostra no chão, pedindo ajuda a divindades criadas a partir de elementos do mundo que ele conhece, mas conferindo-lhes poderes sobrenaturais. Invoca-sa a proteção dos deuses através de preces, ladainhas, procissões, oferendas, sacrifícios. Quando mais primitiva ou carente é a sociedade humana, mas necessidade sente de recorrer ao auxílio divino. Antigamente, como agora: veja-se a pieguice do povo frequentador das várias igrejas, especialmente evangélicas e muçulmanas!

ROMA: a cidade eterna e o culto da esmola

Um ditado popular afirma que “todos os caminhos levam a Roma”, mas a verdade é também seu contrário: “todos os caminhos partiram de Roma”. A cidade, alcunhada de “eterna”, situada no centro da Itália, é o ponto crucial da Europa e do mundo ocidental, geográfica e historicamente. Há duas lendas sobre as origens da caput mundi, o antigo centro do Império Romano e atual capital da Nação italiana e da Religião Católica. A primeira, mais antiga e idealizada, conecta as origens de Roma à civilização troiana (séc. XII a.C.), pois o herói Enéias, após o incêndio de Tróia, em busca de uma nova terra prometida pelo Fado, teria chegado até o Lácio, lutado contra os povos indígenas da região e casado com a latina Lavínia. Seu filho Ascânio, também chamado de Julo, teria dado origem à família Júlia, a que pertencia o imperador Otávio Augusto. Tal lenda encontra-se consagrada no famoso poema épico A Eneida, do escritor romano Virgílio, do séc.I a.C. Outra lenda remonta ao séc. VIII: o deus Marte engravidou a bela Réia Sílvia, filha do rei de Alba, consagrada à Vesta, a deusa da castidade. Deste amor proibido nasceram os gêmeos Rômulo e Remo que, jogados nas correntezas do rio Tibre, foram salvos por uma loba. Daí o símbolo de Roma ser a estátua de uma loba amamentando dois recém-nascidos. A imagem dos bebês pendurados nas tetas da loba se perpetrou por longos séculos no subconsciente dos italianos e hoje está a representar os políticos, divididos numa miríade de partidos, a sugar no peito da amada Pátria. Atualmente, a Itália e o Brasil estão travando uma acirrada disputa com a Grécia moderna para a conquista do troféu do país mais corrupto e mais leniente com a impunidade, entre todos os povos do Ocidente.

Criados por pastores, Rômulo e Remo fundaram a cidade de Roma. Rômulo acabou matando seu irmão por transgredir a ordem de não ultrapassar os limites estabelecidos por ele. Em seguida, o valentão perpetrou o que passou à história como o “Rapto das Sabinas”: para povoar a nova cidade, Rômulo, junto com um bando de primitivos, foi a uma festa na cidade de Sabina e levou embora várias moças. Enquanto os pais, irmãos e maridos das jovens raptadas organizavam a vingança, os romanos engravidaram suas mulheres que, portanto, impediram a luta entre as duas povoações. A união de antigos habitantes do Lácio foi o núcleo do que será mais tarde o glorioso Império romano.

Conforme esta segunda lenda, Roma foi fundada ao redor do ano 753 a.C e povoada por etruscos e outras etnias da península itálica. Aos poucos, todos os antigos povos da Itália foram dominados pelos romanos, que começaram a se preocupar com as instituições públicas para dar consistência ao Estado. Terminado o período arcaico da monarquia, quando se sucederam sete Reis, Roma passou a ser governada por dois cônsules, eleitos anualmente pelos dois partidos: o aristocrático (dos ricos = patrícios) e o democrático (dos pobres = plebeus). O órgão político superior era o Senado.

Roma iniciou seu caminho para se tornar uma grande potência com as duas Guerras Púnicas (de 264 a 201), subjugando os fenícios, cuja capital era Cartago, na atual Tunísia. Os pesados tributos dos cidadãos e os impostos que o governo romano cobrava das províncias dominadas acirravam as disputas políticas e engordavam o funcionalismo público. Logo começaram lutas intestinas pelo poder entre os dois partidos: de um lado, os irmãos Tibério e Caio Graco, tribunos do povo, seguidos por Mário, Catilina, Júlio César e Marcus Antônio; de outro lado, os aristocratas Sila, Pompeu, Cícero e Otávio Augusto.

Os idos de março (dia 15) de 44 a.C. é uma data memorável na civilização ocidental. Júlio César foi apunhalado até à morte, em plena luz do dia e no átrio do palácio do governo romano, por um grupo de Senadores, incluído seu filho adotivo Brutus, que conspiraram contra sua vida. Ele fora um grande general (conquistara boa parte da Europa Central, entre outras vitórias), um exímio escritor (De Bello Gallico e De Bello Civile, que tratam da conquista da Gália e da guerra civil na própria Roma) e um político de grande visão. Pertencente ao partido democrático, queria acabar com os latifúndios, distribuindo terras para os soldados que, voltando das guerras, não encontravam emprego. Continuara, assim, a luta dos irmãos Graco, assassinados por defenderem a reforma agrária.

Mas César encontrou a oposição de um Senado decrépito e conservador, temeroso de perder suas mordomias. Aparentemente, o motivo do assassínio era nobre: a defesa das liberdades democráticas, face ao perigo da instauração de um regime ditatorial. Júlio César, aproveitando-se do enorme prestígio popular, quer pelas suas vitórias militares, quer pela sua compreensão das necessidades do povo, poderia tentar um golpe de estado, fechando o Congresso. É difícil saber quais eram as intenções do grande líder. Uma coisa é certa: ele tinha consciência de que a corrupção dos costumes políticos tornara Roma ingovernável, precisando de uma nova ordem institucional.

E a história lhe deu razão: logo após a morte de César, não houve mais eleições livres. O poder foi arbitrariamente e por acordo nupcial (Antônio casou com Otávia, irmã de Otaviano) dividido entre o cônsul Marcus Antônio, a quem coube o domínio do Oriente e Otávio, sobrinho e filho adotivo de César, que ficou com Roma e a parte ocidental do império. Antônio estabeleceu sua capital em Alexandria e, repudiando a esposa Otávia, se casou com a ambiciosa e sedutora Cleópatra VII, última rainha da dinastia dos Ptolomeus. Ela, depois de enviuvar de dois seus irmãos (casara, sucessivamente, com Ptolomeu XIII e XIV), acabou seduzindo Júlio César que a levou para Roma. Após o assassinato do seu amante, voltou para Alexandria e, logo em seguida, enredou nas suas malhas amorosas o recém chegado novo chefe romano, Marcus Antônio.

Antonio e Cleópatra ampliaram o domínio de Alexandria no Oriente, subjugando várias províncias romanas, o que suscitou a vingança de Otávio, que declarou guerra aos dois e os venceu na batalha de Ácio, em 31 a.C, tornando-se o único dono do mundo romano. Marcus Antônio, acreditando na morte de Cleópatra, se suicida. Shakespeare deve ter-se inspirado no final desta paixão amorosa quando escreveu Romeu e Julieta. Aliás, o dramaturgo inglês compôs duas peças sobre os dois amantes da rainha do Egito: Júlio César e Antônio e Cleópatra.

Enquanto isso, em Roma, o Senado conferia a Otávio o título de Princeps, com o nome de Caius Julius Caesar Octavianus Augustus, e de Grande Pontífice, somando o poder militar, político e religioso. O regime de Roma passou de República a Principado, uma monarquia disfarçada, que logo após sua morte se tornou Império, permitindo a transferência do poder por herança genética. Adeus democracia romana! Mas o Principado de Augusto teve seus méritos. Em poucas décadas, de 31 a.C. a 14 d.C., Roma teve uma florescência comparável ao apogeu da Atenas da época de Péricles. Augusto foi, sem dúvida alguma, um déspota esclarecido. Ele conseguiu pacificar as correntes políticas internas e frear o ritmo de expansão externa, estabelecendo a pax romana, também chamada “Paz de Augusto”.

Convencido de que uma reforma de costumes não se faz pela força, mas pela mudança de mentalidade, com base em princípios ideológicos, Augusto se circundou das mais belas inteligências da época. Servindo-se da amizade do rico Mecenas, protetor de poetas e artistas, solicitou a colaboração de Virgílio e Horácio, as duas maiores expressões da Literatura Latina. Toda a obra do poeta Virgílio veio ao encontro do propósito de Augusto. O poema épico A Eneida, baseado na lenda da viagem do herói Enéias ao Lácio, conecta a origem de Roma com a antiga civilização troiana; os Carmina Bucólica, também chamados de Éclogas, exalta o amor, a alegria e dor dos que vivem no campo; as Geórgicas, poema didático em quatro livros, ensina o cultivo da terra, o plantio das árvores, a criação do gado e das abelhas. O poeta Horácio, por sua vez, em várias de suas Odes, exalta o espírito patriótico.

O programa de Augusto, porém, não teve êxito, pois seus sucessores transformaram o Principado numa ditadura imperial, cometendo as maiores barbaridades. O primeiro Imperador foi Tibério, enteado de Augusto, que assumiu o nome de Tiberius Julius Caesar, dando continuação no poder à família Júlia, institucionando o cesarismo. No início, Tibério foi um general de costumes austeros, mas, aos poucos, sensível à hostilidade do Senado e de outras forças políticas, tornou-se amargo e vingativo, estabelecendo um regime de terror. Até que, em 29 d.C., se refugiou na ilha de Capri, curtindo uma refinada devassidão. Seu sucessor, Cláudio I, gago e sofrendo de uma espécie de “delírio tremens”, mandou matar a escandalosa esposa Messalina, casando-se com Agripina, que o envenenou para que seu filho Nero o sucedesse no trono. Lucius Domitius Claudius Nero (37-68), embora educado pelo filósofo estóico Sêneca, não conseguiu escapar da tutela perniciosa da mãe Agripina. Após determinar o envenenamento de Britânico, o filho do seu antecessor Cláudio, mandou matar a própria mãe e obrigou seu mestre a suicidar-se. O incêndio de Roma, em 64, atribuído aos cristãos, segundo outra versão, foi provocado pelo próprio Nero como inspiração para compor um poema épico, imitando Homero que tinha cantado a destruição de Tróia.

O regime monárquico e hereditário levou, aos poucos, ao declínio do Império romano, apesar de sua expansão sob a família Flávia (Vespasiano, Tito Domiciano) e os Antoninos (Trajano, Adriano, Marcus Aurélio), em razão dos conflitos internos e das revoltas dos povos subjugados. Assim, em 410, os dois filhos do Imperador Teodósio I dividiram o Império em duas partes: o Ocidente latino e o Oriente grego. O Império Romano do Ocidente teve vida breve não resistindo às invasões de visigodos, francos, hunos e burgúndios: em 455 Roma foi saqueada e em 476 foi deposto Rômulo Augústulo, o último Imperador. Já o Império do Oriente durou por quase um Milênio, com sede em Constantinopla, a antiga Bizâncio, terminando em 1453, quando os muçulmanos ocuparam a antiga capital bizantina, dando-lhe o nome de Istambul.

A herança de Roma teve aspectos positivos e negativos. O grande mérito dos latinos foi ter helenizado os territórios por eles ocupados. Diferentemente de outros povos invasores e colonizadores, os romanos respeitaram e divulgaram a cultura grega. Este reconhecimento é dado por uma pessoa insuspeita, o poeta latino Horácio:

Graecia capta ferum victorem vicit

et artes intulit agresti Latio

“A Grécia conquistada (pelas armas), por sua vez, conquistou (pela cultura) o bárbaro vencedor (o povo latino) e introduziu as artes no Lácio selvagem.”

Roma adaptou à psique de seus habitantes e difundiu pelo mundo o conjunto da cultura que herdara da Grécia: a mitologia, a poesia épica e lírica, o teatro, a filosofia, as artes plásticas, as olimpíadas, a democracia. Talvez, a única contribuição propriamente latina fosse uma compilação de leis civis e penais, o chamado Direito Romano, disciplina ainda hoje ministrada em Faculdades de Direito. Ma o conceito de cidadania para todos e de justiça social ficou apenas no papel, nunca foi posto em prática.

A sociedade romana, como a grega e a oriental, não deixou de ser machista, escravagista e injusta. Os povos vencidos nas guerras eram considerados escravos; as mulheres não tinham direitos civis; a própria sociedade romana era dividida em estamentos: a classe dos senadores, dos cavaleiros, dos magistrados. Quem não tivesse recursos econômicos (a plebe) era chamado de “proletário”, pois o único bem que ele podia oferecer ao Estado era a “prole”, o filho, para servir como soldado ou como agregado a uma família nobre, vivendo de caridade. Nos períodos de carestia, de turbulência social ou na vigência de campanhas eleitorais o governo distribuía panem et circenses (o pão e o circo) para esconjurar as tentativas de revolta popular. Este costume não mudou muito: hoje se oferece ao povo carente e desinformado a bolsa família e os campeonatos de futebol, em troca dos votos para clãs de políticos se perpetuarem no poder. Nihil novi sub sole (“nada de novo sob o sol”): a história da exploração do povo ignaro se repete!

II – Egito faraônico – Religião Oriental – Espiritismo

O Egito dos Faraós

Anteriormente à formação da civilização ocidental, que se desenvolveu na Grécia, na costa asiática e em várias ilhas do mar Egeu e Jônico, cujo marco histórico foi a Guerra de Tróia (séc.XII a.C.), existiam civilizações bem mais antigas no Médio e Extremo Oriente, na Europa e nas Américas. Vejam-se, por exemplo, as culturas pré-colombianas de incas e astecas. Neste trabalho, faremos referência apenas a algumas formas de vida religiosa, ética e social, que influenciaram o modo de sentir e de pensar do homem ocidental

O Egito da época dos Faraós registra a mais vetusta civilização do homo sapiens que se desenvolveu nas margens do rio Nilo, tendo como cidades principais Mênfis, Tebas e Heliópolis. Os estudiosos enumeram 30 dinastias, distribuídas ao longo de três Impérios (Antigo, Médio e Novo), de 2800 até 331 antes de Cristo, quando o Egito acabou sendo dominado pela Macedônia. As construções mais famosas do Império Antigo são as Pirâmides de Quéops, Quéfren e Miquerinos, situadas em Gizé, burgo não longe do Cairo. Trata-se de monumentos funerários de base quadrangular, tendo quatro faces triangulares, com terminação em agulha, significando o desejo de ascender a Rá, o deu Sol. Perto da pirâmide de Quéfren, podemos admirar a estátua monumental da Esfinge, construída aproximadamente ao redor do ano 2500, representando um leão deitado, que está lá protegendo a necrópole, sendo que sua cabeça tem o semblante do Faraó.

Apenas para apontar a semelhança de cultos religiosos entre povos muitos diferentes no tempo e no espaço, lembramos que se encontram pirâmides também na Índia, na Tailândia, no México. A pirâmide de Chichén-Itzá é muito visitada, especialmente pelos turistas que freqüentam o balneário de Cancún. De modo semelhante, a Esfinge existe também na mitologia grega, ligada ao mito de Édipo. Outro mito comum à cultura egípcia e grega é a lenda sobre o famoso casal Ísis / Osíris. A deusa egípcia Ísis tem uma estreita relação com a figura grega de Io, sacerdotisa de Juno e amante de Júpiter, transformada numa novilha branca e perseguida pela ciumenta e vingativa esposa do pai dos deuses.

O mito de Ísis e de seu marido Osíris, considerado neto de Rá e governante bondoso, cujo corpo foi feito em pedaços pelo seu cruel e invejoso irmão Seth, teve várias versões. Segundo uma variante da lenda, que se encontra na obra De Iside et Osiride do historiador grego Plutarco (séc.II d.C.), Seth armou uma cilada: à traição, fechou o corpo do irmão num caixão e o jogou no rio Nilo. Ísis, a esposa fiel, humilhada e em pranto, não descansou enquanto não recolhesse as partes e reconstruisse o corpo do amado. A morte e a ressurreição de Osíris passaram a simbolizar o ciclo da natureza e da fecundidade: a semente do trigo que morre para tornar-se pão. Os romanos elevaram um templo a Ísis no campo de Marte, associando seu culto a Ceres (daí o termo “cereal”), o nome latino de Deméter, a deusa grega da terra, considerada princípio feminino universal, inesgotável reinício de todas as coisas.

Os primeiros documentos da civilização egípcia encontram-se nos Textos das Pirâmides (hieróglifos gravados nos túmulos) e no Livro dos mortos. O maior deus do panteão egípcio é Rá, adorado em On, antiga cidade na extremidade do Delta, a que os gregos deram o nome de Heliópolis, a Cidade do Sol. Os habitantes do Nilo davam-lhe vários nomes: de manhã é o “Horo do Horizonte”, em forma de falcão; de noite é “Atum Rá”, que visita o reino dos mortos, situado debaixo das águas. Os Faraós eram considerados seus filhos pela crendice do povo. Este status divino, mais tarde, será atribuição também de vários Imperadores romanos: Divinus Caesar Augustus.

A religião egípcia, como as outras religiões, apresenta aspectos divergentes. De um lado, notamos sinais de alta espiritualidade, apresentando Rá como deus único, criador e providente, conforme o seguinte trecho do Hino de Tell el-Amarna, gravado em várias sepulturas:

“Quando eras só, criaste a terra a teu bel-prazer,

Os homens, o grande rebanho e todos os animais,

Tudo o que na terra anda com os pés,

Tudo o que no ar voa com as asas,

Toda a região, a Palestina, a Etiópia, o Egito.

Pões cada qual em seu lugar, és a sua Providência,

Cada um tem seu alimento”.

Num hino posterior, talvez da época de Ramsés II, podemos notar até a concepção de uma Trindade na Unidade:

“Só há três deuses: Amon, Rá e Ftá;

Não têm semelhantes:

Quando esconde o nome é Amon,

Rá é a sua Face, Ftá o seu Corpo”.

Tal concepção de uma Trindade dentro de uma Unidade não deixa de ter uma certa semelhança com o Hinduísmo oriental (Brahman = Criador, Shiva = destruidor e construtor, Vishnu = mantenedor) e o dogma católico da existência de um único Deus, distinto nas três pessoas do Pai (Criador), Filho (Redentor) e Espírito Santo (Fecundador e Amor). Apesar desta aparente tríade monoteísta do Egito, há uma infinidade de outros deuses, venerados em lugares e épocas diferentes, inclusive com surpreendentes teogamias, pois os sacerdotes, para agradar os poderosos do momento, inventavam núpcias entre divindades e faraós. Os egípcios achavam que, no início, o país era governado por deuses e os faraós eram seus descendentes, ao longo das várias dinastias.

Outros aspectos importantes, que colocam os textos egípcios como fonte de outras religiões posteriores, politeístas ou monoteístas, são o culto aos mortos, a crença numa vida além do túmulo e o julgamento final. Uma doutrina escatológica foi se formando gradativamente. No começo, a outra vida era a própria tumba, onde o defunto recebia as oferendas. Construir mausoléus, capelas funerárias e embalsamar os corpos: tudo isso visava a conservação dos restos mortais. Mais tarde, a partir do Novo Império, se generalizou a crença na existência do “Amenti”, um paraíso celeste, onde os antepassados, reunidos debaixo do governo de Osíris, viviam felizes. Mas, para ter acesso a este reino de felicidades, o defunto era submetido a um julgamento perante uma corte de 42 juízes, que pesavam numa balança pecados e méritos.

De outro lado, a necessidade de tornar sensível a idéia da divindade levou os egípcios a formas de zoolatria (prestavam culto a animais: serpente, crocodilo, vaca, falcão, gato, entre outros), de animismo (crença em espíritos que animam todas as coisas do universo) e de totemismo (relação mística com um objeto, animal ou planta). A antropologia considera “totem” um animal sagrado, visto como ancestral ou divindade protetora de uma tribo ou clã. Chegamos assim a uma inversão de papéis: o animal já não é mais servo do homem, mas seu dono. O homem, quando renuncia à sua capacidade de raciocinar e sucumbe à idiotice de crenças em divindades, messias ou tiranos considerados salvadores da pátria, torna-se pior do que a besta. Não dá nem para imaginar com quanto suor e sangue de escravos foram erguidas as Pirâmides do Egito, civilização marcada por uma profunda diferenciação de classes sociais, que vai do homem-escravo ao Faraó-deus!

Talvez fossem essa concepção e prática de vida que levaram à decadência a religião egípcia e o sistema faraônico de governo, que não resistiram ao confronto com a civilização grega, bem mais evoluída, pelo culto da democracia, da filosofia, da ciência, da historiografia, da arte teatral e literária. Durante os três séculos do domínio macedônico, o helenismo invadiu a cultura egípcia, dando vida a um sincretismo entre as antigas divindades do Nilo e os deuses do Olimpo. O processo de aculturação se consumou na época do domínio latino, quando o Egito, rebaixado a colônia romana, perdeu seu fulgor e acabou aderindo ao Cristianismo. Na fase da hegemonia bizantina, o Egito foi dominado pelo Império Romano Cristão do Oriente. Com o advento de Maomé, a partir do séc. VII, as povoações que habitavam nas proximidades do Nilo começaram a sofrer as influências do Islamismo. Ao redor do ano mil, uma dinastia xiita fundou a cidade do Cairo, que se tornou o novo centro do Egito.

Buda: a religião na Índia, na China e no Japão

As conquistas persas (Dario, séc. VI) e macedônicas (Alexandre, o Grande, séc.IV) revelaram ao mundo ocidental a avançada civilização da antiga Índia, que remonta ao terceiro milênio antes de Cristo. A parte setentrional sofreu as influências da invasão de povos arianos, entre 2000 e 1500, que para lá levaram seus cultos religiosos e seus costumes. A mescla da religião dos invasores com os cultos locais deu origem ao Hinduísmo. Os Vedas, escritos em sânscrito (a língua indiana), são considerados sagrados, pois supostamente revelados pela divindade, compilados entre 1500 e 600 a.C. Os Vedas contêm, além de lendas sobre divindades e preceitos morais, hinos, encantamentos e rituais da Índia antiga. Juntamente com o Livro dos Mortos, do Egito, o I Ching (Livro das Mutações) , da China, e o Avesta, (Livro de Zoroastro, o nome grego do profeta iraniano Zaratustra), da Pérsia, Os Vedas estão entre os mais antigos textos religiosos existentes.

Além de seu valor espiritual, eles também oferecem uma visão da vida cotidiana na Índia antiga. Já os Upanishadas, escritos mais tarde (ao redor do séc. VII), falam mais especificamente da “revelação”, que os “budas”, os iluminados, teriam recebido de Brahama (brahman = Absoluto), o deus supremo, criador do Universo, tendo a seu lado Shiva (o Conservador) e Vishnu (o Destruidor), que compõem uma trindade dentro da unidade.

O Buda mais conhecido é Sidarta Gautama, mestre religioso e fundador do Budismo, no século VI antes de Cristo. Ele é visto como o último Buda de uma linhagem de antecessores, cuja lenda se perdeu no tempo. Conta o mito que ele atingiu a iluminação durante uma meditação sob a árvore Bodhi, quando mudou seu nome para Buda, que em sânscrito significa iluminado, desperto, esclarecido. A grande novidade proclamado por Sidarta é a rejeição do sobrenatural. Sua pregação, a rigor, não é religosa mas filosófica e espiritual, pois a doutrina do grande guru nos ensina que a salvação não está em nenhum deus transcendetal, mas na purificação do espírito humano. A partir da sua pregação, a religião indiana adquira nova feição, ficando difícil, hoje em dia, diferenciar o Hinduísmo (ou Bramismo) do Budismo, que se difunde, além da Índia toda, pela China, Japão e Tibet, chegando até o Brasil, e adquirindo aspectos diferenciados nos vários países.

A concepção de vida na cultura indiana, que se encontra nos antigos Bramanas, posteriormente retomada por Buda e seus seguidores, repousa na crença na transmigração do espírito após a morte ou reincarnação, na recompensa pelas nossas ações (dogma da retribuição numa vida futura, que pode ser humana, celeste ou infernal: teogonia em função do mérito) e pela libertação final do ciclo de reincarnações, atingindo o nirvana, que seria a cessação do sofrimento pelo fim do apego e do desejo.

Os termos sânscritos sansara, karma e nirvana podem ser assim interpretados: o universo todo é constituído pelo “ciclo” evolutivo (sansara) de nascimento, crescimento e morte; cada ser nasce com uma “marca” (karma) determinada pelas ações passadas, conforme a lei cósmica do plantio e da colheita; a salvaçao (nirvana) só é possível pela luta contra o karma com o fim de interromper o sansara e pôr fim às reicarnações e remortes para conseguir a beatidude e tornar-ase um “buda”, um iluminado, um sábio, um santo.

Mas o Budismo, como qualquer outra doutrina religiosa, tem suas contradições internas, bem como pontos inexplicáveis para quem lança mão da razão e não da fé cega. E isso porque, assim como os livros filosóficos do velho Bramanismo (Upanishadas), promovidos à dignidade de textos revelados, foram elaborados em círculos diferentes, produzindo diversas tradições, enriquecidas umas a custas das outras, também as escrituras búdicas nasceram em círculos diversos, remodeladas e codificadas como “palavras de Buda”, ao longo do tempo, pelo concerto da comunidade de seus fiéis.

Na verdade, nem o Grande Buda, Sidarta Gautama, conseguiu explicar pontos nevrálgicos de sua doutrona. Negada a transcendência, o nirvana seria a dissolução da personalidade como uma gota de água no oceano ou a alma imortal se reintegrando ao Cosmo? Ou seria apenas o livramento da dor, um pulo no nada existencial? Se a alma é puro complexo de sensações e pensamentos, a morte do corpo seria seu aniquilamento: o nirvana, portanto, seria limitado apenas à ataraxia, a ausência de preocupaçãoes neste mundo. O completo desapego está exemplificado num texto do primitivo budismo. O marido, resolvido a entrar na ordem religiosa, abandona mulher e filho e argumenta com a ex-esposa:

“Ainda mesmo que lançasse o filho aos chacais, ó miserável,

não me convencerias a voltar, pelo amor do nosso filho”.

Mas, tal pregação de insensibilidade e egoísmo contradiz textos que se encontram no budismo reformado, conforme a doutrina do “Grande Veículo”, onde a misericórdia é considerada o principal meio para a salvação, pois o amor de si implica no amor do outro:

“Os Budas, que são a paixão encarnada, adotaram todas as criaturas como se fôssem eles próprios”.

Se admitirmos a possibilidade da existência de uma alma separada do corpo, sendo a reincarnação a passagem da alma de um corpo para outro, é preciso responder, de uma forma convincente, a várias perguntas: se a alma de um recém-nascido é proveniente de outro corpo, o que acontece com o corpo abandonado? Se as almas, por serem espirituais, não se reproduzem, como explicar o contínuo aumento da população mundial? Haveria um estoque de almas vagando pelo espaço sideral na espera do nascimento de novos seres para neles se incorporarem? É indiscutível que vários princípios do Budismo, como de outros credos religiosos, não se sustentam à luz da razão. Filósofos, literatos, artistas e, especialmente, cientistas são mais aptos a responder às nossas inquietações existenciais do que profetas visionários que se acham “iluminados”, inspirados por alguma divindade. A tentativa de explicar a relação entre o princípio da materialidade (o corpo) e da espiritualidade (a alma) é conatural ao homem, como ser inteligente. Existia anteriormente à formulação da doutrina budista e será retomada posteriormente pela doutrina espírita.

Os Avestas, os livros sagrados do antigo povo persa, registram uma civilização que remonta ao século XX a.C. A religião, que passou a se chamar Zoroastrismo, foi codificado pelo filósofo persa Zaratustra, em meados do séc. VI a.C. Como lembramos acima, ao redor do ano 2000 a.C., o Norte da Índia foi invadido por povoações semi-nômades, originárias da Rússia, da Pérsia (atual Irã) e da Ásia Central. O povo ariano, cuja remota origem remonta a cinco mil anos a.C., talvez precedesse o egípcio no alcance de um certo grau de civilização. Os antigos Árias, que falavam uma língua (extinta há muito tempo) considerada a mãe de vários idiomas indo-europeus (sânscrito, grego, latim, alemão, entre outros), já tinham regras sociais, éticas e religiosas, chegando a dividirem a sociedade em castas.

O próprio nome arya, que em sânscrito significa “nobre”, indicava uma classe social. Sua época de esplendor aconteceu durante as dinastias arquemênidas (550-330), cujo mais ilustre descendente, o rei persa Dario II, venceu Medas e Babilônios, que tinham dominado os Assírios. Alexandre Magno, da Macedônia, herdou o imenso domínio dos arquemênidas (330 a.C.) e estendeu seu império sobre as cidades gregas e o Egito, chegando a conquistar boa parte do território indiano. Ele, que foi educado pelo filósofo Aristóteles, divulgou a cultura grega pelas regiões ocupadas, dando origem ao Helenismo, que acabou suplantando civilizações mais primitivas, fundamentadas predominatemente em crenças religiosas.

Os Avestas narram que o deus Ormuz, cerca de 16 mil anos atrás, apareceu ao profeta Yima, também chamado de Ram (na epopéia hindú Ramayama, o herói se chama Rama), revelando-lhe sua história e doutrina. Ormuz teria criado o mundo em seis etapas (olhem a semelhança com o livro bíblico do Gênesis!). A vida vegetal, animal e humana seria regida pelos princípios do Bem e do Mal, ambos emanações do deus eterno. A luta entre os espíritos bons e os espíritos da maldade duraria 12 mil anos, com a vitória final das forças do bem. Os justos, purificados pelas boas ações, conquistariam o paraíso. Essas crenças têm muito a ver com o Budismo.

O pensamento reflexivo, que iniciou na Grécia com os filósofos pré-socráticos, deu início à primeira forma de humanismo, desligando filosofia, ciência e arte da religião. A não conformação com a morte é vista sob outro foco. O filósofo Heráclito, que viveu em Éfeso, cidade grega da Ásia Menor, no séc. VI a.C., quase na mesma época de Buda e Zaratustra, ensinou que a realidade está em constante movimento, renovando-se continuamente. Explica isso pela bela imagem do homem que não consegue banhar-se por duas vezes nas mesmas águas de um rio. A concepção do pantarrei (tudo flui) de Heráclito se aproxima do sansara (a trasmigração) de Buda. Mais tarde, cientistas aprofundarão os conceitos de movimento e de evolução, revolucionando a cosmologia (o heliocentrismo de Copernico, Newton e Galilei) e a biologia (A Origem das Espécies, de Darwin).

A contribuição dos dois maiores filósofos da antiguidade, Platão e Aristóteles, dos quais já falamos no capítulo anterior, é fundamental para entendermos a relação entre a alma e o corpo. A “teoria das idéias” de Platão está bem próxima da doutrina de Buda por acreditar na existência das almas separadas do corpo, que é visto como uma prisão do espírito, e por achar que “o saber é um recordar”. Já Aristóteles, contestando seu mestre, nega a separação entre a alma e o corpo, considerando o ser humano constituido de matéria (ilê) e de forma (morfê). Este conjunto, chamado de ilemorfismo, é indivisível, pois a alma é a forma, o elemento espirítual (inteligência) do corpo. Com a morte da parte material dá-se também a morte do espírito, não podendo existir um corpo humano sem o funcionamento de seu cérebro. Corpo e alma são vistos como se fossem as duas faces de uma mesma página, distingüíveis, mas inseparáveis, usando a imagem de que se serviu o ligüista suiço Saussure para explicar a diferença entre significante e significado. Sendo assim, a doutrina budista da reincarnação só pode ser aceita por ato de fé, carecendo de qualquer argumento lógico.

O próprio conceito da “ataraxia”, o fundamento teórico da prática da meditação, acompanhada pelos exercícios de yoga, característica da espiritualidade indiana, não difere muito da apatéia de filósofos gregos. O Estoicismo, iniciado no séc. IV a.C. por Zenão de Cítio, ensinava que o Universo é regido pelo Logos, a Alma do mundo, um todo racional que envolve todos os seres. Portanto, todos devem viver conforme a lei universal da Razão, que rege o macrocosmo e o microcosmo. As virtudes cardeais (razão, coragem, justiça e autodisciplina) têm por base o conhecimento e, portanto, o culto da filosofia é indispensável. O ser humano chega à sabedoria e se aproxima da felicidade quando, pela prática da autodisciplina, alcançar a “apatia”, o estado psicológico da insensibilidade perante a dor ou o prazer, não sendo vítima de paixões. O desapego confere ao indivíduo um estado de tranqüilidade e de auto-suficiência, pois o livra da dependência alheia com relação à sobrevivência ou à satisfação de necessidades físicas ou emocionais.

Tecemos tais relações para evidenciar a influência entre teologia e filosofia, que constituem o caldo cultural de regiões ocidentais e orientais, assim como entre as várias religiões que precederam o advento do Cristianismo. No próximo capítulo, veremos como o Código Hamurábi, un conjunto de leis e normas da Babilônia do séc.XVIII, irá influenciar a composição da Torá judaica. Nada impede pensarmos que estes textos, junto com o Livro dos Mortos, que foi produzido no Egito quase na mesma época a que remonta o Pentateuco (séc.XII), cujo pressuposto autor, Moisés, teria vivido aproximadamente durante a dinastia de Ramsés II, teriam influenciadas as Escrituras persianas e indianas.

O Budismo, portanto, a última das grandes religiões anteriores ao Cristianismo, pode ser considerado uma mistura de vários credos, ressalvando a peculiridade do espírito oriental. Observamos, apenas como exemplo, a semelhança entre o Decálogo de Moisés e o Pentálogo de Buda, cujos cinco preceitos são: 1) não roubar; 2) não cometer adultério; 3) não mentir; 4) não assassinar; 5) não tomar bebidas alcoólicas. Trata-se de normas de vida que transcendem qualquer religiosidade, constituindo os fundamentos do viver em sociedade, pois implicam o respeito para com nossos semelhantes.

O Budismo é a religião principal não somente da Índia, mas também da China e do Japão. Na China, o sentimento religioso encontra-se registrado no antigo I Ching (Livro das Mutações), cuja escrita foi iniciada a partir do séc. XV a.C., após uma longa tradição oral. No século VI, quase contemporaneamente ao aparecimento de Buda na Índia, surgiram dois grandes sábios chineses: Confúcio (551-479) e Lao Tsé, o fundador do Taoísmo. Confúcio, também chamado o Venerável Mestre Kung, antecipou, de alguma forma, o pensamento do filósofo grego Sócrates, que irá ensinar a conhecer-se a si próprop (gnose te ipsum):

“Quem não sabe o que é a vida – ele perguntava –

como saberá o que é a morte?”

A meu ver, a grande contribuição de Confúcio para o progresso da humanidade é o estímulo ao trabalho. Qualquer tarefa bem executada, feita com amor, satisfaz o ego individual e torna o homem útil à sociedade. Tal filosofia de vida, diferentemente do quietismo indiano, se difundiu pelo Oriente, caracterizando especialmente a cultura japonesa e coreana. O outro sábio chinês, Lao Tse, também chamado de Laozi, ensinou o “caminho” (tao) que leva à harmonia entre os dois princípios universais: o Yang (“o brilho do sol”), o símbolo do calor, da claridade, da força, da racionalidade, da masculinidade; em oposição ao Yin (“o brilho da lua”), que caracterizaria o elemento feminino, o instinto individual.

No Japão, a religião original é o Xintoísmo, xintó significando “caminho dos deuses”. Ao contrário de outras religiões antigas e modernas, o Xintoísmo não possui um fundador específico, nem dogmas bem definidos. Conforme a tradição oral, cuja origem se perde na noite dos tempos, depois de sete gerações de divindades nascidas do próprio Cosmo, veio à luz o último casal, Izanagi e Izanami, ao qual se atribui o papel da criação do mundo. Os dois se uniram como macho e fêmea e do corpo de Izanami nasceram as oito ilhas que compõem o território do Japão. Na verdade, para os xintoístas, os deuses são personificações de forças naturais. Características de divindade eram atribuídas também aos antepassados e ao Imperador.

Mas, na medida em que a mensagem de Buda começou a se espalhar pelas ilhas japonesas, começou um sincretismo, colocando-se no mesmo panteão divindades xintoístas e budistas. A partir do séc. XII d.C. penetrou no Japão, proveniente da China, uma forma peculiar de Budismo, que passou a se chamar Zen (meditação), que deu mais importância à instrução de mestre para discípulo do que à doutrina escrita. O movimento “zen” deu origem à formação de um Budismo propriamente japonês, centrado na figura do samurai, um ideal de herói sábio e invencível, que ultrapassou as fronteiras do Japão.

Conforme releva Christopher Hitchens (Deus não é grande), não há uma solução “oriental”, no que diz respeito à religião. As pessoas que se cansaram dos ensinamentos do Velho e do Novo Testamento ou do Corão e procuraram refúgio em formas religiosas alternativas, buscando o nirvana pela prática da yoga, da vida contemplativa ou de dietas vegetarianas, também encontraram desilusão. Os conflitos étnicos e religiosos do Oriente são tão execráveis quanto os do Ocidente.

O Tibete, mesmo antes da dominação chinesa, sofria com governos monárquicos e hereditários, que impunham um domínio feudal, com punições hediondas e servidão do povo a uma elite monástica parasitária. O pacifismo oriental não deixa de ser um mito, pois são constantes os massacres entre tribos, motivados por diferentes etnias e credos. A ilha do Sri Lanka está arruinada pelas brigas entre budistas e hindus. O homem que, para superar o materialismo, adormece seu raciocínio e renuncia a sua faculdade crítica, em busca de uma “iluminação” interior ou transcendental, acaba jogando fora sua mente junto com as sandálias.

Doutrina Espírita: Allan Kardec, Chico Xavier, Gandhi

O moderno Espiritismo ou “Kardecismo” pode ser considerado uma acoplagem do antigo Budismo e Platonismo com o Cristianismo e a Parapsicologia, também chamada de Metapsíquica, uma disciplina que, a partir do final do séc. XIX, começou a estudar fenômenos que ultrapassam as leis conhecidas da natureza ou fogem da experiência comum. Seu fundador foi Allan Kardec (1804-1869). O fato extraordinário que motivou o professor francês foi o seguinte: em março de 1848, na cidade de Nova York, duas irmãs, Margareth e Katherine Fox, filhas de um pastor metodista, morando numa casa de madeira considerada mal-assombrada, passaram a ouvir estranhos ruídos. Incomodada, Katherine pediu que o “demônio” causador dos inexplicáveis ruídos repetisse as batidas que ela mesma produzira. O espírito teria atendido ao pedido da moça, inaugurando, assim, uma espécie de “telégrafo espiritual”, concomitantemente à invenção do telégrafo elétrico pelo cientista e pintor norte-americano Samuel F.B. Morse (1791-1872). Mediante a atividade de “médiuns” (meios, intermediários entre os Espíritos e os homens), perguntas verbais e mesmo mentais dos vivos podiam ser respondidas por uma série de batidas em código por parte das almas dos mortos. A faculdade mediúnica podia ser exercida também por outros sentidos humanos (vista, tato, olfato), chegando também à escrita diretamente ditada pelos Espíritos (psicografia).

Os fenômenos de comunicação com espíritos atraíram multidões e as irmãs médiuns ganharam muito dinheiro com isso, profissionalizando seus dotes. Houve investigações, desmentidos, confissões de fraude, seguidas de retratações, enfim, criou-se uma lenda sobre as irmãs Fox. Allan Kardec estudou as manifestações espíritas das irmãs norte-americanas e de outros médiuns, fenômenos paranormais (mesas girantes, levitação, telepatia) e, após uma série de experiências, passou a acreditar na existência das almas independentemente do corpo e da sua comunicação com as pessoas vivas. Então mudou seu nome de Hippolyte Léon Denizard Rivail por Allan Kardec, nome de uma encarnação anterior, e expôs sua doutrina, em forma de perguntas e respostas, na obra O Livros dos Espíritos (!857), cujos prolegômenos, capítulos e conclusão são assinados, entre outros Espíritos Superiores, por São João Evangelista, Sócrates, Santo Agostinho e Swedenborg (1688-1772), um visionário sueco que pregara a doutrina da Nova Jerusalém, segundo a qual o mundo invisível dos anjos e dos demônios influenciaria a nossa realidade cotidiana.

O Espiritismo tem em comum com o Budismo os conceitos de karma, sansara e metempsicose: a vida humana é um elo de uma cadeia de vidas, o passado determinando o presente, que irá influir no futuro, conforme um processo de melhoramento (pelas boas ações) ou degradação (por ações ruins). Citando Allan Kardec, ao pé da letra:

“Deixando o corpo, a alma reentra no mundo dos Espíritos, de onde havia saído, para retomar uma nova existência material, depois de um lapso de tempo mais ou menos longo, durante o qual permanece no estado de Espírito errante”.

É evidente a aproximação com a teoria das “idéias”, entidades espirituais, puras e absolutas, preexistentes à conjunção com os corpos, substâncias materiais, temporárias e enganosas, conforme imaginadas pelo filósofo grego Platão. Budismo, platonismo e espiritismo comungam a idéia de que a vida neste planeta é uma prisão, um castigo por pecados cometidos numa vida anterior, o homem sendo expulso de outro mundo e exilado neste de cá. O moderno budismo tibetano, com centro no mosteiro de Dharamsala, no norte da Índia, domínio do líder espiritual Dalai Lama, e com filiais em vários outros países, prepara crianças para serem tulkus, “pequenos budas”. A regra para reconhecer um ser re-encarnado é submetê-lo a um teste para ver se lembra da vida anterior. Há muitas rixas entre os monges para promover um protegido à condição de pequeno Buda.

Mohandas Gandhi é considerado o Jesus Cristo indiano. Alcunhado de Mahatma (a Grande Alma), Gandhi (1869-1948) é o mais moderno representante da espiritualidade hinduísta, relacionada com o antigo Budismo. De uma família indiana de classe média, estudou Direito em Londres, viveu por muitos anos na África do Sul, onde lutou contra o racismo da dominação britânica. Na sua obra Autonomia da Índia contesta o materialismo da civilização ocidental, propondo um ascetismo sem violência. Seu meio de ação inspirava-se no princípio do Satyagraha (reivindicação cívica da verdade). Para Gandhi, não pode existir paz verdadeira sem justiça social. Lutando contra qualquer tipo de violência e acreditando na possibilidade no desarmamento mundial e numa paz universal, passou à história como “o santo do século”, também chamado de novo Jesus Cristo por ter morrido pregando o amor entre os homens: foi assassinado por um extremista hindu, que tinha o ódio no coração.

A Doutrina Espírita comunga com o Cristianismo, além da crença num Deus transcendental, o conceito de moral fundamentado no amor ao próximo. Reafirma a regra universal de conduta que já se encontra, como veremos, no Código de Hamurábi, nos mandamentos de Moisés e na legislação de todas as grandes religiões. Esta moral é ensinada pelos Espíritos “superiores”, cuja função é recordar e complementar o que Jesus Cristo ensinou. Mas o kardecismo se distingue fundamentalmente do cristianismo pela negação da divindade de Jesus (Ele seria apenas o maior Espírito Superior reencarnado) e do apocalipse: a lei cósmica do plantio e da colheita, do prêmio às almas boas e do castigo aos maus, não se realiza no Juízo Final, mas através das várias encarnações neste mundo.

Do ponto de vista filosófico ou científico, a doutrina espírita não tem nenhuma sustentação, pois nem a razão, nem a ciência conseguem atestar a existência das almas separadas dos corpos, neste mundo ou num outro. Quanto a fenômenos para-normais, atribuídos a forças mediúnicas, não porque a ciência ainda não consegue explicá-los completamente somos autorizados a admitir uma intervenção sobrenatural. É preciso lembrar que os gregos primitivos, não conhecendo a origem dos raios, pensavam que fossem setas de fogo de Júpiter, lançadas para punir os humanos faltosos! Acontece que o inconsciente pode levar algumas pessoas, dotadas de um alto grau de percepção (mediunidade), a fazer coisas extraordinárias, aparentemente até milagrosas, sem que a autoria tenha que ser atribuída a entidades sobrenaturais. Há indivíduos que, num estado alterado de consciência, dizem e fazem coisas inacreditáveis, chegando a manifestações de xenoglossia: falam linguagens estrangeiras, desconhecidas, arcaicas, nunca ouvidas antes por nenhuma pessoa presente. Fenômenos de animismo, assim como os milagres religiosos, são mistérios que a ciência ainda não conseguiu plenamente desvendar. Shakespeare já disse que

“há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”,

mas isso não nos autoriza a acreditar na existência de um mundo transcendental. Allan Kardec pode ser considerado mais um profeta, um homem que, num certo momento de sua vida, começou a se achar um “iluminado”, que veio ao mundo para salvar a humanidade. No capítulo VII da Introdução do seu Livro dos Espíritos, ele afirma:

“Quando as crenças espirituais forem vulgarizadas, quando forem aceitas pelas massas e, a julgar pela rapidez com que elas se propagam, esse tempo não estaria longe, ocorrerá com ela o que ocorre com todas as idéias novas que encontraram oposição: os sábios se renderão à evidência”.

Ora, depois de mais um século e meio, o Espiritismo ainda não se afirmou como ciência, não passando de uma crença semelhante ao antigo Budismo. O grande mérito de Allan Kardec foi o de que, diferentemente de outros profetas, como Moisés ou Maomé, não apelou pela violência para expandir seu credo, pregando o amor e o surgimento de uma fraternidade universal, respeitando o sentimento religioso de todas as etnias. No seu túmulo, lemos:

“Nascer, viver, morrer, tornar a nascer e evoluir sempre. Esta é a lei”

Lutar pela evolução do ser humano, estando sempre disposto a adequar a fé às novas conquistas da ciência, é um dos aspectos positivos (junto ao repúdio de qualquer forma de violência) que diferencia o Espiritismo das três grandes religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, todas atreladas a dogmas fixos, imutáveis, impostos pelas autoridades eclesiásticas.

No Brasil, onde 40 milhões de cidadãos declararam cultivar o Espiritismo, o mais célebre divulgador da Doutrina Espírita foi Francisco Cândido Xavier (1910-2002), médium de Uberaba-MG, vulgarmente conhecido por Chico Xavier. Ele publicou mais de 400 livros psicografados, entre os quais relevamos Queda e ascensão da Casa dos Benefícios. Esta obra, conforme a crença, foi-lhe ditada pelo espírito Bezerra de Menezes, que deu nome a vários hospitais psiquiátricos em muitas cidades do Brasil. Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti (1831-1900), nascido no Ceará e formado médico no Rio de Janeiro, proclamou sua adesão ao Espiritismo em 1875 e dedicou sua vida à assistência dos pobres, passando à história como o apóstolo da caridade. Além da sua função social, o Kardecismo no Brasil visa melhorar a vida interior de cada um. Independentemente da crença na existência de almas fora de um corpo, de sua transmigração e de sua comunicação com os seres vivos, o Livro dos Espíritos pode ser aceito como uma boa leitura de auto-ajuda.

III - Moisés: as Tábuas da Lei e o Judaísmo

Como a civilização do Ocidente se divide em antes e depois de Cristo, assim a religião judaica tem em Moisés sua figura central. As três grandes religiões monoteístas têm uma origem comum, centrada na figura mítica do patriarca Abraão, conforme descrito por Moisés, seu descendente, que foi o primeiro historiador e legislador do povo hebraico: o Judaísmo: do Velho Testamento; o Cristianismo do Novo Testamento (Jesus, descendente de Abraão e Sara, via Isaac e Jacó, também chamado de Israel); e o Islamismo: de acordo com o Corão, Maomé descende de Abraão e Agar, via Ismael.

Conforme os relatos bíblicos, teríamos a seguinte genealogia: Adão( (depois de oito gerações) (Noé (Jafé, Sem e Cam)( de Sem (depois de mais oito gerações) ( Abraão, que casou com Sara e teve Agar como concubina. De Sara( Isaac( Jacó e Esaú. De Jacó, depois de 37 gerações, conforme o evangelho de São Mateus, nasceu Jesus, com base na tradição judaica. Já, pela tradição islâmica, apoiada no livro do Gênesis, outra mulher de Abraão, a serva egípcia Agar, deu à luz Ismael, considerado o ancestral dos muçulmanos.

Moisés, que viveu ao redor do séc. XIII a.C., é o personagem bíblico central, não apenas do ponto de vista mítico, mas também histórico, pois sua figura se encontra entre os Patriarcas, os lendários fundadores da religião judaica (a partir do séc.XVIII a.C.) e os Profetas, os mestres de doutrina e anunciadores da chegada do Messias, que se sucederam do séc.VIII até ao II a.C. A Bíblia foi compilada ao longo de mais de um milênio, contendo mitos, lendas, histórias, leis, profecias, ritos, poemas, orações. A história da formação dos textos bíblicos é muito complexa e controversa, devido o longo tempo que se passou entre a tradição oral e o início da escritura, sucedendo-se vários contadores de histórias e redatores.

O Velho Testamento (“Aliança” entre Jeová e o povo judeu) foi escrito na língua hebraica, com algumas passagens em aramaico. Os diferentes escritos passaram a compor uma antologia traduzida para o grego, entre 250 e 130 a.C. É a lendária “Versão dos Setenta” (Septuaginta), encomendada por Ptolomeu II para a célebre Biblioteca de Alexandria do Egito. A tradução da Bíblia para a língua latina, incluindo os quatro Evangelhos canônicos, chamada de Vulgata, foi supervisionada por São Jerônimo (342-420). Os demais textos do Novo Testamento foram reunidos num único volume apenas no séc. VI.

Moisés (séc.XIII a.C): libertador e legislador

Moisés foi o chefe carismático, libertador e legislador do povo de Israel, que lutou para que os antigos hebreus tivessem uma pátria, um conjunto de leis e uma religião monoteísta. Sua personalidade histórica foi envolvida, ao longo dos tempos, por inúmeras lendas sobre seu nascimento, a saída do Egito em busca da Terra Prometida, a travessia miraculosa do Mar Vermelho, o recebimento das Tábuas da Lei por Deus no monte do Sinai. O núcleo das notícias sobre a figura de Moisés está no Êxodo (“saída”, “passagem”), mas outros Livros Sagrados também falam dele, especialmente o Deuteronômio (“A Segunda Lei”), também denominado de 5º Livro de Moisés. Conforme a tradição judaica, ele seria o autor do Pentateuco, o conjunto dos primeiros cinco livros do Velho Testamento. No cântico final do Deuteronômio encontra-se a descrição da morte de Moisés, após a investidura do seu sucessor Josué. Evidentemente, trata-se de uma ficção literária, pois Moisés não poderia falar de sua própria morte. A não ser que dêsse uma de Brás Cubas, o protagonista de Memórias Póstumas, o famoso romance de Machado de Assis.

O núcleo histórico que sustenta os vários episódios lendários sobre a vida e os feitos de Moisés é a sujeição dos hebreus ao poderio egípcio. A história registra a presença de judeus no Egito, durante a XV e a XVI dinastia (1730-1580), quando Iksos (chefes de populações asiáticas) conquistaram a parte baixa do rio Nilo. Lá se instalaram algumas tribos de Israel, nômades em sua maioria ou provenientes dos arredores do monte Sinai, península desértica e montanhosa nas proximidades do Mar Vermelho. Avançaram, assim, no território egípcio, naquela época região rica e progressista. Lá trabalharam e tiveram certa prosperidade. A Bíblia narra que José, filho do patriarca Jacó, chegou a ocupar funções importantes na corte do faraó. Mas, quando os príncipes de Tebas derrotaram os Iksos, fizeram uma limpeza étnica, expulsando todos os estrangeiros e inaugurando o Novo Império dos Faraós. Provavelmente, as lendas sobre a vida e os feitos de Moisés e o êxodo dos israelitas do Egito têm como pano histórico o reinado de Ramsés II (1298-1235). Moshé, em hebraico, significa “retirado”. A tradução do nome Moisés, portanto, é “aquele que foi salvo das águas”. Segundo o relato bíblico, o Faraó deu a seguinte ordem a seu povo:

“Lançareis ao rio todos os indivíduos do sexo masculino que nasceram dos hebreus, e deixareis viver todas as raparigas”

Este trecho encontra-se no cap. 1° do Êxodo, onde o autor bíblico descreve a inveja dos egípcios perante a prosperidade dos hebreus no Egito e a conseqüente perseguição étnica, que culminou com a expulsão do povo judaico. Um recém-nascido, filho de um casal da tribo de Levi, o terceiro filho de Jacó e Lia, foi abandonado nas águas do rio Nilo. Uma filha do Faraó, enquanto tomava banho, ouviu o choro e avistou a criança. Apiedou-se, então, e o adotou como filho. A história de Moisés salvo das águas é pouco original, pois tem precedente (a lenda de Sargon, rei da Babilônia, 2300 a.C, metido num cesto de vime e abandonado nas águas do rio Eufrates) e subseqüente (o nascimento dos gêmeos Rômulo e Remo, os fundadores de Roma, no séc. VIII a.C., tirados do rio Tibre por uma loba e depois criados por pastores). Adulto, Moisés, ao defender um hebreu chicoteado por egípcios, comete assassinato e foge para a cidade de Madian, onde se casa com a filha de um sacerdote e tem um filho a quem dá o nome de Gersam. Enquanto apascentava o gado do sogro, teve a primeira visão sobrenatural, pela qual recebeu a missão divina:

“Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó...vai, envio-te ao Faraó, para que tire do Egito o meu povo, os filhos de Israel” (Ex., 3).

Moisés retorna à corte do Faraó e revela ser o enviado do deus de Israel para salvar seu povo. O Faraó recusa prestar homenagem a Jeová e a situação dos hebreus no Egito se agrava, passando a serem escravizados. Para obrigar os egípcios a libertar o povo hebreu, Deus envia dez pragas (as águas convertidas em sangue, as rãs, os mosquitos, as moscas venenosas, a peste dos animais, as úlceras, o granizo, os gafanhotos, as trevas, a matança dos primogênitos). A décima praga, além de ser a mais cruel, é a mais importante por instituir a Páscoa hebraica. Por ordem divina, Moisés convoca os anciãos do povo de Israel para imolarem carneiros, embeber ramos de hissope (planta medicinal) no sangue e aspergir as ombreiras das portas dos israelitas, com o fim de poupá-los do genocídio que iria acontecer:

“No meio da noite, o Senhor matou todos os primogênitos do Egito, desde o primogênito do Faraó, herdeiro do seu trono, até os primogênitos dos animais...Guardareis a festa dos ázimos (o pão sem fermento), porque, nesse dia, fiz sair os vossos exércitos do Egito. Guardareis esse dia de geração em geração como uma instituição perpétua” (Ex.,11).

O Faraó, primeiro deixou partir, depois perseguiu os hebreus até o Mar Vermelho, onde se deu o milagre da secagem das águas até a passagem dos judeus. Logo em seguida, as águas se reuniram, afogando o exército egípcio. Enfim, os filhos de Israel chegam ao deserto do Sinai, onde se dá a revelação mais importante do Velho Testamento: o Pacto de Aliança entre Jeová e o povo de Moisés, com a promulgação das Tábuas da Lei, contendo os Dez Mandamentos. Tendo como texto de base o cap. 20 do Êxodo (Bíblia Sagrada, ed. Missionários Capuchinhos, Lisboa, 1974), apresento uma síntese do Decálogo atribuído a Moisés, tecendo algumas considerações a respeito.

As Tábuas da Lei:

“O Senhor pronunciou, então, todas estas palavras: “Eu sou o Senhor, teu Deus, o que te fez sair do Egito, de uma casa de escravidão. Não terás outro Deus além de Mim. Não farás para ti imagens esculpidas, nem qualquer imagem do que existe no alto dos céus, ou do que existe em baixo, na terra, ou do que existe nas águas, por debaixo da terra. Não te prostrarás diante delas e não lhes prestarás culto, porque Eu, o Senhor, teu Deus, sou um Deus cioso que pune a iniquidade dos pais nos filhos, até à terceira e à quarta geração daqueles que me ofendem, e uso de misericórdia até à milésima geração para com os que Me amam e cumprem os Meus Mandamentos”. Eis, a seguir, os dez mandamentos resumidos:

1° Eu sou o Senhor, teu Deus. Não terás outro deus além de mim. Não farás ídolos.

2º Não tomarás em vão o nome do Senhor, teu Deus.

3º Lembra-te do dia de sábado para santificá-lo.

4º Honra teu pai e tua mãe.

5° Não mentirás.

6° Não cometrás adultério.

7º Não furtarás.

8° Não darás falso testemunho contra teu próximo.

9° Não cobiçaras a mulher do teu próximo.

10°Não cobiçarás a casa e outros bens do teu próximo.

Os primeiros três mandamentos podem ser agrupados num único item, pois visam estabelecer relações entre o homem e Deus, enquanto os outros sete estipulam as normas de vida dos homens entre si. A referência ao Egito, onde os hebreus haviam servido como escravos, deixa claro que Moisés queria mudar o tipo de religiosidade que fazia do Faraó um deus, ao qual eram dedicadas estátuas e templos com o fim de reforçar seu poder. O legislador hebraico parece não aceitar o sistema teocrático, que juntava o poder político e religioso numa única pessoa, nem os costumes politeístas, praticados no Oriente Médio, na sua época. Por isso, reuniu tribos aparentadas entre si, dando-lhes unidade política e religiosa.

O grande mérito de Moisés foi a organização da nação israelita a partir do culto atávico de tribos do Sinai ao deus Javé. O nome de YHWH,“Javé” (Yaveh ou Jeová são apenas variantes), conforme atestam estudos recentes, já era conhecido na Babilônia, a partir do ano 2.000, portanto, muito antes de Moisés, anterior até à época do patriarca Abraão. Este nome era tão sagrado que não devia ser pronunciado, sendo substituído pela palavra “Adonai” (Senhor). É lícito supor que Moisés não foi escolhido, mas foi ele a escolher essa divindade para conferir um padrão ético ao povo judaico. Na verdade, Moisés pregou uma monolatria e não um monoteísmo. Ele não negou a existência de outros deuses, mas ordenou que o culto externo fosse prestado somente ao deus do patriarca Abraão. A idéia do monoteísmo, a existência de um deus único, irá tomar consistência mais tarde, na época dos Profetas.

A proibição da adoração de imagens pintadas ou esculpidas visava evitar o politeísmo, muito comum na época, quando os deuses eram representados por ídolos, para que o povo pudesse adorá-los. Entende-se que os antigos hebreus, como outros povos daquela época, não tinham evolução espiritual suficiente para adorarem um Deus invisível. Mas o segundo mandamento criou controvérsias que persistem até hoje. Em primeiro lugar, esta passagem entra em contradição com outros trechos da Bíblia, onde Jeová ordena que se façam imagens. Se o próprio Moisés afirma que Jeová fez o homem a sua imagem e semelhança, ele admite certa configuração da divindade. De outro lado, esse preceito bíblico poderia valer apenas para o Velho Testamento, pois o Novo relata a vinda do Filho de Deus, Jesus Cristo, encarnado numa figura humana e adorado na forma de Crucifixo. Sem falar do culto que os cristãos prestam às imagens da Virgem Maria e de todos os Santos da Igreja Católica. Seria, então, uma nova forma de politeísmo? E como admitir que um mandamento tenha vigor apenas num tempo e num lugar se, para ser considerado divino, um preceito deve ter os requisitos básicos da imparcialidade, universalidade e atemporalidade?

A falta de qualquer uma das características apontadas acima nos leva a deduzir que a lei não provém de Deus, mas do homem que faz uso do Seu nome para impor a sua vontade. É o que faz Moisés servindo-se do nome de Jeová, não “em vão”, mas para legitimar suas Tábuas da Lei ao povo hebraico. Não nomear o nome de Deus em vão não implica apenas na condenação da blasfêmia (ofensa a Deus pela palavra), do sacrilégio (por atos) ou de qualquer outro tipo de insulto à religião ou de ultraje a fé numa divindade, mas também na utilização do nome de Deus para impor ideologias ou conseguir bens materiais. Isso vale especialmente para igrejas ou seitas religiosas que se servem do nome de Deus para explorar a boa fé de seus seguidores, prometendo recompensas materiais ou espirituais em troca do pagamento de dízimos ou da exigência de doações.

Também o 3° mandamento, que ordena santificar o sábado, deve ser entendido não como um preceito divino, mas uma necessidade fisiológica de qualquer ser vivo: o direito ao repouso, ao descanso, para recuperar as energias gastas durante vários dias de trabalho, evitando-se assim o esgotamento físico e mental. O dia de sábado ainda continua sendo considerado sagrado pelos judeus, enquanto os cristãos passaram a respeitar o domingo (do latim dominus = Senhor) como dia do Senhor, acrescentando outros dias festivos. A necessidade do descanso semanal é apenas uma característica humana impropriamente atribuída à divindade. Aliás, tudo o que está escrito no Gênesis sobre os trabalhos de Jeová na criação do mundo em seis dias é pura fantasia de Moisés ou de outro escrivão que redigiu o livro pressupostamente sagrado. Deus que, por definição, é onividente, infalível e eterno, estando, portanto, acima do tempo, não poderia afirmar coisas que seriam posteriormente desmentidas pela ciência humana, como demonstra a teoria da evolução, da qual falarei um pouco num próximo capítulo.

O 4º mandamento ordena honrar o pai e a mãe. Mais do que uma ordem divina, trata-se de uma exigência natural. Os pais nos dão vida, assistência, educação, amor. Se eles cumprirem o dever do exercício da paternidade, terão o direito de exigirem gratidão, respeito, afeto. Enfim, trata-se de uma reciprocidade, com base no princípio da relatividade: o pai não nasce antes do filho, pois ele adquire o status da paternidade no mesmo instante em que o filho vem à luz. Portanto, o 4º mandamento deveria ser complementado pela obrigação dos pais honrarem seus filhos, também. Infelizmente, o Velho Testamento é essencialmente patriarcalista, como a maioria das sociedades primitivas ou pouco desenvolvidas. O patriarca bíblico, como o pater famílias da Roma antiga, o capo di tutti i capi da máfia siciliana ou o chefe de famílias judaicas e muçulmanas, parece ter poder absoluta sobre os filhos, exigindo uma obediência cega, até na escolha da profissão ou de um parceiro para o matrimônio. Que dizer, então, da irresponsabilidade de pais e de mães que põem crianças no mundo sem terem condições materiais e espirituais para sua criação e educação. Há mães que abandonam crianças recém nascidas e pais que estupram ou prostituem as próprias filhas. A tais progenitores os filhos devem respeito? Se se faltar ao dever, como exigir direitos?

Os restantes seis mandamentos podem ser reduzidos a um só, ao 7º: Não Roubar, que implica no amor ao próximo. Com efeito, “não matar”, quer dizer, respeitar a vida do seu semelhante; “não cometer adultério” equivale a não desonrar a mulher do outro; “não dizer falso testemunho” é não faltar com a verdade, prejudicando um seu semelhante; e o último mandamento, bem abrangente, proíbe a cobiça de qualquer bem alheio. O preceito de não roubar, portanto, pode ser considerado o mandamento maior, que deveria sustentar a nossa vida social. Quem for educado a não roubar respeitará qualquer bem que não lhe pertença, seja privado ou público. A honestidade é o requisito básico para a construção de uma verdadeira cidadania. Já pensou se os políticos não roubassem tanto, se não houvesse corrupção e impunidade? Seria o Eldorado, o paraíso sonhado neste mundo!

A doutrina de Moisés

Os dez mandamentos, como outras leis de Moisés que constituem a Torá hebraica, na sua essência, não é matéria original, nem coerente. Portanto, não pode ser considerado objeto de inspiração divina. Eis alguns motivos:

1) O Decálogo é a realaboração de uma coletânea de leis existentes antes de Moisés. Trata-se do famoso “Código Hamurábi”, que exerceu grande influência na Palestina e em todo o Médio Oriente. Hamurábi (1793-1759), sexto rei da 1ª dinastia de Babilônia, ocupou outros reinos da Mesopotâmia e se tornou famoso por ter gravado numa coluna tumular rochosa um código de direito consuetudinário. Também no Livro dos Mortos, do qual os antigos egípcios colocavam alguns trechos nos sarcófagos para orientar as almas dos defuntos, encontramos normas morais semelhantes aos preceitos de Moisés. Os estudiosos afirmam que, anteriormente a Moisés e na Ásia Meridional, havia muitas lendas sobre tábuas celestes que haviam descidas miraculosamente à terra e comunicado conhecimentos secretos de caráter sagrado.

2) A Torá hebraica é um complexo de leis (agrária, familiar, penal, ritual), oriundo de costumes milenares e de caráter teocrático, de forma que a transgressão de uma lei civil era considerada um pecado contra Deus. Ora, sua codificação pressupõe um trabalho de desenvolvimento que começou antes e continuou depois de Moisés. A disseminação de normas éticas ao longo do Pentateuco e de outros livros, especialmente os didáticos (Jô, Salmos, Eclesiastes) prova que não houve “revelação” divina instantânea, diretamente dirigida a um Patriarca num tempo e num espaço delimitado.

3) A contradição sobre o castigo divino, apenas para darmos um exemplo entre as inúmeras incongruências que podem ser relevadas no Velho e no Novo Testamento, é outro fator que nos induz a não acreditar na existência de uma Palavra divina revelada ao homem. Repetimos a proposição do Gênesis (20, 5):

“Eu, o Senhor, teu Deus, sou um Deus cioso que pune a iniquidade dos pais nos filhos, até à terceira e à quarta geração dos que Me ofendem”.

Diferentemente, no Deuteronômio (24, 16) está escrito:

“Os pais não serão mortos pela culpa dos filhos, nem os filhos pela culpa dos pais: cada um será morto por seu próprio pecado”.

Em vista de que se, conforme afirmam rabinos e exegetas cristãos, Moisés é o autor dos dois Livros, é lícito perguntar qual dos dois textos bíblicos devemos considerar verdadeiro e, portanto, sagrado. Evidentemente, optaremos pela segunda versão, pois seria um absurdo supor que Deus seja menos justo do que um juiz humano que não transfere a culpa para um inocente. O primeiro texto, então, além da crueldade, atesta a mentira de Moisés, que enganou seu povo ao inventar uma revelação divina que nunca existiu.

4) O tratamento que Moisés dá à mulher é próprio de uma cultura (melhor dizer “barbárie”!) primitiva e machista, incompatível com uma inspiração divina. O profeta, no décimo mandamento, considera a mulher como um “objeto”, igual à casa do próximo, ao seu touro, ao seu jumento, ao seu escravo (mais um absurdo: um deus admitiria a escravidão humana?), que não deve ser “cobiçado”. O verbo utilizado nos enseja pôr em evidência mais uma estupidez: como um legislador pode proibir até o “desejo”, o ato do pensamento, algo que é incontrolável por natureza, proibindo-se não apenas o fazer, mas também o querer e o pensar?

5) É mais fácil entender que a “teofania” (aparição de Deus) do Sinai foi imaginada por Moisés para dar sustentação ideológica aos preceitos que se encontram no Decálogo, como a outras prescrições religiosas. Se Moisés dissesse: “eu” ordeno que o povo adore um único deus, que não mate, roube ou peque contra a castidade, evidentemente, seu discurso não teria a aceitação que teve. Colocando Jeová como sujeito da enunciação, o Patriarca dava credibilidade ao seu discurso, pois seria a palavra de Deus e não do Homem. Esta é a postura ideológica comum a todos os “profetas”, os homens que fingiram ou realmente se acharam inspirados por alguma divindade ao longo da história da humanidade. Se não fosse assim, ficaria difícil entender porque Deus privilegiaria o povo hebreu, confiando só a ele revelações sobrenaturais, em certa época e num determinado espaço, prejudicando os demais povos com a privação da luz e do socorro. Talvez seja deficiência mental minha, mas não consigo conceber um Deus faccioso, cruel, injusto! Evidentemente, esta descrição da onipotência, do arbítrio, da vingança ilimitada convém mais a um imperador assírio, babilônico ou persa daquela época do que a uma divindade, sendo a maior prova de que a religião é criação do homem, espelhando a mundividência relativa a um tempo e espaço circunscritos.

6) A moral judaica é incompatível com um Deus imaginado, pela sua própria essência, como um ser justo e misericordioso: sacrifícios de sangue humano (Abraão pronto a imolar seu filho Isaac) e de animais (o cordeiro na comemoração da Páscoa); obrigação do corte do prepúcio; sexo incestuoso (Lot seduzido por suas filhas); poligamia e subjeção das mulheres; a prática da escravidão; a transferência da culpa individual para a coletividade. Dir-se-á que os princípios éticos foram ministrados de acordo com as condições intelectuais e psíquicas daquela época. Mas tal concepção de Deus não é “demasiadamente humana”, como diria Nietzsche? Como preceitos limitados no tempo e no espaço puderam se tornar dogmas de fé, apresentados como verdades eternas e absolutas?

Os mitos bíblicos anteiores a Moisés

A Bíblia não fala apenas da história dos judeus (Velho Testamento) e do começo do cristianismo (Novo Testamento), mas também das origens da Terra e do Universo. A idéia de “início” dos tempos está contida na etimologia do primeiro livro: Gênesis tem como radical o termo “gene” (= nascimento), que deu origem a uma família de palavras pertencentes a línguas antigas e modernas do Oriente Médio e do Ocidente: genética, gineceu, ginecológico, genealogia etc. Enquanto o livro do Êxodo pode ser considerado uma teofania (a “fala” de Deus ao homem), o Gênesis é uma Cosmogonia (a “luta” entre os elementos do Universo). Podemos dividir o Gênesis em duas partes: a Criação do Mundo e de seus primeiros habitantes (1-11) e a História dos Patriarcas (12-50).

A fábula da criação do mundo

“No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra era informe e vazia. As trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas. Deus disse: “Faça-se a luz”. E a luz foi feita... Façamos o homem a nossa imagem...Concluída toda a obra, no sétimo dia Deus repousou”.

A concepção de Deus que aparece no Gênesis é de um Construtor que edifica uma obra grandiosa no prazo de uma semana. Os hebreus, como outros povos primitivos, imaginavam a terra, moradia do homem e dos outros seres vivos, como um disco plano e circular a boiar sobre as águas salgadas do abismo e em baixo do firmamento, acima do qual existia um mar de água doce, de onde derramava a chuva. No subsolo habitavam os defuntos, enquanto o andar superior era a residência dos deuses. Tal descrição está de acordo com as aparências, anterior ao conhecimento científico da natureza. Como dizia um filósofo pré-socrático, “o homem é a medida de todas as coisas”: só podemos expressar o que está dentro de nós ou ao alcanço da nossa percepção.

Se é assim, cabe inverter a expressão bíblica de que Deus fez o homem a sua semelhança. A verdade é exatamente o contrário: é o homem que cria os deuses conforme a imagem que ele tem das coisas. Se o Deus do Velho Testamento é apresentado como um ser prepotente, excludente, injusto, ciumento, vingativo, é porque os hebreus daquela época eram assim. Na medida em que o povo judeu vai evoluindo, sua concepção de Deus irá adquirir feições cada vez mais espirituais e universais. Tal “evolução” é um fato inegável, admitido por todos os estudiosos e exegetas dos livros considerados sagrados, sejam eles católicos, protestantes, rabinos ou muçulmanos. E aqui cabe a pergunta: se os crentes admitem a evolução do espírito humano, por que rejeitam a teoria da evolução da matéria biológica?

Como veremos ao estudarmos Darwin, o princípio universal da evolução da vida, seja ela orgânica ou inorgânica, material ou espiritual, é o grande achado da ciência moderna, a única resposta racionalmente possível face ao mistério do Universo. A teoria evolucionista, apoiada no princípio de que natura non facit saltus (a natureza não dá pulos), irá substituir definitivamente a teoria do criacionismo bíblico, regido pelo fiat lux (a luz apareceu de repente, apenas por ato da vontade divina). Mas é evidente que não se trata de vontade divina. Se Ele realmente existisse e tivesse criado o mundo nos moldes descritos no Gênesis, seria um Arquiteto bem ruim.

Damos apenas dois exemplos: como explicar a existência das plantas antes da criação do sol? Como criar o Universo todo em apenas seis dias, quando a ciência nos ensina que a passagem do caos para o cosmo levou bilhões de anos? Estas e tantas outras inverdades e contradições, não apenas cosmológicas, mas também éticas (ordenar o genocídio de crianças!), só podem ser atribuídas à ignorância e à maldade humana. Um deus nunca poderia cometer tamanhas monstruosidades.

Os “profetas” de todos os tempos e de qualquer lugar, líderes que, numa altura de sua vida, se sentiram imbuídos de um espírito divino, devem ser considerados como visionários que se serviram do nome de Deus para dar credibilidade à sua concepção do mundo e impor sua doutrina e suas leis. Quem comete erros só pode ser o homem, pois Deus, por definição, é o ser perfetíssimo, onividente, onipotente, sumamente misericordioso. Em todos os trechos bíblicos, portanto, por justiça, deveríamos substituir “Deus disse” por Moisés, Salomão, Paulo de Tarso... disse. O mesmo diga-se com relação ao Corão: quem afirma coisas é o homem Maomé e não o deus Alá!

A justificativa costumeira é que a Bíblia não deve ser lida ao pé da letra, pois ela contém sentidos simbólicos e didáticos, expressos através de imagens poéticas, que relatam realidades peculiares de tempos e lugares. Tudo bem, de acordo. Mas, então, perguntamos, qual é a diferença entre os escritos dos dois Testamentos e os poemas épicos que a tradição nos legou? A inspiração divina? Mas o poeta grego Homero, ao escrever a Ilíada e a Odisséia, também ele se sentiu inspirados pela divindade:

“Canta, o deusa, a cólera de Aquiles, filho de Peleu....”

Este primeiro verso do poema A Ilíada deixa claro que o poeta se considera um intermediário entre a divindade e a humanidade, um “vate”, um profeta que revela um saber proveniente de uma esfera superior. O mesmo diga-se com relação ao romano Virgílio, autor da Eneida, e do italiano Dante Alighieri, que escreveu a Divina Comédia. O grandíssimo poeta florentino é o enviado de Deus que, acompanhado pelo pagão Virgílio e pela sua angelical amada Beatriz, revela aos homens o que se passa no Inferno, no Purgatório e no Paraíso, conforme a doutrina católica medieval e a realidade histórica da Florença da época do Autor. Por que considerar, então, os escritos de Moisés “inspirados” por uma divindade e os dos outros poetas épicos desprovidos de sacralidade, se, do ponto de vista imaginativo e educativo, Homero e Dante são de longe bem superiores a qualquer autor de textos bíblicos ou alcoraicos? A única figura humana verdadeiramente sublime é Jesus Cristo, mas, infelizmente, ele não escreveu nada. O que sabemos dele foi redigido por intermediários, muito tempo depois de sua morte.

O pecado original: é proibido conhecer a verdade

Voltando à leitura do Gênesis, estamos no Éden, o Paraíso primordial, onde nossos ancestrais, Adão e Eva, viviam felizes, gozando dos dons preternaturais, que lhes conferiam as imunidades do trabalho, da dor e da morte. Mas o homem perdeu esses benefícios por cometer o pecado do orgulho: comeu da fruta da árvore que lhe daria o conhecimento do bem e do mal, igualando-se, assim, a Deus. Esta forma de soberba era chamada pelos gregos de Híbris, a presunção de poder ultrapassar, impunemente, os limites impostos por uma força superior. A figura mitológica de Prometeu está bem próxima da descrição bíblica: enviado por Júpiter na terra para fazer um ser diferente dos animais, o Titã pegou do barro e esculpiu uma massa em que colocou a fidelidade do cavalo, a força do touro, a esperteza da raposa e a avidez do lobo. Mas lhe faltava vida espiritual. Prometeu, então, roubou uma centelha do fogo divino para animar sua criatura. E Júpiter se vingou enviando Pandora com sua caixa de desgraças que se espalharam pelo mundo.

As duas narrativas, bem semelhantes, tentam explicar a origem da insatisfação humana, que não se contenta com sua condição precária, querendo sempre saber e obter mais. O que causa espécie, quer no mito bíblico de Adão, quer nas lendas gregas de Prometeu e de Édipo, é a transmissão da culpa de pai para filho, de geração para geração. Conforme a justiça humana, nenhuma culpa é transferível de uma pessoa para outra. Os filhos podem herdar a “pena”, ser vítimas de ações desastrosas feitas pelos pais, mas nunca a “culpa”. Porque Adão e Eva comeram a maça nas origens da criação da raça humana, ainda hoje, após milhões de anos, uma criança e sua mãe herdam não só a conseqüência desse pecado, a dor do parto, mas também a culpa, necessitando da água batismal para lavar a alma. E quem não receber a água benta na cabeça será um excluído do reino do céu. Coitados dos homens que tiveram a infelicidade de viver antes de Cristo ou de não encontrar um padre ou um pastor que os batizasse!

Na verdade, o mito da “queda” de Adão é, por si só, um absurdo, algo que ofende a inteligência humana. Se Deus criara o homem livre, feliz e imortal, por que o sufocou com uma proibição impossível de obedecer? Se é próprio da natureza humana o “querer saber”, pois o suposto Criador fez o homem com um cérebro dotado de neurônios, as células do pensamento, por que, então, a ordem de manter o homem na ignorância? E se Ele, como ser onividente e onipotente, sabia de antemão que Adão não teria resistido ao sabor da fruta, por que o submeteu ao fracasso? Algum pai humano assistiria indiferente à desgraça de um filho, se pudesse evitá-la, apenas para salvaguardar seu livre arbítrio?

Pior é que o culto à ignorância, a proibição do querer saber, ainda persiste na sociedade moderna. Se há algo em comum em todas as religiões é a recusa de aceitar o raciocínio lógico, o bom senso, a realidade histórica, a verdade científica. Mandam simplesmente acreditar no que alguns exaltados, achando-se inspirados por uma divindade, disseram milhares de anos atrás. E alguns homens, que tiveram a ousadia de refletir por conta própria, diferenciando-se do que Nelson Rodrigues chamou de “unanimidade burra”, foram considerados loucos e castigados. A literatura tem páginas admiráveis sobre este tema: O elogio da loucura, do humanista holandês Erasmo de Roterdam; O alienista, de Machado de Assis; Assim falou Zaratustra, de Friedrich Nietsche; Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago.

A Arca de Noé

Adão, que tinha desobedecido a Deus, gera o filho Caim, que acaba matando o irmão Abel por ciúme, pois o Senhor gostava mais do churrasco do rebanho de Abel do que dos legumes oferecidos por Caim. Com tais ancestrais invejosos e fratricidas, não temos porque estranhar a continuada matança dos homens entre si, ao longo dos séculos! Talvez as lendas sobre Caim e Abel estejam ligadas à passagem da agricultura para a pecuária, ao longo da evolução da civilização hebraica.

Adão, que morreu com 930 anos, teve outros filhos. A linhagem de Set deu origem à série dos dez Patriarcas, anteriores ao Dilúvio, que constituem a ponte, sustentada por dez largos arcos, que liga Adão a Noé. Destaque para o patriarca Matusalém, que viveu 969 anos, vindo a ser o avô de Noé que, com 500 anos (e sem Viagra!) gerou Sem, Cam e Jafet. Essa cronologia bíblica gera muita suspeita, visto que os povos primitivos têm uma média de vida bem inferior à dos civilizados. Veja-se a grande mortalidade no meio das povoações indígenas, desprovidas de assistência médica, odontológica e hospitalar.

Sempre conforme a Bíblia, depois de uma época de heroísmo e grandiosidade, a humanidade se corrompeu e Deus se arrependeu de ter criado o mundo, determinando sua destruição. Quis salvar apenas o único homem justo, Noé, a quem deu a ordem de construir um enorme barco, onde pudesse abrigar sua família e um casal de cada espécie de animais e de plantas. Aí, abriu as torneiras do céu e mandou chover torrencialmente durante quarenta dias. As águas cresceram e levantaram a arca, fazendo-a flutuar, enquanto todas as outras criaturas desapareceram. Passado o dilúvio, Noé construiu um altar ao Senhor e ofereceu holocaustos. E Deus estabeleceu um Pacto de Aliança com Noé e sua descendência, prometendo nunca mais castigar a humanidade. E selou este acordo com a criação do Arco Íris.

Também o episódio bíblico do Dilúvio não é original. Nas mitologias antigas há várias formas de dilúvio descritas como castigo de Deus. Essa lenda mesopotâmica deve ter tido origem em inundações do rio Tigre ou Eufrates. Provavelmente, foi aproveitada por Moisés ou outro escritor bíblico para explicar a desordem cósmica: primeiro, Adão revolta-se contra Deus (humanidade vs divindade); depois, Caim contra Abel ( homem vs homem); enfim, as águas contra Noé (força da natureza vs homem). O Dilúvio é um dos pontos centrais do Velho Testamento, porque representa a mediação das três Alianças que o Deus bíblico teria estabelecido com o povo hebreu, estando no meio entre a Aliança que Deus fez com Abraão (escolha do Povo) e a que fará com Moisés (conquista da Terra Prometida). Certo é que o episódio bíblico do dilúvio está ligado à memória mítica de povos primitivos assustados por imensas inundações ocorridas quando se formaram o Mar Negro e o Mediterrâneo.

A Torre de Babel

Após o dilúvio, os três filhos de Noé, Sem, Cam e Jafet, se dispersaram, dando origens a várias tribos, que acabaram falando dialetos diferentes. Para explicar a origem da diversidade de línguas, o narrador bíblico reporta a lenda da Torre de Babel: Deus teria punido o orgulho dos homens que, pela construção de uma torre altíssima, queriam alcançar o céu. O Senhor, simplesmente, confundiu a língua dos pedreiros. A aspiração humana para o alto se encontra também no mito grego de Ícaro, que alçou vôo por cima do mar com duas asas de cera, que o sol derreteu. O fato histórico que está por baixo da narração bíblica é que na cidade de Babel (outro nome de Babilônia, então centro comercial do Oriente), chegavam mercadores de vários países, que falavam diferentes idiomas.

A verdade é que os primeiros onze capítulos do Gênesis, que acabo de resumir, constituem a pré-história da cultura judaica. A língua hebraica, em que foi redigida o Velho Testamento (descontando alguns trechos em aramaico), pertence ao ramo cananeu do grupo semítico. Sua origem remonta ao séc. X a.C., época em que se encontram registrados os primeiros documentos históricos, poéticos e litúrgicos. Tudo o que aconteceu anteriormente foi transmitido pela tradição oral e, só bem mais tarde, pessoas alfabetizadas começaram a pôr por escrito histórias que ouviram de seus antepassados. Se a isso acrescentarmos o fato de que os livros bíblicos tiveram vários redatores e em épocas diferentes, não é difícil entender a causa de tantas repetições, contradições, inverdades.

O Patriarca Abraão (séc.XVIII)

Abraão é o Patriarca ao qual estão ligadas as três grandes religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Pouco sabemos sobre sua origem histórica. Os estudiosos acham que foi um chefe de um clã arameu, tribo seminômade, que penetrou na região de Canaã (atual Palestina), proveniente da Mesopotâmia, entre o séc.XIX e XVIII. A opinião convergente é que Abraão viveu uns seis séculos antes de Moisés. Segundo a narração do Velho Testamento, Abraão foi escolhido por Deus para dar uma pátria às tribos hebraicas, que eram nômades. Ele instalou seu clã na cidade de Hebron, na região da Judéia (daí a etimologia do povo “hebreu” ou “judeu”), exercendo atividade pastoril.

Seu neto Jacó e seu bisneto José foram morar no Egito, no delta do Nilo, onde, como vimos, também viveu Moisés. A verdade é que, entre 2000 e 1500, a maioria dos povos da Ásia Ocidental e do Médio Oriente já havia sofrido influências dos impérios da Babilônia e do Egito, que apresentavam civilizações bem mais desenvolvidas. Somente no fim do séc. XIII o Egito cessou de exercer seu domínio sobre as cidades-estado da Cananéia. Portanto, ao falarmos de “êxodo”, não sabemos ao certo se foram os hebreus que saíram do Egito ou os egípcios que deixaram a região de Canaã. Tribos, que habitavam a região do Sinai, adoravam Jeová e haviam vivido sob o domínio egípcio, talvez tenham tido a impressão de que haviam sido libertados do Egito, mas sem sair de sua própria terra.

Seguindo de perto o relato bíblico, conforme o Gênesis: Abraão casou com Sara, mas não teve filhos. Por comum acordo do casal, o patriarca engravidou a escrava egípcia Agar, que deu à luz a Ismael. Deus apareceu a Abraão e fez com ele uma Aliança: ele seria o pai de um menino que nasceria, milagrosamente, do ventre estéril de sua velha esposa, cuja descendência dominaria o mundo. Abraão e Sara, então, geraram Isaac, que se tornou o pai de todos os judeus, enquanto Ismael daria origem ao povo muçulmano.

A circuncisão: o batismo pelo sangue

O pacto estabelecido entre Jeová e o patriarca Abraão, que implicava a promessa da Terra de Canaã (a atual Palestina), tinha, como contrapartida, a obrigatoriedade da circuncisão, que se tornaria o batismo dos hebreus. Trata-se de uma mini-cirurgia para remover o prepúcio, a pele que envolve a cabeça do pênis, feita pelo mohel, a pessoa experta nesse ofício, sempre no oitavo dia do nascimento da criança. Em algumas sociedades muçulmanas, também os bebês do sexo feminino são submetidos ao ritual da circuncisão: a raspagem do clitóris e dos grandes lábios, seguida pela costura da vagina, deixando apenas uma pequena abertura para a passagem do sangue e da urina. Há várias hipóteses para a explicação de práticas tão nojentas. A circuncisão seria um rito preparatório, um vestígio simbólico de sacrifícios de homens e de animais à divindade para obter proteção? Uma medida higiênica e profilática para impedir a acumulação da secreção genital com o fim de evitar infecções? Provocar o enfraquecimento do prazer sexual? Este último objetivo parece o mais plausível, pois é comum a todas as religiões dominar a sociedade pelo controle do instinto sexual.

É preciso também salientar que a circuncisão não foi uma invenção de Moisés. Os hebreus assimilaram o rito da circuncisão dos egípcios e, mais tarde, ensinara-o aos muçulmanos, via Velho Testamento. Já os cristãos, de uma moralidade menos cruel, seguindo o exemplo de São João Batista, substituiram o batismo de sangue por um batisma incruento, mediante o uso da água, que purifica sem machucar. De qualquer forma, temos que admitir que a mutilação das genitálias infantis não é compatível com o argumento do “projeto”, a necessidade da existência do grande Arquiteto, o inteligente criador do universo: por que Deus faria nascer uma criança com o prepúcio para depois ordenar seu corte? Um bebezinho, que já nasce chorando pela desgraça de ter vindo ao mundo, logo deve ser submetido à dor de um derramamento de sangue. Tamanha crueldade não pode ser atribuída à vontade divina, mas apenas à estupidez humana.

O sacrifício de Isaac: a suma vergonha divina e humana

Deus pede a Abraão o sacrifício de seu filho único (Ismael, por ter sido gerado por uma escrava, não era considerado seu filho!) para testar sua fidelidade. O patriarca, obedecendo à voz do Senhor, ata as mãos e os pés de Isaac, coloca-o sobre o altar e pega num facão para degolar a criança. Mas um anjo intervém e substitui o menino por um carneiro para o sacrifício. Este episódio deixou uma mancha indelével na história do Velho Testamento. É inconcebível que um pai, seja ele deus ou homem, tenha a coragem de cometer um ato tão cruel! Vergonhoso é para quem ordena (Deus) e para quem obedece (Abraão). Pior é perceber que o patriarca conhecia muito bem o procedimento do sacrifício sangrento: prepara a lenha para o holocausto, amarra o garoto sobre ela, levanta a faca pronto a matar a criança como um animal.

E esse não é o único caso na história das religiões. Lembro apenas o sacrifício de Ifigênia: estamos na Grécia do séc. XII a.C. (quase na mesma época do bíblico Moisés), no início da Guerra de Tróia. Agamenão, o poderoso chefão da coligação grega, se vangloria de ser melhor caçador do que Diana. A deusa, então, se vinga exigindo o sacrifício de Ifigênia, a jovem filha de Agamenão. O pai, obedecendo à vontade divina, manda vir a filha da cidade de Micenas, com o pretexto de querê-la casar com o herói Aquiles. Mas ela encontra o altar, não preparado para o matrimônio, mas para o sacrifício humano. E também aqui, a divindade, no último instante, se apieda da jovem, substituindo-la por uma cerva. O poeta latino Lucrécio, ao comentar este episódio da mitologia grega na sua obra De Rerum Natura (Sobre a natureza das coisas), exclama:

Tantum religio potuit suadere malorium!

(Até que ponto a religião pode incentivar o crime!)

Este grande poeta romano viveu no primeiro século antes de Cristo e apresentou poeticamente a teoria atômica de Demócrito, o filósofo grego que tentara explicar, de uma forma materialista, a origem e a constituição do Universo. Lucrécio assumiu também a missão de divulgar os princípios éticos do filósofo Epicuro, que ensinava serem a ignorância e o medo os sustentáculos de qualquer religião. Ele antecedeu, por mais de dois milênios, os atuais pensadores Christopher Hitchens (Deus não é grande) e Richard Dawkins (Deus, um delírio), entre tantos outros, que demonstram como as religiões são nocivas ao desenvolvimento da civilização humana. Na verdade, ao longo dos séculos, sempre existiu gente que, fazendo uso da razão e do bom senso, contestasse os dogmas religiosos e o princípio da autoridade divina ou humana. Mas foram vozes isoladas e abafadas pelo poderio econômico, que se serve da religião para impor suas ideologias. A grande massa popular, pobre e ignorante, sempre foi (e continua sendo) vítima de impostores religiosos ou políticos.

Volto ao resumo do relato bíblico. Isaac, salvo do sacrifício, casou com Rebeca, que gerou Esaú e Jacó. Eram gêmeos, mas Isaac foi o primeiro a vir à luz, puxando Jacó que se segurou no seu calcanhar. Chegados à mocidade, porém, Esaú vendeu seu direito de primogênito por um prato de lentilhas, e casou, ao mesmo tempo, com duas mulheres, que lhe atormentaram a vida. Jacó vai para a Mesopotâmia, onde também ele, mas no prazo de uma semana, casa com duas jovens, as filhas de Labão, Lia e Raquel. Trabalha sete anos para conseguir a mão da amada Raquel, mas, na manhã seguinte à noite de núpcias, percebe que dormira com Lia, a filha mais velha de Labão, que o enganara, exigindo a promessa da obrigação de mais sete anos de trabalho para consentir seu casamento com Raquel. Terminado o contrato de trabalho, Jacó volta para a região de Canaã, levando consigo Lia e Raquel, além de seus filhos e de todos os bens de Labão. Deus aparece a Jacó e lhe troca o nome: passaria a se chamar Israel. Raquel morre de parto ao dar à luz Benjamim e é enterrada em Belém. O penúltimo filho de Jacó, José, preferido pelo pai e, por isso, odiado pelos irmãos, é vendido a caravaneiros que o levam para o Egito, onde é comprado pelo poderoso eunuco Putifar e é apresentado ao Faraó como intérprete de sonhos. Por isso é promovido e pode ajudar seu pai e os irmãos que o seguiram no Egito. O Gênesis acaba com os funerais de Jacó.

Os Profetas : do Êxodo à última Diáspora

Como temos visto anteriormente, seguindo o relato bíblico, Moisés, pelo Pacto da Aliança feito com o Senhor, teria tido a incumbência de construir uma unidade nacional. Para isso, libertou os judeus do jugo dos egípcios e, após quarenta anos de peregrinação no deserto ao redor do monte Sinai, acabou levando as doze unidades tribais para a região de Canaã (atual Palestina), a Terra Prometida. Conforme está escrito nos dois Livros de Samuel, redigidos bem mais tarde, ao redor do séc. VII a.C., Samuel, sucessor de Moisés, é o último dos Profetas-Juízes, pois seu sucessor, Saul, abdicou da judicatura em favor da realeza, tornando-se o primeiro Rei de Israel.

Mas a Monarquia se consolidou realmente com seu sucessor, Davi (1010-970), considerado o verdadeiro fundador do Estado hebreu. Ele venceu filisteus, amonitas, arameus e edomitas, construindo um relevante império judaico e escolhendo a cidade de Jerusalém como capital, ao redor do ano 1000. Seu filho e sucessor Salomão (970-931) foi famoso pela construção de um templo maravilhoso e pela sua sabedoria. Recentes escavações num sítio de mineração na Jordânia confirmam a existência das lendárias “minas do Rei Salomão”, provavelmente no primeiro milênio a.C.

Mas Salomão, pelo seu pendor para a magnificência e a idolatria, levou os hebreus à decadência moral e à cisão política. Após sua morte, as doze tribos se separaram em dois reinos. O de Israel, ao Norte, de 931 a 721, com capital em Sumária, teve 19 reis e 5 dinastias e acabou sucumbindo sob os golpes do império assírio. Outro reino, o de Judá (nome de um filho de Israel) durou até à destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, em 587, quando a elite do povo judaico foi deportada para a Babilônia. O exílio durou até à ocupação da Babilônia pelo império persa. Um edito de Ciro o Grande, no ano de 538, permitiu a volta dos exilados hebreus para a Palestina. Em 517, foi construído o segundo Templo de Jeová em Jerusalém. Mas muitos israelitas preferiram permanecer na Babilônia, região culturalmente mais avançada, de onde deram uma importante contribuição para a divulgação da cultura hebraica.

Por sua vez, os exilados, que preferiram retornar para sua terra de origem, levaram consigo nove rolos de papiros que traçavam a história de seu povo desde a criação até a deportação: Gênesis, Êxodo, Levítico e outros livros de Juízes, Reis e Profetas, estabelecendo, assim, o esqueleto da Bíblia hebraica. Passava-se, gradativamente, da heterogenia da coleção de textos à formação da unidade da Escritura. A prova de que tal unidade foi um produto posterior é que não encontramos diálogos entre os vários Livros do Velho Testamento. Os Profetas, por exemplo, nunca fazem referências às Leis de Moisés.

A verdade é que, após o avanço das pesquisas arqueológicas, a partir da década de 1980, muitos estudiosos passaram a não acreditar mais em relatos e personagens bíblicos que não fossem corroborados por fontes externas aos textos considerados sagrados. A maioria chegou à conclusão de que os eventos mais antigos descritos no Velho Testamento são invenções humanas e não revelações divinas. Após uma transmissão oral de longas gerações, apenas a partir do séc. V a.C., os episódios bíblicos, até então esparsos, começaram a ser reunidos e redigidos na língua hebraica.

As vitórias de Alexandre Magno, filho de Felipe da Macedônia, puseram fim à dominação persa. Em 322, conquistou a cidade de Tiro e, sucessivamente, toda a Palestina, que, em 301, ficou sendo província do Egito e, em 198, passou a ser domínio da Antioquia. Em 142, pelo valor de Judas Macabeu, a Síria concedeu independência política aos judeus. Em 63, Pompeu ocupou Jerusalém e, em 37, Herodes foi nomeado governador romano. O fato capital que dominou todo este período foi a difusão do Helenismo no mundo oriental. Com Alexandre e seus sucessores, a civilização grega penetrou no Oriente Médio, até então pouco conhecida naquelas regiões. E o Judaísmo não logrou escapar desta influência. Tanto é que foram os judeus alexandrinos a realizar a tradução em grego do Antigo Testamento, dita dos Setenta (Septuaginta).

O povo hebreu (israelitas e judeus), inicialmente nômade, ao contato com tantas outras etnias mais desenvolvidas, aprendeu a agricultura, a técnica de construir residências, o culto de deuses diferentes. A Bíblia relata que, até à destruição do Templo de Jerusalém por Nabucodonosor, em 586, os hebreus praticavam o politeísmo, prestando culto não apenas a Jeová, um bom deus guerreiro, mas também às divindades da fertilidade dos antigos habitantes da Cananéia, quando desejavam uma boa colheita. Os principais deuses locais, anteriores à invasão dos hebreus, eram Baal e sua irmã-esposa Anat (ou Astarte), representados, respectivamente, por um touro e uma vaca. Em sua homenagem, os devotos praticavam o rito sexual coletivo para tornar os campos férteis.

A estas divindades, expressões do instinto sexual e da paixão amorosa, eram imolados até seres humanos. A luta entre diferentes credos e costumes era inevitável. O Livro dos Juízes narra episódios de guerras fratricidas, raptos de moças, sacrifícios cruentos. Na época dos Juízes e dos Reis, os hebreus foram atraídos pelos cultos idolátricos. E por isso vinham sendo continuamente admoestados pelos Profetas (Isaias, Jeremias, Daniel etc.). Oséias, no início do séc.VIII, foi o profeta que mais invectivou contra esta prática, pois sentiu na carne a dor da infidelidade: sua mulher, Gomer, servira como prostituta sagrada ao deus Baal.

Um culto mais civilizado, através de orações nas sinagogas, já começado durante o Exílio na Babilônia, somente foi oficializado depois que os romanos destruíram o segundo Templo de Jerusalém, em 70 d.C., quando acabaram definitivamente os ritos de sacrifícios cruentos sobre o altar. Mas já estamos na época da última diáspora, palavra grega que significa “dispersão”. Após a diáspora no Egito, na Assíria e na Babilônia, os judeus, revoltando-se contra o domínio romano, perdem sua independência e sua pátria. A partir daí, tornam-se cidadãos do mundo, criando focos de cultura hebraica em Atenas, Alexandria, Roma e, evidentemente, na Palestina.

O Judaísmo depois de Cristo

O povo hebreu não reconheceu na figura de Jesus Cristo, pobre e crucificado, o tão esperado Messias, o enviado de Deus. Tanto é verdade que, pelo calendário judaico, o ano cristão de 2007 corresponde ao ano hebraico de 5768. A diferença dos 3.761 anos deve-se ao fato de que a contagem judia inicia com a data mítica do nascimento de Abraão, o primeiro patriarca. Os judeus sonhavam (e continuam sonhando) com o advento de um Messias como herói glorioso, tipo rei Davi, que viesse salvar sua gente dos invasores estrangeiros. Dispersos pelo mundo, continuaram a cultivar sua fé, acreditando na revelação que seu deus Jeová teria feita a Moisés e aos outros profetas.

No começo do séc. II d.C., começa a compilação do Talmude, que vai se tornar a nova bíblia judaica. Os hebreus consideram sagrados apenas os livros do Velho Testamento escritos em hebraico: Pentateuco (Torá ou Lei de Moisés), os Profetas (Neblim) e os Hagiógrafos (Ketubim). Visto como a interpretação autêntica da Torá mosaica, o Talmude divide-se em duas partes: Mishna, que contém a “Lei Oral”, que a tradição atribui a Moisés, e Gemara, os comentários dos rabinos. Atualmente, o texto mais utilizado pelos estudiosos judeus é o Talmude da Babilônia, editado no séc.VI d.C.

No fim do séc. XII, Maimônides, o maior teólogo hebreu, fixou os 13 princípios da fé judaica: 1) Deus é o criador e provedor do mundo; 2) Ele é uno e único; 3) Ele é puro espírito e não pode ser representado sob nenhuma forma; 4) Ele é eterno; 5) somente a Ele devemos elevar nossas orações; 6) todas as palavras dos profetas de Israel são verdadeiras; 7) Moisés foi o maior dentre os profetas; 8) a Lei conhecida pelos judeus foi dada por Deus a Moisés; 9) ninguém tem o direito de substituí-la nem de modificá-la; 10) Deus conhece todas as ações e todos os pensamentos dos homens; 11) Ele recompensa aqueles que cumprem seus mandamentos e pune aqueles que os transgridem; 12) Ele enviará o messias anunciado pelos profetas; 13) Ele dará vida aos mortos.

O Talmude não é apenas uma coleção de preceitos religiosos e morais, mas um ordenamento da vida dos que acreditam na religião judaica, legiferando sobre política, costumes, a prática da justiça, a necessidade do trabalho, o comportamento na guerra, as relações familiares (casamento entre pessoas da mesma fé, batismo pela circuncisão etc.).

O sofrimento do “hebreu errante”, o apátrida que é perseguido nas nações onde se hospeda, privado de exercer os mandamentos da sua fé, não é um mito, mas uma realidade histórica. No séc. XII, a Igreja Católica criou o Tribunal da Santa Inquisição para combater várias heresias (albingenses e cátaros, principalmente). Na península ibérica, a Inquisição atuou também contra os chamados “cristão-novos”, os hebreus que eram obrigados a renunciar ao Judaísmo e forçados a aderir ao Catolicismo. Da Espanha e de Portugal a perseguição contra os judeus chegou também ao Brasil e a outros países da América Latina. As penalidades iam do confisco dos bens, até à prisão e à condenação à morte. Essa infâmia só terminou na tradição lusitana com a Reforma do Marques de Pombal (1699-1782).

Muito pior ainda foi o “Holocausto”, etimologicamente significando uma imolação sagrada, a consumação da vítima sacrifical pelo fogo. Modernamente, passou a designar os 12 anos de perseguição nazista contra os judeus (1933-1945), especialmente durante a Segunda Guerra Mundial. Os campos de concentração e os fornos crematórios foram criados para realizar uma limpeza étnica, visando o extermínio de todos os judeus residentes na Europa. É incompreensível tanto ódio no coração humano, pois foram barbarizados velhos, crianças e gente inocente.

Mas, enfim, certa justiça foi feita: em 1947, atendendo a uma resolução da ONU, foi criado o Estado de Israel, numa faixa do território da Palestina, com sede em Jerusalém, que passou a ser considerada uma cidade internacional. Realizava-se, assim, o antigo sonho do Sionismo (de “Sion”, colina de Jerusalém), o movimento que reunia os judeus da diáspora, visando o retorno à antiga Canaã. O Sionismo foi intenso especialmente na época do Romantismo, quando na Europa se cultivou o sentimento do Nacionalismo. Em 1901 foi criado o Fundo Nacional Judeu para a compra de terras na Palestina, que deu início à imigração de hebreus.

Israel, porém, ganhara a pátria, mas não a paz. Após mais de três milênios, continua a luta entre judeus e seus vizinhos. E isso porque, o que é considerado “reconstrução” para os primeiros, é tido como invasão para os segundos. Os árabes não aceitam o mito bíblico da Terra Prometida por Jeová ao povo judeu. Na verdade, Israel não é a terra natal e original do povo hebraico, pois Moisés ocupou pela força bélica a terra onde habitavam os antigos cananeus. A própria etimologia da palavra Jerusalém, “fundamento de Shalem”, primitiva divindade da terra de Canaã, nos autoriza a pensar assim.

Enfim, por baixo das diferenças étnicas, predomina o contrastante credo religioso que, como sempre, fomenta ódio e violência. Na região do Médio Oriente, atualmente, continua se travando uma briga entre as três religiões monoteístas: Jeová (representado pelo seu profeta Moisés) vs Alá (representado pelo profeta Maomé) vs Deus Pai (representado pelo Filho, Jesus Cristo). E tais deuses, embora concebidos como seres onividentes, onipotentes e sumamente misericordiosos, dificilmente entram em acordo. Seria mais fácil se os homens, relegando o sentimento religioso à esfera individual, se entendessem entre si, usando a razão e o bom senso, preocupados apenas em viver da melhor forma possível neste mundo, do qual não é nos dado conhecer as origens, perdidas na noite dos tempos, nem prever seu fim.

Na história de qualquer religião, podemos notar a contradição entre a fixidez dos dogmas e a necessidade da evolução. No caso do Judaísmo, percebemos como o povo hebraico partiu de formas religiosas mesquinhas e violentas, próprias de gente primitiva e selvagem: Moisés foi assassino, fujão, polígamo, guerreiro cruel e vingativo, conforme está escrito no livro do Gênesis, de que ele próprio é considerado autor. E os Patriarcas, os outros Profetas e todos os seus seguidores não foram melhores. Mas, aos poucos, por evolução progressiva, o povo israelita sentiu a necessidade de aceitar o monoteísmo, de acreditar no messianismo e na retribuição futura, de depurar suas doutrinas, visando alcançar uma maior universalidade e espiritualidade.

Esta tese da evolução da fé judaica parece ser aceita por quase todos os estudiosos da Bíblia. Os rabinos chamavam a exegese dos textos bíblicos de midrash (“investigação”), pois trechos apresentavam interpretação diferente a cada leitura. A Palavra dos Profetas, portanto, como o sentido da Palavra dos Poetas, é inesgotável. Por isso, Religião e Literatura, por usarem uma linguagem polissêmica (sujeita a várias interpretações), são ramos de conhecimento perene e universalmente estudados.

Mas, se se admitir a contínua evolução do dogma religioso, a Escritura podendo ter erros de interpretação, onde fica a verdade da Revelação divina? Será que Jeová foi revelando sua doutrina a uma miríade de profetas, aos poucos, em picadinhos, ao longo de um milênio? E, se os vários redatores do Velho Testamento apresentam passagens conflitantes ou inverdades, como julgar quem estaria com a razão? A verdade é que em todas as épocas da humanidade e em todas as regiões do mundo sempre surgiram homens que se julgaram dotados de inspiração profética. Em quem acreditar, então? Simplesmente, em nenhum!

Efetivamente, com base em que critério pode-se acreditar que o povo hebreu foi escolhido por Deus, em detrimentos de outros povos? Os judeus, por acaso, são mais bonitos, mais inteligentes ou mais devotos do que outros seres humanos? Pensar assim é negar a própria existência de Deus, pois não se concebe uma divindade facciosa, arbitrária, discriminatória, vingativa, injusta. Voltamos a dizer, então, que seria a concepção de um Deus “humano...demasiadamente humano”, para usar outra vez a expressão de Nietzsche.

Talvez seja o orgulho dos judeus, que se acham os prediletos de Deus, uma raça superior que não admite miscigenação, a suscitar o ódio de nazistas (outra facção humana que se acha privilegiada!) e de outros grupos anti-semitas. É uma pena que não se chegue a uma convivência pacífica entre as várias etnias que habitam o Médio Oriente. Li, recentemente, sobre um projeto turístico internacional, que pretende recriar a rota percorrida pelo patriarca Abraão. A idéia é ligar, por uma estrada de rodagem, o Egito à Turquia, passando por Hebron (Cisjordânia), Jerusalém (Israel), Monte Nebo (Jordânia), Damasco (Líbano), chegando até Urfa, na Turquia, na tentativa de integrar vários povos de raças e credos diferentes.

Mas isso só será possível se o homem colocar a esperança de salvação não num outro mundo, mas neste em que vivemos, não na teologia, mas na filosofia, não na fé, mas na razão. Acima de qualquer preconceito religioso, temos que colocar o bom senso, visando uma convivência pacífica entre os povos. A Palavra do Deus de todos os profetas (Moisés, Cristo ou Maomé) converge numa moral natural. Devemos a Emanuel Kant, o filósofo alemão que revolucionou o estudo da ética, colocando a Razão ao centro do conhecimento (como Copérnico colocara o Sol ao centro do universo), a reflexão mais profunda sobre o estabelecimento de uma moral universal. Seu famoso imperativo categórico pode ser assim formulado:

“ame teu próximo, de forma a não causar a outra pessoa

o mal que não gostaria que fosse feito a ti!”.

Tal mandamento, que condensa todos os princípios éticos, no tempo e no espaço, não precisa de justificativa religiosa, pois é intrínseco ao viver em sociedade. Enfim, ao terminar este pequeno estudo sobre o Judaísmo, por justiça, é bom reconhecer que descendentes de Moisés, que viveram longe do pequeno mundo da Palestina, se tornaram benfeitores da humanidade. De um povo oprimido e ridicularizado surgiram gênios gigantescos no campo das ciências sociais, da indagação da psique humana e da compreensão das leis do universo. Falarei da contribuição dos judeus Karl Marx, Sigmund Freud e Albert Einstein em lugar apropriado.

IV- Jesus Cristo: o evangelho do amor e a religião do atraso.

A figura humana de Jesus: quem escreveu os Evangelhos?

A figura divina de Jesus Cristo continua sendo o enigma mais apaixonante da humanidade. A pessoa histórica que viveu na Palestina dois milênios atrás era realmente Filho de Deus? Os milagres a Ele atribuídos podem ser considerados verdadeiros? Efetivamente ressuscitou três dias após sua morte? Um recente achado arqueológico nos certifica de que, na tradição judaica, ao lado da esperança da vinda de um messias triunfante, que redimiria o povo hebreu do jugo romano, existia também a idéia de um salvador sofredor: uma lápide, datada antes da morte de Cristo, se refere a um homem chamado Simão, assassinado pelos judeus sob a proteção do império romano, que também teria ressuscitado após três dias.

Na verdade, o que sabemos de essencial sobre Jesus está escrito apenas no Novo Testamento, que está longe de ser um documento histórico. Trata-se de uma coletânea de 27 textos: 4 Evangelhos (Mateus, Marcus, Lucas e João), Atos dos Apóstolos, várias Epístolas (14 de Paulo, 1 de Tiago, 2 de Pedro, 3 de João, 1 de Judas) e o Apocalipse de João Evangelista.

Mas estes livros, que a Igreja Católica passou a considerar como sagrados, pois pressupostamente redigidos sob inspiração divina, não foram escritos na época de Cristo, e sim posteriormente, quase no fim do primeiro século da era cristã. Depois de uma tradição oral de mais de meio século, apóstolos (no sentido de “divulgadores” de doutrina) de Cristo começaram a registrar na língua grega ensinamentos e feitos de Jesus (que falara em aramaico), conforme escutavam no meio do povo. Os autores do Novo Testamento, da mesma forma que os Patriarcas e os Profetas do Antigo Testamento, não escreveram o que viram ou ouviram pessoalmente, mas o que lhes foi dito por outras pessoas. Trata-se, portanto, de um “ouvir dizer”, o que explica a ocorrência de tantas repetições e contradições. Na verdade, não sabemos ao certo quem escreveu os evangelhos e os outros livros sobre Jesus. Durante a passagem da oralidade para a escrita, sua difusão circulou no anonimato. Só mais tarde foi atribuída a autoria dos escritos a judeu-cristãos ilustres e devotos, considerados “Santos”, que escreviam em grego e viviam nas cidades helenísticas do Império Romano.

Tome-se, como exemplo, Paulo de Tarso, o apóstolo mais influente, venerado por toda a cristandade (católicos, ortodoxos e todos os crentes das várias igrejas protestantes) e considerado o verdadeiro cérebro da doutrina de Jesus. Ele nem sequer conheceu seu Mestre pessoalmente, pois Cristo tinha morrido há mais de três anos, quando houve a famosa aparição descrita no livro Atos dos Apóstolos. Ele era um judeu de nome Saulo de Tarso, antiga cidade da atual Turquia, província do Império Romano. Educado por rabinos, recebeu também cultura grega. O Sumo Sacerdote de Tarso lhe deu a incumbência de levar cartas para a sinagoga de Damasco com o fim de perseguir os judeus que estavam aderindo ao novo credo do “Caminho”, o primeiro núcleo da nascente religião cristã. Perto de Damasco, de repente, viu-se envolvido por uma luz intensa, que o cegou e o derrubou do cavalo, e ouviu uma voz: “Saulo, Saulo, por que Me persegues?” Deu-se, então, sua conversão ao Cristianismo, começando sua intensa pregação apostólica. Acusado por judeus, teria sido decapitado em Roma, no ano de 67.

Na verdade, a figura histórica de Saulo de Tarso, como a de Jesus Cristo, foi envolta por várias lendas. No final do século II, já venerado com o novo nome de São Paulo, Apóstolo dos Gentios (abriu o cristianismo para os não-judeus) e Mártir da fé cristã, vem descrito como baixinho, careca, manco, com problemas de visão, epilético (o motivo da queda do cavalo). Diferentemente dos discípulos de Cristo, ele era uma homem culto e viajado. É certo que escreveu Cartas (“Epístolas”) a diversas igrejas que ele tinha fundado para explicar a nova doutrina, mas elas só foram divulgadas quase no fim do século primeiro.

Segundo os estudiosos do assunto, Saulo escreveu cartas apenas aos romanos, coríntios, gálatas, filipenses e tessalonicenses. Após sua morte, cristãos esclarecidos e admiradores de São Paulo, desenvolveram suas idéias e escreveram em seu nome várias Cartas a outros destinatários. Refletindo um pouco, não faz sentido acreditar que Paulo tenha enviado epístolas também a Timóteo e a Tito, seus companheiros de viagens missionárias. Eles deviam ter aprendido e praticado a fé cristã junto com o mestre Saulo, que morrera antes deles. A não ser que pensemos em cartas “póstumas”, como teria acontecido com Moisés que teria relatadas passagens do Pentateuco acontecidas posteriormente a sua morte! O conjunto de escritos que compõe o Corpus Paulinum, a parte mais consistente da doutrina do Novo Testamento, foi compilado bem mais tarde por cristãos cultos, empenhados em fundamentar a fé em Jesus. Como observa Karen Armstrong (A Bíblia: uma Biografia, pág.63-64),

“escreveu cartas a seus conversos, respondendo às suas perguntas, exortando-os e explicando a fé. Paulo nem por um instante pensou que fazia uma “Escritura”; como estava convencido de que Jesus retornaria ainda durante a sua vida, nunca imaginou que as gerações futuras estudariam cuidadosamente suas epístolas”.

Paulo nunca afirmou que Jesus era Deus, assim como Cristo nunca disse que ele era o Messias esperado pelos judeus. Aí está o grande erro de todas as religiões: a consagração do instante. Acontecimentos excepcionais, relacionados com realidades peculiares, são vistos como feitos milagrosos, expressões de uma vontade sobrenatural, que devem ser cultuados para sempre e em todos os lugares, fixados em dogmas, como verdades inquestionáveis.

É preciso salientar que notícias sobre a vida de Jesus não se encontram apenas nos 27 Livros, considerado o “cânone” do Novo Testamento pela Igreja de Roma. Existiam muitos outros escritos considerados “apócrifos” (não autênticos ou ocultos) ou “gnósticos”: de seitas cristãs heterodoxas, que juntavam judaísmo com helenismo, professando a crença no dualismo cósmico do princípio do mal (matéria) e do bem (o espírito, que se identificava com o “conhecimento” racional). Estes escritos, considerados não sagrados, foram destruídos por ordem do Concílio de Nicéia, em 325. Trata-se do primeiro crime contra a cultura perpetrado pela religião católica. Em nome de uma presumida “Autoridade Divina”, foram condenados à fogueira documentos que não estavam conforme idéias retrógradas e conveniências políticas.

Felizmente, monges egípcios não obedeceram à ordem papal e guardaram códices de papiros dentro de urnas de argila e as enterraram na base de um penhasco, à margem do rio Nilo, e ali ficaram esquecidos e protegidos por mais de quinze séculos. Os manuscritos foram descobertos, por acaso, em 1945. Este achado incentivou pesquisas arqueológicas, que continuam em andamento, especialmente nas proximidades do Mar Morto. Ao todo, foram já encontrados 112 textos, de vários tamanhos, 52 referentes ao Antigo Testamento e 60 em relação ao Novo, inclusive os evangelhos de Judas e de Maria Madalena.

Quer os escritores canônicos, quer os apócrifos, serviram-se também do texto grego do Antigo Testamento, a famosa Septuaginta, como fonte biográfica para falar da vida e das obras de Jesus. Na verdade, sob muitos aspectos, o Novo Testamento é uma retomada do Antigo, pois sua figura central, o Christós grego, corresponde ao Meshiah hebraico, o “ungido”, o Messias prometido para a salvação do povo judeu, conforme anunciado pelos Profetas. As correspondências entre os dois Testamentos são gritantes: quem redimiria o povo judeu seria um descendente da casa de Davi; ele viria montado num asno; os 12 discípulos de Jesus correspondem às doze tribos de Israel; os 40 anos da peregrinação dos hebreus no deserto têm um paralelo com os 40 dias do retiro de Cristo; as Tábuas da Lei no Monte Sinai têm a ver com o Discurso da Montanha; Isaias profetizara que uma Virgem daria a luz um filho chamado Emanuel; seu nascimento é anunciado por um anjo como aconteceu com Isaac, Ismael e Sansão; a destruição do templo de Jerusalém, em 70 d.C., é vista como o advento do Apocalipse, a “revelação” do final dos tempos. Enfim, o Antigo Testamento pode ser considerado um prelúdio do Cristianismo. A maioria dos eventos da vida de Jesus aconteceu “para cumprir as Escrituras”. Ele próprio afirmou que viera ao mundo “não para abolir, mas para completar a Lei e os Profetas”.

Todavia, o legado de Jesus superou, ao mesmo tempo em que frustrou, as expectativas judaicas. A figura do Nazareno se tornou um divisor de águas e a história da humanidade se distinguiu entre um “antes” e um “depois” de Cristo. Com Jesus nasceu uma nova Era, um novo Calendário, uma nova cosmovisão. Conforme os ensinamentos contidos no Novo Testamento, Jesus Cristo não veio ao mundo apenas para salvar o povo judeu da subjeção aos romanos, mas para redimir toda a humanidade do pecado original cometido por Adão.

O Pacto de Aliança não é mais entre Deus é um povo específico, privilegiado, de etnia hebraica, mas com todos os povos da Terra, com todas as raças humanas. A confirmação do compromisso entre o homem e a divindade, simbolizado pelo batismo, não será mais mediante o derramamento de sangue (a circuncisão), mas pela água purificadora. O sacrifício humano de Isaac será substituído pelo cordeiro pascal. A lei da vingança (“olho por olho, dente por dente”) cederá lugar ao imperativo do perdão (“oferecer a outra face”); o amor ao próximo é colocado como mandamento único, capaz de substituir todo o Decálogo de Moisés.

Penso não ser necessário relatar, neste trabalho, a vida de Jesus Cristo, os milagres a ele atribuídos e seus ensinamentos de vida, conforme se encontram no Novo Testamento, por serem por demais conhecidos. Acho melhor, em face das várias discordâncias, contradições, inverdades científicas e extravagâncias dos textos bíblicos, que ofendem nossa inteligência, indagar o que há de verdade no meio de tanta fantasia. Em vista de que a ignorância e o erro são atributos humanos e não divinos, não posso considerar nenhum livro “sagrado”, escrito sob inspiração de algum ser transcendental (mesmo que existisse!). Busco, portanto, a autenticidade histórica, desconfiando da palavra de qualquer ser humano que tem a arrogância de achar-se porta-voz de Deus.

Sabemos muito pouco de Jesus “histórico”. É estranho o fato de que nenhum historiador seu contemporâneo registrasse, em língua hebraica, grega ou latina, notícias relevantes acerca da figura de Cristo, um taumaturgo tão importante ao ponto de ser considerado o Messias esperado, o Filho de Deus encarnado. Ou não o era? Ou o foi apenas na cabeça de seus discípulos e apóstolos, quase um século depois de sua morte? O que me intriga é o fato de Jesus Cristo não ter deixado nada por escrito pessoalmente, nem ter-se claramente identificado como Filho de Deus.

Chamar Deus de Pai (“Pai, afasta de mim esse cálice!”) era e é uma forma comum de invocar a divindade. Se ele se achasse realmente um ser divino, a segunda pessoa da Trindade, não precisava implorar a ajuda de ninguém. Se ele veio ao mundo, adquirindo uma forma humana, para ensinar sua doutrina de paz e amor, por que não a registrou na língua grega, naquela época a mais universal? Por que confiar apenas em seus discípulos, gente inculta, que mal falavam o aramaico, língua pouco difundida, para evangelizar outros povos?

Acreditar em Jesus Cristo como Deus é um ato de fé, mas sua existência como ser humano é um fato histórico incontestável. Além dos relatos bíblicos, temos testemunhos de escritores insuspeitos. Há alguns historiadores latinos que fazem referências indubitáveis sobre a figura de Cristo: Tácito (55-120) fala de certos “cristãos” supersticiosos, que sofreram nas mãos de Pôncio Pilatos, na época do imperador Tibério; Suetônio (69-126), que foi arquivista do imperador Adriano, escreveu que houve um homem chamado “Chrestus”, que viveu na Palestina durante o primeiro século; Plínio, o Jovem (62-114) fala de cristãos que adoravam Jesus como Deus, fazendo inclusive referência à Santa Ceia. O filósofo grego Luciano de Samósata (125-192), um crítico das religiões, reconhece que Jesus foi adorado pelos cristãos, que praticavam o monoteísmo e a fraternidade entre os homens.

Tais depoimentos de estudiosos laicos são importantes para a confirmação da historicidade do Jesus bíblico, embora fossem escritos no começo do séc. II, quando os ditos e os feitos de Cristo já vinham sendo alterados pela criação de mitos ao redor da figura do Mestre. Valiosas são também as fontes históricas hauridas de hebreus que se mantiveram à margem dos textos da Bíblia. O mais famoso foi Flávio Josefo (37-100), fariseu de Jerusalém, que escreveu As antiguidades judaicas. Ele se refere a um Tiago como “o irmão de Jesus, que era chamado Cristo”. Josefo, considerado o historiador oficial dos judeus, afirma que estes, na época do Segundo Templo, se dividiam em vários grupos, que viviam em atritos entre si : macabeus, fariseus, saduceus, essênios.

A este último clã teria pertencido Jesus, conforme a própria tradição cristã. Os essênios retiraram-se por um tempo no deserto, praticando vida ascética e vivendo em comunidades. Eles aboliram a propriedade privada, vestiam sempre de branco, eram vegetarianos, não contraíam núpcias, banhavam-se antes das refeições, praticavam o batismo por imersão nas águas fluviais. A proposta de um sistema de vida comunitário nos lembra a utópia da República de Platão, o filósofo grego que viveu uns dois séculos antes da seita judaica dos essênios.

Pelo que podemos verificar, as notícias verdadeiramente históricas sobre a pessoa de Cristo podem ser assim resumidas: Jesus foi um judeu culto, talvez professor ou pedagogo, um homem de bem que pela sua pregação chamou a atenção de um pequeno grupo de galileus e, após um período de ministério, foi crucificado pelos romanos na Palestina, durante o governo de Pôncio Pilatos. O resto, especialmente sua atividade milagrosa, é puro mito. Talvez, sua pertinença à comunidade essênica nos ajude a entender muitos episódios descritos no Novo Testamento, visto que alguns estudiosos consideram os essênios como precursores do Cristianismo.

A historia de Jesus tem muito a ver com a prática de vida e o ideal ético desta seita judaica: após uma infância e juventude dedicada aos estudos bíblicos (aos 12 anos discutia com os doutores da Lei, no Templo de Jerusalém), ele desaparece (é lícito pensar que se tenha refugiado no deserto para meditação, vivendo numa comunidade de essênios); aos 30 anos, retorna à vida da cidade, se submete ao ritual do batismo nas águas do rio Jordão e começa a liderar um movimento entre tantas seitas em competição, pregando o desapego aos bens materiais, a lealdade ao grupo mais do que à própria família, a não violência, o perdão dos pecados, o amor ao próximo, a espera dos últimos dias do mundo.

Sua figura carismática atrai especialmente pessoas humildes e necessitadas, doentes que lhe pedem socorro. Sua força espiritual é tão grande que consegue feitos considerados milagrosos, como recuperar a visão ou ressuscitar defuntos. Tais sucessos provocam a inveja da seita rival dos fariseus que instigam o povo contra ele, ao ponto de ser condenado e crucificado. Mas sua mensagem era muito maravilhosa para morrer com seu corpo. Os discípulos e algumas mulheres devotas acreditaram na sua ressureição, como ele havia anunciado, começando a divulgar sua doutrina.

Primeira fase da Idade Média: a era das trevas

O Cristianismo começa seu apogeu quando o Império Romano entra em declínio. O ano de 325 pode ser considerado um divisor de águas: o Imperador Constantino I, o Grande, que disputara com mais seis pretendentes o poder absoluto sobre Roma, entre 306 e 337, obteve a vitória final e convocou o Concílio de Nicéia, colocando o Cristianismo a serviço da política. Há tempo ele vinha protegendo os cristãos, influenciado pela mãe, a concubina Helena, que se converteu e acabou sendo canonizada, tornando-se a atual Santa Helena.

Narra a tradição que, em 312, na véspera da batalha contra o imperador insurreto Maxêncio, na ponte Mílvia sobre o rio Tibre, em Roma, Constantino teve uma visão (semelhante à de Paulo de Tarso!), aparecendo-lhe uma cruz luminosa onde se lia In hoc signo vincet (“com este símbolo, tu vencerás”). E ele venceu (aconteceu mais um milagre!) e se converteu ao Cristianismo. No ano seguinte proclamou o Édito de Milão, garantindo a liberdade de culto e ordenando a restituição aos cristãos de todos os bens confiscados. Logo em seguida, deixou a cidade de Roma aos cuidados do Papa Silvestre I, mudando a capital do Império Romano para Bizâncio, que foi rebatizada com o nome de Constantinopla, no ano de 330. O Papa mandou forjar um documento, chamado “A doação de Constantino”, segundo o qual o Imperador, em seu leito de morte, teria legado ao Sumo Pontífice o poder sobre Roma e todos os territórios do mundo cristão.

Então, como veremos em seguida, os cristãos, de perseguidos, passaram a ser perseguidores. Acabara o tempo dos primórdios do cristianismo, quando a nascente igreja vivia aterrorizada pelas comunidades hostis do judaísmo na Palestina e pelos habitantes de Roma que não perdoavam a tentativa cristã de derrubar as estátuas de suas divindades tradicionais, em nome do culto a um único deus, o Cresthos dos hebreus, que morreu numa cruz. Os latinos sempre foram tolerantes com relação às religiões. Em Roma edificaram um templo, o Panteon (que ainda hoje pode ser visitado), para abrigar todos os deuses, nacionais e importados. Os romanos teríam colocado, de bom grado, o Cristo dos judeus junto ao Zeus grego e a Osíris do Egito. Foram os cristãos a não querer, pois consideravam todos os deuses pagãos como falsos e mentirosos, sendo verdadeiro apenas o deus deles.

Da Palestina, os cristãos foram a Roma para impor sua nova religião, desprezando os cultos tradicionais dos que lhes davam abrigo. Os romanos reagiram à invasão dos cristãos jogando-os aos leões, obrigando-os a lutar nas arenas contra gladiadores, perseguindo-os nas catacumbas. Tais histórias fantasiosas fizeram a fortuna dos produtores cinematográficos de Hollyood. Mas ninguém pode negar que a fé dos primitivos cristãos era tão grande que eles preferiam o sofrimento e até o martírio, esperançosos na ressureição dos corpos e na conquista do paraíso.

Toda essa crença, porém, não impedia a presença do medo em seus espíritos. E o medo gera o ódio! A angústia e a revolta estão expressas plasticamente no Novo Testamento, especialmente no Apocalipse, que pode ser considerado o contraponto ao Sermão da Montanha, que é um hino à paz entre os homens. O livro atribuído a João de Patmos apresenta o dualismo cósmico da luta entre as forças do bem contra as do mal. Satã e suas cortes atacam Miguel e seus anjos no céu, enquanto os perversos agridem os homens justos na terra.

Mas, a partir da atuação do imperador Constantino, a situação se reverte. Os que eram vítimas se tornaram agressores. A Igreja de Roma, junto com o poder espiritual, assumiu também o poder temporal, dando início a uma teocracia que dominou a Europa por longos e tenebrosos séculos, estendendo sua influência também nas Colônias do Novo Mundo. E a vingança não era apenas contra os pagãos politeístas. Os bispos, após o Concílio de Nicéia, mandaram destruir os evangelhos apócrifos e todos os outros escritos que não se encaixavam no cânone por eles estabelecido, além de condenar e punir qualquer forma de heresia.

Quando Teodósio II (401-50) promulgou o Cristianismo como a fé oficial do Império, os judeus foram proibidos de ocupar cargos civis ou militares e sua língua hebraica não pôde mais ser ensinada, nem sequer nas sinagogas. O terror imposto pela religião à ciência e ao conhecimento ao longo dos primeiros séculos do Cristianismo encontra-se descrito nas obras de Apologistas, Doutores e Padres da Igreja. Para Santo Agostinho os deuses pagãos eram demônios que vagavam numa Terra achatada, que tinha apenas seis mil anos de idade. Tertuliano afirmava que quanto maior o absurdo, mais forte era sua fé, prometendo aos devotos o gozo do espetáculo das torturas eternas a que Deus condenava os que morressem no pecado. Não diferentemente, os pregadores de várias igrejas ou seitas da atualidade continuam aterrorizando os incautos crentes com as ameaças de Satanás, extorquindo seu dinheirinho, em troca da benção divina!

Talvez o exemplo mais cabal do atraso civilizacional provocado pela religião cristã foi a proibição dos jogos olímpicos. No fim do séc. IV d.C., o imperador romano Teodósio I (347-395), alcunhado o “Grande” por ter assegurado o triunfo definitivo do cristianismo, ordenou a destruição do templo de Zeus, na cidade grega de Olímpia, para acabar com o politeísmo pagão. Determinou, também, o fim das Olimpíadas, que vinham sendo disputadas desde o séc. VII a.C., por considerá-las nocivas à formação religiosa dos jovens. O lema clássico mens sana in corpore sano (cabeça boa num corpo sarado), foi substituído pelo princípio da moralidade cristã: mens sana in corpore castigato (alma pura num corpo flagelado).

Precisaram passar aproximadamente 15 séculos para que a humanidade retomasse o espírito olímpico da Grécia antiga. O magnata francês Pierre de Coubertain lutou para criar o Comitê Olímpico Internacional, que organizou a primeira Olimpíada da era moderna, em Atenas, em 1896. Seu símbolo é o entrelaçamento dos cinco Continentes, seu lema é citius (mais rápido), altius (mais alto) e fortius (mais intenso). A Carta Olímpica proíbe qualquer espécie de propaganda política, religiosa ou racial, afirmando a isenção ideológica do torneio e exortando à paz e à concórdia entre os povos.

O domínio da Igreja Católica se intensificou com a queda do Império Romano do Ocidente (476), causada pelas invasões barbáricas. A Idade Antiga, caracterizada pela civilização greco-romana, chega ao fim, dando origem à chamada Idade Média. O termo é bem explicativo, pois medieval significa “mediano”, entre um antes e um depois, isto é, entre a cultura clássica e a moderna, que começaria a partir do século XI. Quer dizer que do séc. V ao XI não houve civilização alguma, sendo a cultura medieval caracterizada simplesmente pela ausência de cultura.

Efetivamente, notamos na Europa um longo tempo de vazio civilizacional, passado para a história como a “época das trevas”. Parece exagero de historiadores, mas é a pura verdade. Uma pergunta intrigante: algum leitor deste meu livrinho poderia me citar o nome de apenas uma pessoa ilustre no campo da filosofia, das ciências, das artes, dos esportes, que viveu na Itália, na França ou em qualquer outro país da Europa, em algum momento, ao longo de aproximadamente 600 anos, do séc. V ao XI? A resposta só pode ser negativa e se configura como uma constatação espantosa. A única personalidade importante que passou para a história, durante este longo período de tempo, foi o Rei da França, Carlos Magno, coroado pelo Papa como Imperador do Ocidente no ano 800, como recompensa de suas lutas contra os mouros e em defesa da religião cristã. E, sintomaticamente, ele era analfabeto, assinando documentos com o dedão.

Como explicar tamanho atraso na Europa toda e durante vários séculos, se a pequena Grécia, em poucas décadas, apenas na época de Péricles, no longínquo séc. V a.C., criara obras maravilhosas de literatura, teatro, artes plásticas, além de inventar a filosofia, a democracia, as olimpíadas? Será que a crença na fantasmagórica diversidade de seus mitos pagãos estimulava a mente dos gregos para a criatividade, enquanto o monoteísmo cristão levara a inteligência humana ao reducionismo?

Sem dúvida, houve um retrocesso da Humanidade na época medieval, causado pela centralização no problema da salvação da alma que, após a morte corporal, deveria prestar contas a um deus no além. A preocupação do homem é limitada ao aspecto religioso. Os dois principais ciclos de cultura, o bretão e o carolíngio, estão intimamente ligados à difusão e à defesa da doutrina cristã. O primeiro trata do rei Artur, o herói lendário da Grã-Bretanha, com seus Cavaleiros da Távola Redonda (Galaaz, Percival e Boors), em busca do Santo Graal, o vaso onde teria sido recolhido o sangue de Cristo na Cruz. No final do séc. V, o rei Artur dominou os anglos do norte e os saxões do oeste, introduzindo o Cristianismo na Inglaterra. O segundo ciclo, o carolíngio, está centrado sobre a figura de Carlos Magno e os Paladinos da França, cujo herói principal é Roland (Orlando, em italiano), em luta contra os muçulmanos que, a partir do final do século VII, começaram a invadir o Sul da Europa.

Mas é preciso relevar que estas e outras narrativas épicas, embora situadas na primeira fase da Idade Média, somente foram escritas em versos e em prosa depois do séc. XI, quando os países europeus tiveram suas línguas nacionais. Anteriormente, havia apenas uma tradição oral, passada de geração para geração. Repete-se, então, com A Demanda do Santo Graal e La Chanson de Roland, o mesmo fenômeno que aconteceu com a Ilíada e a Odisséia da Grécia, a Torá hebraica, os cantos épicos da Espanha (El cantar de mio Cid) e da Alemanha (Os Nibelungos): o fato histórico inicial é transformado e idealizado pela tradição oral ao longo de muitos anos, até que uma nação consiga um nível de linguagem adequado e gente intelectualizada capaz de consagrar os feitos de seus heróis em obras de arte literária.

Para explicar a paralisia cultural da primeira fase da Idade Média (do séc. VI ao XI) é preciso considerar vários fatores de ordem histórica, política, social, lingüística e religiosa. Faltam-me tempo, espaço e competência para aprofundar o assunto. Tocarei apenas em alguns aspectos que reputo importantes. Uma das culpas imperdoáveis da Igreja de Roma foi ter fechado as escolas que os romanos iam abrindo na medida em que ocupavam os territórios da Gália e de outras regiões da Europa. Lá eles ensinavam a língua latina e as demais disciplinas escolares, inclusive as obras dos escritores gregos e romanos, que já eram considerados “clássicos”, pois eram lidos nas classes.

O fechamento das escolas públicas se explica porque bispos e padres consideravam a leitura de textos de Homero, Virgílio, Horácio ou Ovídio, como nocivos para a educação das crianças, pois falavam de divindades pagãs ou de amores profanos. Observamos, de relance, que eliminar a memória do passado é condição essencial para a afirmação de qualquer modalidade de totalitarismo. O que a Igreja da Idade Média fez com relação à cultura greco-romana é semelhante ao que o marxismo e o nazismo tentaram fazer na Europa moderna, apagando a memória do passado através de lavagem cerebral e de processos de depuração de idéias. A tentativa da destruição da tradição judaica por Hitler e da mundividência pagã e cristã por Lênin e Stalin era considerada necessária para a imposição de ideologias racistas ou populistas, outras formas funestas de absolutismo, que igualmente esmagam a liberdade de pensar, de sentir, de agir.

Em decorrência do fechamento das escolas romanas, aconteceu algo de estranho na Europa medieval: os povos falavam uma língua que não era escrita e escreviam (os pouquíssimos letrados) numa língua que não era falada. A língua oficial era o latim, que só era estudada por clérigos e alguns nobres, enquanto a massa popular falava os dialetos nativos das várias regiões. Mais de 90% da população era analfabeta, pois recebiam o ensino apenas oralmente, nas igrejas, durante os cultos religiosos. E sem uma língua escrita e falada pela maioria dos cidadãos não há possibilidade de civilização. A própria palavra literatura vem de littera, que significa “letra”, a palavra escrita. Tal situação de atraso cultural se alastrou até à virada do milênio, quando vários dialetos falados por povos europeus se tornaram línguas escritas. Os primeiros documentos dos idiomas modernos, as chamadas línguas românicas ou neolatinas (italiano, francês, espanhol, português, romeno) remontam ao início do séc.XII, quando acaba a primeira fase da Idade Média e começa a pré-renascença.

Outro fator determinante do atraso medieval foi o sistema político-social, fundamentado no Feudalismo. As invasões dos bárbaros, uma das causas da desagregação do Império Romano, provocaram uma profunda mudança na economia, que de citadina se tornou campesina. Para fugir da violência dos ataques dos invasores, gente de posse abandonava as grandes cidades e se refugiava nas regiões interioranas, onde construía castelos, circundados por fossos e ameias. A descentralização e a ruralização causaram o emprego de mão-de-obra servil, que se aproximava muito da escravatura. Os camponeses, que trabalhavam nas terras do dono do feudo, vivam nos burgos (daí o nome de “burguês”), vilarejos construídos nas proximidades do castelo fortificado, produzindo apenas o necessário à subsistência.

A estrutura social era semelhante a uma pirâmide: no topo estava o “Suserano” (rei ou príncipe), que concedia um “feudo” ou benefício (título de propriedade de terras) a um nobre (conde, duque etc.), mediante a condição de vassalagem, que implicava fidelidade política e ajuda econômica. O dono do castelo, por sua vez, podia ter outros vassalos (“valvassori”, em italiano) e a estes era dado o direito de ter vassalos inferiores (“valvassini”). Tal escala de vassalagem ligava estritamente a autoridade com a propriedade rural, estabelecendo entre suseranos e vassalos uma forte relação de dependência.

O sistema feudal, que dominou na época medieval, parece coisa do passado. Ledo engano! Mutatis mudandis (trocando apenas o contexto), os antigos feudatários podem ser visto como os ancestrais dos atuais políticos de muitos países que se acham democráticos. O chefe do partido (ou a cúpula partidária) é o suserano que vai indicar os candidatos aos cargos eletivos e executivos (os feudos) dos vários escalões do Governo federal, estadual e municipal. Uma vez empossados, os feudatários têm obrigações com o partido e seus eleitores, pagando dízimos e distribuindo cargos entre parentes e compadres, visando abastecer seus currais eleitorais para se reeleger sucessivamente.

Cria-se, assim, o círculo vicioso: quem tiver mais benesses para distribuir, terá mais vassalos, e quem tem mais vassalos goza de chance maior para se reeleger e permanecer no poder. Evidentemente, presidentes, governadores, prefeitos, deputados federais e estaduais, assim como os senadores, estão mais inclinados a retribuir os favores recebidos do que atender às necessidades reais e gerais da Nação. A miséria e a ignorância do povo, que troca seu voto por um benefício qualquer, estão na base da construção de redutos eleitorais que há séculos governam países subdesenvolvidos, sempre adiando as indispensáveis reformas estruturais no tocante a educação, a saúde, o transporte coletivo.

O sistema feudal provocou outra causa do atraso medieval: o isolamento em que a Europa viveu durante tantos séculos. A vida social se passava em castelos muito distantes entre si. O meio de comunicação mais usado era o cavalo, cabendo aos “cavaleiros andantes” a incumbência de transmitir notícias e mensagens de um lugar para outro. A isso se acrescente o bloqueio do mar mediterrâneo pela irrupção do Islamismo, de que vou falar no próximo capítulo. Para termos uma idéia dessa precariedade basta comparar o sistema de comunicação entre tribos indígenas da atualidade e povos que se servem da Internet! O avanço tecnológico que nos permite saber o que acontece no resto mundo de uma forma rápida e poder intervir fazendo críticas e dando sugestões via correio eletrônico contribui, sem dúvida, para o melhoramento da espécie humana.

Mas, segundo meu entendimento, o fator que mais concorreu para o atraso medieval foi a cosmovisão do Cristianismo. De um lado, a Igreja de Roma construiu um sistema feudal paralelo ao da sociedade civil pela semelhança de sua hierarquia (papa, bispos, vigários, fiéis que pagam dízimos em troca de indulgências) e por possuir grandes propriedades (a imposição do celibato aos bispos-feudatários visava não criar vínculos de hereditariedade). De outro lado, projetando a felicidade num outro mundo, desestimulou qualquer forma de progresso. Para que estudar e trabalhar se a vida nesta terra é apenas uma passagem, pois nosso destino é a eternidade? Para que cultivar o físico e o intelecto, se nascemos do pó e ao pó voltaremos?

A única coisa a fazer é conquistar méritos para salvar nossa alma imortal. E lá vão rezas, penitências, jejuns, sacrifícios, abstenções de comidas, bebidas e sexo, enfim de qualquer prazer da carne. Dá-se preferência à vida contemplativa, monástica, em conventos e mosteiros. Se a finalidade da vida é a espera da morte, por que cultivar ciências e artes? Basta-nos seguir os ditames da Sagrada Escritura. Tal postura perante a vida não deixa de ser coerente com os princípios do Cristianismo, assim como postos em prática na primeira fase da Idade Média.

V – Maomé: o Islamismo e a volta do terror

O último Profeta

O sucesso do Islamismo deve-se, a meu ver, ao fracasso do Cristianismo. Após mais de seis séculos, a doutrina do amor e da fraternidade ensinada por Jesus não surtiu os efeitos esperados. A Igreja de Roma, ao acumular o poder espiritual e temporal, lançou a Europa no mais nefasto obscurantismo, de que falei no capítulo anterior. Destruiu a cultura greco-romana sem conseguir colocar em seu lugar uma nova proposta civilizacional, capaz de levar a humanidade ao progresso e à justiça social. O regime feudal, a que o Catolicismo aderiu, aumentou o fosso entre ricos e pobres. Os nobres e os altos clérigos passaram a constituir as duas classes dominantes, enquanto a grande massa do povo (a terceira classe) vivia na miséria e na ignorância.

Portanto, conforme a mentalidade vigente de subserviência a uma divindade, urgia o nascimento de um novo Messias. E apareceu Maomé. Visto que o núcleo original da civilização humana fora o Oriente Médio e que o Salvador dos judeus (Moisés) e dos cristãos (Jesus) não deram conta de resolver os graves problemas sociais e morais, que tal experimentar outro Profeta, desta vez oriundo de uma comunidade árabe? O advento de Maomé não representa a invenção de uma nova religião, mas a “restauração” dos ensinamentos originais do Judaísmo e do Cristianismo, que tinham sido esquecidos ou estavam corrompidos. Tanto é verdade que os próprios muçulmanos acham errado o termo “maometista”, pois Maomé sempre teve consciência da sua humanidade e em momento algum se considerou um Deus que veio ao mundo para impor uma nova religião. Sempre se considerou apenas outro Profeta, porta-voz de Alá, o nome árabe de Deus, o mesmo em quem acreditavam os fiéis das duas anteriores eligiões monoteístas: Judaísmo e Cristianismo.

Na caverna do monte Hira

Maomé é o nome português, do francês Mahomet, derivado do turco Mehmet e do árabe Moḥammed ou Muhammad. Nasceu, entre 560 e 570, na Meca, naquela época importante centro cultural e religioso da atual Arábia Saudita. Sua família pertencia a um clã que tomava conta do templo Caaba (”Cubo”), uma espécie de Panteon árabe, onde eram guardados vários ídolos e objetos sagrados, entre os quais a “Pedra Negra”. Para os geólogos trata-se de um meteorito, mas a tradição muçulmana criou a lenda de um objeto sagrado que veio do Céu e caiu no Jardim do Paraíso. Deus a teria dado a Adão como sinal de perdão: a Pedra, originariamente branca, ter-se-ia tornada preta por absorver os pecados dos homens. No segundo milênio antes de Cristo, o Arcanjo Gabriel teria dada a Pedra Negra ao patriarca Abraão, que a teria levada para a Meca, junto com a escrava Agar e seu filho Ismael.

No Caaba havia imagens de mais de 360 deuses, venerados por devotos locais e por chefes de caravanas que faziam ponto na passagem pela cidade. Órfão de pai e mãe, Maomé foi criado por um avô e um tio que iniciaram o jovem pastor no ofício de comerciante, não recebendo escolaridade alguma e continuando analfabeto até sua morte. Durante uma viagem de negócios ao Iraque, perto da cidade de Basra (Bassora), um eremita cristão de nome Bahira, ao olhar para o jovem Maomé, teria dito que ele era o enviado de Deus que todos estavam aguardando. Com 25 anos, Maomé conheceu a rica viúva Cadija, 15 anos mais velha, com a qual se casou, mudando assim seu status social, passando de pobre para rico. Além desta esposa, ao longo de sua vida, teve mais 15 mulheres, todas elas viúvas abastadas, com exceção de Aicha, menina que tinha apenas 9 anos quando ficou noiva do Profeta.

No ano de 610, tendo aproximadamente uns 40 anos, Maomé, numa noite, enquanto estava meditando, recolhido numa caverna do monte Hira, teve una visão. Conforme acreditou posteriomente, fora visitado pelo arcanjo Gabriel, que lhe anunciou ser ele o escolhido como o último Profeta que Deus enviara à terra para salvar a humanidade. Acontece que a visão o deixara em estado de transe, suando copiosamente. Pensou em alucinação ou em alguma possessão diabólica, mas a esposa Cadija o confortou e o levou a consultar o sábio cristão Waraqa, seu primo. Com a ajuda deste mestre, Maomé interpretou a visão como sendo uma experiência idêntica às vividas pelos profetas do Antigo Testamento e pelo próprio Jesus Cristo. A esta visão no monte Hira se sucederam várias outras, ao longo de sua vida, ministrando-lhe, paulatinamente, a doutrina que se encontra registrada no Corão, o livro sagrado da nova religião, o Islamismo.

A partir do ano de 613, Maomé, encorajado por familiares e amigos, começou a pregar publicamente os ensinamentos que teria recebido do arcanjo Gabriel. Nascia, assim, a religião chamada Islã (“submissão à vontade divina”). Ao proclamar a sua mensagem na cidade, ganhou seguidores e, como era de se esperar, também opositores. Na medida em que seus fiéis cresciam, Maomé começou a se tornar uma ameaça para as tribos locais, especialmente para os Coraixitas, a sua própria tribo, que tinha a responsabilidade de cuidar do Caaba, que nesta altura hospedava centenas de ídolos que os árabes adoravam como deuses. Muitos habitantes da Meca rejeitaram a sua mensagem e começaram a perseguí-lo, bem como aos seus seguidores. O motivo não deixava de ser também econômico: Maomé, pregando a fé apenas num único deus, Alá, prejudicava os negócios dos guardas do templo politeísta. A verdade é que Maomé, de forma semelhante a Jesus Cristo, pregando o amor e a fraternidade, encantou os homens das classes menos favorecidas, provocando o ódio dos judeus e dos cristãos abastados.

Para escapar da perseguição, em 622, Maomé foi obrigado a abandonar sua cidade natal, começando uma migração, conhecida como a Hégira, que deu origem ao calendário lunar muçulmano, estabelecendo-se na cidade de Medina. Lá, ele se tornou o chefe da primeira comunidade islâmica. É preciso relevar que, no século VII, a península arábica era habitada por povos que levavam uma vida nômade, divididos em tribos, lutando entre si. Maomé conseguiu dominar, através de sucessivas vitórias, não somente os habitantes de Meca e Medina, mas a maioria das povoações ao redor das duas cidades.

Ele se revelou um ótimo estrategista bélico, pois sua organização militar, criada durante estas batalhas, foi usada posteriormente para derrotar várias tribos da Arábia e povos de outras regiões. As conquistas dos muçulmanos se estenderam da Pérsia à bacia do mar Mediterrâneo, com relevância na península ibérica e na costa francesa. Além de militar, Maomé teve também um grande mérito político, conseguindo unificar vastos territórios sob o signo da religião islâmica. Os antigos costumes tribais das Arábias foram substituídos pela Sharia (lei do Corão) e pela Sunna (a Tradição de Muhammad, registrada nos hadith, ditos e feitos do Profeta). Organizava-se, assim, o Estado árabe, regido por um chefe que reuniu numa única pessoa o poder religioso, militar e político.

A criação de um Estado teocrático, juntando na mesma pessoa o poder material e espiritual, foi o grande erro involuntário de Maomé, pois ele não previu que seus sucessores não estariam à altura de sua portentosa personalidade. Sua morte é lendária: a crença mais comum é que o Profeta, acometido de um mal súbito, no ano de 632, ascendeu aos céus envolvido numa nuvem, a partir da Cúpula do Rochedo (que ainda não existia, pois foi construída pelo califa Abd al-Malik, em 691!), em Jerusalém. Ele teria feito uma viagem noturna, visitando o Paraíso, onde teria se encontrado com os dois outros grandes Profetas que o precederam, Moisés e Jesus Cristo. Com seu falecimento deu-se o mesmo que costume acontecer com os grandes ídolos religiosos ou líderes políticos: nenhum dos seguidores tem o carisma do mestre para continuar sua obra. A briga pela sucessão de Maomé, logo de cara, originou uma crise que dividiu o Islã em duas facções historicamente adversas: sunitas e xiitas.

A compilação do Alcorão

O Corão (ou Alcorão, pela aglutinação do artigo árabe “Al”: o sentido de nome é “recitação”) foi escrito por várias pessoas e ao longo de muito tempo. Maomé, por ser analfabeto, não escreveu nada. Quando em vida, recitava a parentes e discípulos letrados versos que teria ouvido durante suas visões, ao longo de duas décadas. Os amigos ouvintes registravam os ensinamentos do Profeta em folhas de tamareira, pedaços de pergaminho, omoplatas de camelos ou pedras de várias formas. Durante as noites de vigília do Ramadã, Maomé reunia seus discípulos e recapitulava o conteúdo de suas visões. Depois de seu falecimento, foi recolhido o material disperso que, junto com os relatos das pessoas que se lembravam das palavras do Mestre, passou a constituir o corpus básico da nova doutrina considerada sagrada pelos islamitas.

A redação oficial do Corão, o texto fundamental, foi realizada, entre 650 e 656 (aproximadamente vinte anos após a morte de Maomé), durante o califado de Otman, que nomeou uma comissão para decidir o que deveria ser incluído ou excluído do texto final do Alcorão. Foi então constituído um "livro-referência" a partir do qual se criaram seis cópias que foram enviadas para Meca e outras cidades importantes. Outro texto que apresenta a doutrina muçulmana é o Hadith (Tradições), uma coletânea de ditos e decisões do Profeta, não registrados no Corão.

Como é fácil perceber, o processo de composição da Escritura islâmica não é muito diferente da Escritura judaica, cristã e de outras religiões. Não são os Profetas (Moisés, Salomão, Buda ou Cristo) que escreveram os textos considerados sagrados, mas seus discípulos ou devotos, geralmente depois de uma longa tradição oral, que acaba mitificando acontecimentos e personalidades e apresentando variantes e contradições. A diferença é que, enquanto os textos bíblicos são constantemente submetidos a novas exegeses, na tentativa de dirimir as dúvidas e explicar as passagens contraditórias, o Alcorão está proibido de ser investigado para evitar que os muçulmanos tenham dúvidas e se afastem da fé em Alá.

Os devotos do Islã se orgulham do Corão ser a única Escritura da história da humanidade que se tem preservada no texto original, sem mudar sequer uma vírgula. É preciso acreditar no que está escrito sem questionamentos, pois a palavra revelada a Maomé é “final e inalterável”, a última e definitiva “revelação” de Deus à humanidade. Os versos do livro sagrado nem sequer podem ser traduzidos. Por isso, todos os muçulmanos, independentemente de sua língua materna, recitam o Corão no árabe original. Nenhuma tradução poderia reproduzir o som das palavras que levam os devotos às lágrimas. Trata-se de uma sinfonia inimitável!

A doutrina islâmica

Maomé nunca se considerou um novo deus, mas apenas um novo Messias, um ser humano igual a Moisés e Jesus, que veio ao mundo para lembrar aos seus contemporâneos da Meca, que praticavam o politeísmo e tinham desvios éticos, a palavra esquecida de Abraão, o primeiro patriarca ao qual Jeová se revelara. Portanto, a doutrina islâmica está visceralmente ligada à do Antigo Testamento judaico, melhorado pelo evangelho de Cristo. Mas, evidentemente, além de pontos em comum, a religião islâmica apresenta divergências dogmáticas com relação ao judaísmo e ao cristianismo. Substancialmente, o Islamismo também acredita em Deus, nos Profetas, nas Sagradas Escrituras, na Predestinação, na Ressurreição e no Juízo Final, mas com variantes peculiares. A saber:

Todo muçulmano deve acreditar que existe um único Deus, de nome Alá, sendo Maomé seu principal Profeta. Nega-se, portanto, o dogma católico da Santíssima Trindade, que admite a divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O Islamismo é frontalmente contrário à divinização de qualquer criatura humana, inclusive Jesus Cristo, que teria nascido da Virgem Maria. O próprio Maomé não é considerado um ser divino, mas apenas um enviado de Alá para ensinar uma nova doutrina. O Corão menciona mais de vinte profetas, anteriores a Maomé, considerados “mensageiros” de Deus, locais ou nacionais, sendo Maomé o último e o único Profeta universal. O mesmo diga-se das Escrituras Sagradas: os muçulmanos não desmentem o que está escrito na Torá e no Evangelho, mas, para eles, o Corão é a fonte primeira do exato conhecimento da verdade religiosa. Tudo o que estiver de acordo com o Livro de Maomé deve ser considerado como verdadeiro e o que for diferente deve ser rejeitado.

Quanto à Predestinação, o muçulmano acredita que todos os acontecimentos estão previstos pela vontade divina, estando previamente fixados no livro do Destino. Tal crença passou à história com o nome de “fatalismo árabe”. Recentemente, esta doutrina vem sendo modificada, pois se percebeu que o fatalismo contradiz o princípio da liberdade pessoal, que eximiria o indivíduo da responsabilidade pelos seus atos e constituiria um obstáculo para o desenvolvimento social. Além disso, contrariaria a crença no Juízo Final (Quiyáma). Em vista de que o Corão admite que haja o fim do mundo, a Ressurreição dos corpos, que se juntariam para sempre com suas almas, e o Julgamento derradeiro, como atribuir culpas pelas ações feitas em vida se já estavam determinadas pela vontade divina? Em base a qual critério Deus poderia separar os bons, que iriam para o céu (Saná) ou paraíso (Jannat), dos maus que seriam castigados por seus pecados? A fé no Dia do Juízo Final, assim como na existência do Paraíso e do Inferno, é indispensável para promover a causa da moralidade e da bondade. O sentimento de justiça, que premia o bem e castiga o mal, não realizado neste mundo, exige sua satisfação numa outra vida. O conjunto da religião islâmica está condensado em cinco Mandamentos: fé, oração, esmola, jejum de Ramadã, peregrinação a Meca.

1) Fé (Chahara): “Eu testemunho que não há outra divindade além de Alá e que Maomé é seu enviado”. O Islã não considera a religião como um assunto pessoal ou uma atividade independente da vida cotidiana, praticada num dia da semana, como o sábado dos judeus ou o domingo dos cristãos. Não são “seis dias para mim” e “um para o Senhor”. A fé em Deus constitui uma organização social e pública, que afeta trabalhos, indústria, relações nacionais e internacionais. Para a crença muçulmana não existe o que no Ocidente chamamos de “secularismo”, a vivência das ações diárias do homem independentemente do sentimento religioso. Igreja e Estado são uma coisa só, não se cogitando um tipo de cidadania fora da crença na divindade. O muçulmano não precisa de batismo, como o judeu ou o cristão, pois a Lei islâmica, chamada Xaria, diferentemente da Torá ou do Evangelho, é aplicada natural e automaticamente, independente da vontade da criança ou de seus pais: o filho de um casal muçulmano já nasce muçulmano!

2) Oração (Salat): conforme o espírito do Corão, a vida do muçulmano deve ser regida pela constante oração, que relaciona estritamente o homem com a divindade, estimulando os elementos positivos e eliminando as tendências más. Na oração, o devoto de Maomé encontra uma lição de vida que lhe dá força moral e paz interior. Pelo ritual, rezar é obrigatório cinco vezes ao dia: oração da Alvorada, do Meio-Dia, do Meio da Tarde, do Pôr do Sol, da Noite. Não havendo autoridades hierárquicas, como em outras religiões (padres, pastores, rabinos), as orações são dirigidas por um membro da comunidade com grande conhecimento do Corão. Os versos são recitados em árabe, enquanto as súplicas pessoais podem ser feitas no idioma de escolha do muçulmano. E não há necessidade de freqüentar a Mesquita, pois o fiel pode rezar em qualquer lugar, em casa ou no trabalho. Importante é a posição correta: o corpo deve inclinar-se com o rosto em direção ao Caaba da Meca, e não mais para o Templo de Jerusalém, conforme o costume judaico. As crianças devem ser obrigadas a rezar a partir dos sete anos. Os adultos só podem ser dispensados em casos excepcionais: 05 dias durante a menstruação, 40 dias em ocasião do parto, no decorrer de uma doença grave. Ligado à oração, há o rito da ablução: lavar as mãos até o pulso, por três vezes, cruzando os dedos no decurso da lavagem, antes das orações; tomar banho completo após a relação sexual e em ocasiões especiais.

3) Esmola (Zacat): além de esmolas facultativas e ocasionais, existe a contribuição obrigatória, chamada no Corão de Zacat. Ela purifica a alma do contribuinte e elimina do seu coração o egoísmo e a sede de riqueza. A percentagem mínima a ser paga é 2,5% sobre bens móveis e imóveis. Por ser proporcional aos rendimentos de cada muçulmano, a taxa funciona também como uma forma de diminuir a diferença entre as classes sociais. O pagamento da Zacat é uma prescrição divina, não podendo ser confundida com qualquer imposto do Governo. Seus beneficiários principais são os muçulmanos em serviço da causa de Alá através da investigação, estudo ou divulgação do Islã. Essa taxa islâmica é cobrada também das povoações dominadas pelos muçulmanos, embora não queiram aderir à religião de Maomé. Muda apenas o nome: os não-islâmicos, além de pagar os tributos governamentais, são obrigados a pagar também a “Jizia”.

4) Jejum (Saum): abstinência de comida, bebida, sexo e fumo, da alvorada ao pôr do sol, durante o Ramadã, o nono mês do ano islâmico. O jejum tem várias finalidades: mente clara para pensar e corpo leve para agir; espírito da igualdade de todos perante a lei; submissão à ordem e à disciplina; estímulo à poupança fazendo economias; renúncia aos interesses terrenos; regime para manter o corpo em forma. Diferentemente da Quaresma dos cristãos, o Ramadã, que segue o calendário lunar, muda de período, podendo acontecer em qualquer estação do ano.

5) Peregrinação a Meca (Hadjdj): lê-se no Antigo Testamento da religião judaica que Abraão tinha 100 anos quando teve Isaac com a esposa Sara e 86 anos quando nascera Ismael por uma relação extraconjugal com a escrava egípcia Agar (Hajra). Portanto, tendo Ismael nascido 14 anos antes de Isaac e Abraão levado para o sacrifício seu “filho único”, este só podia ter sido Ismael, nunca Isaac. A não ser que Deus fosse tão injusto ao ponto de negar a legitimidade de uma criança pelo fato de ser filho de uma escrava! Com base nisso, a tradição muçulmana narra que Agar, expulsa da casa de Abraão, levou seu filho Ismael para a Meca e lá ajudaram a construir o santuário do Caaba, depositário da Pedra Negra, em recordação do profeta Abraão, considerado o Grande Avô dos árabes. Ismael teria sido levado para o sacrifício no Monte Marwat, perto da Meca, cidade que se tornou o centro espiritual do Islã, como Jerusalém para os judeus e Roma para os cristãos. A Peregrinação a Meca é uma convenção anual de Fé coletiva (no último mês do calendário islâmico) e individual (em qualquer outra época), obrigatória para todo muçulmano em condições físicas e econômicas.

O Islamismo no tempo e no espaço

Maomé abandonou este mundo sem indicar seu sucessor ou deixar normas testamentárias para seus familiares e seguidores. Assim, as rivalidades e inimizades, que ele conseguira controlar durante sua existência, explodiram em lutas sangrentas, depois de sua morte. Cada chefe dos quatro clãs, chamado de “califa”, representante de Maomé na terra, achava-se o legítimo sucessor do Profeta. Enfim, ficaram para a história dois grupos: os “Sunitas” (de suna = caminho moderado), assim denominada a grande maioria que seguiu a doutrina original de Maomé; e os “Xiitas” (de shi at Ali), filiados ao partido de Ali, casado com Fátima, uma filha de Maomé, que constituem a ala extremista, mais rigorosa.

Mas, apesar das lutas intestinas, o Islamismo, gradativamente, avançou por todo o Oriente Médio, conquistando Iraque, Palestina, Pérsia, Síria, Egito. Chegou também à Europa Ocidental, conquistando várias regiões banhadas pelo mar Mediterrâneo, especialmente as costas da França, da Península Ibérica e do Sul da Itália. A expansão islâmica foi se intensificando ao longo de dois séculos de uma forma incontesta. Mas, a partir do séc. VIII, começou o período da decadência motivado por causas internas e externas. Houve uma fragmentação da umma, a comunidade muçulmana, pois a supremacia do califado começou a ser questionada e formaram-se vários governos independentes, cada um com feição própria. Decisivas foram as invasões dos mongóis e dos turcos.

De outro lado, a Europa cristã começava a se despertar do longo sono medieval, enfrentando os árabes em seu próprio território. As Cruzadas, a partir do séc. XI, quebraram o domínio dos muçulmanos na Palestina, tentando conquistar a cidade santa de Jerusalém, onde estava o Sepulcro de Cristo. O golpe final ao poderio islâmico na Europa se deu em 1492, quando o rei Fernando da Espanha derrubou o califado de Granada. A partir de 1500, o mundo islâmico se dividiu em vários centros de civilização muçulmana, entre os quais se destacam a cultura árabe, com o predomínio do Egito, e o império otomano, na Turquia, cuja capital Constantinopla, tomada pelo turcos em 1453, passara a se chamar Istambul. Para ter uma idéia da sobreposição de culturas, basta observar que a civilização “bizantina” passou por várias fases, cada qual dando um novo nome à cidade principal: Bizâncio era a antiga colônia grega, fundada no séc. VII a.C., no estreito do Bósforo, que separa a Turquia asiática da parte européia; tomou o nome de Constantinopla, quando o imperador Constantino o Grande a tornou capital do Império Romano do Oriente, no séc. IV d.C.; passou a se chamar Istambul ao ser conquistada pelos muçulmanos, no séc. XV d. C.

Reflexões sobre religião e cultura muçulmana

“Deus deu a cada povo um profeta em sua própria língua”.

A afirmação acima é do profeta Maomé, justificando sua missão. Falando o árabe de sua época, sua pregação encantou a classe humilde dos pobres e das pessoas incultas, no mesmo tempo em que provocava a inveja e o ódio dos judeus e dos cristãos ricos. Lutando contra inimigos internos e externos, o Profeta teve o mérito de transformar tribos nômades, dispersas num árido deserto, no maior império do mundo daquela época. Isso foi possível porque Maomé conseguiu despertar nos árabes uma consciência de nacionalidade, unificando as tribos vizinhas sob a bandeira de Alá e infundindo em seus espíritos uma ideologia religiosa e patriótica, ao mesmo tempo, renovando assim a mensagem de redenção do povo árabe, na trilha do antigo profeta Moisés.

A expansão do Islã propiciou prosperidade econômica e renascimento cultural. Enquanto a Europa cristã continuava no atraso medieval, os descendentes de Maomé cultivavam filosofia, artes, ciências. Alfarabi (870-950) foi o primeiro grande filósofo do Islã, que escreveu tratados sobre metafísica e música. Avicena (980-1037), além de filósofo, foi também poeta e médico, conhecido por ter divulgado as obras do grego Galeno. Seu texto mais importante foi o Cânon da Medicina. Outro filósofo muçulmano, Averróis (1126-1198), tornou-se famoso pela tradução das obras de Aristóteles do grego para o latim. Tal façanha mereceu elogios até do grande poeta italiano Dante Alighieri, na sua Divina Comédia, visto que, naquela época, a língua grega era estranha aos europeus. Além disso, ele foi o primeiro estudioso a colocar a filosofia a serviço da teologia, servindo-se dos ensinamentos do filósofo de Atenas para a exegese de trechos do Corão.

Falta-me competência para falar da influência da religião islâmica nas artes plásticas, especialmente na arquitetura. As manifestações artísticas dos pequenos impérios de persas, bizantinos ou turcos, anteriores ao advento do Islamismo, encontraram seu ponto de convergência na língua árabe em que foi escrito o Corão e na nova espiritualidade imposta pela religião de Maomé. A maioria dos povos do Médio Oriente e do continente asiático passou a se identificar mais com o termo “muçulmano” do que “árabe”, pois não foi a política, mas a religião a dar o grande impulso para a construção de mesquitas maravilhosas em várias cidades dominadas pelos islamitas.

Depois da destruição do último Templo de Jerusalém, em 70 d.C., passaram-se mais de seis séculos até que a Cidade Santa, sede das três grandes religiões monoteístas, tivesse outro templo majestoso. E, desta vez, sobre a égide do Islã. O califa Abd al-Malik, em 691, mandou construir a dourada Cúpula do Rochedo, sobre a rocha Sakkra, ponto culminante do Monte Moriah, lugar indicado a Abraão por Jeová para o sacrifício de seu filho Isaac. Desta Cúpula, Maomé teria ascendido ao Céu, conforme está escrito no Corão. Relevamos, de passagem, um anacronismo: se a construção terminou 59 anos após a morte do Profeta, como ele podia ter partido de lá? Efetivamente, a religião tem pouco a ver com a história ou outra ciência humana! Voltando ao assunto: foi a partir desta época que o estilo arabesco começou a influenciar outras formas de arte, como a bizantina, a gótica, a renascentista.

Também quanto ao aspecto especificamente religioso, o Islamismo registrou relevantes avanços com relação aos credos anteriores. A meu ver, o ponto crucial em que a doutrina islâmica supera a cristã se encontra na afirmação do princípio jurídico da “intransferibilidade” da culpa. Em nenhum Tribunal ou Corte de Justiça do mundo humano alguém pode ser responsabilizado pelo pecado de outra pessoa. Se isso se dá na Terra, por que no Céu deveria ser diferente? Como pode se considerar culpado um ser inocente, uma criança que acaba de nascer? Será que Deus é menos justo do que o homem, sua criatura?

O Alcorão, diferentemente da Bíblia, ensina que o pecado de Adão não se transferiu para a humanidade e que ninguém nasce com uma culpa original. A responsabilidade pelo pecado não é hereditária, nem transferível, nem comunitária. Conseqüentemente, vários dogmas da religião católica são rechaçados: Jesus Cristo foi apenas mais um Profeta, não sendo Filho de Deus, pois existe apenas Unidade e não Trindade divina; não há necessidade de batismo, pois a alma não nasce maculada; as pessoas que não receberam instruções divinas não podem ser castigadas neste mundo nem no outro; a crucificação de Cristo não aconteceu para redimir a humanidade, que não precisava desse sacrifício; nenhum ser que nasce do homem pode ser considerado Santo, com o poder de interceder junto a Deus.

Quanto à moral, os conceitos básicos do Islã, que podem ser apontados surfando os versos do Alcorão e do Hadith, como igualdade, liberdade, fraternidade, paz, comunidade, caridade, se aproximam de uma ética universal. Na verdade, os escritos atribuídos a Maomé e considerados sagrados são apenas uma miscelânea composta de versículos da Torá e dos Evangelhos, de máximas dos rabinos, de provérbios indianos, da sabedoria do persa Zaratustra, de trechos de pensadores gregos. A doutrina moral muçulmana está baseada na filosofia do bom senso e do equilíbrio, na busca da aurea mediocritas, já decantada em versos belíssimos pelo poeta latino Horácio. A ética de Maomé teve como antecedente o Evangelho do Amor, apregoado por Jesus Cristo e, como conseqüente, os ideais da Revolução Francesa. Como exemplo do conceito de honestidade, transcrevo o seguinte trecho atribuído a Maomé:

“Quem confiar a uma pessoa um cargo público enquanto na sua sociedade houver outra melhor para desempenhar aquele cargo, atraiçoa a confiança nele depositada por Deus, pelo seu Mensageiro e pelos muçulmanos”.

Um estudioso dos textos islâmicos comenta que um governante religioso deveria ter responsabilidade dupla: perante seu Deus e seu povo; e um fiel de Alá tem que participar ativamente na solução dos assuntos públicos.

Mas, na prática, a teoria é outra. Tudo muito bonito e edificante, mas, para quem não quiser renunciar à lucidez mental, é difícil acreditar que o que está escrito no Alcorão é realmente a palavra de Deus. Passaram-se quase 14 séculos e o Islamismo não apresentou os resultados esperados. Segundo o dito evangélico, “uma árvore se conhece por seus frutos”. E os frutos do Islamismo, assim como os do Judaísmo e do Cristianismo, não foram bons, pois a realidade humana continua salpicada de ódios étnicos, guerras, injustiça, miséria. A verdade é que, como as outras religiões, o Islamismo é uma grande ilusão, pois não existem messias, enviados de Deus. Quem ousa achar-se tal deve ser considerado um presunçoso que, num sentido contrário, nos dá uma prova cabal da não existência de Deus. E sim, porque se Deus existisse realmente, Ele se revelaria a todos os homens, seus filhos. Por que escolher Moisés ou Maomé, judeus ou árabes? E os outros povos que viveram antes destes profetas ou habitam regiões longínquas, como os indígenas da Patagônia ou da Oceania? Eles não merecem ouvir a palavra de Deus? Será que não foram criados por Ele e não são também seus filhos?

A resposta mais ouvida é que a vontade de Deus é inquestionável. Ele faz o que quer, quando quer, como quer e onde quiser. Mas, então, não estaríamos falando de um Deus, mas de um déspota qualquer. Todavia, Ele é concebido por todas as religiões como o Ser Supremo, possuidor de todas as virtudes no máximo grau: Ele é onipotente, onividente, onipresente, previdente, amoroso, justo. Mas, ao mesmo tempo em que afirmam tudo isso, os devotos de qualquer religião atribuem a Deus características que são próprias dos humanos, tais como o orgulho (Ele exige subserviência, adoração, sacrifícios, preces), o ciúme (não pode se prestar culto a outra divindade), a prepotência (manda e desmanda, sem dar satisfação a ninguém), injustiça (escolhe um homem ou um povo para salvação, em detrimento de outros).

Acontece que, como dizia um filósofo pré-socrático, “o homem é a medida de todas as coisas”: cada qual julga tudo a partir de si. Portanto, qualquer líder religioso, sendo humano, só pode olhar as coisas pelo prisma da sua precariedade. Aliás, ele deve ser considerado de uma humanidade inferior porque seu fanatismo religioso lhe impede de pôr ao serviço da busca da verdade a capacidade de raciocínio, que é uma peculiaridade da natureza humana. O pior é que a grande massa do povo, tendo preguiça de pensar, acaba sendo levada pela cabeça de ídolos religiosos e líderes políticos. Com relação específica à religião muçulmana, são oportunas algumas reflexões:

1) Conforme estudiosos do Islamismo, Maomé recebeu a Revelação não apenas no monte Hira, pelo Arcanjo Gabriel, mas ao longo de 23 anos, de uma forma ininterrupta. Sendo ele analfabeto, costumava ter ao seu lado escribas, que tomavam nota de seus ensinamentos. Ora, não está explicado se o Arcanjo Gabriel apareceu só uma vez ou constantemente ou havia outros emissários divinos. É mais provável que a doutrina vinha sendo redigida pelos assessores de Maomé, que era gente culta, durante as conversas com o Profeta. Portanto, é lícito duvidar da autoria divina dos textos que compõem o Corão. “Maomé disse” não quer dizer que foi ele mesmo quem disse e muito menos que o próprio Deus tivesse dito a ele!

2) Por que Maomé é considerado o “último” Profeta? Por que a palavra dele tem que ser ouvida como definitiva e absoluta? Pensar que Deus o teria escolhido como ponto final da Revelação, a pessoa em quem se condensasse toda a Verdade, per omnia saecula saeculorum, não é muita pretensão? O que mais causa estranhamento no Islamismo é a fixidez, o imobilismo de sua doutrina. Os versos do Corão são intraduzíveis e indiscutíveis, irredutíveis assim como seus rituais (rezar cinco vezes por dia, na hora marcada, na posição correta) e seus costumes, que têm que seguir tradições multisseculares. Ora, a rigidez é própria da morte, enquanto a vida é movimento, evolução que leva ao melhoramento. Ninguém aprende nada de novo, se ficar apenas repetindo as mesmas convicções. Creio que se Maomé (ou o círculo de seus discípulos cultos) voltasse ao mundo agora, ele daria um banho de Darwin e de Einstein no seu Corão!

3) Pela obrigação da Guerra Santa (Jihad), os muçulmanos estão convencidos de ter recebido a permissão de Deus para divulgar sua fé pela ponta da espada. As primeiras lutas sangrentas de Maomé contra seus perseguidores da Meca são explicáveis, pois se tratava de legítima defesa da liberdade de culto. Já a sede de sangue e do botim de guerra com que assaltaram outros povos para impor o credo muçulmano não tem a mesma motivação. Afinal, foram os navios árabes que bloquearam o mar mediterrâneo e dominaram cidades costeiras habitadas por cristãos e não primeiramente os ibéricos a invadir o solo africano.

Na verdade, para o muçulmano, a luta religiosa é um mandamento divino, pois o Corão obriga seus fiéis a difundir a fé em Alá, sob pena de serem responsabilizados pelos pecados dos que não forem convertidos. O verdadeiro crente não pode descansar enquanto o mundo inteiro não se ajoelhar aos mandamentos da Lei islâmica. Neste sentido, a religião apregoada por Maomé apresenta aspectos de fanatismo racista, como qualquer tipo de radicalismo ou de fundamentalismo. Um exemplo clamoroso de violência contra a liberdade de pensamento foi a condenação à morte do escritor Salman Rushdie, em 1989, pela publicação da obra Os versos satânicos, considerada ofensiva à religião de Maomé, segundo os Aiatolás do Irá: sua cabeça foi posta a prêmio por dinheiro e pela promessa do paraíso. Ele ficou durante muito tempo escondido, temendo a vingança dos fiéis da Jihad.

4) O estudo da personalidade de Maomé nos leva a perceber que o último dos três grandes profetas está mais próximo do primeiro do que do segundo. Era de se esperar que, como a figura espiritual de Jesus superou a de Moisés, substituindo o Antigo pelo Novo Testamento, o novo profeta viesse, seis séculos depois, para aperfeiçoar ainda mais a mensagem de Cristo. Mas, neste aspecto, houve um retrocesso. Maomé retomou a velha tradição judaica de matar em nome de Deus e de usar as mulheres como escravas domésticas. Acontece que as tribos humanas, quanto mais afastadas no tempo e no espaço, mais se aproximam dos animais, vivendo em função da lei da selva: matam para conseguir os alimentos (instinto da conservação própria) e os machos irrigam o sêmen em várias fêmeas (instinto da conservação da espécie).

Esse era o costume que ainda vigorava nas povoações árabes na época de Maomé. Teria sido muito bom se o novo Profeta, sentindo-se inspirado por Deus para dar uma nacionalidade ao povo árabe e difundir um novo conceito de espiritualidade no mundo todo, tivesse superado essas antigas tradições desumanas. Infelizmente, do ponto de vista ético, seu exemplo de vida foi pior do já existente: enquanto os costumes tradicionais dos árabes permitiam que um homem pudesse ter mais de uma esposa, desde que tivesse condições econômicas para sustentá-las, Maomé, pobre e inculto, encostou-se numa viúva rica, bem mais velha do que ele, para ascender socialmente. Inverteu a tradição: a mulher, em lugar de exigir, ela oferece o dote para ficar com o Profeta. E não foi só uma: conforme relatam os escritos sobre ele, Maomé casou com mais 15 mulheres, todas elas viúvas abastadas. Por ultimo, já mais velho, ficou noivo de uma menina de 9 anos, para aquecer sua concupiscência.

5) Questionando a estrutura da família: por que o deus Alá, que teria se revelado a Maomé, não lhe fez entender que a poligamia gera um caos familiar, sendo um desrespeito ao direito das mulheres e das crianças? É humanamente impossível que um homem possa cuidar dignamente de várias esposas e de inúmeros filhos, ao mesmo tempo. Se o relacionamento entre um homem e apenas uma mulher já é conflitante por gerar o choque entre duas personalidades diferentes, imagine-se que inferno deva ser a convivência entre várias esposas do mesmo marido. Isso só é possível numa sociedade em que a mulher seja desprovida de qualquer direito ou vontade, considerada apenas mais um objeto de uso doméstico, uma prisioneira coberta por uma burca, que torna desnecessário o uso de depilação, de maquiagem, de estudo, de trabalho, de participação na vida social. Será que a escravidão da mulher é vontade de Alá? Até quando irá durar o costume do pai do noivo escolher esposas em troca de porcos ou camelos?

E o que dizer, então, da prole numerosa? Quem é pai de verdade sabe que cada filho é um problema para o resto da vida, precisando de sustento, assistência, afeto, educação, encaminhamento para uma profissão. E isso não é um favor, mas um dever do pai e um direito da criança, pois nenhum ser humano pede para vir ao mundo. Gerar muitos filhos é seguir o costume dos animais que criam sem educar. Não é difícil constatar que quanto mais uma sociedade humana é civilizada, menor é o índice demográfico. A escravidão da mulher e a falta de planejamento familiar são heranças de uma sociedade patriarcal e machista que ofende a inteligência e o sentimento humano.

6) O fator fundamental que impede o avanço civilizacional dos povos de religião muçulmana é o regime teocrático, que permite o acúmulo do poder civil e religioso nas mãos de aiatolás, os mais altos dignitários da hierarquia islâmica. Estes se apresentam ao povo como enviados de Alá, tornando, assim, doutrina e preceitos incontestáveis. A submissão das mulheres, por exemplo, é legitimada por ser considerada vontade de Deus, conforme está escrito no Corão. O declínio da civilização árabe, em contraste com o progresso do mundo ocidental, é sempre atribuído a um culpado externo, especialmente o capitalismo norte-americano, considerado o grande Satã, contra o qual são alimentadas as várias forma de terrorismo, que chegam à autodestruição.

Mas uma luz está aparecendo no fim do túnel. Ultimamente, especialmente no Irã, a antiga Pérsia de longa tradição cultural, as mulheres estão começando a protestar publicamente contra a opressão dos aiatolás, lutando pela igualdade dos direitos civis. Esta luta poderá finalmente ter êxito graças à mídia eletrônica, contra a qual a censura religiosa e política têm pouco poder. A invenção da internet está tirando os povos do isolamento, da ignorância, do engano. Gente de cultura islâmica pode entrar diretamente em contato com pessoas de outra civilização, comparando e julgando diferentes modos de vida. Os horizontes se ampliam, permitindo constatar a relatividade da verdade e a estupidez da crença em valores absolutos.

VI – A Renascença da Europa: do Humanismo ao Iluminismo.

O Renascimento depois do ano Mil: as Cruzadas.

Volta e meia, são veiculadas notícias sobre um próximo fim do mundo por crentes de vários credos, que acham que os tempos estão acabando, tendo chegada a hora do Juízo Final ou do Apocalipse. Tornaram-se famosas as profecias de Nostradamus, médico e alquimista francês da época da Renascença. Anteriormente, na primeira fase da Idade Média, as superstições sobre o fim do mundo eram abundantes. Por uma delas, os povos acreditavam que o mundo acabaria no fim do milênio. Mas, a data redonda passou e a vida no planeta continuou. Então, um sopro de vitalidade se espalhou pela Europa toda, despertando o homem do longo sono em que vivera na primeira época da Idade Média. O devoto esclarecido começou a sentir a necessidade de questionar os dogmas em que devia acreditar, de entender sua crença, de ter a liberdade de pensar com sua própria cabeça. O pioneiro deste novo tipo de homem medieval foi o francês Pedro Abelardo (1079-1142), lingüista, teólogo e filósofo. Ele se tornou famoso por nutrir uma louca paixão amorosa pela bela Heloísa, sobrinha de um cônego rico, contrário ao casamento por motivo de diferença de classe social. O trágico fim dos dois amantes espelhou o mito do amor romântico de larga fortuna na literatura e nas outras artes. Ficou famosa sua expressão:

intelligo ut credam (“quero entender para acreditar”),

em oposição ao lema anteriormente usado

credo ut intelligam (“eu acredito para entender”).

Esta postura intelectual de Abelardo será retomada séculos depois, quando a Renascença européia chegou ao ápice.

O primeiro passo importante para a gradativa passagem da Idade Média ao Renascimento foram as Cruzadas. Até a segunda metade do séc. XI, houve uma convivência pacífica entre os muçulmanos, chamados também de árabes ou sarracenos, e os cristãos que faziam suas peregrinações a Jerusalém, onde estava o Sepulcro de Cristo, e a outros lugares sagrados. Mas, com o início da decadência do Império Romano do Oriente, de cultura greco-bizantina, hordas de turcos da dinastia dos seldjúcidas ocuparam, em 1071, a cidade considerada santa pelas três religiões monoteístas. Eles começaram a capturar os peregrinos, vendendo-os como escravos. O Papado de Roma, apesar do cisma de 1054, que separara a igreja cristã em Romana (ocidental) e Ortodoxa (oriental) reagiu ao ataque dos turcos, convocando todos os reis e príncipes cristãos da Europa para libertar a cidade de Jerusalém.

O apelo do papa Urbano II foi atendido de bom grado, porque, além do motivo da defesa da fé cristã, os comandantes dos exércitos europeus vislumbravam negócios lucrativos com o Médio Oriente, uma vez quebrada a hegemonia árabe no mar Mediterrâneo. Foram organizadas seis expedições militares ao longo de quase dois séculos. A primeira “Cruzada”, assim chamada porque os soldados cristãos usavam uma cruz estampada no peito, aconteceu em 1096 e foi um fracasso. Logo se seguiram outras, capitaneadas por príncipes franceses e alemães, que conseguiram libertar o Santo Sepulcro de Cristo, mas não de uma forma definitiva.

Se, do ponto de vista militar, as Cruzadas não tiveram o resultado esperado, sua contribuição para o desenvolvimento econômico e cultural da Europa foi enorme. Ao romper o predomínio muçulmano na bacia do Mediterrâneo, abriam-se as portas para a troca de mercadorias e o intercâmbio cultural entre civilizações diferentes. Quem mais se beneficiou foram as cidades marítimas italianas (Nápoles, Gênova, Pisa, Veneza), banhadas pelo Tirreno e Adriático, que se tornaram as primeiras potências econômicas da época medieval. As Cruzadas provocaram a primeira revolução comercial estabelecendo uma ponte entre o Ocidente e o Levante.

O surgimento das línguas neolatinas: a lírica trovadoresca

Outro fator fundamental para o início do renascimento foi o surgimento das línguas neolatinas, também chamadas românicas ou modernas, em oposição às línguas clássicas ou mortas (grego e latim). A maior parte dos povos europeus, a partir do séc. I a. C., foi obrigada a aprender a língua dos conquistadores romanos, que impuseram o latim em todas as regiões por eles colonizadas. Tal fenômeno é comum, pois o fator cultural geralmente está na dependência do poder militar e econômico. Aconteceu não apenas com o império romano, mas, sucessivamente, com o poderio espanhol, francês e britânico. Hoje, estamos sob a égide do imperialismo norte-americano, que nos obriga a estudar a língua inglesa elevada à condição de língua internacional.

Com a decadência do império dos Césares, no séc. V d.C., não havendo mais a pressão de Roma sobre suas colônias, os povos que habitavam a península ibérica e italiana e o centro da Europa iniciaram um longo processo de diferenciação de suas falas, afastando-se da língua do antigo dominador. A língua latina, que permanecera o idioma oficial da igreja católica e das instituições públicas, já não sendo mais falada pelo povo, começa a ceder lugar aos dialetos regionais, que vinham se afirmando por força do substrato (os dialetos locais anteriores à imposição da língua dos romanos) e do superstrato lingüístico (os dialetos dos bárbaros e dos árabes, que passaram a ocupar os territórios dos latinos).

O processo de formação das línguas nacionais durou, aproximadamente, seis séculos, devido ao isolamento regional e ao predomínio da religião cristã que conservava e universalizava o uso do latim (o que tenta fazer até hoje!). Somente depois da virada do primeiro milênio começaram a aparecer documentos escritos em francês, italiano ou galego. Os fatores do substrato e do superstrato explicam as diferenças entre as várias línguas modernas, enquanto a descendência do mesmo cepo, o latim, que é a língua-mãe, dá conta das semelhanças.

Os primeiros documentos numa língua românica foram escritos no francês falado na região da Provença, a langue d’ oc. E, como nas origens de qualquer língua, estão registrados em versos, pois a poesia (a linguagem infantil e natural) vem sempre primeira do que a prosa (a língua da maturidade, regulada pela gramática). A poesia provençal é chamada também trovadoresca, de “trovador” (do latim trobare, que deu o italiano trovare = encontrar), o poeta que encontrava a rima certa. Do Sul da França os trovadores se espalhavam pelas cortes da Europa, prestando sua vassalagem às damas em versos do mais puro lirismo. O tema recorrente é a aspiração a um amor impossível, pois a dama cantada geralmente é uma senhora casada e de condição econômica bem superior à do menestrel. A poesia trovadoresca apresenta uma concepção revolucionária do amor, ao mesmo tempo espiritual e adulterino, nunca antes vista na literatura ocidental.

Tal temática tem instigado os estudiosos, que formularam várias teses na tentativa de explicar essa contradição. A hipótese mais sugestiva é que a mulher amada é considerada um ideal inalcançável por representar a soma das virtudes que ultrapassam o desejo sexual, material. A namorada do trovador seria o símbolo da Grande Mãe partenogenética, que dá à luz sem a intervenção do macho, constituindo o princípio estável em que o homem se refugia, especialmente quando se sente acossado pelas dificuldades da vida. A união espiritual do trovador e de sua amada seria a reconstrução do mito ancestral do ser bissexuado, chamado de andrógino ou hermafrodito, que existiria no mundo antes de Júpiter separar o elemento masculino do feminino, com o fim de enfraquecer o ser humano. E, sendo a mulher amada casada com um homem poderoso, o desejo de um amor adúltero, mesmo fisicamente irrealizável, não deixa de ser uma revolta contra o autoritarismo machista, simbolizado pelo marido, pai, governante, personificado no mito grego de Júpiter, como vimos anteriormente.

A poesia provençal influenciou as composições líricas de outras regiões da Europa. Na língua portuguesa, a “cantiga de amor” é que melhor espelha o rebuscamento da poesia trovadoresca. Mas, paralelamente à imitação da poética que vinha do Sul da França, os poetas galego-portugueses cultivaram também formas poemáticas autóctones: o lirismo paralelístico e simbólico da “cantiga de amigo” e os versos realísticos e satíricos da “cantiga de escárnio”. As produções poéticas medievais da península ibérica, de 1200 a 1350, de autoria de Dom Dinis, Martim Codax e Pero Meoro, entre outros, foram conservadas no Cancioneiro da Ajuda, da Biblioteca Nacional de Lisboa e da Biblioteca do Vaticano, em Roma.

Mas o maior poeta lírico da época medieval foi o italiano Francesco Petrarca (1304-1374) que superou a herança do trovadorismo, tornando-se um mestre de poesia pela criação do chamado “doce estilo novo”. Abolindo o formalismo dos poetas de inspiração provençal, ele ensinou a adequar as palavras ao sentimento, expressando o que realmente o poeta sente por dentro. Nas duas coletâneas, As Rimas e Os Triunfos, o grande poeta florentino exprime a antítese entre as aspirações ascéticas, próprias da mundividência medieval, e as seduções mundanas do início da renascença. Seu modo de fazer poesia, chamado de “petrarquismo”, influenciou a produção lírica da posteridade. Camões, o maior poeta lírico da renascença portuguesa, muito lhe deve.

A formação das nacionalidades européias: os cantos épicos

Além da poesia lírica, a segunda fase da idade Média nos deixou o registro de filões de ficção narrativa transmitidos oralmente, ao longo de muitos séculos: o ciclo bretão, centrado sobre a figura do Rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda, na Inglaterra; o ciclo carolíngio, em torno de Carlos Magno e os Paladinos da França; El cantar de mio Cid, na Espanha; a Canção dos Nibelungos, na Alemanha. Trata-se de histórias fantásticas criadas pela imaginação popular sobre os heróis que contribuíram para a formação das várias nacionalidades. Não havendo ainda uma língua escrita, as façanhas eram narradas em versos, para uma melhor memorização e transmissão de pai para filhos. Segue uma breve apresentação desses poemas, relevando sua importância para a tradição cultural e a formação das principais nacionalidades européias. Se a poesia lírica medieval tratava do tema do amor, o canto épico e a novela de cavalaria têm por assunto principal a luta patriótica. Mas os dois motivos se entrelaçam, pois amor e guerra andam sempre juntos.

A Demanda do Santo Graal: a epopéia britânica e o espírito medieval

A lenda sobre o “Santo Graal” (vaso) remonta a José de Arimatéia, o discípulo de Jesus que recolheu num cálice as últimas gotas do sangue de Cristo e colocou o corpo do crucificado no túmulo, razão pela qual foi perseguido e aprisionado pelos judeus. Ele teria sido visitado por Jesus na prisão e libertado por Vespasiano, depois que este foi curado de lepra, envolto no véu da Verônica, a mulher de Jerusalém que enxugou o rosto de Cristo. Esta lenda deu origem à devoção do Santo Sudário, imagem de Jesus ainda conservada na Catedral de São Pedro, em Roma. (Olhem a anacronia: Vespasiano foi Imperador no decênio 69-79 depois de Cristo, quando José de Arimatéia devia estar... bem velhinho!). Enfim liberto, José instituiu a confraria do Graal, com o fim de guardar a santa relíquia do sangue de Cristo. Depois de sua morte, um cunhado teria levado o Santo Vaso, junto com seus doze filhos, para a Inglaterra.

A lenda cristã acerca do Graal se cruza com a vida do lendário rei de Gales, Artur, que viveu entre o séc. V e VI. A figura do rei Artur como herói nacional está ligada à resistência dos celtas contra os anglo-saxões. Ele teria apaziguado as tribos rivais e conferido unidade nacional ao povo britânico, sob a égide do Cristianismo, de forma semelhante ao que fizera Moisés com tribos hebraicas e fará Maomé, um século depois, com tribos arábicas.

Sobre o assunto, na França e na Inglaterra, se divulgaram vários cantos de amor e guerra que, após uma longa tradição oral em versos, deram origem às novelas de cavalaria em prosa, traduzidas em várias línguas modernas, a partir do início do séc. XIII. A matéria da Bretanha constitui um vastíssimo complexo de textos, em versos e em prosa, que narram aventuras mirabolantes. Além do rei Artur, personagens importantes são os heróis Percival, Boors e Galaaz, o traidor Lancelot que arrebata a noiva do bondoso Artur, Tristão e Isolda. Apenas para saborear a forma e dar uma idéia do conteúdo da Demanda do Santo Graal, transcrevo um trecho do episódio “A Tentação de Galaaz”, quando o jovem herói, cavaleiro andante, junto com o amigo Boors, chega ao castelo do rei Bruto e recebe hospedagem:

“E depois que estavam dentro e foram desarmados, o rei os fez assentar perto de si e fez-lhes muita honra e começou a perguntar de seus feitos. E eles lhe disseram um pouco de algumas coisas. E a filha do rei Brutos, que era muito formosa, olhou muito tempo Galaaz e pareceu-lhe tão formoso e tão bem feito, que o amou entranhadamente, como nunca amou tanto nada do mundo, que não tirava dele os olhos; e quanto mais o olhava, mais gostava dele e mais o amava”.

O texto continua narrando que a mocinha, de noite e apenas de camisola, entra no quarto do jovem herói e se deita na cama junto dele. Mas, ao passar a mão pelo corpo para despertá-lo, percebe que ele usava a “estamenha”, uma malha que funcionava como cinto de castidade. Mesmo assim queria que o jovem fizesse amor com ela, caso contrário ela se mataria. Galaaz não acreditou na ameaça e não cedeu ao apelo erótico da mocinha. E ela, não suportando o sentimento de rejeição, trespassa seu corpo com a espada de Galaaz.

Do ponto de vista da coerência interna à própria obra, podemos apontar vários elementos de inverossimilhança no texto em tela, especialmente na caracterização da personagem feminina: uma paixão repentina e tão violenta não é admissível numa mocinha de apenas quinze anos; o impulso amoroso é sem motivo, pois o jovem herói nem sequer olhara para ela; a moça nem teria a força física suficiente para empunhar a espada enorme e fazê-la penetrar no corpo inteiro, do peito até às costas; a espada nem sequer estava no quarto de Galaaz, pois, conforme está dito acima e seguindo as normas do código da cavalaria, a arma foi deixada na casa das armas, na entrada do castelo. Como se vê, o princípio da verossimilhança (a arte parecida com a realidade), que era o preceito fundamental da estética clássica, não é tido em conta pela arte medieval. Não existe mais racionalidade, bom senso, equilíbrio, meio termo. O ser humano é visto ou como um anjo ou como um demônio.

Tal mentalidade medieval é expressa teoricamente pela doutrina do pensador religioso Maniqueu (216-277), também chamado de Mani ou Manés), oriundo de uma seita da Mesopotâmia, também ele crucificado por pregar uma nova doutrina de salvação e se achar outro profeta. O fundador do Maniqueísmo admitia uma perpetua luta entre o princípio do Bem (Deus, o espírito) e o princípio do Mal (o Diabo, a matéria). Os dois princípios seriam antagônicos e irredutíveis, constituindo um Dualismo Cósmico que explicaria a oposição entre a alma e o corpo, a luz e as trevas, o amor e o ódio, a bonança e a tempestade. A igreja de Roma, evidentemente, condenou a doutrina maniqueísta, pois não podia admitir a coexistência de dois seres absolutos, independentes na sua origem. Mas persistem as perguntas: se o Diabo existe, por quem ele foi criado? Se foi um anjo que se rebelou, por que Deus lhe deu tanto poder? Como conciliar a existência do mal, do sofrimento de criaturas inocentes, face à imensa misericórdia divina?

Na verdade, o dualismo cósmico é uma configuração mental de arquétipos do comportamento humano, existentes antes e depois da teoria do agnóstico Mani. Encontramos tal dualismo nos mitos cosmológicos de Urano (Céu) e Gaia (Terra), na oposição apolíneo vs dionisíaco, nos personagens bíblicos de Abel e Caim, na postura opositiva da estética clássica e romântica, no estudo das profundezas da psique humana, onde Freud diferencia o “id” (a força do instinto individual) do “superego” (o poder das injunções sociais). Felizmente, o pai da Psicanálise encontra uma síntese entre a oposição do código da natureza vs o código cultural: é o “ego”, o eu consciente, que medeia entre os dois extremos, propiciando o equilíbrio ao ser humano. É a inteligência que faz a diferença!

La Chanson de Roland: a epopéia francesa.

Em 778, poucos anos antes do rei da França, Carlos Magno, ser coroado Imperador pelo papa de Roma, houve uma expedição militar na Espanha para lutar contra Marsílio, emir da cidade de Saragoça, tomada pelos muçulmanos. Ao redor deste fato histórico, a imaginação popular foi criando lendas que exaltavam o valor dos paladinos da França, especialmente de Roland, o mais valente guerreiro. Após uma tradição oral de mais de três séculos, os cantos épicos foram juntados num único poema. O manuscrito original, de autoria desconhecida, remonta ao ano de 1170. Mas ficou obliterado por longos séculos. Descoberto em 1832, na época do Romantismo, quando se buscavam e exaltavam as origens das várias nacionalidades dos povos europeus, o texto começou a ser estudado e editado. Eu utilizo a tradução em língua portuguesa, calcada sobre o manuscrito de Oxford.

No início da trama, o exército de Carlos Magno está sediado em território espanhol.

O mouro Marsílio envia ao Rei da França um embaixador propondo sua retirada em troca de valiosos presentes e da promessa de conversão ao Cristianismo. Numa reunião no acampamento militar, os principais líderes franceses, com exceção do herói Roland, aceitam a proposta de paz e enviam Ganelão, cunhado de Carlos Magno a Saragoça para selar o pacto. Mas Ganelão, invejoso da glória de Roland, trama sua morte, aconselhando o Rei a voltar com o grosso do exército para a França, deixando apenas Roland e um grupo de paladinos na retaguarda.

O punhado de franceses é atacado por milhares de muçulmanos no estreito de Roncesvales, nas montanhas dos Pirineus. Apesar da heróica resistência, os franceses são massacrados, pois Carlos Magno, avisado da traição pelo som da corneta de Roland ferido, não chega a tempo. Segue a vingança e o castigo: o exército cristão massacra todos os soldados muçulmanos, conquista Saragoça, obriga seus habitantes a receberem o batismo e retorna a Aix, a cidade francesa sede do Império, onde Ganelão é julgado e condenado à morte por esquartejamento.

Este é o resumo da fábula do poema La Chanson de Roland. Mas a história é outra. A literatura, como a religião, não está preocupada com a realidade histórica ou científica. A arte e a fé são frutos da imaginação, que cria mundos fantásticos. Apontamos algumas discrepâncias entre o mito e a realidade: quem libertou a cidade de Saragoça do domínio muçulmano não foi o rei francês Carlos Magno, mas Afonso I de Aragão, em 1118; a expedição francesa não durou tanto tempo e acabou com a derrota e não com a vitória de Carlos Magno; o número dos componentes dos exércitos, de um lado e de outro, é exagerado (centenas de milhares de soldados!); os cristãos bascos são transformados em muçulmanos; o maravilhoso cristão apresentado na obra é uma repetição de passagens da Bíblia ou do Corão: o arcanjo Gabriel, que já apareceu a Moisés, à Virgem Maria e a Maomé, aparece também na hora da morte do herói Roland, levando sua alma para o céu; o rei Carlos, como fizera Josué, pede a Deus que pare o sol para retardar a chegada da noite e dar-lhe tempo para matar todos os infiéis em Roncesvales; os episódios bélicos são misturados com assuntos familiares e amorosos: o herói Roland é visto como sobrinho do rei da França, tendo como noiva a bela Aude, que morre de dor ao saber da morte do amado, antecipando o mito shakespeariano de Romeu e Julieta.

Portanto, mais do que um episódio histórico, a epopéia francesa deve ser vista como a exaltação de um conjunto de valores ideológicos que vigoraram na Idade Média e formaram o ideal da instituição da Cavalaria: a defesa da religião cristã, o patriotismo, o sentimento de honra e de amizade, do amor idealizado. É por isso que a figura de Roland se tornou um mito e transcendeu os limites da França, com os nomes eufônicos de Rolando ou Orlando. Sua fortuna se manifesta principalmente na Itália renascentista, quando se retoma o gênero da poesia épica greco-romana, tingido dos matizes do romance cavalheiresco. Ludovico Ariosto, retomando o poema inacabado Orlando Apaixonado, de Matteo Boiardo, escreveu a obra imortal Orlando Furioso, de que Camões imitou a estrutura rímica para a composição dos Lusíadas. Outro poema do gênero épico-cavalheiresco é Jerusalém Libertada, de Torquato Tasso.

Poema del Cid: a epopéia espanhola.

O Cid (em árabe “Senhor”, com o apelido “Campeador” = campeão) está à Espanha como Roland à França: são os dois heróis-símbolos das respectivas nacionalidades. O elemento de convergência é a luta dos cristãos contra os mouros. Mas há profundas diferenças entre os dois personagens. Enquanto Roland é uma figura mítica, o Cid é o protagonista de fatos historicamente comprovados. Seu nome civil é Ruy Díaz de Vivar, um condutor de exércitos que morreu em 1099. Apenas poucas décadas depois de sua morte, a partir de 1140, aproximadamente, já surgiram os primeiros cantares sobre suas façanhas bélicas, seu envolvimento com os políticos de sua época e seus laços familiares. Como acontecia em todos os poemas épicos, primeiro houve uma tradição oral e depois começaram a aparecer cantos escritos. O primeiro manuscrito encontrado do Poema del Cid remonta ao ano de 1307, mas só foi descoberto e publicado, pela primeira vez, em 1779, na época do Romantismo, quando os povos europeus buscavam as origens de suas nacionalidades.

O poema conta a vida de Ruy Díaz, senhor de Vivar e vassalo de D. Alfonso de Castilha. As vitórias militares lhe proporcionam fama e riqueza, o que suscita inveja nos nobres de Castilha. O rei, acatando as intrigas, acaba exilando o herói. Mas ele continua sua campanha de conquistas de territórios muçulmanos, chegando a penetrar em Valência, onde assenta seu quartel general. Defende bravamente a cidade do ataque do rei do Marrocos, Yucef, que desembarcara na Espanha para reconquistar Valência. De lá, o Cid envia presentes a D. Alfonso, ao bispo, aos amigos e parentes, solicitando a revogação do decreto de exílio. O Rei reconhece o seu valor e permite que sua esposa Jimena, junto com as filhas Elvira e Sol, visitem o herói em Valência, arrumando o casamento das mocinhas, ainda em tenra idade, com dois nobres de Carrión, Diego e Fernando. Mas logo os dois genros do Cid se revelam covardes, interesseiros e violentos, batendo em suas esposas. O herói reclama por justiça e o tribunal de Toledo condena os dois velhacos a restituir os bens. O poema termina com duelos e novas núpcias.

Na verdade, El cantar de mio Cid foge das características do gênero épico tradicional por não fazer uso do maravilhoso, do extraordinário. Não há intervenções divinas, revelações sobrenaturais, nenhuma espécie de milagre. A religião está presente apenas como ritual: antes das batalhas, os muçulmanos invocam Maomé e os cristãos Santiago. São professados dogmas e sacramentos da fé, conforme a tradição católica. Como também não há nenhuma idealização de ações humanas. Cid derrota o conde de Barcelona e exige um resgate, vende a cidade de Alcácer, cobre pesados impostos das povoações subjugadas, compra o perdão do Rei com valiosos presentes, estipula o preço do dote, enfim, tudo é calculado, pesado, quantificado: a espada Tizona vale mil Marcus, ao herói cabe a quinta parte de cada botim de guerra. Da mesma forma que as Cruzadas, a defesa da religião cristã contra o Islamismo é apenas um pretexto para o enriquecimento à custa de cidades-estado vizinhas: o valor militar, aos poucos, vai suplantando a nobreza de sangue.

A canção dos Nibelungos: a epopéia germânica.

O assunto da Canção dos Nibelungos remonta, aproximadamente, à mesma época do rei Artur, que deu origem ao ciclo de cultura da Bretanha, a partir do séc. V, quando vários povos do norte da Europa, considerados “bárbaros”, despedaçaram o império romano e se converteram ao cristianismo. Desta vez, o centro das ações é a antiga Germânia. O episódio histórico, que deu origem às lendas, foi a conquista do antigo reino da Burgûndia, região da parte alta do rio Reno, por Átila, alcunhado “flagelo de Deus”, chefe da horda dos hunos, no ano de 437. Burgundos e Nibelungos, povos que se consideravam mais civilizados e já tinham aderido ao cristianismo, não se conformaram com o fato de terem sido derrotados por uma tribo de gente primitiva, proveniente da Ásia central. Então, como aconteceu com os gregos que inventaram o mito do rapto de Helena para justificar o assédio à cidade de Tróia, assim a fantasia dos povos da antiga Alemanha imaginou que a derrota foi devido ao ciúme que duas belas princesas sentiam pelo herói Sigfrido.

O jovem nibelungo Sigfrido, príncipe da Neerlândia, sobe o rio Reno, do burgo de Xante até à cidade de Worms, para conhecer e pedir em casamento a linda Cremilda, princesa da Burgûndia. Lá, ele ajuda na luta contra os reis invasores da Dinamarca e da Saxônia. Seu heroísmo bélico lhe cativa a simpatia de Cremilda e do seu irmão Gunther, que, por sua vez, estava apaixonado pela bela e valorosa Brunilda, princesa da Islândia. Estabelece-se, então, um pacto de ajuda mútua: Sigfrido ajudaria Gunther na conquista de Brunilda, em câmbio da mão de sua irmã Cremilda. Os dois viajam para a Islândia, Sigfrido disfarçado como vassalo do rei Gunther. A intrépida Brunilda tinha feito uma promessa: só se casaria com o cavaleiro capaz de vencê-la em várias provas. O desafiante perdedor seria condenado à morte. Gunther fica com medo e pede a ajuda de Sigfrido que, vestindo um manto mágico, derrota a princesa. A vitória é atribuída a Gunther e Brunilda é obrigada a acompanhar os dois jovens até à Burgûndia. Lá se realiza o duplo matrimônio: Sigfrido casa com Cremilda e Gunther com Brunilda.

Mas a noite de núpcias de Gunther foi um desastre: Brunilda que, talvez inconscientemente, gostava mais de Sigfrido do que do seu noivo, sofre de um ataque de ciúme ao perceber a paixão de Cremilda. Recusa-se, então, a fazer amor com Gunther, aduzindo que não achava certo que sua cunhada se casasse com um vassalo de seu marido. Gunther, na tentativa de possuí-la pela violência, é subjugado pela jovem princesa, que o pendura numa janela, atando-lhe as mãos e os pés. Mais uma vez o rei recorre ao amigo Sigfrido que, na noite seguinte, tornado invisível pelo manto mágico, consegue subjugar Brunilda em luta corporal, entregando-a ao esposo. A seguir, Sigfrido leva sua esposa para Xante, sua cidade natal, e passam-se anos de felicidade para os dois casais abençoados por filhos.

Esta situação de harmonia muda quando Brunilda inventa de rever a cunhada Cremilda. Ela mesma tinha pedido ao marido Gunther que convidasse a irmã e o cunhado para a festa da primavera. Sigfrido, a esposa, os filhos, os pais e numeroso séqüito, levando muitos presentes, fazem a longa viagem, sendo acolhidos festivamente. Mas a presença de Sigfrido reacende o ciúme de Brunilda, que humilha a cunhada Cremilda, dizendo que ela lhe era socialmente inferior, pois casara com um vassalo de seu marido. Ao que a jovem responde que não era verdade, pois Sigfrido, além de ser nobre, era o mais valente e amoroso dos homens. Revela, então, a verdadeira identidade de Sigfrido, dizendo que não fora Gunther, mas seu marido que a subjugara no campo de batalha e na cama, na noite de núpcias. Como prova, mostra-lhe o anel que Sigfrido levara consigo quando saiu do quarto.

A revelação deixa a altiva Brunilda furiosa ao ponto de maquinar uma terrível vingança. Ela fica sabendo que o herói Sigfrido, após vencer um dragão, banhara-se no seu sangue, que lhe fechou o corpo e o tornou invencível. Mas havia um ponto fraco no seu ombro, onde uma folha cobrira o osso omoplata durante o banho. Com esta indicação, ela encarrega um nobre amigo seu, o astuto Haguen, para efetuar a vingança: durante uma caçada, enquanto Sigfrido está inclinado para beber das águas de um riacho, uma espada lhe é enfiada nas costas, provocando a morte do herói.

Agora é a vez de a viúva Cremilda jurar vingança. Ela chora amargamente a morte do esposo e se sente culpada por ter revelado, imprudentemente, o ponto de vulnerabilidade de Sigfrido. A notícia da triste sorte da viúva se expande pela Europa central e Átila, rei dos hunos, encantado pela fama da beleza e da fidelidade de Cremilda, envia cavalheiros para pedir sua mão em casamento. A rainha aceita por um dúplice propósito: vingar a morte de Sigfrido e converter Átila ao cristianismo. Viaja, então, do Reno para o Danúbio, chegando à cidade de Viena, onde se realizam as núpcias, abençoadas pelo nascimento de um filho. Mas Cremilda, que nunca desistiu de vingar a morte de Sigfrido, convida seus irmãos e outros nobres da Burgûndia para visitá-la na Hungria. Lá há um confronte entre os nibelungos e os hunos, com a vitória destes últimos. Gunther, o marido de Brunilda e Haguen, o assassino de Sigfrido, são levados prisioneiros até Cremilda, a nova rainha do reino da Hungria, que acaba matando o irmão, na tentativa de reconquistar o tesouro dos nibelungos, escondido no rio Reno. Mas ela também morre pelas mãos de um vassalo de Teodorico, rei dos visigodos. Com ela morre a última nobre representante da raça dos nibelungos.

Essa história fabulosa sobre os antigos povos germânicos, evidentemente, sofreu um longo processo de maturação pela tradição oral. Os episódios originais do séc. V, aos poucos, foram enriquecidos por rapsodos posteriores, cada qual contribuindo com seu cabedal cultural, até chegarmos ao séc. XVIII, no começo do Romantismo alemão, quando foram descobertos os vários manuscritos acerca do Poema dos Nibelungos. A semelhança com passagens homéricas e bíblicas supõe certo grau de cultura inconcebível em povos primitivos. Por exemplo, o episódio da morte de Sigfrido pela descoberta de seu ponto vulnerável, parece uma versão adaptada do mito grego do “calcanhar de Aquiles”.

Na verdade, o poema é a exaltação do ideal de vida da nobreza medieval, baseado no princípio da fidelidade e da honra. O que é relevante e faz a diferença entre a epopéia germânica e os cantos épicos latinos, especialmente espanhóis, é o tratamento da mulher. Enquanto no Cantar de mio Cid, a figura feminina é considerada apenas um objeto de uso ou de troca, a moça sendo obrigada a casar em tenra idade e sem possibilidade de escolha, configurando uma sociedade profundamente machista, no poema dos Nibelungos é a vontade da mulher que prevalece. O homem nobre ou o herói de guerra é visto apenas como um vassalo da mulher, a quem ele deve obedecer, conforme o código cavalheiresco que já vimos na poesia lírica da Provença.

La Divina Commedia, de Dante Alighieri.

A Divina Comédia constitui, sem dúvida alguma, o maior monumento literário que nos deixou a segunda fase do Medievo, sendo seu autor o florentino Dante Alighieri (1265-1321), o maior poeta da língua italiana. Ele se tornou o símbolo da cultura da Itália e da Idade Média, assim como Shakespeare o é com relação a Inglaterra e ao Renascimento, Goethe com a Alemanha e o Romantismo, Dostoievski com a Rússia e a Idade Moderna. Dante intitulou sua obra “Comédia”, por um sentimento de humildade, visto que os antigos gregos distinguiam este gênero da “Tragédia”, que tratava de fatos gloriosos e de personagens heróicos.

Conforme alguns estudiosos, Aristóteles, além do primoroso estudo sobre a tragédia grega, que se encontra na sua Poética, teria composto também um tratado sobre a “Comédia”. Mas este texto, infelizmente, teria se perdido. O crítico e ficcionista italiano Umberto Eco concentra a trama de seu famoso romance O Nome da Rosa na busca desta obra de Aristóteles, não perdida, mas escondida na biblioteca de uma abadia medieval, tendo como título o Livro do riso. Crimes horríveis são cometidos para manter oculto este antigo tratado sobre o humor. Talvez o propósito principal do romance e do filme homônimo é demonstrar como o dogmatismo religioso impede a liberdade do ensino, da pesquisa, de qualquer conhecimento estranho às escrituras consideradas sagradas.

O poema de Dante é, pois, chamado de Comédia por tratar da vida e das crenças, dos pecados e das virtudes dos homens comuns da Florença de sua época e também porque, ao contrário da tragédia, começa com a tristeza (a vida no inferno) e termina com a alegria do paraíso. Mas é considerado, igualmente, um poema épico pela grandiosidade temática que transcende os limites da epopéia de uma nacionalidade para se tornar o canto da humanidade toda em busca da ascese espiritual. Quem lhe acrescentou o qualificativo de “divina” foi o escritor contemporâneo e conterrâneo de Dante, Giovanni Boccaccio, encantado pelo valor estético dos versos e pelo assunto transcendental da obra.

O poeta imagina que teve um sonho, durante a Semana Santa de 1300, o primeiro “Ano Santo” ou jubilar, inventado pelo papa Bonifácio VIII, para conceder indulgências dos pecados a todos os peregrinos que fossem rezar em Roma (qualquer semelhança com a viagem dos muçulmanos a Meca é pura coincidência!). Durante o longo sonho visitou as três partes do mundo ultraterreno, conforme a crença da religião católica: Inferno, Purgatório e Paraíso. A descrição desta viagem é o conteúdo da Divina Comédia, poema dividido em três cânticos, cada cântico composto de 33 cantos, em estrofes de três versos. O número três, calcado na Trindade divina, era considerado mágico na Idade Média e está presente na obra toda: três feras e nove (3+3+3) círculos no Inferno, nove patamares no Purgatório, nove céus no Paraíso. As três partes da obra terminam todas com a mesma palavra: “estrelas”. A soma das três partes, 3 vezes 33, dá 99 cantos, mais um introdutório no começo do Inferno, completa o número 100. Tudo isso faz da Divina Comédia o poema melhor estruturado de toda a literatura ocidental.

Dante imagina o Inferno formado por uma profunda voragem, em forma de funil, aberta pela queda de Lúcifer, quando o anjo rebelde foi derrotado por Deus e lançado no centro da terra, nas proximidades da cidade de Jerusalém. Nesta cratera, composta de nove círculos, sempre mais estreitos na medida em que se desce, estão distribuídas as almas dos que morreram em estado de pecado e, por isso, condenadas às penas eternas. Dante, acompanhado pelo poeta latino Virgílio de quem se sente discípulo, pois da leitura do poema Eneida ele teve a inspiração para a viagem no mundo do além-túmulo, começa a descida, visitando e conversando com as almas famosas da antiguidade greco-romana e de seus contemporâneos. A intensidade do sofrimento é correlata à gravidade dos pecados cometidos, sempre aumentando na medida em que se aproxima do último círculo, o dos traidores, onde está afixada para sempre a figura imensa de Lúcifer.

Um dos episódios mais comovente, descrito no canto V do Inferno, é a narração do amor, da morte e do castigo de dois jovens, Paula e o cunhado Francisco. Percebe-se, no espírito do poeta, a coexistência de dois sentimentos conflitantes: a ética cristã que condena o adultério e o impulso irresistível da atração sexual que, por ser natural, não deixa de ser divino também, posto que Deus é o autor da natureza. Sua consciência de cristão reprova especialmente o “modo” como a vingança foi feita: colhidos no ato do adultério, os amantes foram assassinados sem chance de arrepender-se do seu pecado. Uns dois séculos mais tarde, o imortal dramaturgo Shakespeare vai descrever algo semelhante: Hamlet, o príncipe da Dinamarca, tendo a missão de vingar a morte do pai, ao perceber que o assassino estava sozinho na capela, rezando, reflete: se o matar agora, estando ele em estado de graça por ter pedido perdão de seus pecados, ele irá para o céu. Vou aguardar, então, outra oportunidade para causar sua morte, quando ele estiver numa orgia. É o requinte da vingança: matar o corpo e mandar a alma para o inferno!

O segundo cântico fala do Purgatório, uma montanha que se formou pelo deslocamento da terra para o lado oposto de Jerusalém, no hemisfério austral, depois da queda de Lúcifer. O sentido do movimento é o inverso: enquanto se desce para o Inferno (em forma de funil), sobe-se para o Purgatório (em forma de cone), até chegar à parte mais alta, próxima do céu. Dante e Virgílio visitam as almas que vão subindo, carregando os sete P (os pecados capitais): na medida em que alcançam um terraço vão se purificando e um P cai de suas costas. Os orgulhosos carregam recifes; os invejosos andam com as pálpebras costuradas; os raivosos são envolvidos por uma nuvem de fumaça; os preguiçosos têm que correr; os avarentos estão com pés e mãos atados; os gulosos sofrem do suplício de Tântalo: não conseguem alcançar as frutas na sua frente; os luxuriosos ardem em chamas.

Enquanto o Inferno é o reino da rigidez, onde tudo é fixado no tempo e no espaço, no Purgatório predomina o movimento, a passagem de um lugar para outro, do hoje para o amanhã. Estamos no reino da esperança da salvação, sendo a escalada da montanha o símbolo da ascese espiritual. O termo purgatório significa purificação, que se dá pela passagem das trevas da ignorância para a luz do conhecimento. Fazendo psicanálise antes do tempo, Dante nos ensina que a superação do mal só é possível por uma tomada de consciência do passado. Era preciso passar pelo Inferno para poder descobrir a origem do mal e encontrar sua cura. A causa primordial da desgraça humana é vista no egoísmo que caracteriza as almas que estão no Inferno; enquanto no Purgatório se evidencia um sentimento de compreensão mútua, pois as almas se comunicam entre si, com os vivos na terra e com os santos no céu, solicitando ajuda recíproca.

O Paraíso está bem no alto, acima da montanha do Purgatório, composto de nove céus, cada qual regendo um planeta. No topo de tudo está o empíreo, o céu imóvel, composto de pura luz, onde vivem Deus, a Virgem Maria, os coros angélicos, todos os santos e as almas dos justos, purificadas de seus pecados. Aqui o movimento não é nem ascendente, nem descendente, mas circular, a indicar a comunhão de todos na visão beatífica de Deus. Mas para Dante poder visitar este lugar, seu guia não pode ser mais o poeta Virgílio, porque, por ele ser pagão, não tem as credenciais para ascender ao céu. Seu novo guia vai ser a amada Beatriz, jovem angelical, inspiradora de sua poesia, que morrera havia alguns anos e já estava no gozo das belezas celestiais. Ela vai funcionar como intermediária entre Deus e o poeta. Por sua intercessão ele consegue a salvação. No Paraíso os olhos de Beatriz são constantemente apresentados como fonte de luz e de amor. É a concepção do amor idealizado da poesia trovadoresca que em Dante adquire sua expressão mais sublime.

É muito difícil colocar num pequeno espaço possível neste presente trabalho toda a magnitude da Divina Comédia. Queria apenas estimular a leitura do fabuloso poema dantesco. Ele encerra o que de melhor o gênio humano tinha produzido até então. É a súmula da cultura ocidental até o século XIV, antes da explosão da verdadeira Renascença européia. Dante Alighieri é o primeiro poeta numa língua neolatina a retomar a literatura e a filosofia da Grécia e da Roma antiga, obliteradas durante a longa noite da Idade Média. Ele nos fala da mitologia greco-romana, da filosofia de Aristóteles, da poesia épica de Virgílio.

Mas todo o cabedal cultural da antiguidade passa pelo prisma da religião cristã, em que foi educado desde a primeira infância. Sua concepção de fé está fundamentada na Summa Theologica de Santo Tomás de Aquino (1225-1274), chamado de “Doctor Angelicus” pela profundidade de seu pensamento e pela santidade de sua vida. O frade dominicano tentou harmonizar a filosofia aristotélica com a doutrina cristã, achando que fosse possível a razão andar junto com a fé.

O sonho de juntar a crença com o raciocínio, o humano com o divino, foi possível a Tomás de Aquino porque era um santo e foi também possível a Dante porque era um poeta. Para a Arte, como para a Religião, tudo é possível, pois as duas atividades humanas utilizam o mesmo meio de expressão: a fantasia, que é a grande criadora de mitos, de histórias fantásticas, que nos convidam à crença, independentemente da lógica. Nunca poderíamos saber se Dante, como homem e não como poeta, acreditava realmente na existência de um mundo ultraterreno, num inferno ou purgatório, em penas eternas, na sobrevivência das almas, enfim, nos dogmas e nos princípios éticos da religião cristã.

O problema é que o ser humano, por mais genial que seja, não deixa de ser filho da sua época, educado desde a terna infância num conjunto de valores que o inclinam para uma determinada visão do mundo. Os gregos chamavam de “paidéia” e os latinos de “forma mentis” o conjunto de fatores genéticos e ambientais, decisivos para a formação da personalidade humana. O florentino medieval Dante Alighieri acreditava nos dogmas da fé católica da mesma forma como o grego Aristóteles, talvez o homem mais sábio da antiguidade, considerava ético o estado de escravidão humana ou se perguntava se a mulher teria uma alma. É apenas uma questão de tempos!

A Renascença italiana: Leonardo da Vinci

O termo Renascimento ou Renascença (do francês renaissance) passou a indicar o ressurgimento da Europa após as longas trevas da Idade Média. Como se o homem, que viveu intensamente na era greco-romana, tivesse morrido, soterrado pela ideologia cristã, e depois voltasse a viver novamente. O Renascimento propriamente dito ocupa os séculos XV (Quatrocentos) e XVI (Quinhentos), tendo como centro de irradiação a península italiana. Mas a Renascença não foi um movimento que surgiu de uma forma abrupta e com uma tomada de consciência opositiva a um movimento anterior, como será mais tarde, por exemplo, o Realismo em contraste com o Romantismo. Ele foi crescendo aos poucos, em lugares e em tempos diferentes. Tanto é que os estudiosos falam de vários renascimentos: 1) carolíngio, na época de Carlos Magno, no início do séc. IX; 2) em conseqüência das Cruzadas, a partir do séc. XII; 3) na segunda fase da Idade Média, séculos XIII (Duzentos) e XIV (Trezentos); 4) italiano ou propriamente dito: sec. XV e XVI.

Na verdade, houve uma Pré-Renascença, quando as línguas modernas começaram a produzir os primeiros documentos de arte literária e a Europa saiu do isolamento, entrando em contato direto com a cultura bizantina e muçulmana. Mas a visão do mundo estava ainda impregnada pelo espírito da religiosidade. O pensamento reflexivo e a arte continuavam a serviço da ideologia cristã. O que aconteceu na literatura com os três grandes escritores considerados os fundadores da língua italiana e os precursores do Renascimento: Dante (poesia épica), Petrarca (poesia lírica) e Boccaccio (narrativa curta). Mas o espírito religioso prevaleceu, sobretudo, nas artes plásticas. O estilo gótico (relativo aos godos, povo primitivo da França) predominou especialmente na arquitetura: as catedrais com suas agulhas finíssimas a indicar o movimento vertical em direção ao céu. Na pintura sobressaiu o mestre italiano Giotto (1266-1337) com seus afrescos sobre temas da vida da Virgem Maria e de Jesus Cristo.

Mas o verdadeiro Renascimento tem como pressuposto teórico o Humanismo. Ele acontece quando se substitui o teocentrismo pelo antropocentrismo: o centro de preocupação não é mais Deus, mas o Homem. A razão começa a predominar sobre a fé, tentando a reintegração do homem à natureza e à história. A felicidade é procurada nesta terra e não transferida para um hipotético reino sobrenatural. O termo Humanismo historicamente está ligado à palavra latina humanitas, um conjunto de disciplinas pedagógicas ministradas para a formação do cidadão: gramática, retórica, história, ética, política. O homem renascentista procura sua salvação se desvinculando da religião medieval e se conectando ao ideal de vida da antiguidade greco-romana. Daí a busca e a valorização de textos de Virgílio, Horácio, Cícero e de outros escritores romanos, obliterados por séculos nas bibliotecas de palácios e monastérios.

A grande revolução do Humanismo e da Renascença foi o nascimento da consciência do “indivíduo”, cujos valores se tornaram mais importantes do que as instituições religiosas e o os textos sagrados. O longo processo de evolução política e cultural chegou ao seu apogeu na península italiana, a partir do séc. XV, devido às peculiares condições econômicas de que gozavam as cidades marítimas. Genova, Veneza, Pisa, Nápoles, deitadas no meio dos mares Tirreno e Adriático, se tornaram os estados mais opulentos por estabelecerem relações comerciais com outras cidades banhadas pelo Mediterrâneo. Primeiro, a Florença da época dos Médici, e depois Roma, pela importância que foi adquirindo o Papado, se tornaram centros de irradiação de cultura, rivalizando entre si para contratar arquitetos, escultores e pintores com o fim de embelezar suas igrejas, praças, palácios.

O homem-emblema do Renascimento italiano e europeu foi o florentino Leonardo da Vinci (1452-1519), artista e sábio (pintor, escultor, arquiteto, poeta, matemático, físico, filósofo), sendo definido como “o mais completo dos homens” de todos os tempos e lugares. Foi com ele que a Europa despertou do sono medieval e abriu as portas para a modernidade. Ele viajou pelas principais cidades da Itália (Florença, Milão, Mântua, Roma), solicitado para fazer obras de pintura e de escultura, ora rivalizando, ora trabalhando em conjunto com os outros dois pintores famosos da sua época, Rafael e Michelangelo. Enfim, morreu a serviço do rei da França Francisco I. Além das artes, Leonardo cultivou a investigação científica, estudando fenômenos naturais, anatomia, hidráulica, mecânica. A obra de arte que o tornou imortal foi a tela Mona Lisa, também chamada de “Gioconda”, o retrato da esposa do nobre florentino Francesco Del Giocondo, que se encontra em exposição no museu do Louvre, em Paris. A peculiaridade deste quadro é que a imagem sorri para o observador de qualquer lado que ele a olhe e de uma forma enigmática. Como pensador nos deixou vários ensinamento. Eis um, apenas como amostra:

"Aprender é a única coisa de que a mente nunca se cansa,

nunca tem medo e nunca se arrepende".

Para falar sobre a complexa e maravilhosa figura de Leonardo da Vinci me falta tempo, espaço e competência. Quero apenas citar a apreciação do artista e crítico Giorgio Vasari (1511-1574) sobre o gênio florentino:

“De tempos em tempos, o Céu nos envia alguém que não é apenas humano, mas

também divino, de modo que, através de seu espírito e da superioridade de

sua inteligência, possamos atingir o Céu".

Ele, sim, pode ser considerado um “enviado” de Deus e não gente tosca, tipo Moisés ou Maomé!

Os Lusíadas, de Camões: os descobrimentos marítimos e a revolução comercial.

A obra literária do maior poeta do classicismo português, Luís Vaz de Camões (1524-1580), é pouco estudada no nosso país e quase desconhecida por quem fala outro idioma. E essa é uma grande injustiça. Camões, além de ter sido um dos maiores poetas líricos do Renascimento europeu, escreveu o poema épico que melhor ilustra a importância e o espírito do movimento renascentista. Enquanto outros poetas trataram de aventuras cavalheirescas (Orlando Furioso, do italiano Ludovico Ariosto) ou religiosas (O Paraíso Perdido, do inglês John Milton), seus Lusíadas abordam o assunto mais importante da época: as grandes navegações e os descobrimentos marítimos, que causaram uma verdadeira Revolução Comercial que, por sua vez, propiciou o advento da Revolução Industrial.

Lembramos que, até o final do séc. XV, os europeus pensavam que o Ocidente acabava nas lendárias Colunas de Hércules, o nome de dois promontórios que estão à entrada do Estreito de Gibraltar, separando a ponta da Europa (península ibérica) da África (região montanhosa de Ceuta). As transações comerciais eram feitas apenas no mar Mediterrâneo, chamado de mare nostrum (o nosso mar). Com as Grandes Navegações e a descoberta de regiões e costumes de sociedades humanas bem diferentes, o eixo do comércio se desloca do Mediterrâneo para o Oceano Atlântico. A viagem do navegador português Vasco da Gama tinha a finalidade de descobrir o caminho marítimo para a Índia, em vista de que o percurso via terra era muito demorado pela precariedade do meio de transporte da época, limitado ao uso da carroça. Não faltava também a motivação religiosa: difundir o cristianismo, batizando os infiéis.

A armada portuguesa larga do porto de Belém, em Lisboa, no ano de 1498. A esquadra marítima lusitana passa pela ilha da Madeira, atravessa as Canárias, costeia o Cabo Verde, navegando pela costa africana. Beira províncias do Zaire e do Congo e, após meses, chega ao cabo das Tormentas, batizado com o nome de Boa Esperança. Após um breve descanso em terra firme, os portugueses retomam o caminho marítimo até Moçambique e Melinde. De lá, finalmente, chegam à Índia, desembarcando no porto de Calicute. Depois de transações comerciais, os portugueses retomam o caminho de volta para Lisboa, não sem antes ter feito uma parada na fabulosa Ilha de Vênus. A deusa do amor recompensa o herói e seus companheiros pelo sofrimento da longa viagem, pedindo ao seu filho Cupido que acalente a paixão nos corações dos visitantes. O poema termina com a descrição da festa dos marinheiros portugueses com lindas ninfas.

Este é o resumo da fábula dos Lusíadas, exposto na ordem cronológica dos fatos para facilitar o entendimento da história. O poema é muito longo e complexo para ser analisado em poucas páginas. Sua interpretação exige um bom conhecimento de mitologia greco-romana (o próprio título remete a Luso, filho de Baco) e de história e geografia de Portugal, além de poética para apreciar a beleza de seus versos. Vou fazer referência apenas a dois episódios, transcrevendo alguns versos. A triste história da personagem Inês de Castro chegou até ao anedotário popular, pela expressão “agora Inês é morta”, parodiando o verso de Camões:

“Aquela que depois de morta foi Rainha”

O poeta conta como o fogo da paixão amorosa incendiou o coração do príncipe Infante pela bela aia Inês:

“Estavas, linda Inês, posta em sossego...

“Tu só, tu, puro amor, com força crua...

Mas o rei Afonso IV não aceita o relacionamento ilegítimo de seu filho e decreta a morte da jovem. Inês implora a clemência do Rei pelos dois filhos que tivera com o príncipe herdeiro:

“Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito...

A estas criancinhas tem respeito...

O Infante, no ano seguinte à morte de Inês, assumindo o trono com o nome Dom Pedro I de Portugal, em 1355, resgata a memória da amada, afirmando que casara com ela secretamente e que, portanto, os filhos que tivera com Inês eram legítimos.

Outro episódio famoso d’ Os Lusíadas tem como protagonista o Velho do Restelo e como cenário o porto de Belém, em Lisboa, de onde os expedicionários partiram para chegar à Índia por uma via marítima mais curta. Na despedida, um senhor de idade, comovido pelo choro de mulheres e crianças, se levanta e faz um veemente discurso reprovando as aventuras marítimas, que causam o abandono de esposas e filhos e deixam a pátria desprotegida:

“Mas um velho de aspecto venerando,...

Tais palavras tirou do experto peito:

Ó glória de mandar, ó vã cobiça

Desta vaidade, a quem chamamos Fama!”

A figura do Velho do Restelo, em contraste com o Poeta do prólogo que exalta as grandes navegações, expressa a voz crítica de Camões. Ele, olhando os acontecimentos da Índia com uma perspectiva de aproximadamente 70 anos, julga o domínio português nas colônias improdutivo e causa do enfraquecimento do Reino de Portugal. O episódio exprime, ainda, o Camões cansado das lutas e das guerras, que anseia à paz, com saudade da terra natal e das tradições bucólicas de seu povo. Como se pode perceber, o poeta lusitano tem uma personalidade dividida, múltipla, apresentando, ao lado da exaltação patriótica, uma consciência crítica dos fatos que está cantando. É um prenúncio da criação dos heterônimos de Fernando Pessoa: a expressão artística da coexistência de uma pluralidade de seres na mesma pessoa. São os laços da inteligência crítica que fazem a ponte entre os dois maiores poetas de Portugal, o renascentista e o modernista.

Dom Quixote, de Cervantes: a novela de Cavalaria

A Cavalaria, em sua origem romana, era uma ordem ou status social a que pertencia o cidadão que tinha meios para sustentar um cavalo com as vestimentas e as armas adequadas. A ordem eqüestre estava por baixo da classe senatorial e por cima da infantaria, constituída pelos soldados que provinham da plebe, o povão que fornecia ao Estado apenas a “prole”, isto é, seus filhos para ir à guerra. O termo plebeu, em oposição a patrício, mais tarde, na época de Karl Marx, será substituído por “proletário”, no mesmo sentido etimológico de ter sua única riqueza nos filhos (prole), que só dispunham da mão de obra para o trabalho.

Na Idade Média, os cavaleiros andantes tinham a função de transmitir notícias de um castelo para outro, participar de rodeios, proteger viúvas, mocinhas e crianças desamparadas, promover a ordem e a justiça. A imaginação popular foi criando inúmeras histórias sobre os feitos grandiosos destes cavaleiros. Menestréis narravam aventuras mirabolantes nos paços e nas tavernas, em prosa e em versos. Ouvir histórias era o principal meio de diversão de um povo analfabeto, numa época em que ainda nem se sonhava com imprensa, rádio, televisão, cinema, internet.

A obra literária que melhor retrata o mundo da cavalaria é El Engenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha, conhecida pelo título abreviado Dom Quixote. Seu autor é o espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616). O protagonista do romance é Alonso Quijano, fidalgo da província da Mancha, fanático leitor de livros de cavalaria. Lembro que a descoberta da imprensa pelo alemão Gutenberg, na segunda metade do séc. XV, facilitou o uso da leitura de textos sagrados e profanos, antes restrito a poucas pessoas em condições de adquirir manuscritos caríssimos pela raridade. Alonso, deixando-se envolver pelas aventuras fabulosas encontradas nos livros, confunde ficção com realidade e decide pôr em prática os ideais dos cavaleiros, andando pelo mundo para restabelecer o sentimento de honra e de justiça.

Escolhe o nome Dom Quixote de la Mancha, uma camponesa, que passa a chamar Dulcinéia do Toboso, como a dama do seu coração e o gordo Sancho Pança como escudeiro. Limpada uma velha armadura e montado no cavalo Rocinante parte em busca de aventuras. Chega a uma hospedaria e pede ao taverneiro, pensando que é o senhor do castelo, que o consagre cavaleiro, tendo por testemunhas duas prostitutas, tidas como nobres damas. Luta contra moinhos de vento, tomados por enormes gigantes. Sua derrota é justificada pela inveja de inimigos feiticeiros. Seguem-se outras aventuras, sempre descritas pelo modo irônico: confunde uma manada de ovelhas com um exército inimigo, um enterro com o rapto de um cavaleiro ferido, uma bacia de barbeiro com o elmo do lendário herói Mambrino.

Para escapar da polícia, Dom Quixote se refugia na serra Morena, onde fica em meditação, assumindo o nome de “Cavaleiro da Triste Figura”. Lá, é alcançado pelo vigário e o barbeiro, os amigos que estavam em sua busca. Eles arrumam um estratagema para conduzi-lo de volta a sua casa, onde o espera a sobrinha que mora com ele. Mas o herói escapa outra vez, indo até Toboso para rever a amada, confundida com uma moça feia e malcriada. Sempre acompanhado pelo fiel escudeiro, vai para Saragoça e luta contra um bacharel camuflado de “Cavaleiro dos Espelhos”. Em Barcelona, Dom Quixote e Sancho Pança são objetos de gozação, este último sendo eleito “Governador da ilha de Barataria”.

Enfim, o mesmo bacharel, desta vez com o nome de “Cavaleiro da Branca Lua”, desafia nosso herói a um duelo, desta vez sob juramento de que, se derrotado, voltaria para sua terra. O que acontece. Dom Quixote chega em casa, adoece e morre.

Este é apenas um resumo de uma obra extensa e complexa, onde, na narrativa principal, a fábula de Dom Quixote, se encontram encaixadas várias histórias de personagens secundárias, ouvidas pelo protagonista em suas andanças pelas tavernas. Por isso, há críticos que consideram a obra de Cervantes não um romance, mas uma “novela”, devido a sua estrutura aberta, sempre suscetível de acrescentar mais um episódio, como acontece atualmente com os capítulos da novela de televisão. Aliás, o próprio autor tem consciência disso quando publica uma “Segunda Parte” do Dom Quixote, após o sucesso da primeira edição. Mas não é aqui o lugar de discussões técnicas sobre a estrutura e o valor estético da obra do grande escritor espanhol. Quero apenas salientar que, além do sentido denotativo, explícito, que salta aos olhos (a sátira aos livros de cavalaria e a gozação de seus heróis), a obra possibilita uma interpretação simbólica centrada na caracterização dos dois personagens principais.

O personagem Dom Quixote exprime o ideal cavaleiresco que admite a possibilidade da existência de um mundo onde reine a justiça social, a verdade, o amor puro, a beleza, a honestidade, a honra acima de tudo. Neste sentido, Cervantes retoma o mito bíblico do Paraíso Terrestre antes da culpa de Adão e a lenda pagã da Idade de Ouro, assim como fazem outros escritores utópicos da Renascença européia. O personagem Dom Quixote está fechado num subjetivismo absoluto, que julga tudo a partir de si próprio:

“yo pienso y es así...deben de ser y son”

Se as duas moças da taverna podem ser vistas como duas nobres donzelas, por que considerá-las prostitutas vulgares? Mais uma vez, permito-me estabelecer o paralelismo entre a fantasia poética e a crença religiosa: se o devoto pode acreditar na existência de um mundo sobrenatural, por que se contentar com as limitações da vida terrena? A arte, como a religião, prescinde de qualquer fundamentação lógica, colocando-se acima da filosofia, da história e da ciência.

Já o escudeiro Sancho Pança revela uma personalidade completamente oposta, representando o que é material e prático, a vida do burguês renascentista. A própria figura física já estabelece o contraste: gordo e barrigudo. Ele simboliza o conjunto de valores cultivados pelo meio ambiente, especialmente o desejo de riqueza e de uma posição social de prestígio: ele acompanha o herói exclusivamente porque lhe prometeu o governo de uma ilha. Sancho não tem instrução alguma, exprimindo-se por provérbios populares e deixando-se guiar pelo bom senso. Os dois personagens vivem apresentando opiniões opostas. Mas é próprio na descrição da tensão entre as duas forças opostas, o ideal e o real, que reside a beleza humana e poética do romance. O personagem Dom Quixote fica doente e morre quando é impedido de “sonhar seu sonho impossível”, quando se convence de que é inútil lutar contra a massificação da realidade.

Mas o personagem de uma obra de arte verdadeira morre? É claro que não! Morre o autor, morre o ator que interpreta o papel, mas sua mensagem perpassa o tempo e o espaço. Dom Quixote está aí continuamente presente na poesia, no teatro, no cinema, na escultura, como um deus que muda de religião (judeu, cristão, muçulmano), mas não de espiritualidade. Afinal, viver numa sociedade onde reine a justiça é sempre preferível ao domínio da prepotência, do egoísmo, da selvageria. Então, por que não continuar a luta para alcançar tal ideal? É uma questão de inteligência, de reflexão, de bom senso!

O Teatro de Shakespeare

William Shakespeare (1564-1616) é o maior dramaturgo de todos os tempos. São atribuídas ao imortal gênio teatral da Inglaterra 38 peças, aproximadamente, entre tragédias, comédias e dramas históricos. Viveu a cavaleiro entre o Renascimento e o Barroco, absorvendo, do primeiro movimento, a cultura greco-romana e, do segundo, a perplexidade espiritual causada pela oposição entre a herança pagã e a moral cristã. Dedicou sua vida inteira ao teatro, funcionando como autor, ator, diretor, empresário, cenógrafo. Apenas como amostragem, eis a sinopse de três tragédias que apresentam as determinações espaciais e temporais mais recorrentes na dramaturgia do poeta inglês: a Roma dos Césares, a corte real do povo anglo-saxão, a Itália medieval e renascentista.

Júlio César

A peça está centrada sobre o assassinato político mais famoso da história do Ocidente: no dia 15 de março de 44 a.C., no palácio do Capitólio em Roma, Júlio César, cônsul e herói nacional, é morto a punhaladas por um grupo de senadores. As vitórias do grande general sobre os gauleses e sobre os inimigos internos, junto com a grande popularidade, suscitaram o temor de que César pusesse fim ao regime democrático. Alguns senadores por inveja, outros realmente preocupados com a sorte da república romana, resolvem conspirar, solicitando a adesão também do nobre Bruto, que César considerava como um filho. Fazendo pouco caso do conselho dos adivinhos e da esposa Calpúrnia, que previam os idos de março como fatídicos e nefastos, o cônsul vai à reunião no Capitólio, onde é circundado por vários senadores armados. Ao receber os primeiros golpes de punhais tenta se defender, mas desiste quando percebe que até seu melhor amigo está entre os conspiradores, pronunciando a famosa frase:

“Tu quoque, Brute, fili mi?” (Também você, Bruto, meu filho?).

Durante os funerais, o cônsul Marcus Antônio, quebrando o pacto de não acusar os conspiradores, após o discurso de Bruto, ele toma a palavra. Começa, então, a instigar a plebe contra os assassinos de César com um discurso sutil, usando a figura retórica da reticência, fingindo não querer dizer o que realmente diz:

“Amigos romanos...estou aqui para sepultar César, não para glorificá-lo...Bruto disse que ele era ambicioso e Bruto é um homem honrado... César trouxe muitos cativos para Roma, cujos resgates encheram os cofres do Estado ...derramava lágrimas ao ouvir as queixas dos pobres...eu lhe apresentei uma coroa real e, por três vezes, César a recusou. Isto era ambição? Entretanto, Bruto disse que ele era ambicioso e, sem dúvida alguma, Bruto é um homem honrado”.

O discurso do cônsul do partido democrata alcança seu objetivo: Bruto, Cássio e os outros assassinos fogem de Roma, perseguidos pelas tropas de Otávio e Marcus Antônio. Em Filipos, cidade da Macedônia, acontece o enfrentamento. Bruto, vencido, acaba se suicidando. Ao morrer, ele exclama: “César, descansa agora”, pois o espectro do antigo amigo não deixava de persegui-lo.

Hamlet, Príncipe da Dinamarca

Da luta pelo poder na antiga Roma, Shakespeare passa a descrever sangrentos conflitos militares e políticos entre povos primitivos da Escandinávia para o domínio dos países da Dinamarca e da Noruega, no Norte da Europa. Sobre a figura de Hamlet foi se criando um mito que remonta ao séc. XII. A peça começa quando a morte de Hamlet Pai motiva o Príncipe Hamlet, seu filho, a retornar à corte de Elsenor, interrompendo os estudos na universidade de Wittenberg. O jovem fica furioso ao assistir ao novo casamento da rainha Gertrudes, com Cláudio, irmão de seu recém-falecido pai. Ironicamente, o jovem reflete: minha mãe fez uma grande economia, pois utilizara as flores do enterro para a festa do matrimônio!

O espectro do velho Rei Hamlet aparece nas ameias do castelo ao amigo Horácio e, depois, ao próprio filho, pedindo vingança, revelando que sua morte não fora natural, mas provocada pelo ciúme e pela ambição do irmão Cláudio. Ele estava descansando uma tarde no jardim, quando um veneno mortífero foi instilado no seu ouvido.

O jovem Hamlet faz um teste para confirmar a versão do fantasma: contrata uma companhia italiana para representar uma peça em que manda inserir uma cena semelhante à do envenenamento do pai. A perturbação de Cláudio convence o Príncipe, que maquina a vingança. Sem querer, começa matando o lorde camarista Polônio, pai da noiva Ofélia e espião de Cláudio. O rei-tio tenta se livrar do jovem mandando-o para a Inglaterra, acompanhado por dois capangas. Mas Hamlet consegue escapar e volta a Elsenor. Enquanto estava longe, Ofélia, profundamente abalada pela morte do pai e pelo abandono do amado, acaba enlouquecendo e comete suicídio. Seu irmão Laertes, voltando da França, é induzido pelo Rei a desafiar Hamlet para vingar a morte do pai e da irmã. Cláudio, mais uma vez, se serve do veneno, colocando gotas no florete de Laertes e numa taça de vinho. E o veneno causa a morte dos quatro personagens: Hamlet e Laertes pelo florete envenenado, a rainha Gertrudes pelo vinho e Cláudio pelo florete e pelo vinho. Resta vivo apenas o amigo Horácio, incumbido de comunicar a Fortimbrás, Príncipe da Noruega, que era vontade do moribundo Hamlet que ele assumisse o trono da Dinamarca. A peça se encerra com as honras fúnebres prestadas ao príncipe Hamlet por Fortimbrás, pelos embaixadores da Inglaterra e pelo povo todo. Realmente, naquela época, “havia algo de podre no reino da Dinamarca”!

Esta peça é uma das mais representadas e comentadas ao longo da cultura ocidental. Como toda obra de arte verdadeira, ela é poliédrica, ensejando várias interpretações. Um sentido épico-político pode ser visto no aproveitamento do mito de Hamlet para explicar a derrota histórica da Dinamarca por parte da Noruega: antigamente, a Dinamarca, país poderoso que dominava as nações vizinhas da Noruega, Polônia e Inglaterra, entrou em decadência por causa da ambição e do ódio de seus governantes. Uma interpretação psicanalítica explicaria o desprezo de Hamlet pela bela noiva Ofélia. O complexo de Édipo levaria o jovem a considerar o tio como um rival na disputa do amor de Gertrudes. A conduta indecorosa da mãe provoca nele um profundo sentimento de misoginia, que o afasta do relacionamento sexual. Mas, a meu ver, o tema que perpassa esta peça de ponta a ponta e que se avoluma no monólogo do personagem Hamlet, que inicia com o famoso verso

“ser ou não ser, eis a questão!”

é a dúvida, a incerteza, a perplexidade. Shakespeare coloca aqui o dilema fundamental do ser humano: aceitar pacificamente o ultraje e a injustiça ou rebelar-se e enfrentar as adversidades, retrucando com as mesmas armas da perfídia e da violência? Não seria melhor refugiar-se no esquecimento do sono, do sonho, da morte? Mas como encontrar na morte o descanso de todas as opressões, se os suicidas são castigados com penas terríveis no desconhecido mundo do além?

Triste condição do ser humano, incapaz de enfrentar os males presentes e temeroso dos males futuros. O questionamento do sentido da vida, face ao mistério da morte, não inquietou apenas o homem da época do Barroco, atormentado pelo severo espírito da Contra-Reforma, mas as mais brilhantes inteligências do mundo da filosofia, da arte e da ciência, em todos os tempos. Daí a perene modernidade desta obra do poeta inglês.

Romeu e Julieta:

Na cidade de Verona, no Norte da Itália, duas poderosas famílias são inimigas juradas de morte: Montecchio e Capuleto. O jovem Romeu, da família dos Montecchio, resolve participar, mascarado, de um baile no palácio dos Capuleto. Ao ver a linda Julieta, sente-se atraído irresistivelmente. Seu olhar de amor é correspondido, mas, ao se apresentarem, os dois jovens ficam decepcionados, pois descobrem pertencer a famílias inimigas. Mas a atração amorosa é irresistível: Romeu, às escondidas, penetra nos jardins dos Capuleto e ouve Julieta na janela confessar às estrelas sua paixão pelo jovem Montecchio. Romeu se apresenta, então, e revela a reciprocidade do sentimento. Um padre franciscano, Frei Lourenço, amigo da família dos Montecchio, em segredo, celebra o casamento, na esperança de que o enlace apaziguasse as duas famílias rivais.

Mas a desgraça pairava no ar: numa briga entre amigos dos Montecchio e parentes dos Capuleto, Romeu acaba matando Teobaldo, primo de Julieta, que acabara de causar a morte de seu amigo Mercúrio. Romeu foge para a cidade de Mântua e Frei Lourenço prepara um plano para salvar o casal: pede a Julieta que tome um sonífero, parecendo um veneno, para fingir-se morta e ser sepultada. Romeu chega na sala mortuária e, não tendo recebido a carta de Frei Lourenço, pensa que a amada está morta de verdade. Suicida-se, então, para ficar ao lado da amada. Julieta acorda e, vendo Romeu morto, acaba trespassando seu peito com a espada do esposo. A peça termina com o arrependimento dos membros das duas famílias que põem fim às inimizades. A mensagem contida na cena final afirma o triunfo do amor sobre o ódio.

Todas as peças trágicas de Shakespeare estão construídas a partir de um fato histórico ou de um precedente cultural. E o drama Romeu e Julieta não foge à regra. Conforme os críticos, o episódio verídico teria acontecido na primeira década do séc. XIV, dando origem a poemas e dramas em francês e em inglês. Shakespeare, na construção de sua peça, se inspirou no poema Tragical History of Romeo and Juliet, publicado em 1562, cinco anos antes da primeira encenação da tragédia. Mas isso não tem muita importância, pois a concepção estética da Renascença, calcada sobre o conceito clássico de beleza, considerava a imitação como uma qualidade e não um defeito. A arte não reside no conteúdo, mas na forma como o material é utilizado. No caso da Literatura, o que vale é o arranjo estético da linguagem humana. E nisso o bardo inglês é insuperável!

Lutero: Reforma Protestante e Contra-Reforma Católica

O termo “protestante”, de etimologia latina e de uso panromânico, passou a indicar os cristãos do Norte da Europa que se rebelaram contra a Igreja Católica Romana, passando a cultuar uma nova forma de religiosidade. O fundador do Protestantismo foi o monge agostiniano alemão Martinho Lutero (1483-1546). Sua magistral tradução da Bíblia do latim para o alemão constitui o primeiro grande monumento literário em língua germânica, assim como fora a Divina Comédia de Dante Alighieri para a língua italiana, uns três séculos antes. Aproveitando a descoberta da imprensa pelo seu patrício Gutenberg, Lutero possibilitou a divulgação dos livros do Velho e do Novo Testamento. Desta forma, o conhecimento da Escritura, considerada sagrada, deixava de ser uma exclusividade dos clérigos e se tornava de domínio público, accessível a qualquer cristão alfabetizado.

A gota de água que precipitou a reforma protestante foi a campanha do padre dominicano alemão Johannes Tetzel, encarregado de pregar as indulgências dos pecados àqueles que contribuíssem monetariamente para a reconstrução da Basílica de São Pedro. Isto aconteceu em 1517, mas já vinha de longe a indignação dos povos do Norte da Europa contra a prepotência e a corrupção da Igreja de Roma. Em 1381, o teólogo inglês John Wycliffe, junto com frades franciscanos, organizou manifestações públicas para uma reforma de costumes, exigindo que bispos e cardeais renunciassem aos bens materiais e que padres e monges fossem trabalhar. E foi condenado como herege. Jan Huss, estudante de teologia da Boêmia, denunciou a venda das indulgências (o perdão dos pecados em troca de pagamento) e a ganância e a imoralidade do alto clero. E, em 1415, foi condenado a morrer na fogueira.

Em 31 de outubro de 1517, Lutero afixou na porta de uma igreja suas 95 teses que questionavam princípios e práticas da Igreja Romana. Sua intenção não era afastar-se da religião professada, mas apenas criticar os abusos. Após três anos de polêmicas com os teólogos de Roma, porém, o conjunto de sua doutrina acabou sendo condenado pelo papa Leão X. Daí o maior cisma do Cristianismo, que deu origem à fragmentação dos ensinamentos de Jesus em várias igrejas. Apontamos os pontos de conflito, que se encontram expostos nos quatro principais escritos de Lutero: Comentário (à Epistola de São Paulo aos Romanos), manifesto À Nobreza Cristã da Nação Alemã, O cativeiro da Babilônia e Da Liberdade do Cristão.

Meditando sobre a frase do apóstolo Paulo “O justo viverá pela fé”, Lutero sente uma revelação interior que o leva a pensar que a fé não requer informação, conhecimento, certeza, mas uma rendição livre e uma aposta feliz na bondade não sentida, experimentada e conhecida de Deus. Encontra, então, a salvação apenas na fé em Deus, concebido como amor, sempre disposto a perdoar nossos pecados. Ele nega a autoridade eclesiástica, pois a palavra de Deus está contida apenas nos textos sagrados, não podendo ser alterada pela intervenção do Papa ou de bispos reunidos em Concílios: sola scriptura (apenas a Escritura Sagrada contém a verdade).

Lutero não aceita, portanto, o dogma da infalibilidade papal, mesmo falando “ex cátedra” sobre assuntos de fé: todo ser humano está sujeito a erro. Qualquer cristão pode dirigir-se diretamente a Deus, não precisando de intermediários: daí a iconoclastia, que prega a derrubada de imagens e estátuas da Virgem Maria e dos Santos, assim como o culto de relíquias, a celebração de missas e a confissão. Rejeita, portanto, todos os “Sacramentos” inventados pela Igreja, aceitando apenas os dois que se encontram no Novo Testamento: o Batismo (que Jesus recebeu de João Batista) e a Eucaristia (a comunhão do pão da Última Ceia). Ele deu o exemplo de dessacralização do matrimônio, juntando-se com a ex-freira Katharina von Bora com quem teve seis filhos.

Mas a doutrina luterana não deixa de ter um substrato político e econômico. Trata-se, enfim, da insurreição dos povos anglo-saxônicos contra a tirania do poder papal, que de Roma impunha pesados tributos e uma moral hipócrita. Ele pregou a substituição do decadente clericalismo romano pela instituição de um sacerdócio universal de todos os cristãos, abolindo qualquer tipo de hierarquia, posto que todos somos iguais perante Deus. E por isso que a Reforma luterana provocou rebeliões na Alemanha, na Suíça, na Inglaterra e em outros países do Norte da Europa, que transcenderam o aspecto religioso, entrando no social. Os nobres empobrecidos, junto com a seita popular dos “anabatistas” (os novos batizados), assaltaram abadias e mosteiros, lançando o grito comunitário: se todos os homens são iguais perante Deus, é justo que todos os bens sejam divididos entre todos. Mas esta forma de comunismo antecipado não foi aprovada por Lutero, que sempre esteve ao lado da burguesia.

O apoio à burguesia foi mais evidente ainda no segundo patriarca da reforma protestante, o suíço João Calvino (1509-1564), que transformou Genebra numa cidade-igreja, regida pelos princípios do Evangelho. A base ideológica está na crença de que o sucesso social e econômico, o enriquecimento, mesmo ilícito pela usura, é um sinal da benção divina. O historiador Marx Weber escreveu uma obra que, publicada em 1905, se tornou clássica sobre o assunto: A Ética protestante e o espírito do Capitalismo, tese que pretende dar a razão pela qual a maioria dos povos de religião protestante são mais ricos e desenvolvidos do que as etnias latinas onde predomina a religião católica, que prega (apenas na doutrina, bem entendido!) a renúncia aos bens materiais. É preciso salientar que o fundador do Protestantismo, Lutero, fora educado na filosofia escolástica de Guilherme Ockham (1287-1347), que havia instado os cristãos a tentar merecer a graça de Deus por meio de suas obras: estava lançada a base da meritocracia, cada qual devendo ganhar conforme o mérito.

O princípio fundamental do Protestantismo, que defende o direito ao julgamento individual na interpretação das Escrituras, teve como conseqüência natural o aparecimento de um grande número de seitas ao longo do tempo e do espaço. Além do luteranismo e do calvinismo, apontamos o anglicanismo, as igrejas batistas, metodistas e evangélicas (em suas várias ramificações), o pentecostalismo, os quacres, os mórmons, entre outras seitas que não param de surgir. Volta e meia aparece um novo pregador que se acha possuído pelo Espírito Santo para fundar uma igreja diferente.

O sucesso da Reforma protestante provocou a Contra-Reforma católica. A igreja de Roma, para enfrentar a disseminação das várias seitas protestantes, convocou o Concílio de Trento, cidade do Norte da Itália, que durou de 1545 a 1563. Os bispos dos vários países católicos fizeram uma revisão da doutrina cristã, reafirmando os dogmas tradicionais e impondo severas normas de moralidade. Ficou a cargo da ordem religiosa, chamada de Companhia de Jesus, que surgira na Espanha em 1534, chefiada por Santo Inácio de Loyola, contestar as doutrinas heréticas dos protestantes, através do ensino religioso dirigido. Mas o Jesuitismo que assim nascia, embora posteriormente viesse a ter méritos inegáveis pela sua ação social e cultural, na época do barroco espanhol, sendo o braço forte da Contra-Reforma, foi acusado de crimes horríveis na tentativa de reprimir protestantes e outros praticantes de religiões consideradas hereges.

Em verdade, o Concílio de Trento restaurou o antigo Tribunal da Inquisição, criado no começo do século XIII para reprimir as heresias de cátaros e albigenses. Na Idade Média, quem agisse de uma forma extravagante, fora dos parâmetros religiosos da época, era considerado herege ou bruxo e condenado à fogueira. O que aconteceu, por exemplo, com a “Donzela de Orléans”, a mítica heroína francesa Joana D’Arc, sacrificada em 1431, sob a acusação de ter recebido vozes divinas e de ter vestido roupa masculina para lutar contra os opressores ingleses. Depois de quase meio milênio, em 1920, a Igreja Católica lhe fez justiça, proclamando-a Santa. O padre dominicano Tomás de Torquemada (1420-1498), Inquisidor-geral para toda a península ibérica, passou à história como sinônimo de intolerância religiosa, tendo condenado à morte milhares de heréticos, especialmente judeus.

A Contra-Reforma ensejou inúmeras e sangrentas guerras de religião em toda a Europa, especialmente entre franceses e espanhóis, motivadas também por motivos políticos, devido à disputa por territórios limítrofes entre os dois países. A noite de 24 de agosto de 1572 é lembrada como a “Noite de São Bartolomeu”, quando foram massacrados aproximadamente trinta mil “huguenotes” (nome depreciativo dos protestantes franceses). O conflito só começou a declinar a partir de 1594: pelo Edito de Nantes, Henrique de Navarra concedeu liberdade de culto aos protestantes. Ainda hoje, a rivalidade entre as duas religiões continua, especialmente na Irlanda.

Mas o crime maior que a Igreja Católica cometeu foi contra a ciência, atrasando o desenvolvimento que a Renascença européia vinha iniciando. No ano de 1600, o monge italiano Giordano Bruno foi queimado vivo em meio a uma praça pública de Roma, condenado como herege pela Inquisição, não apenas por duvidar da virgindade de Maria e da Trindade de Deus, mas, especialmente, por acreditar na existência de outros planetas, que ameaçariam a hegemonia terrestre. Conseqüentemente, a narrativa bíblica da criação do mundo podia ser contestada: se existissem outras terras, poderiam existir outras criaturas. Estas também teriam nascidas com o pecado original, precisando de outros Cristos?

Galileo Galilei (1564-1642), o grande cientista italiano, sucessor do polonês Copérnico e do inglês Newton, acusado de ensinar que era a Terra a mover-se ao redor do Sol e não o contrário, conforme o sistema ptolomaico até então aceito, precisou abjurar publicamente de sua teoria para escapar da morte. Um dos seus pensamentos mais profundo se conecta à sabedoria da Grécia antiga, retomando o método socrático da autognose:

“Você não pode ensinar nada a um homem; você pode apenas ajudá-lo a encontrar a resposta dentro dele mesmo.”

Voltando ao Protestantismo, a nova religião, como o Judaísmo, também teve o seu “êxodo”. Puritanos ingleses e calvinistas radicais, que se sentiram perseguidos na sua pátria, decidiram emigrar para o Novo Mundo. A América recém descoberta passou a ser vista como sua terra prometida, assim como fora Canaã para o povo hebreu. Lá, os emigrantes do Norte da Europa se juntaram a judeus e a grupos de outras etnias perseguidos ou desajustados em sua terra de origem para construir uma nova pátria onde os indígenas não tinham capacidade nem vontade de trabalhar.

Na nova terra, irmanados pelo espírito do trabalho e do progresso civilizacional, não há conflito entre cristãos, judeus e muçulmanos. O evangelismo americano pouco se diferencia do catolicismo: a remissão dos pecados e a promessa do paraíso não se paga mais por indulgências, mas por dízimos. As igrejas, todas elas, se enriquecem às custas de seus fiéis. Parece que padres, pastores, rabinos, lamas, mulás, aiatolás formem um coro sussurrando:

“vocês, idiotas, ficam com a fé, nós ficamos com o dinheiro!”.

A política - Maquiavel: “o fim justifica os meios”

A frase em epígrafe, de autoria de Niccoló Machiavelli (1469-1527), Maquiavel em português, continua sendo interpretada de uma forma variada, quase sempre com um sentido depreciativo, longe do contexto histórico. Ele foi Secretário de Estado da República de Florença, desempenhando funções diplomáticas em vários governos do centro da Europa. Tal experiência lhe fez deduzir que o único modo de salvar o rico território italiano, cobiçado por reis germânicos, espanhóis e franceses, era a aparição de um Príncipe (o título da sua obra mais conhecida) forte e glorioso, capaz de organizar um exército nacional e dar unidade política à Itália. Este fora também o sonho do seu conterrâneo Dante Alighieri, o poeta autor da Divina Comédia, que viveu uns 200 anos antes de Maquiavel. Mas os italianos precisariam esperar até 1860, quando o general Giuseppe Garibaldi conseguirá unificar o território da península, da Sicília ao Piemonte.

O estudioso florentino é considerado o primeiro grande teórico da ciência política moderna. Na verdade, ele é muito mais prático do que teórico. Maquiavel nos ensina que governar é propiciar o bem coletivo, arrancando o homem da sua maldade natural, o egoísmo individualista. Ele foi o inventor da “política do possível”: o governante deve atuar conforme as condições existentes em dada sociedade, sem almejar o alcance de ideais inatingíveis. Foi o primeiro a separar nitidamente os interesses do Estado dos dogmas religiosos, pregando a completa laicidade de qualquer governo. Ao Príncipe é dado o direito de utilizar todos os recursos ao seu alcance possíveis, pois o fim justificaria os meios. Admite até o uso da mentira ou da violência, quando for indispensável, por um breve lapso de tempo e sempre visando o bem comum. Mal interpretada, sua doutrina foi utilizada por correntes políticas extremistas e diametralmente opostas: o fascista Mussolini e o marxista Gramsci se declararam seus seguidores.

A Filosofia: Descartes, Pascal, Hobbes, Spinoza, Kant, Hegel, Vico

A retomada da cultura greco-romana no Renascimento europeu não se deu apenas na literatura e nas artes plásticas, mas também no pensamento filosófico. O mestre Sócrates e seus dois principais discípulos, Platão e Aristóteles, além de Epicuro, estóicos e pré-socráticos, influenciaram os homens que colocaram na razão, e não nos escritos considerados sagrados e nas crenças religiosas, o fulcro do conhecimento da realidade. Eis uma breve apresentação dos principais pensadores que mais contribuíram, ao longo da Renascença e do Iluminismo, para o desenvolvimento do raciocínio humano.

Descartes (1596-1650): Cogito, ergo sum (“Penso, logo existo”)

O estudioso francês René Descartes é conhecido também pelo nome latino Renatus Cartesius, de que resultou o nome italiano Cartesio e o adjetivo qualificativo “cartesiano”, no sentido de uma verdade clara e indiscutível. Além de filósofo, foi também um grande matemático, associando as duas atividades mentais: para ele, o pensamento reflexivo devia ter a mesma clareza e objetividade da ciência exata. Ele operou uma revolução no campo da filosofia semelhante a que seus contemporâneos Copérnico e Galilei estavam realizando no mundo da astronomia (o heliocentrismo): como o centro do universo até então conhecido não era mais a terra, mas o sol, assim o conhecimento da realidade não residiria no mundo exterior, variável e enganador, mas no mundo interior, na mente que o pensa, na razão. Por isso, ele é considerado o pai do moderno Racionalismo.

Descartes seguiu – consciente ou inconscientemente, pouco importa - o método socrático da dúvida sistemática, não acreditando em nada que não pudesse ser demonstrado cientificamente, que não tivesse uma evidência incontestável. A primeira coisa de que não podia duvidar era o fato de pensar: daí o famoso achado “penso (ou duvido), portanto eu existo”. A grande contribuição de Descartes à filosofia foi a valorização do ato de pensar, o estabelecimento da primazia da razão. A única coisa que não é ilusória é o eu pensante. A própria objetividade da ciência não pode existir fora da subjetividade de quem a estuda. O conhecimento parte de dentro para fora. Rompe-se, assim, o automatismo cognitivo fundamentado na tradição cultural, desmonta-se o mundo do autoritarismo: tudo é submetido ao controle da lógica.

Mas, infelizmente, a clareza e a coerência cartesiana não penetram o domínio da ética. Filho de sua época, Descartes sucumbe aos preconceitos da teologia escolástica e da moral burguesa. Ele acaba professando a necessidade de uma ética “provisória”, de tolerância, conformista em relação aos ditames de ordem política, social e religiosa. Quando fica sabendo da condenação de Galilei, Descartes deixa de publicar um trabalho científico em que apresentava idéias inovadoras semelhantes. O medo o torna omisso e hipócrita. Precisamos esperar a vinda do alemão Emanuel Kant para que os valores humanos da sinceridade, da verdade e da justiça fossem considerados “imperativos categóricos”.

Pascal (1623-1662): Destino e livre arbítrio

O africano Santo Agostinho (354-420), o espanhol Luís Molina (1535-1601) e o holandês Otto Jansen (1585-1638) podem ser considerados os predecessores do francês Blaise Pascal no tocante à discussão sobre o controvertido tema da religião católica que trata das relações entre a predestinação e a liberdade humana: se a salvação do homem só é possível pela graça divina e esta, por definição, é um ato gratuito, um presente de Deus, como condenar quem não recebeu este dom?

A questão do livre arbítrio vem de longe, já sendo objeto de perplexidade na mitologia grega: Édipo pode ser visto como o arquétipo do inocente-culpado. O Fado (o destino) determinara que ele matasse o pai e casasse com a mãe, independentemente da sua vontade. Os filósofos estóicos admitiam uma liberdade apenas interior, na possibilidade do “eu” dispor de si mesmo, considerando como princípio de opressão todo o mundo exterior: a natureza, a sociedade, as paixões. Já, conforme a Bíblia, todos os seres humanos, ao nascerem, contraem uma culpa por um pecado que não cometeram. O determinismo psicológico é claramente expresso por São Paulo na sua Epistola aos Romanos:

“faço não o bem que quero, mas o mal que não quero”.

O problema é estudado com uma maior profundidade uns três séculos mais tarde com os Padres da Igreja. Santo Agostinho tenta conciliar a liberdade de escolha do homem com a presciência divina, mas a existência do mal cria dúvidas em seu espírito: se Deus prevê e pode, por que não evita a maldade e a desgraça de que são vítimas não apenas os culpados, mas também tantos inocentes e ignaros? De outro lado, admitir a coexistência de uma dualidade cósmica, o princípio do Bem e do Mal, seria aceitar o Maniqueísmo, doutrina considerada herética. Na verdade, Santo Agostinho dá a entender que a presença da maldade no mundo, face à imensa sabedoria e bondade divina, é algo de inexplicável, beirando o mistério.

Na época do Barroco europeu, a questão se torna uma polêmica, ainda hoje não resolvida plenamente pela igreja católica, entre molinistas e jansenistas. O jesuíta espanhol Luís Molina, como reação às teorias protestantes da predestinação, em 1588, publicou a obra “Acordo do livre-arbítrio com o dom da graça, com a presciência divina, a providência, a predestinação e a condenação”. O bispo holandês Jansênio, partidário do agostinianismo integral, doutrina que dava maior importância à graça divina, em detrimento da liberdade humana, iniciou uma campanha contra os jesuítas que, aceitando o pensamento de Molina, privilegiavam a teoria da salvação pelo mérito pessoal. Sua obra Augustinus foi publicada em1640, dois anos após sua morte, pelos seus discípulos, alcunhados de jansenistas. Blaise Pascal conduziu a controvérsia entre molinistas e jansenistas, escrevendo uma obra a respeito, intitulada As Carta Provinciais (1657), em que ataca o casuísmo dos padres jesuítas.

Pascal, o grande físico, matemático e filósofo francês, se tornou famoso pela obra Pensées (Pensamentos: 1670), entre tantas outras. Ele costumava freqüentar a sociedade mundana, onde esbanjava seu espírito de finura e de elegância verbal, sendo por isso considerado o fundador da prosa literária francesa. Em 1654, escapando da morte num acidente de carruagem, teve um êxtase que o induziu a dedicar sua vida a Deus, tornando-se um homem extremamente religioso. Ao freqüentar a escola jansenista de Port-Royal, Pascal se deixou cada vez mais levar pelo sentimento, acusado, por isso, de reacionário pelos intelectuais do Iluminismo. Conhecido é seu adágio: “o coração tem razões que a própria razão desconhece”, confirmando assim o aspecto misterioso das relações entre o elemento espiritual e material do ser humano, já apontado por Santo Agostinho.

Thomas Hobbes (1588-1679): Homo homini lupus

“O homem é o lobo do homem” (a guerra de todos contra todos): esta famosa frase do filósofo inglês sintetiza seu pensamento sobre as relações entre o indivíduo e a sociedade. O homem, pela sua natureza animal, acossado pela autopreservação, acaba invadindo o espaço do seu semelhante, provocando lutas sangrentas. É necessário, portanto, que os homens se reúnam em sociedade e estabeleçam normas rígidas de convivência pacífica. Para tanto, urge celebrar um “contrato social” pelo qual os indivíduos cedam seus direitos e sua liberdade ao Estado, regido por um Soberano, que ele simboliza no Leviathan (titulo da sua obra mais conhecida), monstro da mitologia fenícia, lembrado pelo profeta bíblico Isaías. A ele, considerado como Deus na terra, deve ser dado todo o poder, pois contratos sem a ameaça da espada são impotentes para garantir a paz e a segurança.

A proposta de um governo absolutista deve ser vista num contesto histórico: Hobbes teve a experiência da Guerra Civil inglesa e dos inúmeros conflitos religiosos que se espalhavam pela Europa toda. Seguindo, de alguma forma, o pensamento político de Maquiavel, imaginou, então, que a solução estaria na separação do Estado da Igreja e na constituição de um Governo único e totalitário que impusesse a paz pela força. O filósofo inglês estava certo quanto à necessidade de um Estado laico, pois todas as religiões são fomentadoras de conflitos éticos, mas errou redondamente ao propor um regime ditatorial. Ele, de uma forma inconseqüente, não calculou que qualquer monarca ou salvador da pátria, por ser ele também um humano, poderia se tornaria um lobo ainda maior, tipo Hitler ou Stalin, conforme demonstrará a história a ele posterior.

Spinoza (1632-1677): Deus é o próprio mundo

Baruch Spinoza, a meu ver, é o pensador mais lúcido e coerente que antecedeu o Século das Luzes. Ele teve a altivez de não se dobrar aos poderosos da sua época, enfrentando o ostracismo da sinagoga de Amsterdã e não aceitando a cátedra da Universidade de Heidelberg, para não renunciar à liberdade de pensar, de sentir e de agir. Judeu descendente dos primeiros israelitas da Espanha, expulsos da península ibérica e refugiados na hospitaleira e liberal Holanda, estudou para ser rabino, mas chegou à conclusão de que as contradições encontradas nas Sagradas Escrituras eram provas da sua origem não divina. Tratava-se apenas de histórias fantasiosas, escritas ao longo de vários séculos e por muitos autores (por exemplo, como ele releva, seria impossível Moisés ter redigido o Pentateuco sozinho). Acreditar em revelações divinas improcedentes e contraditórias se tornou incompatível com os conhecimentos que vinha adquirindo através do estudo da física, da matemática, da lógica, da astronomia e, especialmente da filosofia: Galileu, Giordano Bruno e Descartes passaram a ser seus principais mestres.

Spinoza publicou em vida apenas duas obras, Princípios da filosofia de Descartes (1663) e Tratado teológico-político (1670), mas elas suscitaram ataques tão violentos contra sua pessoa que o levaram a decidir não mais publicar escrito algum. O restante de sua produção teve edições póstumas, com destaque pelo seu tratado mais importante, Ética, onde expõe seu pensamento sobre a divindade e a moral. Para ele, o que chamamos de Deus é simplesmente a própria natureza em que essência e existência são uma coisa só, sem criador nem criatura. É a teoria da pura imanência, não existindo nenhuma divindade ou entidade sobrenatural: nada transcende o mundo da realidade, o espírito não existindo fora da matéria.

Coerente com sua concepção teológica é seu conceito de moral. Se eu estiver interpretando bem a idéia de Spinoza, para ele não existe uma ética religiosa nem individual, pois qualquer forma de moralidade é sempre de cunho social. A própria etimologia da palavra moral vem do acusativo latino mores, que significa “costumes”, normas necessárias para se viver em sociedade de uma forma harmoniosa. Tais normas não fazem parte de um contrato explicito, exarado por um profeta ou um príncipe, mas são naturais, implícitas no próprio conceito de comunidade, que implica em direitos e deveres. Num regime democrático, os cidadãos devem ser educados a respeitar a liberdade de seus semelhantes, independentemente de qualquer postura ideológica ou credo religioso. “Não roubar”, no sentido geral de respeito ao que pertence a outra pessoa (vida, dinheiro, mulheres - ou homens - e outros bens materiais e espirituais), antes de um mandamento divino, é um “imperativo categórico”, conforme a denominação de outro grande filósofo, Emanuel Kant, de quem falarei em seguida.

Emanuel Kant (1724-1804): o imperativo categórico

Diferentemente de outros pensadores que foram também cientistas, teólogos, literatos ou artistas, o alemão Emanuel Kant pode ser considerado um filósofo puro, no sentido de que dedicou sua vida inteira à especulação intelectual. Entre suas numerosas obras, assinalamos: Crítica da razão pura, Crítica da razão prática, Crítica do juízo, A religião nos limites da simples razão, Fundamentos da metafísica dos costumes. Quase todas suas pesquisas foram direcionadas para descobrir os limites entre os sentidos e a razão, tentando responder a três perguntas fundamentais: O que preciso saber? O que devo fazer? O que posso esperar?

Retomando a discussão entre o determinismo e a liberdade humana, que tanto tinha preocupado os estudiosos anteriores, a partir de santo Agostinho, ele considera o conflito apenas aparente, não existindo na realidade. Efetivamente, se, pelo seu ser empírico, o homem deve submeter-se às leis da natureza, pelo poder de sua inteligência ele pode afastar-se dela ou operar sobre ela. A conexão entre o reino da liberdade e o reino da necessidade dá-se dentro de uma realidade unitária, embora pertencendo, dentro de sua unidade, a dois mundos diferentes, o material e o espiritual. Entre as duas realidades há distinção, mas não separação. A alma se distingue do corpo, mas não existe sem ele. Na linha de Descartes, Kant coloca a razão como o princípio fundamental do conhecimento humano, pois é só a partir do sujeito pensante que se constrói o mundo exterior. O saber vem de dentro para fora e não ao contrário, como pensam os cientistas. E, para superar o subjetivismo e o relativismo, passa a admitir o caráter absoluto de certas formas de raciocínio.

Mas é no domínio da ética que o pensamento de Kant tem seus melhores resultados práticos. Ele postula a existência de uma alma livre, que possui uma vontade autônima. Só que a vontade individual deve ser submetida a uma lei natural proveniente de uma necessidade lógica: existe algo “apodítico”, no sentido de incontestável, válido para todos os homens, em qualquer tempo e em qualquer lugar, não dependendo de religião alguma, pois faz parte do próprio viver em sociedade, que Kant chama de “imperativo categórico”: agir conforme uma máxima tal que você possa querer que se torne lei universal. Tal princípio ético fundamental pode ser assim formulado: ”trate seu semelhante como você gostaria de ser tratado”! Este conceito de Kant está de acordo com a essência da "regra de ouro", exposta de maneira semelhante pelos maiores profetas e filósofos da história da humanidade:

"Este é o resumo de todos os deveres: não façais nada aos outros que, se fosse feito a vós, vos causasse mágoa" (Mahabharata);

"Não magoeis os outros com aquilo que vos magoa a vós" (Buda);

"Deus diz: amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Levítico);

"Tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós" (Evangelho segundo Mateus);

"Se queres ser amado, ama" (Sêneca);

"Nenhum de vós é um crente, até quererdes para o vosso vizinho aquilo que quereis para vós" (Maomé).

Se os homens detentores do poder político ou religioso observassem esse mandamento, aí sim poderíamos construir uma verdadeira cidadania!

Hegel (1770-1831) e Vico (1668-1744): o idealismo dialético

Friedrich Hegel retoma o pensamento de seu patrício Kant no projeto de pensar a vida pela oposição entre o mundo subjetivo e objetivo. Só que ele acrescenta um passo fundamental: encontra a “síntese” que engloba a tese do eu pensante com a antítese do mundo exterior. Formula, então, o processo que ele chama de “dialético”, constituído pelos três momentos: tese (proposta), antítese (oposição) e síntese (conjunção), que lembra as três proposições do silogismo dos filósofos pré-socráticos e da escolástica medieval (premissa maior e menor, seguidas da conclusão). Hegel chama tal processo de dialético, do grego dia + lexis = “a palavra em movimento”, pois ele identifica o Absoluto com o Conceito. Para o filósofo alemão todo o conhecimento só é possível dentro da mente humana: a essência das coisas está na “idéia” que temos delas. Ele conecta, assim, seu pensamento ao idealismo do filósofo grego Platão.

O princípio dialético do procedimento por oposição e englobamento das oposições, exposto na sua obra máxima A fenomenologia do espírito (1807), pode ser aplicado não apenas à teoria do conhecimento, mas também ao estudo da história e do avanço das várias civilizações. O que fizera, de uma forma bem mais clara do que a complicada dialética alemã, o napolitano Giambattista Vico, quase um século antes de Hegel, ao publicar a obra Princípios de uma nova ciência relativa à natureza comum das nações (1725), considerada o primeiro tratado de Filosofia da História. Nela, contestando o racionalismo de Descartes, defendeu a tese de que o verdadeiro objeto do conhecimento não é a natureza, nem a razão, mas o mundo da cultura: o que o homem realmente cria e deixa para a posterioridade.

Vico é o primeiro a utilizar o método triádico, chamado de “cursos e recursos históricos”. Para ele, a civilização passa por três estágios: idade divina (mítica, teológica ou infantil), idade épica (heróica ou juvenil) e humana (racional ou madura). Após o terceiro estágio, termina um ciclo e reinicia uma nova etapa. Esta teoria explicaria, por exemplo, a volta à barbárie do Egito atual, após tantos séculos de civilização faraônica. Os Impérios, como todos os seres vivos, nascem, crescem e morrem. Algo semelhante aconteceu na religião judaico-cristã: o Deus de Abrão era um tirano que exigia submissão incondicional a leis intoleráveis; Jesus veio para libertar os seres humanos dessa escravidão, mas as igrejas de papas, pastores, rabinos e aiatolás voltaram a exercer a antiga tirania.

A Ciência: Copérnico, Bacon, Galileu, Newton

É na época do Renascimento que inicia a ciência moderna. Os primeiros matemáticos, astrólogos, físicos, biólogos europeus sofreram barbaridades nas mãos do papado de Roma, quando suas descobertas científicas começaram a contestar dogmas e crenças religiosas em que os fiéis vinham acreditando, ao longo de uma tradição milenar. Já falei um pouco de Leonardo da Vinci. Vou apontar agora mais outros expoentes da revolução iniciada na Renascença, resumindo as principais contribuições para o avanço da ciência.

Nicolau Copérnico (1473-1543), astrônomo polonês, foi o primeiro a publicar um tratado sobre a hipótese heliocêntrica, invertendo o sistema ptolemaico que regia a astronomia havia quase 14 séculos: não era o sol, mas a terra que girava. Após dez anos de estudos na Itália, ele chegou a demonstrar o duplo movimento dos planetas, em torno de si mesmos e em torno do sol. Mas, temendo as represálias por parte da Igreja Católica, relutou a apresentar sua idéia revolucionária que, contestando a Sagrada Escritura, iria emancipar a cosmologia com relação à teologia. Foi o astrônomo italiano Galileu Galilei que endossou a tese do sistema copernicano, mas foi processado por isso e precisou se retratar.

Francis Bacon (1561-1626), considerado o pai do Empirismo, inaugura uma nova vertente no pensamento filosófico e científico. O estudioso inglês tem em comum com o contemporâneo francês Descartes a luta contra o dogmatismo religioso e secular, herança da cosmovisão medieval, propondo o livre exame da realidade física e psíquica, sem as amarras de qualquer forma de preconceito. Mas discorda quanto à existência das “idéias inatas”, postuladas pelo filósofo francês. Para Bacon,

“nada há no intelecto que antes não tenha passado pelos sentidos”.

A mente humana é uma “tábua rasa” sobre a qual se imprimem as idéias produzidas pelas sensações provenientes do mundo exterior. A experiência sensível é a única fonte do conhecimento. Mas sua grande contribuição reside na formulação do método científico de pesquisa, até hoje utilizado. Na sua obra mais conhecida, Novum Organun, apresenta as etapas do seu método: 1) observação do fenômeno; 2) análise de seus elementos constitutivos, estabelecendo relações quantitativas e qualificativas entre eles; 3) indução de hipóteses; 4) verificação das hipóteses por meio do experimento; 5) generalização do resultado formulando uma lei, se as hipóteses forem confirmadas.

Galileu Galilei (1564-1642) testou empiricamente a teoria copernicana do movimento da terra ao redor do sol, observando os planetas através de um grande telescópio. Mas foi silenciado pelo Tribunal da Inquisição e obrigado a se desdizer. Como podiam as revoluções da Terra se harmonizar com a ascensão de Cristo ao céu? Somente após 360 anos de atraso, em 1982, o papa João Paulo II retirou as acusações de heresia, reconhecendo a injustiça feita pela Igreja Católica contra o grande gênio da Renascença italiana. O dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898-1956) criou uma peça maravilhosa, A vida de Galileu, em que representa artisticamente o conflito do intelectual no seio da sociedade em que vive. O mais grave é que as igrejas, todas elas, presas a preconceitos atávicos e absurdos, ainda continuam impedindo o livre avanço da ciência em busca da verdade e do melhoramento humano. Veja-se, por exemplo, a recente celeuma acerca das pesquisas científicas sobre as células-troncos embrionárias, que poderiam aliviar dores e salvar vidas.

Isaac Newton (1642-1727) reconheceu sua dívida aos cientistas que o precederam pela imagem de que um gênio é apenas um anão sentado em cima de uma montanha, construída pela tradição cultural. As contribuições do grande cientista inglês no campo da física, da matemática e da astronomia são incalculáveis. Lembramos apenas o episódio lendário que o levou ao descobrimento da lei da gravitação universal e da atração terrestre. Narra-se que Newton, estando descansando em baixo de uma macieira, uma fruta lhe caiu na cabeça. Ele se perguntou, então, por que a maça caíra em lugar de subir ou ficar parada no espaço. Tal fato o induziu a realizar uma série de experiências, jogando objetos de diferentes pesos e de várias alturas, que o levaram à confirmação da tese de que os corpos físicos mais densos caíam mais rapidamente ao solo por vencerem com maior facilidade o atrito do ar atmosférico. Ele pôs em prática as três fases principais do método científico: observação, comprovação, formulação da lei.

Iluminismo, Enciclopédia, fim da Escravidão, Democracia.

Descartes, Bacon, Galileu, Spinoza e outros filósofos e cientistas dos séculos XVI (Quinhentos) e XVII (Seiscentos) criaram a base teórica para a grande revolução política e social que aconteceu no século XVIII (Setecentos) na Europa e na América do Norte. Estamos na época do Iluminismo, Ilustração ou “Século das Luzes”, quando se publicou a grande Enciclopédia, o Estado se separou da Igreja, foi abolida a Escravidão, nasceram os regimes Constitucionais e a Democracia moderna, aconteceu a Revolução Francesa içando a bandeira da Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

O advento do Iluminismo foi preparado especialmente pelo Liberalismo, com base na teoria política de Locke e na prática do Presidente dos EUA, Thomas Jefferson (1743-1826). O pensador inglês John Locke (1632-1704), contestando a existência das idéias inatas admitidas por Descartes, professa um materialismo sensualista, pois o conhecimento só pode advir pelos sentidos, observando as leis da natureza. O desenvolvimento das ciências naturais e a reorganização da sociedade em bases estritamente racionais acabariam com todos os preconceitos religiosos. Mas os verdadeiros criadores do liberalismo político foram os economistas ingleses Adam Smith e John Stuart Mill. Apontamos as linhas-mestres da doutrina político-liberal:

a) o regime democrático e a independência dos três poderes;

b) o direito à propriedade e à liberdade de pensar e de agir;

c) o livre jogo da concorrência nas relações comerciais (lei da oferta e da procura);

d) a intervenção apenas reguladora do Estado para evitar abusos ou injustiças.

O fruto de tantas idéias inovadoras no campo da filosofia, da ciência e da política foi a elaboração da Enciclopédia (“Dicionário racional das ciências, das artes e das profissões”), que levou uma geração (de 1751 a 1766) para ser publicada, devido à ação repressora da censura eclesiástica. Colaboraram mais de 60 especialistas, sob a direção de Diderot e D’ Alembert, além dos três grandes escritores Montesquieu, Rousseau e Voltaire. Na medida em que cada volume era editado, o papa de Roma esperneava, emitindo repetidos atos condenatórios das doutrinas contidas na Enciclopédia. Mas ela começou a penetrar nos lares burgueses, criando-se até associações para discutir os assuntos contidos na majestosa obra. De modo semelhante ao que acontecera com a publicação da Origem das Espécies, a leitura da Enciclopédia foi substituindo a Bíblia Sagrada. Era o Humanismo tomando o lugar do Teologismo. A intenção era substituir a Religião pela Ciência e a Fé pela Razão.

O Iluminismo propunha um novo contrato social, abolindo qualquer forma de despotismo e pregando a igualdade de todos os homens perante a lei. De imediato, a conseqüência mais benéfica foi a abolição da escravidão: o Parlamento inglês, em 1807, proibiu o tráfico de escravos em todo o império britânico. É interessante notar que foi um governo laico a acabar com o instituto da escravidão, a maior vergonha do gênero humano, sempre tolerada pelos regimes religiosos. Até então a escravidão era considerada uma constante inerente à própria natureza humana, permitida por todas as teologias. A mão de obra escrava era utilizada para a construção de obras majestosa, com as Pirâmides, por exemplo. Os escravos, pois, constituíram a principal força motriz de civilizações. Encontramos escravatura no Egito dos Faraós, no Velho Testamento, nas póleis gregas, no Império Romano. Era de se esperar que a chegada de Jesus Cristo, o doce apóstolo do amor, pusesse fim a tal execrável instituição, mas foi um ledo engano. O Cristianismo tolerou o sistema escravagista por mais de 18 séculos. Papa algum excomungou donos ou traficantes de seres humanos, como fazia com hereges, e menos ainda os condenou à morte na fogueira, como fez como a valente mocinha Joana D’ Arc. E a outra religião monoteísta, o Islamismo, não deixou por menos: a oitava sura do Corão manda fazer escravos todos os prisioneiros de guerra!

A vergonha maior está no tráfico de escravos pelos três continentes: da África para a América, com navios que partiam da Europa. Os negros escravizados não eram cativos de guerra, mas cidadãos livres, capturados a laço em seu próprio território por capatazes a serviço de comerciantes de escravos e colocados nos navios negreiros. Durante séculos houve um comércio triangular de seres humanos entre capitais européias, costas africanas e litorais americanos. E tal horrenda indústria teve a complacência de todas as igrejas.

No Brasil, esse comércio teve a mais longa duração, acrescida pela escravidão também de sua prole, os afro-descendentes. Milhares de jovens africanos eram presos e conduzidos até os navios. Lá eram batizados (ironia ou hipocrisia?) e marcados com ferro em brasa, como se faz com o gado. Ao chegar aos portos brasileiros, eram leiloados no mercado público e submetidos a trabalhos desumanos. Castro Alves, o poeta romântico baiano, pelo seu poema O Navio negreiro, denuncia a degradação humana a que eram submetidos os africanos durante a travessia oceânica. Apesar de uma lei brasileira de 1850, que proibia o tráfico de escravos, o vergonhoso comércio ainda continuava em 1868, quando foi publicado o poema. Vale a pena transcrever alguns versos:

Era um sonho dantesco... o tombadilho  

Que das luzernas avermelha o brilho. 

Em sangue a se banhar. 

Tinir de ferros... estalar de açoite...  

Legiões de homens negros como a noite, 

Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas  

Magras crianças, cujas bocas pretas  

Rega o sangue das mães:  

Outras moças, mas nuas e espantadas,  

No turbilhão de espectros arrastadas, 

Em ânsia e mágoa vãs!  ...

Se o velho arqueja, se no chão resvala,  

Ouvem-se gritos... o chicote estala...

Senhor Deus dos desgraçados! 

Dizei-me vós, Senhor Deus! 

Se é loucura... se é verdade 

Tanto horror perante os céus?!

Ontem simples, fortes, bravos. 

Hoje míseros escravos, 

Sem luz, sem ar, sem razão.

Ontem a Serra Leoa, 

A guerra, a caça ao leão...  

Hoje... o porão negro, fundo, 

Infecto, apertado, imundo, 

Tendo a peste por jaguar... 

E o sono sempre cortado 

Pelo arranco de um finado, 

E o baque de um corpo ao mar...

Senhor Deus dos desgraçados! 

Dizei-me vós, Senhor Deus, 

Se eu deliro... ou se é verdade 

Tanto horror perante os céus?!...

Mais triste foi a destruição do sentimento de nacionalidade. Como precaução contra possíveis revoltas, logo que os capturados chegavam ao navio, os marinheiros eram instruídos a misturar as várias etnias africanas, formando grupos de línguas e costumes diferentes. Para se comunicarem entre si, todos eram obrigados a falar o português, a língua dos dominadores. Junto com a desagregação da pátria, havia também a disjunção familiar. Enquanto os trabalhadores dormiam em senzalas, que separavam os homens das mulheres, as escravas jovens e bonitas residiam na casa grande, servindo ao senhorio especialmente como objeto de prazer sexual.

A desculturação se estendia também a rituais, costumes, hábitos alimentares, chegando-se a uma miscigenação de usos entre as três raças: indígena, africana e européia. As conseqüências do regime escravagista são ainda hoje visíveis. O gosto brasileiro pela feijoada, por exemplo: a mistura do que restava nos pratos dos patrões era posto num tacho para saciar a fome dos escravos. Pior do que a herança de costumes é a da mentalidade social e econômica: o povo brasileiro, especialmente a maioria mais pobre, se acostumou a viver de esmolas do poder público ou privado, vendendo até seu voto em troca de favores, enquanto os políticos se locupletam com o dinheiro de seus impostos. Em lugar de clamar pela justiça, se contenta com a caridade!

Além da condenação da escravatura, ao Iluminismo devemos também o surgimento dos governos constitucionais e da democracia moderna. Também no campo político dá-se uma revolução comparável à de Bacon (teoria do conhecimento), Copérnico (sistema heliocêntrico), Darwin (teoria evolucionista). Chegou-se à convicção de que o poder não devia mais emanar de cima para baixo, mas no sentido inverso, da periferia para o centro. Quem devia estabelecer leis não era Deus ou o Rei, mas o povo que sustentava o Estado com seus impostos, através de representantes por ele escolhidos. Assim, o surgimento de uma burguesia abastada provocou a Revolução Francesa (1789), que derrubou o absolutismo monárquico, instituindo regimes constitucionais em várias nações da Europa e da América do Norte.

O movimento constitucionalista vinha de longe e não surgiu na França, mas na Inglaterra. A primeira Carta Magna foi inglesa e remonta a 1215, ainda na Idade Média, quando um grupo de nobres exigiu do rei João Sem Terra que consignasse por escrito os limites do poder da Monarquia, colocando a lei acima de tudo e de todos. Os princípios aí designados passaram a constituir a base da Revolução Puritana (1640) e Gloriosa (1688), quando iniciou o sistema bipartidarista e se afirmou a liberdade de imprensa. A visão newtoniana levou ao florescimento da ciência e o comércio marítimo deu início ao império britânico. A mesma filosofia de vida norteou a Revolução Americana que culminou na Declaração da Independência dos EUA (1776), proclamando o direito natural de todos os homens à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Os princípios democráticos se universalizaram quando, em dezembro de 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU) promulgou a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

VII – Romantismo e Realismo

Alternância do real e do ideal

O Romantismo e o Realismo, além de serem dois momentos históricos opositivos no conjunto da cultura ocidental, representam também duas posturas de contraste perante a visão de vida, ensejando diferentes pedagogias. Já falei, no primeiro capítulo deste trabalho, dos mitos de Apolo, o deus da luz, e Dioniso, o deus do vinho, como representações, respectivamente, da razão e do instinto, do código cultural e do código natural. Na história da evolução humana podemos perceber uma alternância da prevalência ora de um princípio ora de outro.

A teoria dos movimentos literários nos mostra que à época de predominância da cultura greco-romana sucedeu o atraso do longo período medieval. A Renascença retoma o espírito apolíneo da Grécia antiga, especialmente com o Neoclassicismo francês (Corneille, Racine, Molière). Com o Romantismo dá-se a volta ao espírito dionisíaco da Idade Média pela tomada de posição contra o Classicismo generalizante, em favor do caráter nacional da cultura e da prevalência dos interesses do indivíduo sobre o social. O Realismo, que surge em oposição aos ideais românticos, retorna aspectos do Classicismo, valorizando a contribuição das ciências na produção da obra de arte, o papel fundamental da estrutura social para o desenvolvimento civilizacional e a busca da perfeição formal (vejam-se os poetas parnasianos).

Como podemos perceber, um movimento literário surge em oposição ao anterior e retoma aspectos do anterior ao anterior. Mas não se trata de um simples retorno. Cada momento artístico tem variedades de estilo e de significado conforme sua época. Por exemplo, Aristóteles define a arte como imitação da realidade. Tal definição é aceita também pela estética realista. Só que, enquanto na estética clássica a realidade é idealizada, transfigurada pela mão ou pela mente do artista, na época do Realismo a realidade é expressa como ela é e não como gostaríamos que fosse. O mundo da fantasia ou de ideologias cede seu lugar à exposição da verdade existencial exterior e interior, exposta na sua crueldade.

Rousseau: o mito do bom selvagem

O Romantismo iniciou na França, mas teve seu apogeu na Inglaterra e na Alemanha, ao longo de um século: segunda metade do séc. XVIII e primeira do XIX. Seus pressupostos filosóficos e políticos podem ser encontrados no movimento iluminista: a afirmação dos direitos do indivíduo e a livre expressão da sensibilidade. Romantismo é sinônimo de liberdade em todos os sentidos: liberdade política, opondo-se a qualquer forma de absolutismo; religiosa, rejeitando todo tipo de dogmatismo; estética, contra as regras poéticas do Classicismo; social, contra a opressão das classes dominantes. Contra o espírito aristocrático da Renascença e do Iluminismo, o Romantismo prega a popularização da cultura, propondo uma nova maneira de sentir e de viver.

O suíço Jean-Jacques Rousseau, filósofo e escritor de origem francês, conviveu com os maiores expoentes do Iluminismo e colaborou na Enciclopédia. Ele é considerado o precursor do Romantismo pela criação do mito do “bom selvagem”. Convencido de que o homem é bom por natureza, sendo o viver em sociedade a causa da sua degradação moral, passou a condenar o estudo das ciências e a prática das artes. Privilegiando o naturalismo, o primitivismo e os costumes indígenas, tornou-se um implacável crítico da organização social. Tanto que um seu opositor afirmou que, de tanto ouvir Rousseau exaltar a vida animal, dava vontade de “andar de quatro”.

O absurdo de privilegiar o código da natureza contra o avanço civilizacional, propiciado pelo culto da ciência, da filosofia e das artes, só podia germinar numa mente dominada por preconceitos religiosos. Rousseau teve uma educação calvinista, que lhe impedia alcançar a verdade, que se encontra na constatação dos fatos históricos, irrecusáveis por qualquer inteligência não comprometida por idéias fixas. Apenas a ignorância ou a má-fé pode achar que há mais moralidade entre os homens primitivos do que nos civilizados.

Os exemplos de selvageria entre tribos indígenas são inúmeros: astecas que arrancam o coração dos vencidos; índios norte-americanos que escalpam os perdedores; ancestrais que se alimentam de carne humana para se apossar da força dos vencidos. O culto do primitivismo, compartilhado também por alguns atuais ambientalistas que chegam a praticar formas de zoofilia, prejudica o avanço científico e o progresso social. Lembro que numa visita à ilha de Fernando de Noronha, o paraíso ecológico onde falta água e eletricidade, notei que uma pá para geração de energia eólica não estava funcionando. Perguntado o motivo, fiquei sabendo que a paralisação foi devida a um protesto de ecologistas pela morte acidental de uma ave!

A meu ver, a importância de Rousseau reside mais no campo político, onde suas idéias foram frutíferas, antecipando os ideais da Revolução Francesa, e ainda hoje sustentáveis e benéficas. Ele achava que a desigualdade entre os homens tinha como causa o Estado despótico e o acúmulo de riquezas nas mãos de poucos. Era preciso evitar a exploração do homem pelo homem. Propunha, então, para a formação de um Estado ideal, um acordo entre os cidadãos visando a cessação de direitos individuais em prol da coletividade, balanceando benefícios sociais com os deveres de cada um. Seus ideais foram retomados pelo revolucionário Robespierre e por Victor Hugo, o escritor mais prolífero do Romantismo francês.

O Romantismo, por ser muito abrangente no tempo e no espaço, afirmando-se em cada país de uma forma diferente, não deixa de ser um movimento cultural contraditório consigo mesmo, apresentando facetas contrastantes. Os estudiosos distinguem duas correntes principais, uma “quietista” que se alimenta de sonho e de ilusões, idealizando a realidade; e outra “revolucionária” que repudia o modelo burguês de vida, insurgindo-se contra qualquer tipo de autoritarismo e de obrigação social ou moral.

Entre os maiores poetas do primeiro tipo de Romantismo aponto os franceses Alfred de Musset e Lamartine, o italiano Giacomo Leopardi, o inglês John Keats, o norte-americano Edgar Allan Poe. Este último escritor, muito bom na poesia e na prosa (criou o moderno conto policial) é considerado o primeiro autor das colônias a influenciar a cultura européia, invertendo a direção das influências. Seu poema The Raven (O Corvo) exprime artisticamente o refúgio dos poetas românticos no mundo do sonho e da imaginação, pois a realidade é opressora dos sentimentos. A imagem do corvo imóvel, acocorado no umbral do seu quarto, simbolizando a insensibilidade do pai adotivo do poeta e a impossibilidade de vencer as forças adversas aos anseios individuais, é reforçada pelo verso-estribilho never more (“nunca mais”).

A corrente revolucionária do Romantismo surgiu na Alemanha, provocada pela aloucada peça de Frederico Maximiliano Klinger, Sturm und Drang (“Tempestade e Revolta”), publicada em 1776, que colocou em xeque as normas estéticas do Neoclassicismo francês. Mas a revolta não era apenas contra as regras poéticas, mas também contra o imperialismo francês e o secular predomínio da cultura clássica, até então apanágio dos povos latinos. Após as grandes navegações e o descobrimento de novos continentes, o desenvolvimento do comércio provocou o início da Revolução Industrial para atender às exigências dos novos mercados. E nisso os povos anglo-saxônicos se sobressaíram. O imperialismo inglês começou a se afirmar em detrimento das anteriores superpotências da Espanha e da França. E, como sempre acontece, o poder econômico impõe a cultura dos vencedores.

Goethe: o mito do Dr. Fausto (a venda da alma ao demônio)

O maior expoente do Romantismo e de toda a literatura alemã é Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), considerado o poeta nacional da Alemanha, como Dante da Itália e Shakespeare da Inglaterra. Sua obra é muito vasta, produzindo textos maravilhosos nos três gêneros literários: narrativa, lírica e drama. Neste estudo, vou fazer apenas referência à peça Fausto, onde se encontra o mito do homem que vendeu sua alma ao diabo. A tradição cultural européia registra, com o nome de Doutor Fausto, um homem que viveu na Alemanha entre 1480 e 1540. Ele acabou sendo qualificado por historiadores como um falso médico, praticante de alquimia e de magia, audacioso aventureiro, milagreiro e charlatão, luxurioso e homossexual, bom humanista. Goethe deu vida literária a esta lenda, tornando a figura de Fausto mundialmente famosa.

O drama apresenta três personagens principais: Fausto (um jovem estudante), Margarida (uma moça ingênua) e Mefistófeles (a personificação do Diabo). Lá, no céu, há uma aposta entre Deus e o Diabo a respeito do comportamento, lá na terra, de Fausto, jovem irrequieto e amante dos prazeres da vida, mas atormentado pelo desejo de tudo conhecer e pela aspiração ao infinito. O Senhor diz a Mefistófeles que logo Fausto, pelas suas qualidades intelectuais e espirituais, conseguirá a Luz Divina, que lhe resolverá todas as dúvidas. O Diabo contesta e desafia Deus, pedindo-lhe permissão para descer na terra e seduzir o jovem, oferecendo-lhe bens materiais em troca de sua alma imortal. Aceito o desafio, o diabo se encarna em Mefisto, um estudante andarilho e aparece a Fausto, fazendo-lhe a proposta da troca da sua alma por todos os prazeres desejados.

O jovem aceita o pacto e, cumprindo o prometido, Mefisto leva Fausto numa adega para tomar vinho e na tenda de uma feiticeira que lhe dá um elixir para reforçar seu poder sexual. Logo se apaixona pela belíssima Margarida, mocinha de quinze anos, que não lhe dá bolas. Mefisto explica a Fausto que o diabo não tem poderes sobre uma jovem virgem e honesta, mas que nenhuma mulher resiste a presentes caros. Um cofre cheio de jóias preciosas acaba amolecendo o coração de Margarida, que ministra um soporífero a sua mãe e passa a noite com o namorado. Mas logo o pecado é castigado, dando origem a uma serie de desgraças. Seu irmão Valentim, jovem soldado, para vingar a honra da família, desafia Fausto num duelo, mas acaba sendo morto, pois o sedutor conseguira a ajuda do diabo. O sentimento de culpa pela morte do irmão e pela gravidez inesperada deixa Margarida num estado de prostração e de loucura. Margarida, na prisão, sente horror à presença do Diabo, que sempre acompanha o amado Fausto e prefere entregar-se à Justiça de Deus, suplicando pela salvação da sua alma. Vozes vindas do Alto anunciam que ela está salva. Fausto e Mefisto desaparecem sobre corcéis na fria madrugada. Cai o pano.

Expondo um dos sentidos possíveis da peça de Goethe, o protagonista Fausto representaria o ideal romântico do homem que, insatisfeito com a sua condição de mortal, recorre a qualquer meio para realizar seu sonho de atingir a felicidade. Só que o processo se desenvolve pelo modo irônico: chegar a Deus pela ajuda do Demônio; ser feliz renunciando à própria alma; conquistar um amor angelical mediante trapaças diabólicas. A renúncia à alma imortal em troca de bens materiais só poderia resultar numa degradação. Daí a conseqüência trágica da loucura de Margarida, vítima de sua paixão inocente. Talvez a beleza desta peça de Goethe esteja mesmo na representação do mundo de uma forma dialética: de um lado, a tese do amor puro, angelical, personificado em Margarida; de outro lado, a antítese do mundo sinistro, diabólico, de Mefistófeles, símbolo da sedução e do encanto dos desejos carnais; atraído pelas duas visões de vida contrárias, está no meio, como síntese, o personagem Fausto, amante de Margarida e amigo de Mefistófeles, símbolo da alma romântica constantemente balançando entre o ideal do sonho e o grotesco da vida real.

A insatisfação do homem com a sua condição de ser contingente, nascido para a morte e para a dor, tendo aspirações infinitas e realizações efêmeras, já criara mitos belíssimos na cultura hebraica e pagã. Vejam-se, por exemplo, os mitos bíblicos de Adão, que comeu o fruto proibido, e de Caim, que pecou contra Deus matando seu irmão; ou os mitos gregos de Prometeu que roubou o fogo divino e de Ícaro que queria alcançar o Céu voando com asas de cera. Trata-se de idealizações da revolta do homem contra as leis do universo, na tentativa de se igualar à divindade, como fizeram os mitológicos Titãs, que lutaram contra o todo-poderoso Júpiter.

Na cultura moderna, o personagem histórico-mítico de Fausto surge na época do Barroco, quando a alma européia acusa o conflito entre o gozo dos prazeres da vida, herança do Renascimento, e a ameaça de penas infernais sancionadas pelo Tribunal da Inquisição da Contra-Reforma católica. As sucessivas gerações românticas, especialmente nos países anglo-saxões, idealizam a figura de Fausto, fazendo dele o arquétipo do jovem colérico, revoltado contra a hipocrisia da vida burguesa, procurando refúgio na bebida, na arte, no amor, na morte. O lado positivo do “homem faustiano” é a figura ideal da humanidade moderna, que sonha com a liberdade e o progresso, libertando-se de qualquer tipo de preconceito. Do protótipo do homem faustiano ao modelo do homem nietzschiano o passo é breve. Outro alemão, o filósofo F. Nietzsche (1844-1900), negando qualquer forma de transcendência divina, irá exaltar o poder da vontade humana contra o determinismo religioso ou biopsíquico.

Mas o mito de Fausto, além de qualquer especulação de ordem filosófica ou religiosa, sobrevive na nossa realidade cotidiana, revelando uma postura ética recorrente. A lenda do homem que vende sua alma ao diabo é uma denúncia de todas as formas de desonestidade. Pelo “dando que se recebe”, praticado nos nossos dias, se realiza uma troca entre dois valores: o imediato e o individual que esmaga o futuro e o social. Vende sua alma ao diabo o político que se enriquece com o dinheiro público, que deveria ser destinado a escolas e postos de saúde; o banqueiro que, com sua pratica de agiotagem, se alimenta das lágrimas do endividado; o homem que não assume a paternidade; a mulher que não dá assistência a seus filhos; qualquer pessoa, enfim, que, cedendo a determinismos psicológicos, é levada a viver egoisticamente, praticando maldades contra seus semelhantes.

A Revolução Francesa

Voltando à época do Romantismo, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, que provocaram a Revolução Francesa (1789), fracassaram logo que Napoleão Bonaparte assumiu o poder, se tornou Imperador e tentou subjugar outros povos. Aconteceu que, após o fim do Antigo Regime, simbolizado pela Tomada da Bastilha, em 14 de julho, a França virou uma bagunça. Expoentes de várias correntes políticas entraram em lutas sangrentas pelo poder. Extremistas do partido de Robespierre exigiam a descristianização da França, confiscando os bens da Igreja. Os que eram contra o sistema monárquico queriam acabar com a nobreza e executaram o último Rei da França, Luís XVI, em 1793. A grande massa do povo, cansada de tanta desordem, ódio e derrame de sangue, começou a clamar por um regime forte, que lhe desse paz e segurança. O general Napoleão Bonaparte, ao voltar vitorioso do Egito, foi ao encontro deste anseio popular e derrotou o Diretório, o regime composto de cinco notáveis que governara até então. Após dez anos de Revolução, a França voltava ao cesarismo.

Mas a Revolução Francesa teve significativas repercussões no resto da Europa, sendo a matriz da chamada “Revolução de 1848”, o ano em que deflagaram insurreições nas principais cidades européias: Londres, Berlim, Viena, Budapest, Nápoles. Uma grave crise econômica se aliou a motivos políticos e sociais na luta contra os governos absolutistas. O ideal predominante nos países europeus onde houve revolução não foi o liberalismo, mas sim o nacionalismo. Os revolucionários desses países queriam libertar seus povos da dominação estrangeira imposta pelas decisões do Congresso de Viena. A "primavera dos povos" - como ficou conhecida essa vaga revolucionária - marcou o despertar das nacionalidades (polonesa, dinamarquesa, alemã, italiana, tcheca, húngara, croata, romena), que exigiram dos impérios a concessão de suas autonomias. Mas, infelizmente, estas insurreições não tiveram o imediato sucesso almejado, porque a burguesia não se posicionou do lado dos operários e dos camponeses.

Realismo: Flaubert, Balzac, Zola, Dostoievski, Machado de Assis.

É neste contexto histórico que surge o movimento chamado de Realismo. O fracasso da Revolução Francesa fez ruir os propugnados ideais de Liberdade, Fraternidade e Igualdade, enquanto a burguesia triunfante ia assentando suas bases sobre o egoísmo individual ou de grupos que possuíam o poder econômico. De outro lado, o avanço da Ciência criou a ilusão de que o homem pudesse resolver todos seus problemas sociais e existenciais pelo descobrimento das causas genéticas (raça), do condicionamento ambiental (meio) e das determinações temporais (característica da época). Nasce, assim, um novo culto, o da “sociolatria”, pelo qual os anseios dos indivíduos são sacrificados em prol do progresso da coletividade. Em oposição ao subjetivismo, ao idealismo e ao sentimentalismo dos românticos, a segunda metade do séc.XIX apresenta o complexo cultural do Materialismo, em suas várias formas de manifestação: objetivismo, evolucionismo, positivismo, determinismo, ateísmo.

No mundo das artes, o novo movimento é denominado Realismo (de res = coisa, realis = realidade), adquirindo os termos específicos de Parnasianismo, na poesia, e de Impressionismo, na pintura. Parte-se do princípio clássico de que a arte é imitação da natureza, uma reprodução da realidade exterior ou interior ao ser humano. Mesmo sendo fruto da imaginação, um personagem ou um quadro tem que possuir a característica da “verossimilhança”: não é verdadeiro, mas como se fosse, pois é semelhante à realidade e contém uma coerência interna que torna crível o objeto de arte. Este compromisso com a verdade é a grande contribuição do Realismo com a cultura ocidental fazendo com que o movimento transcenda o tempo e o espaço. Se a arte, pela sua prória natureza é mentirosa (“o poeta é um fingidor”, como afirma Fernando Pessoa), pois se serve da ficção, da fantasia, sua missão é usar a imaginação para desmascarar as falsidades e as iniqüidades contidas em todas as formas de totalitarismos, de ordem religiosa, política, social ou moral. Vou tentar explicar alguns princípios estéticos e contúdos ideológicos do Realismo, falando de autores e obras exponenciais deste período.

A França pode ser considerada a pátria do Realismo. Dela herdamos, além de três grandes ficcionistas desta época (Flaubert, Balzac, Zola), também o pai do Positivismo, o filósofo Augusto Comte (1798-1857), que forneceu o substrato teórico para o embasamento artístico. O conhecimento positivo, centrado na observação e na reflexão, além de buscar as causas naturais de fenômenos ou comportamentos, enseja apresentar os meios adequados para solucionar problemas de uma coletividade ou anseios individuais. O marco inicial do Realismo na literatura foi a publicação do romance Madame Bovary (1857), por Gustave Flaubert, onde se conta a trágica história de Ema, casada com um médico que não lhe dá o conforto material e a satisfação sexual almejada. O matrimônio se torna extremamente tedioso e a jovem e bela senhora se entrega a sonhos românticos. A insatisfação conjugal acaba levando Ema Bovary a devaneios ambiciosos, ao adultério e à morte.

A história de Madame Bovary, publicada pela primeira vez em capítulos numa revista parisiense, teve enorme sucesso popular (naquela época o povo lia, pois ainda não existia novela de televisão!), provocando um enorme escândalo. Flaubert sofreu um processo judicial por ofensa à moral pública. O autor conseguiu evitar a prisão, justificando que a protagonista era uma personagem de ficção e não da realidade, apelando, então, pelo direito à liberdade da expressão artística. O Tribunal Civil absolveu Flaubert, mas a decisão judicial não foi aceita pelos críticos puritanos da época, que não perdoaram o autor pelo tratamento realista que dera ao tema do adultério, pela crítica ao clero e ao ideal burguês de vida. Até poucas décadas atrás, o romance de Flaubert ainda jazia no Índice dos Livros Proibidos pela igreja católica, o cemitério das mais belas obras do gênio humano, onde se encontrava também O Primo Basílio, o romance do português Eça de Queirós, que explora o mesmo tema do adultério.

Honoré de Balzac (1799-1850) é famoso pela sua obra-prima A Comédia Humana, uma série de 95 narrativas sobre Paris de sua época. O título é uma paródia da Divina Comédia, de Dante Alighieri, querendo dizer que a vida humana é como um palco onde representamos os muitos vícios e as poucas virtudes. A imensa obra está divididas em três partes (como os três cânticos da comédia dantesca), onde estão descritos os tipos mais variados da colméia humana, lutando dia a dia pela sobrevivência. A análise de processos judiciais realizada durante um estágio juvenil nun escritório de advogacia serviu a Balzac como aprendizagem para o conhecimento da fauna humana: velhos libidinosos arruinando famílias para sustentar jovens amantes, maridos arrumando meios para livrar-se das esposas, herdeiros brigando de foice para apossar-se de heranças, um velho coronel tentando desperadamente demonstrar que estava vivo, enquanto o interesse econômico de sua ex-mulher o mantinha oculto, como se fosse um fantasma.

Chegando à maturidade e já com fama de escritor estimado, Honoré começa a frequentar a alta roda social, penetrando na vida mundana. O objetivo principal era retratar a florescente burguesia, com muito dinheiro e pouca cultura. Mas sua pena não exclui nenhum nível social da França de sua época: negociante, banqueiro, médico, cortesã, nobres, gente comum, todos são ironizados. O método descritivo com que elabora seus romances segue o padrão do realismo: apresenta primeiro o cenário onde as ações vão se desenvolver, depois o aspecto físico dos personagens, sua profissão, os tiques peculiares de tipos, traços psicológicos. A multiplicidade de figuras a quem ele consegue dar vida é simplesmente estupenda. Entre seus romances mais famosos, assinalo: A mulher de trinta anos (de que derivou o adjetivo “balzaquiana”), Eugène Grandet, O Pai goriot, O lírio do vale, As ilusões perdidas, Fisiologia do casamento, que provocou a costumeira revolta nas raias de crentes e conservadores.

Émile Zola (1840-1902) leva às últimas consequências os princípios estéticos e ideológicos do Realismo que, nesta altura, já era chamado de Naturalismo. Ele é o pai do romance “experimental”. Para Zola, a arte em geral e a literatura em particular têm que seguir o método da investigação científica, pois o comportamento humano é a resultante de duas forças: os caracteres hereditários e o ambiente familiar e social. Portanto, o escritor, como o cientista, tem que observar e experimentar a realidade que ele quer descrever, pois um personagem de ficção é homólogo ao ser humano. E Zola dá o exemplo: para escrever o romance Naná, ele passa um bom tempo visitando casas de prostituição. O mesmo acontece com Germinal, onde apresenta a vivência que teve entre mineiros e A besta humana, em que está descrita a miséria dos ferroviários. Ele confessa claramente sua dependência estética dos dois patrícios que o precederam:

“Quando Madame Bovary apareceu, foi uma completa revolução literária. Teve-se a impressão de que a fórmula do romance moderno, esparsa pela obra colossal de Balzac, fora reduzida e claramente enunciada nas quatrocentas páginas de um único livro. Estava escrito o código da nova arte”.

O código não só da arte, mas também da realidade e da vida, gostaria de acrescentar. Anatole France, escritor seu conterrâneo e contemporâneo, define Zola como “um momento da consciência humana”, referindo-se a sua obra literária e à postura de defesa do oficial de origem judía Alfred Dreyfus, injustamente acusado de traição pela direita conservadora. A tomada de posição de Zola no famoso “caso Dreyfus”, escândalo jurídico e político que convulsionou a opinião publica francesa, na passagem do séc.XIX para o XX, valeu-lhe um ano de prisão pela publicação de sua carta aberta J’ accuse contra o Estado-Maior do Exército.

Mas a escola criada pela nova arte do Realismo não se restringiu ao território francês, evidentemente. Por limite de espaço e de tempo estabelecido para este último trabalho meu, que não trata especificamente de literatura, limito-me apenas a relevar mais dois ficcionistas mundialmente conhecidos: o russo Fiodor Dostoievski e o brasileiro Machado de Assis.

Fiodor Mikhailovitch Dostoievski (1821-1881) é considerado o pai do romance psicológico. Sua juventude ficou marcada pela morte prematura da mãe e pelo assassinato do pai pelos seus colonos, revoltados contra o autoritarismo do patrão. Precisou, então, interromper seus estudos na Escola Militar de São Petersburgo e experimentar a amargura da pobreza. Seus ataques de epilepsia foram atribuídos a "uma experiência com Deus", levando-o à crença num cristianismo evangélico. Quanto à religião, mais tarde irá reconhecer a ausência de lógica: "A fé e as demonstrações matemáticas são duas coisas inconciliáveis”. A fase juvenil de Dostoievski ainda está ligada à ideologia do Romantismo, que pode ser rastreada em seus primeiros escritos, Pobre gente, Noites brancas, Coração frágil, onde predomina a descrição da ternura, da bondade humana e do amor idealizado.

Desiludido com o escasso sucesso desta sua primeira produção literária, lançou-se à atividade política, participando num complô para assassinar o Czar Nicolau I. Preso, foi enviado para a Sibéria, condenado a trabalhos forçados. Os quatro anos que passou no cárcere (1850-1854) são considerados a fase de transição entre a juventude e a maturidade, constituindo um divisor de água em sua produção literária. Na prisão, Dostoievski, o jovem intelectual e de origem nobre, acaba conhecendo a camada mais degradada e miserável do povo russo, que ele descreve em romances como Humilhados e ofendidos e Memórias do subterrâneo.

Seu amadurecimento espiritual completo se dará na terceira fase de sua vida pelas viagens ao exterior, pela frustração de três casamentos, pelo sofrimento moral causado pela inadimplência de dívidas de jogo, pelo agravamento de sua doença física. Como o nosso Machado, ele também questiona a moral burguesa, especialmente quando afirma: “decididamente, não compreendo por que é mais glorioso bombardear uma cidade do que assassinar alguém a machadadas”. Tamanha experiência humana é transformada em obra de arte, atingindo a plenitude de sua técnica formal nos sete romances mais famosos: Crime e castigo, O jogador, O idiota, O eterno marido. Os demônios, O adolescente, Os irmãos Karamazov, sendo este último considerado sua obra-prima.

Mas técnicas narrativas e conteúdos de problemática existencial que podem ser encontrados no universo da obra do imortal escritor russo, antes de serem vistos como compartimentos estanques, relativos às três fases de sua vida e produção poética, devem ser analisados como frutos de um longo trabalho intertextual. O que os críticos chamam de “transposição” na obra de Dostoievski é a existência de duplos, de desdobramentos de personalidade, de imagens especulares que refrangem a plurifacetação do ser humano. Embriões de caracteres de personagens numa obra são retomados e desenvolvidos num outro romance. Por exemplo, o tema do sentimento de culpa que aflige o homem na sua tentativa de reparar as injustiças sociais, utilizando-se do crime, meio moralmente condenável, está presente em várias obras. Os personagens de Dostoievski “transpõem” seus caracteres de um romance para outro, complementando-se, ao mesmo tempo em que se diferenciam. Aí está sua genialidade!

Machado de Assis (1839-1908) pode ser considerado o maior expoente das Letras no Brasil, sendo o autor mais conhecido também no exterior. Nasceu e morreu no Rio de Janeiro, de família humilde, começando a vida como aprendiz de tipógrafo no serviço público, até se afirmar como jornalista. De forma semelhante a Dostoievski, ele também teve sua fase romântica, escrevendo poemas, romances leves, dramas. Só por volta dos 40 anos chegou à maturidade intelectual e estética, após absorver as obras dos humoristas ingleses Swift e Sterne, do francês Voltaire e do caricaturista brasileiro Manuel Antônio de Almeida, autor das Memórias de um sargento de milícia, romance no limite entre Romantismo e Realismo. A partir de 1881, foram surgindo suas melhores obras, onde aparece o desencanto da vida, o veio irônico, a descrença nos valores cultivados pela sociedade. Um leve olhar sobre seus três romances, considerados as obras-primas de Machado, pode nos oferecer uma idéia de sua importância no contexto da literatura brasileira e ocidental.

Memórias póstumas de Brás Cubas (1881): romance original, que inova na forma e no conteúdo do gênero narrativo. A obra começa com uma dedicatória, escrita sob forma de epitáfio, pelo qual é apresentado o narrador, Brás Cubas, um defunto-autor que começa contando detalhe do seu funeral. Depois de algumas digressões, ele retoma a ordem cronológica dos acontecimentos, relatando a infância, a primeira paixão da adolescência, outras aventuras amorosas, o reencontro com o amigo Quincas Borba, a tentativa do invento de um emplasto, que o faz adoecer, o delírio que antecede a morte, o romance terminando com a famosa frase:

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

O episódio central é a descrição da relação amorosa que o protagonista mantém com uma senhora casada. É importante notar que o adultério de Virgínia não é devido nem a uma paixão avassaladora (como seria numa história romântica) nem a uma tara genética (conforme a doutrina determinista do realismo), mas a um motivo bastante fútil: o desejo de melhorar sua condição econômica.

Quincas Borba (1891): seguindo a mesma técnica da “transposição”, da qual falei estudando a obra de Dostoievski, Machado retoma o personagem do romance anterior, o filósofo Quincas Borba e o coloca como título do novo romance. O protagonista da história, porém, não é o filósofo, mas seu enfermeiro e discípulo Pedro Rubião, ex-professor primário, homem simples e crédulo. Quincas Borba, ao falecer na casa do velho amigo Brás Cubas, deixa como seu herdeiro Rubião com a incumbência de cuidar do seu cachorro que tem o nome do dono, Quincas Borba. Rubião parte para o Rio de Janeiro e, na viagem, conhece o casal Cristiano e Sofia. A troca de olhares e gentilezas entre Rubião e Sofia promete o nascer do triângulo amoroso, motivo recorrente nas narrativas machadianas, longas e curtas. Mas Sofia, depois de ter instigado a paixão no jovem, começa a recuar, deixando Rubião doido. Ela informa seu marido Cristiano sobre o caso, mas este está mais interessado em conseguir se apossar da herança de Rubião do que lavar sua honra. Aconselha o jovem ingênuo a entrar numa transação fraudulenta, que o leva à miséria. O casal fica rico, enquanto Rubião volta para sua terra natal, pobre e louco. Já muito afetado pela doença, pouco antes de morrer, ele relembra parte de uma explicação que lhe foi dada pelo mestre Quincas Borba, que inventara a tese do “Humanitismo”:

“Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas."

Evidentemente, a teoria do Humanitismo, assim como exposta pelo personagem Quincas Borba nos dois romances acima e sintetizada na famosa expressão “ao vencedor, as batatas” é uma sátira de Machado, ironizando todos os “ismos”, que estavam na moda, especialmente o Humanitarismo, a crença dos pensadores positivistas no progresso moral da sociedade. Mas ela não deixa de ser profundamente realista, correspondendo a uma verdade existencial, pois nos faz pensar na antiga concepção da necessidade da guerra, vista como higiene ou profilaxia. O filósofo grego Heráclito afirmara que “a guerra é a mãe e a rainha de todas as coisas”, no sentido de que nada se consegue sem luta, sem esforço. A teoria evolucionista de Darwin, que é o maior pressuposto científico da estética realista, está baseada na lei da seleção natural, pela qual só sobrevivem os mais aptos. Portanto... “ao vencedor as batatas”, quer dizer todos os benefícios conquistados, mesmo se ele for um tirano cruel, um político corrupto, um impostor egoísta e hipócrita, como o casal Cristiano e Sofia. Rubião, em fim de vida, adquire consciência de ter sido otário e, como vencido, merecer apenas compaixão!

Dom Casmurro (1899): é o romance da dúvida que toma conta do espírito do protagonista sobre a fidelidade de sua mulher. O enredo gira em torno de um triângulo amoroso: a esposa (Capitu) entre o marido (Bentinho) e o suposto amante (Escobar). O título do romance é uma qualificação do protagonista e narrador da história, Bentinho, chamado de “casmurro” pelo seu caráter ensimesmado e sorumbático. Os fatos são narrados em primeira pessoa, no estilo autobiográfico e pelo foco retrospectivo (flash-back): Bentinho, já velho, lembra seu passado, tentando “atar as duas pontas da vida”, a juventude e a velhice. O Bentinho narrador da história (já velho) procura entender o que se passou com o Bentinho (quando jovem) ator das ações. O Bentinho que pensa não é o mesmo que age, pois o tempo passado, como ensina Proust, não é recuperado na sua integridade. Daí a dúvida no espírito do narrador (e do leitor): será que não agi de uma forma injusta, ao acusar Capitu de adultério, deixando-me levar por impulsos juvenis de ciúme ou de inveja? E que prova eu tinha? Não confundi amizade calorosa, sentimento afetivo, com atração sexual? E a semelhança de meu filho Ezequiel com o amigo Escobar seria um fator determinante de adultério?

Enfim, pouco importa concluir sobre o final da história. Se o autor deixou a charada em aberto, quem pode emitir a sentença final? Já foram apresentadas as teses mais variadas sobre o assunto, inclusive considerando Bentinho um homossexual: ele gostava mesmo era do amigo Escobar (admirava seus braços sarados, voltando da praia!) e sentia ciúmes dele e não da mulher, vendo em Capitu apenas uma rival na disputa pelo amor de Escobar. Também, se Capitu fosse considerada adúltera, qual a novidade? A maioria das mulheres machadianas são assim retratadas. Machado de Assis subverte todos os valores ideológicos apregoados pela sociedade burguesa. E o casamento é um deles. Suas personagens (como a maioria das pessoas do mundo real) não contraem matrimônio por amor, mas por conveniência social ou para ter filhos, atendendo ao instinto da conservação da espécie e a costumes ancestrais, que preparam a mocinha para o altar. Esta contestação dos valores sociais e éticos não se dá apenas nos grandes romances, mas, de uma forma mais direta e sintética, nas narrativas curtas, nas várias coletâneas de contos do grande escritor carioca. Apenas como exemplo, apresento uma sinopse de três contos:

Em “A Cartomante”, o tema do adultério é explorado de uma forma clara, explicita, sem margem para dúvida alguma. O triângulo amoroso é formado pelo marido Vilela, a esposa Rita e o amigo do casal Camilo, que se torna amante da Rita. Quando Vilela descobre o adultério mata os dois. A história seria banal, se não fosse a crueldade do desfecho. Na verdade, a fábula é apenas um pretexto para a caracterização da personagem-título, a Cartomante, que enseja o tratamento do tema da adivinhação, da antecipação do conhecimento. Camilo, ao receber um recado de Vilela para ir com urgência a sua casa, entra em pânico, suspeitando que o amigo descobrira a traição. Consulta, então, uma cartomante que, após algumas perguntas e mexendo nas cartas, lhe restitui a paz de espírito, induzindo-o a ir ao encontro, pois estava certa de que Vilela não sabia de nada. O jovem amante, passando a acreditar piamente nos poderes de adivinhação da cartomante, vai à casa do amigo com espírito sereno. Mas a verdade é outra: Vilela o espera para matá-lo, como matara a esposa, momentos antes. Machado desvenda a impostura dos profissionais de adivinhação, ao mesmo tempo em que zomba dos trouxas que gastam dinheiro acreditando em suas falácias.

No conto “O Enfermeiro”, Machado inverte a máxima popular de que “o crime não compensa”. Ele demonstra que o crime compensa e como! Procópio, homem pobre do Rio de Janeiro, aceita o emprego de enfermeiro do rico coronel Felisberto, que vive sozinho numa cidadezinha do interior. O protagonista vai suportando pacientemente as ofensas físicas e morais do irascível e prepotente coronel. Mas, numa noite, sendo atingido por uma moringa, lançada-lhe no rosto pelo seu patrão, num ato impulsivo, coloca-lhe as mãos no pescoço, esganando-o, sem querer. Após o susto, arruma as roupas do defunto fazendo parecer uma morte natural. Mais tarde, quando o testamento se torna público, é informado de que foi designado como herdeiro único e universal do coronel Felisberto. Volta, então, para o Rio de Janeiro, gozando da inesperada herança.

Podemos considerar como tema principal deste conto a “ironia do destino”: as ações humanas, muitas vezes, têm um resultado oposto ao esperado. Procópio, que fora contratado para cuidar da vida do coronel, acaba provocando sua morte; ele, que era paciente e bondoso, se revela violento e assassino; seu patrão, pelo contrário, considerado prepotente e egoísta, se demonstra grato e generoso. Enfim, a vítima se torna agressor e o vilão vira mocinho. São coisas da vida, que é inexplicável, misteriosa, sendo difícil atribuir culpas. O pensamento subjacente à ficção machadiana é que o homem está a mercê das circunstâncias, pois sua liberdade de ação é muito limitada pelas ocasiões que se apresentam e que não dependem de sua vontade. Vamos condenar Procópio por ocultar a verdadeira causa da morte do coronel? Como Machado diz alhures,

“o pecado, depois do pecado, é a revelação do pecado”

A verdade, às vezes, é inútil ou danosa!

No conto O Alienista, Machado trata o tema da loucura com a ironia que lhe é peculiar: o protagonista Simão Bacamarte, médico de Itaguaí, resolve dedicar-se a pesquisas psiquiátricas e funda o hospício Casa Verde para cuidar dos dementes. Em breve tempo, esvazia-se a cidade e lota-se o hospício, pois quase todo o mundo sofre de algum desequilíbrio mental ou emocional. Coerentemente, então, o médico Bacamarte passa a considerar loucas as poucas pessoas equilibradas, visto que a quase totalidade dos cidadãos apresenta defeitos psíquicos. O conto machadiano mostra assim, pela arte literária, uma profunda verdade existencial: o homem verdadeiramente lúcido e sábio, no fim, é um louco porque, não pensando ou não agindo conforme “Maria vai com as outras”, e sim de acordo com um raciocínio lógico e coerente, acaba sofrendo o dano da exclusão social.

O Existencialismo: Kierkegaard, Heidegger, Sartre, Schopenhauer, Nietzsche.

Na segunda metade do séc. XIX, junto com a grande produção literária, assistimos ao florescimento de uma reflexão filosófica à margem das bitolas do racionalismo cartesiano, do idealismo hegeliano ou do positivismo científico. São pensadores independentes preocupados mais com a compreensão da realidade cotidiana do que na construção de esquemas teóricos de raciocínio abstrato, ora exaltando a enorme potencialidade do ser humano, ora apresentando um profundo pessimismo existencial. E são eles a lançar os pressupostos ideológicos de comportamentos nacionais e sociais que irão predominar no Ocidente ao longo do século seguinte. Importante foi a corrente do Existencialismo que começou com Kierkegaard, continuou com Heidegger, chegando a Sartre.

Sören Kierkegaard (1813-1855), filósofo da Dinamarca, foi o primeiro a relevar a importância do homem em si, como indivíduo, e não apenas como um simples elemento de um macrossistema especulativo, tipo racionalismo francês ou idealismo alemão. Ele trabalhou com a oposição entre essência (a natureza profunda das coisas, no plano ideal) e existência (o que existe, “está aí”, no plano da realidade). Deixando de lado as especulações sobre a essência de Deus ou a origem do Universo, preocupou-se com a problemática da existência humana, especialmente com o sentimento de culpa face ao livre arbítrio. Kierkegaard, marcado pela austeridade paterna, pela frustação amorosa e pela religiosidade cristã, explora o tema do valor subjetivo da verdade: é a experiência que ordena nossas idéias, e não o contrário. Assim, na fase juvenil do homem predomina o valor estético (o culto da beleza e da sensualidade); no período adulto, o valor ético (a consciência da prática do bem); na maturidade, o valor religioso (a resignação à vontade de Deus). Entre suas obras, assinalamos: O conceito de angústia e As estapas do caminho da vida.

Martin Heidegger (1889-1976) é um pensador alemão, discípulo de Edmund Husserl, o pai da Fenomenologia, uma filosofia de vida construida a partir da percepção dos objetos conforme aparecem a nossa consciência. Diferentemente de Kierkegaard, Heidegger considera que a angústia do homem não está relacionada com problemas religiosos, mas com a própria existencia como tal. Ele chama de Dasein o “ser-aí”, aquele que existe mas, ao mesmo tempo, tem a consciência que pode deixar de existir, a qualquer momento, visto que o homem é um “ser-para-a-morte”. O pensamento heideggeriano supera ainda o subjetivismo de Kierkegaard por ver o homem como um “ser-em-comum”: o espírito de solidariedade e o produto do trabalho de cada um estabecem entre os homens uma comunhão de sentimentos tão grande que pode chegar ao amor recíproco. Segundo ele, podemos chegar à vivência de uma totalidade existencial através da prática da arte, especialmente da poesia, pois a palvra metafórica tem capacidade de exprimir a realidade mais autêntica do ser. Sua obra fundamental é O Ser e Tempo.

Jean-Paul Sartre (1905-1980) leva tendências do Existencialismo e da Fenomenologia até o plano social, aderindo ao Marxismo. Nascido em Paris, além de filósofo, foi dramaturgo, romancista, crítico, político. Sua principal preocupação foi a análise dos problemas da existência humana, colocando sua vida de homem e de intelectual a serviço das causas proletárias, estudantis e da opressão das nações do terceiro mundo pelo capitalismo selvagem. Seu ódio contra a dominação capitalista o levou à recusa do Prêmio Nobel de Literatura, em 1964. Como também, de outro lado, criticara fortemente o desvirtuamento dos ideais marxistas quando o governo soviético mandou ocupar militarmente a Hungria, em 1956. As posições ideológicas do Sartre jovem sofreram alterações devido ao seu espírito aberto e às frustrações com seu engajamento político. No fim, seu lema passou a ser a liberdade em qualquer forma de atividade, considerando o homem responsável por tudo aquilo que é ou faz. Contesta, portanto, a tese do positivismo-determinismo, que sustentava a estreita dependência dos fatores do ambiente e da hereditariedade na formação da personalidade. O título de uma de suas obras mais importantes é significativo: O existencialismo é um humanismo.

Arthur Schopenhauer (1788-1860) intitulou sua obra principal O mundo como vontade e representação, em que desenvolve os dois conceitos que estão na base do seu pensamento filosófico: a vontade humana (o sujeito que pense, que sente e, sobretudo, que “quer”) e o objeto do seu querer, que é a realidade exterior, vista em forma de representações ilusórias, que nunca satisfazem completamente nossos desejos existenciais. Seu conceito de vontade corresponde, mais ou menos, ao id freudiano, sendo um impulso de autopreservação, cego e insaciável, presente em qualquer tipo de natureza vegetal ou animal. Mas, para o ser racional, o “querer viver” é a raiz de todos os males, pois a insatisfação gera ansiedade e angústia. Para a superação deste profundo pessimismo, o filósofo alemão aponta três caminhos: o culto da arte, que propicia ao poeta, ao pintor ou ao músico o refúgio no mundo da fantasia, desligando-se da vida real; a prática da caridade e da piedade que nos afasta do egoísmo; a aniquilação da vontade pelo não-apego, em busca de um nirvana de tipo budista.

Friedrich Nietzsche (1844-1900) deve ser considerado antes um crítico da filosofia do que propriamente um filósofo, não tendo criado nem aderido a nenhum sistema de pensamento reflexivo e expressando-se por paradoxos ou aforismos. Professor de filologia, foi amigo de artistas, especialmente de músicos (Liszt e Wagner) e um grande apreciador da cultura grega (já falei de Nietzsche a respeito da oposição “apolíneo/dionsíaco”), embora achasse uma besteira o mundo das idéias de Platão, condenando qualquer formas de idealismo transcendental. Junto com a negação da metafísica, não acreditando em nenhuma realidade sobrenatural, Nietzsche ataca frontalmente o Cristianismo por considerá-lo culpado pelo atraso da civilização ocidental. Ele condena especialmente a ética cristã, chamando-la de “moral dos escravos”, pois subverte os valores reais da sociedade, considerando fortes os fracos, gloriosos os humildes, beatos os pobres, felizes os sofredores.

Contrariamente ao espírito cristão, o pensador alemão exalta a vontade de potência, a aspiração ao sucesso, a satisfação dos desejos, o culto das artes e das ciências. Ao homem niilista da ideologia cristã, conformado com o sofrimento, Nietzsche contrapõe um “super-homem”, dominador das paixões, que emprega sua força para vencer qualquer obstáculo. Tal exaltação do humano foi interpretada erroneamente por fascistas e nazistas que confundiram o super homem filosófico nietzschiano com o “homem-superior” de raça ariana que Hitler, no seu delírio de dominação, considerava uma etnia pura, forte, invencível. A meu ver, a grande contribuição de Nietzsche reside na exaltação da vontade humana num sentido bem amplo, como oposição e superação de qualquer forma de determinismo biopsíquico, ambiental ou religioso. Super-homem é quem estuda, trabalha, pensa com sua própria cabeça e luta para construir um futuro feliz para si e sua família, e não quem se resigna com a pobreza e a ignorância, vivendo de esmola pública ou privada, ou esperando a salvação num imaginário mundo do além.

VIII - Darwin: gênese e evolução da espécie humana.

Considero Darwin, Freud e Marx os três gênios mais profundos que a humanidade produziu, pois operaram verdadeiras revoluções no campo respectivo de suas atividades: Darwin substituiu a crença bíblica da criação do mundo pela teoria da evolução genética; Freud pôs em evidência o papel fundamental do Inconsciente e da sexualidade na formação da personalidade humana; Marx exaltou a força do trabalho para o progresso econômico e social. A eles devemos as melhores contribuições para a formação da sociedade moderna. Por este motivo, aos três fundadores das novas doutrinas (Darwinismo, Freudismo e Marxismo) dedico um destaque peculiar, no limite de meu parco conhecimento.

A viagem de pesquisa

O cientista inglês Charles Darwin (1809-1882) realizou “A viagem de um naturalista ao redor do mundo” (nome de uma sua obra), a bordo do navio HMS Beagle (que deu nome a um canal perto da Terra do Fogo, no extremo sul do continente americano). Ao longo de cinco anos de viagem, pesquisando especialmente em ilhas e na costa da América do Sul, coletou mais de 230 toneladas de material orgânico (animais e vegetais exóticos). O estudo deste material o levou a formular a hipótese de que plantas, animais e seres humanos não haviam sido criados já plenamente formados, de uma única vez e por um ato divino, conforme a narração bíblica. Todas as entidades vivas desenvolveram-se aos poucos, durante um longo período de adaptação ao meio ambiente. Os gêneros e as espécies vegetais e animais, pois, não são fixos, mas em constante mutação e melhoramento, lutando pela sobrevivência conforme a lei do mais forte. E o ser humano não foge a esta lei da evolução natural.

Estava dada a largada para a mais apaixonante discussão entre os defensores da antiga teoria criacionista ou fixista, fundamentada na exegese bíblica, e os adeptos da teoria evolucionista, incrementada pelas descobertas das ciências naturais, especialmente da Biologia e da Genética. No Gênesis está escrito que Deus criou o mundo com apenas duas palavras: fiat lux e a claridade surgiu de repente do meio das trevas, as águas se separaram da terra e nasceram os peixes do mar e os animais terrestres e, enfim, o homem e a mulher, no prazo de seis dias, sem possibilidade de mistura entre seres de gêneros e espécies diferentes.

Mas o avanço científico começou a demonstrar que as coisas não aconteceram bem assim, conforme o pensamento tradicional. Darwin substitui o fiat lux da crença na criação (o design divino) pela teoria da evolução natural, baseada no axioma natura non facit saltus (a natureza não dá pulos): a realidade física e biológica não é composta por compartimentos estanques, mas é um contínuo derivativo. As espécies distinguem-se pelas suas variedades em virtude de um longo processo de adaptação a ambientes diferentes e não por uma origem autônoma ou independente. Os evolucionistas passaram a sustentar a tese de que o princípio racional, que separa o homem da besta, não passa de um desenvolvimento automático e progressivo do cérebro, já implícito no instinto animal, que aumenta pelo acúmulo de experiências. Enfim, o homem seria um animal intelectualmente mais desenvolvido.

É preciso salientar que Darwin chegou à formulação de sua teoria não de repente, por um estalo ou insight, como acontecera com a maioria dos profetas religiosos que tiveram “revelações” divinas (Moisés, São Paulo, Maomé etc.). Quando jovem, conforme a educação cristã recebida (estudara para clérigo), ele acreditava na existência de um Criador e no design inteligente. Antes de biólogo, já fora teólogo. Mesmo durante sua viagem de pesquisa, especialmente nas ilhas Galápagos, ainda buscava conciliar o estudo da ciência com a celebração da obra de Deus. Somente após o retorno a Inglaterra, na medida em que ia examinando o material coletado, deu-se gradativamente sua conversão à verdade científica, objeto de uma obra portentosa, A Origem das Espécies (1859), que revolucionou o mundo, considerada a nova Bíblia. Diferentemente da religião, que se nutre de fantasias transmitidas de pais para filhos, a ciência repousa sobre fatos, cuja interpretação é submetida a longos testes de comprovação, antes de anunciar uma nova teoria.

Após a publicação da Origem das Espécies, o público começou a duvidar da “sacralidade” dos textos bíblicos: o Pentateuco fora escrito realmente por um único autor e sob inspiração divina? Os Salmos de Davi e os Cânticos de Salomão expressavam a voz de Deus ou eram apenas tropos literários? Os episódios bíblicos eram realmente históricos ou apenas fatos fantasiados? E os milagres? Como acreditar que Jonas passasse três dias na barriga de uma baleia, saindo de lá ileso? Face à extrema improbabilidade de um milagre, a coerência não exigiria que rejeitássemos todos os outros: a transformação da água em vinho, a ressurreição dos mortos etc.?

A tese da evolução

A teoria da evolução, assim como apresentada por Darwin, pode ser resumida em três pontos fundamentais, ainda hoje objetos de discussões entre apoiadores entusiastas e oponentes denegridores: 1) os relatos da Bíblia foram escritos por homens, sem nenhuma intervenção divina, contradizendo verdades históricas, leis naturais e raciocínio lógico; 2) o ser humano, como as outras criaturas, não foi uma produção individualizada, feita pelas mãos de Deus, mas teve parentesco com primatas, chimpanzés ou gorilas, deles se diferenciando por um longo processo de evolução no tempo e no espaço; 3) o princípio evolucionista rege o Universo todo, bem maior e mais antigo do que se pensava: sua origem não remonta há apenas 60 mil anos, como erroneamente achavam os teólogos daquela época.

A genialidade de Darwin reside no fato dele ter aproveitado a cultura anterior e ter lançado as bases doutrinais de cientistas, filósofos, sociólogos e ambientalistas que continuaram sua obra revolucionária, estabelecendo, assim, uma ponte entre o passado e o futuro da ciência. T.H. Huxley (não confundir com o famoso ficcionista Aldous Huxley, autor do Admirável mundo novo), biólogo amigo de Darwin, ao tomar contato com a teoria evolucionista, exclamou:

“Que imensa estupidez não ter pensado nisso antes!”

Mais estúpido é quem, ainda hoje, continua não acreditando na teoria darwiniana, dois séculos depois dos estudos de tantos ilustres cientistas que confirmaram, no todo ou em parte, a tese da evolução cósmica e humana. Negar o princípio universal da evolução é ficar parado no tempo: a fixidez é a morte! O problema é que o processo evolutivo, por ser muito lento, é quase imperceptível. O primata demorou milhões de anos para levantar as patas dianteiras, fazendo com que a cabeça olhasse mais alto, expandindo o horizonte de sua visão. Adquiriu a forma humana, mas ainda, até hoje, não alcançou um nível de inteligência capaz de separá-lo da animalidade. O homem ainda continua vivendo conforme os instintos mais baixos, seguindo a lei da selva, o mais forte comendo o mais fraco, como demonstram as guerras étnicas, a violência no campo e na cidade, o capitalismo “selvagem”, a corrupção política, a injustiça social, o egoísmo característico dos seres primitivos e das crianças.

Assinalamos os mais importantes estudiosos que antecederam e sucederam o gênio britânico na pesquisa das ciências biológicas:

Antes de Darwin: Lineu, Lamarck, Mendel, Malthus

Carl Von Lineu (1707-1778) é considerado o pai da Botânica. A este médico e naturalista sueco devemos a primeira grande classificação de vegetais e animais em gêneros e espécies. Sem a sua sistemática e nomenclatura binominal dos seres vivos dificilmente Darwin poderia ter desenvolvido sua tese sobre a evolução das espécies. E isso porque não se pode trabalhar em profundidade sem antes explorar a superfície. Para estudar as origens das espécies precisava-se, primeiro, fazer o trabalho de classificação. O que Lineu fez. Sua obra mais importante foi publicada em 1735, com o título Sistema da natureza.

Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) já apresentara, em 1809, a tese da transmissão hereditária de caracteres adquiridos pela necessidade de adaptação ao meio ambiente. O naturalista francês foi o primeiro biólogo a propor uma “teoria evolutiva” para explicar a diferenciação e o progresso das espécies. Conhecido se tornou o exemplo da girafa: de tanto espichar o pescoço para alcançar as folhas das árvores, o animal acabou, após centenas de gerações, transferindo esta característica a seus filhotes, que começaram a nascer com o pescoço cumprido.

A mesma teoria serviria para explicar a cor branca das palmas das mãos e dos pés dos descendentes da raça negra, por não receberem diretamente os raios do sol nessas partes do corpo, quando o primata humano ainda andava de quatro. Esta tese serve também para entender porque os povos europeus, originários da África, se tornaram brancos: após milhares de séculos sem receber raios solares escaldantes, a pele dos primitivos alemães e holandeses foi se embranquecendo, adaptando-se à neve do clima nórdico. E parece que a tese de Lamarck, após a contestação de vários biólogos, está agora sendo reabilitada por recentes pesquisas sobre o DNA que confirmam que características genéticas podem ser induzidas por mudanças ambientais e depois passadas de pai para filho.

Gregor Mendel (1822-1884), frade agostiniano da Áustria, contemporâneo do inglês Darwin, fez experiências genéticas semelhantes às do francês Lamarck, mas sobre cereais. Ele cruzou os caracteres de pés diferentes de ervilhas (sementes lisas de cor branca, sementes rugosas de cor verde etc.) e verificou que, após várias gerações, havia uma transmissão de características de uma espécie para outra. Ele é considerado o pai da Genética, pois suas deduções passaram a ser aceitas por estudiosos posteriores que as denominaram “Leis de Mendel”.

Thomas Robert Malthus (1766-1834), padre e economista inglês, autor do Ensaio sobre o princípio da população, sustentou a tese da desproporção entre a produção de alimentos (que aumenta em progressão aritmética) e a população mundial (que se multiplica em progressão geométrica). Foi a leitura desta obra de Malthus, que Darwin ia fazendo ao longo de sua viagem, que lhe deu o insight para a descoberta da lei da seleção natural. Quando chegou às ilhas Galápagos e percebeu a grande abundância da fauna e da flora, refletiu que devia haver um limite para a multiplicação das espécies, sob pena de faltar alimentos para todos. Observando que os peixes maiores comiam os menores e as plantas mais robustas tinham uma maior sobrevivência, o cientista inglês deduziu que a pressão ao limite de crescimento demográfico era dada, de uma forma natural, pelo princípio de seleção: as espécies mais fortes e melhores adaptadas ao meio ambiente persistiam, enquanto as mais fracas estavam destinadas ao perecimento.

No campo humano, segundo a teoria de Malthus, a seleção se daria por guerras, catástrofes ou epidemias: quando a desproporção ultrapassasse o limite de tolerância, a própria natureza criaria organismos de defesa. E, como bom religioso, para reduzir a taxa de natalidade, Malthus aconselhou os homens, especialmente os mais pobres, a ajudar a natureza pela abstinência sexual. Mas, como não se pode ajudar a natureza indo contra a própria natureza, seu conselho não foi acatado. Homens e mulheres não pararam de transar e os habitantes da Terra chegaram, atualmente, a cerca de sete bilhões de habitantes, aumentando a pobreza mundial. Como o preceito da castidade continua não vingando, as igrejas apelaram para o assistencialismo, que melhora o nível da miséria sem, todavia, conseguir resolver o problema na sua raiz. Falarei sobre a necessidade do planejamento familiar e da paternidade responsável mais adiante, no contexto da construção de uma verdadeira cidadania.

Depois de Darwin: Evolucionismo vs Criacionismo (teoria do Big Bang)

Darwin, ao confirmar a teoria evolucionista sobre as origens do cosmo e do homem, dera o passo decisivo para a derrubada da teoria criacionista, conforme o relato bíblico, que dera origem à tese do “design inteligente”, formulada pelo teólogo seu patrício, William Paley (1743-1805), ao apresentar o “argumento do relógio”: o funcionamento perfeito de seu mecanismo pressupõe um engenheiro construtor, um designer. Portanto, a perfeição do microcosmo e do macrocosmo exigiria a existência de uma mente inteligente, a que chamamos Deus.

Anteriormente, o arcebispo de Armagh (Irlândia), James Ussher (1581-1656), conforme sua exegese dos livros bíblicos, chegara a afirmar que a Terra tinha sido criada às 9 horas da manhã do domingo dia 23 de Outubro de 4004 e, no dia 10 de novembro, do mesmo ano, Adão e Eva foram expulsos do Paraíso. Precisou ainda que a Arca de Noé parara no Monte Ararat (Turquia) no dia 5 de maio de 2348. Pela exatidão das datas, seus fiéis enalteceram sua sabedoria, dando credibilidade a sua tese. Que absurdo! Bem que o filósofo francês Ernest Renan (1823-1892 afirmara:

“A unica coisa que nos dá a idéia do infinito é a imbecilidade humana!”

É inconcebível que ainda hoje, não obstante o enorme progresso intelectual e científico da humanidade, há gente que acredite em relatos fantásticos, sem nenhuma consistência histórica ou lógica mental! Mesmo pessoas inteligentes e cultas fecham os olhos à verdade factual, achando preferível (pois mais cômodo ou confortável!) acreditar em Moisés, um mítico pastor de três milênios atrás, do que num cientista genial, como Darwin. Este, como vimos, demonstrou cientificamente que o processo evolutivo do mundo prescinde de um projetista transcendental e que o homem não foi criado de súbito e num preciso momento, mas, simplesmente, é um parente de chimpanzé, bem mais evoluído (às vezes, nem tanto!).

Conforme as descobertas arqueológicas e genéticas, o Universo se formou há 13 bilhões de anos. Mas o início da vida foi bem mais tarde. Os primeiros animais talvez viessem do mar, ocupando todo tipo de nicho ecológico que encontravam entre as águas e a terra firme. Na longa corrida evolutiva, com início talvez 400 milhões de anos atrás, seres vivos, intermediários entre anfíbios e peixes, parecidos com lagartixas ou crocodilos, ao ocuparem a superfície terrestre se tornaram tetrápodes, andando apenas com quatro pés. Os mamíferos apareceram uns 200 milhões de anos depois.

Os primeiros hominídeos (mamíferos arquétipos do homem) nasceram na África há cinco milhões de anos, aproximadamente. Foi longa a caminhada que marcou a passagem do primata, quando ainda andava de quatro, até conseguir chegar à primeira forma humana, o homo erectus. Para termos apenas uma idéia, em 1983, foi descoberto um fóssil, de 47 milhões de anos (em exposição no museu da Universidade de Oslo, com o nome de Ida), considerado o mais antigo ancestral comum de macacos e homens, fêmea da espécie dos lemuróides, primatas que habitam no Madagáscar. Mas, conforme uma pesquisa mais recente, o título de “elo perdido” entre humanos e macacos pertenceria ao Ganlea megacanina, um fóssil com 38 milhões de anos, achado em Mianmar, no Sudeste Asiático.

Como se pode deduzir, levou muito tempo para que o protótipo humano começasse a levantar as patas dianteiras e a cabeça para olhar mais alto, descobrindo novos e mais amplos horizontes. Estima-se que o longo processo de formação do homo sapiens teve sua definição uns 200 mil anos atrás, numa região do sudoeste da África, nas proximidades de Angola. O local do berço da humanidade não foi, portanto, o luxuriante Jardim do Éden, mas um amontoado de areia e pedras, sendo a vida vegetal composta apenas de arbustos. Os habitantes dos áridos sítios eram pastores ou caçadores.

Recentes pesquisas genéticas demonstram que a humanidade se originou de grupos tribais, da primitiva etnia san, que seriam os longínquos ancestrais de Barack Obama, o Presidente negro dos USA. Eles ganharam o mundo ao ultrapassar o Mar Vermelho, golfo que liga o Oceano Índico ao Canal de Suez, ao pé do Monte Sinai, separando a África da Ásia.

Esta Grande Viagem fez a diferença entre o homem e o animal: enquanto a besta se contenta em seguir apenas o instinto gregário, vivendo em grupos no mesmo lugar, o homem é movido pelo espírito da curiosidade, a vontade de conhecer o que está além da sua vista. De acordo com cálculos de paleontólogos, o Homo Sapiens da África, a partir de 100 mil anos atrás, depois de ter explorado boa parte do seu continente, começou a dirigir-se, sucessivamente, em direção à Ásia (60.000 anos atrás), à Oceania (50.000), à Europa (35.000) e às Américas (15.000).

No continente europeu, por mudanças biológicas, ambientais e culturais, um protótipo de ser duvidosamente humano, chamado de Homo de Neandertal, espécie já extinta, gradativamente teria sido substituído pelo Homo Sapiens, de origem africana. A pele humana branca começou a surgir nas regiões glaciais, a partir de 12 mil anos atrás, devido ao fator climático (diminuição da exposição direta do corpo aos raios solares: isso explicaria a causa da brancura da palma dos pés e das mãos dos africanos que originariamente andavam de quatro). Portanto, o homem de cor branca que se achar superior ao negro está renegando suas origens. Qualquer ser humano é afrodescendente! O cantor pop star norte-americano Michael Jackson, de cor preta, recorrendo a um processo químico de embranquecimento, tentou conseguir, em poucos anos, o que a natureza levou milênios: os resultados foram pífios.

Na sua generalidade, a civilização humana teria uma história de 6.000 anos, aproximadamente. Mas a época pré-histórica da humanidade apresenta sinais de trabalhos artísticos, encontrados numa caverna da África do Sul, que remontam a 70 mil anos, aproximadamente. A primeira figura humana, documentada até agora e encontrada numa caverna do Sul da Alemanha, foi esculpida há uns 35 mil anos: é a estatueta de uma mulher sem cabeça, com enormes seios e nádegas volumosas, com genitália bem desenhada. A fenda entre as coxas põe em evidência a vulva no meio dos grandes lábios. O convite ao coito, à penetração, que pode ser considerado pornográfico pela nossa moral (os arqueólogos denominaram o achado como Venus Peituda), salienta a importância que o homem primitivo dava ao ato sexual. A configuração artística desta mulher representa os dois instintos fundamentais do ser humano: a conservação própria pelo alimento (os peitos generosos que fornecem o leite) e a perpetuação da espécie pelo acoplamento sexual (o rego onde a vida se reproduz). Para todos os povos indígenas, a arte é principalmente utilitária, estando a serviço da comunidade tribal. O animal pintado ou esculpido numa rocha está lá para precaver os transeuntes sobre o perigo que aquele sítio apresenta.

A descoberta da Venus Peituda na Alemanha reforça a tese da existência de um primitivo matriarcalismo, quando a mulher tinha mais poder do que o homem. Isso aconteceu (e ainda acontece) especialmente nas regiões do Norte da Europa, onde é valorizado o papel da mulher na sociedade, contrastando com os povos de origem judaica, latina ou islâmica, em que predomina o machismo. O achado arqueológico confirma o mito: o primitivo poema épico-religioso da Finlândia, Kalevala, narra que quem criou o mundo foi uma mulher, a virgem Ilmatar, após 700 anos de trabalho de parto. Narra a lenda que a jovem teria recebida a visita de um bichinho anfíbio (uma espécie de pato marinho ou boto), que se aninhara na sua vulva, confundindo os pelos pélvicos com uma moita de capim fresco ou uma turfa, matéria esponjosa que se forma no limite entre a terra e água.

A figura da deusa Ilmatar lembra a lenda brasileira do boto, golfinho do rio Amazonas, que de noite se transforma num lindo jovem que seduz as mocinhas, na praia ou ao sair de um baile. “Filho do boto” passou a denominar um filho natural, de paternidade desconhecida. Luís da Câmara Cascudo, no Dicionário do Folclore brasileiro, relata que uma mulher do Pará levara uma criancinha ao médico. Ao perguntar a paternidade do nenê, recebera a seguinte resposta: é “filho de boto”. Ela acreditava que apenas os outros três filhos seus eram do marido. Cascudo narra ainda que um caboclo amazonense ofereceu ao comandante de um barco um “Olho de Boto”, uma espécie de amuleto, dizendo que se olhasse pelo buraquinho qualquer moça se apaixonaria por ele. O Comandante quis experimentar e olhou pelo furinho na direção do caboclo. E este começou a desmunhecar, se remexendo todo, sorrindo, virando os olhos e dizendo “deixe disso, seu comandante”. Diante dessa prova incontestável de sua eficácia, o Comandante comprou o amuleto.

Mas os estudiosos do folclore brasileiro acham que a lenda do boto não é de origem autóctone, pois foi levada para Amazônia pelos colonizadores portugueses. Há uma longa tradição clássica a respeito: o povo grego consagrara o delfim a Afrodite (Vênus, em Roma), a deusa do amor, que nascera da espuma formada sobre o mar pelo sêmen do deus Céu, quando este teve os testículos cortados pelo filho Saturno. Na Roma antiga, vários poetas exaltam a luxúria dos delfins. A iconografia, nas origens da religião cristã, representa um peixe, na forma de delfim, como símbolo da Eucaristia, para representar o amor de Jesus para com a humanidade. A verdade é que o erotismo está muito presente nas povoações primitivas, anteriormente à formação do preconceito de que o sexo é “pecado”, quando a prática da sexualidade era considerada como algo natural, assim como o prazer da comida e da bebida. Só posteriormente, com o avanço da civilização, igrejas e governos começaram a permitir a atividade sexual apenas dentro do matrimônio, para salvaguardar superestruturas sociais ou projetar a felicidade individual num hipotético mundo ultraterreno.

Quanto à origem do Universo, o cosmo, como o homem, também está submetido ao princípio da evolução. Também aqui, a tese do movimento e da mudança, que caracteriza o conhecimento científico, vem substituir o conceito de fixidez, de criação por um ato instantâneo e definitivo, em que repousa o dogma religioso. Os astrônomos antigos sempre pensaram que o Universo fosse estático. Só em meados do século passado, o astrofísico norte-americano Edwin Powell Hubble (1889-1953) descobriu que as galáxias estavam se afastando umas das outras, fortalecendo assim a tese da expansão do Universo. Tomou sustentação científica, então, a teoria do Big Bang (“a grande explosão”):

a) a partir de um instante zero, há mais de 13 bilhões de anos, toda a matéria e a energia do Universo estavam concentrados em um único núcleo (idade das trevas);

b) o núcleo, por um motivo ainda desconhecido, em certo momento explode

e dá início à expansão desenfreada do Universo;

c) este continua a se expandir, mas a força de gravidade puxa a matéria, refreando a expansão e formando as galáxias (5 bilhões de anos);

d) atualmente, as galáxias estão se afastando com tanta velocidade que o Universo

parece se expandir de forma acelerada: a força que provoca essa aceleração, batizada de “energia escura”, ainda é um mistério.

Como também é um mistério o que existiria antes do Big Bang! As pessoas estudiosas de religião se perguntam: “o que estava fazendo Deus antes de criar o mundo”? É a indagação sobre o mistério da passagem da eternidade (característica da divindade) para a temporalidade (própria da humanidade), visto que o tempo surgiu com a Criação. De modo semelhante, os cientistas se perguntam: “o que estava acontecendo antes do Big Bang”? Pois foi esta explosão que deu origem, ao mesmo tempo, às categorias do tempo e do espaço. Werner Heisenberg (1901-1976) formulou o famoso “Princípio da Incerteza” ao estudar as vibrações das partículas subatômicas, colocando em dúvida a correlação entre causa e efeito.

A ciência, pela sua própria natureza, é uma contínua indagação, sendo o território da dúvida em busca de novas respostas que, por sua vez, provocam outros questionamentos e, assim, ad infinitum. Contrariamente à religião que se sobrepõe à dúvida, tendo a pretensão de possuir a verdade acabada e definitiva sobre todas as coisas do presente, do passado e do futuro. Enquanto o princípio evolutivo da ciência é a vida, a fixidez da fé é a morte do espírito, pois impede seu desenvolvimento. No embate entre ciência e religião, esta, historicamente, nunca conseguiu uma vitória sequer, porque está sempre voltada para um passado mítico, que lhe impede enxergar a verdade existencial.

Talvez, a nova geração de supertelescópios renove a esperança de conhecer a entidade física da natureza desconhecida, a chamada energia escura, ou nos esclareça melhor sobre as causas e os efeitos do Big Bang ou nos apresente uma nova teoria sobre a origem do Universo. Recentemente, num profundo e longo túnel, entre a França e a Suíça, começou a funcionar uma supermáquina, conhecida pela sigla LHC (Large Hadron Collider). Em seu interior, físicos atômicos aceleram e provocam choques entre partículas de prótons a uma velocidade próxima da luz, com a intenção de reproduzir o instante do Big Bang.

Também as ciências biológicas, especialmente a genética, estão com pesquisas adiantadas, ampliando e aprimorando o mapeamento do DNA, com o fim de descobrir o “elo perdido” para poder compreender o enorme buraco entre os humanos e outras espécies que também têm traços de inteligência, como golfinhos ou chimpanzés. Qualquer seja a futura resposta científica dos astrônomos, paleontólogos ou biólogos, a única certeza que temos agora é que Darwin estava certo. O mundo e o homem não foram “criados”, já belos e prontos, por uma entidade sobrenatural, como continuam ensinando as várias doutrinas religiosas, mas foram frutos de uma longa evolução.

A teoria da Evolução de Darwin, junto com a teoria da Relatividade, formulada recentemente por Einstein, constitui um dos grandes pilares de sustentação da nova ciência. As duas descobertas se encaixam na teoria geral do conhecimento, fundamentada no processo natural de início, meio e fim (nascimento, desenvolvimento e morte ou transformação). Este princípio dialético dos três momentos serve como base de conhecimento não somente das ciências, mas também das artes e até dos esportes. O princípio do mobilismo cósmico já se encontra expresso no famoso pantarei (“tudo corre”) do filósofo grego Heráclito, pela bela imagem do homem que não consegue banhar-se duas vezes nas mesmas águas de um rio. Este princípio é retomado pelo Intuicionismo do filósofo francês Henri Bergson e pela poesia de Manuel Bandeira:

“Ser como o rio que deflui

Silencioso dentro da noite.

Não temer as trevas da noite”

No fim, tudo é evolução e o progresso é sempre relativo ao tempo e ao espaço. Se, por exemplo, a gente observar os jogos olímpicos, vai confirmar a consistência dessa tese. As primeiras Olimpíadas foram criadas na Grécia com uma finalidade educativa e cívica. Fortificar o corpo, ter mais altura e correr mais era uma preparação indispensável para a defesa individual e coletiva, quando as póleis (cidades) lutavam uma contra a outra pela supremacia. Os jogos eram treinamentos para fugir de animais ferozes ou de inimigos (corrida), ultrapassar riacho (salto em distância), dominar as águas do mar ou de rios (natação), apanhar frutas das árvores (salto em altura), pular cercas (salto com vara), enfrentar o inimigo no corpo-a-corpo (luta greco-romana) ou com espadas (esgrima), aprender a cavalgar (hipismo). Mais tarde, com o avanço da civilização, nas Olimpíadas modernas as competições passaram a ter outras finalidades, desenvolvendo não apenas o físico, mas também a mente. O que acontece especialmente com os jogos com bolas: o drible no futebol, a deixadinha no vôlei, a passada no tênis, onde a inteligência vale mais do que a força bruta.

A questão Criacionismo x Evolucionismo deixou as várias igrejas perplexas, cada qual apresentando uma reação diferente. Penso que estes são os principais pontos de vista ideológicos que distinguem os vários credos:

1) as igrejas que continuam apegadas à tradição bíblica, interpretando literalmente as Escrituras consideradas sagradas e, portanto, de uma verdade indiscutível, pelas quais o mundo foi criado em seis dias, a terra é chata e imóvel, o sol rodando ao seu redor;

2) as igrejas que aceitam a teoria da evolução, abandonando a tese criacionista e a discussão sobre temas de ordem científica ou histórica, considerando os relatos bíblicos como obras de ficção humana e aceitando apenas os dogmas espirituais e morais que se encontram nos textos religiosos;

3) as igrejas que tentam ajustar a Bíblia à luz das descobertas científicas, achando que a Revelação divina se deu por metáforas e gradativamente, pois Deus teria adaptado seu discurso à compreensão do povo simples, usando uma linguagem figurada, parábolas fáceis de serem entendidas.

Sem dúvida, a maioria das pessoas religiosas pertence a este último grupo. Mas aí vai a pergunta: se foi o mesmo Deus, apesar dos diferentes nomes (Jeová, Alá ou o Senhor Deus Pai), que inspirou Abraão e os outros profetas que deles descenderam (Moisés, Cristo, Maomé, entre tantos outros), ao longo do tempo e do espaço, como explicar a diferença de doutrinas e de costumes entre as três religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo), que vivem brigando entre si? Qual é a Palavra “verdadeira” de Deus na qual deveríamos acreditar? E se este Deus, em que o homem vem acreditando há mais de cinco mil anos, realmente existe, por que continua insensível ao sofrimento de suas criaturas?

IX - Freud: psicanálise e sexualidade

A estrutura da personalidade: Id, Ego, Superego.

Sigmund Freud (1856-1939), médico e pesquisador austríaco, é considerado o pai da psicanálise, pois sua influência foi tão ampla no tempo e no espaço que é difícil imaginar como o homem entendia sua alma antes dele. Impulsos e paixões eram atribuídos ao corpo e considerados pecaminosos. Com a descoberta do Inconsciente, Freud conseguiu colocar a ciência no lugar da moral, procurando encontrar a causa remota e biopsíquica de distúrbios existenciais, neurológicos ou psicológicos.

Filho de um comerciante judeu, estuda medicina em Viena, dedicando-se particularmente à pesquisa em fisiologia e no sistema nervoso. Influenciado pela teoria evolucionista de Darwin, encontra semelhanças entre a estrutura cerebral humana e a de répteis, discutindo sobre a superioridade dos homens com relação a outras espécies. Realiza um estágio de seis meses na França, junto ao mestre Charcot, familiarizando-se com o tratamento da histeria. Em 1886 começa a clinicar, abrindo um consultório em Viena, onde trata de doentes mentais pela hipnose. Começa uma longa amizade com o colega Josef Breuer, que lhe presta ajuda também financeira. Com ele publica a obra Estudos sobre a histeria (1885), onde já são expostos alguns princípios fundamentais da psicanálise, como inconsciente e recalcamento. Mas uma década depois acaba se separando de Breuer, pois este discorda sobre a origem sexual das neuroses, a tese mais original de Freud.

Prosseguindo sozinho no caminho da pesquisa e do atendimento clínico, em 1900 publica A interpretação dos sonhos, praticamente um curso de auto-análise, pois a obra é o resultado de anotações sobre seus próprios sonhos, cujo estudo o remete à infância, onde ele descobre residir a origem das neuroses. A análise de sonhos seus e de pacientes leva Freud à percepção de que desajustes psíquicos podiam estar relacionados com a atração que o menino sente pela mãe e a menina pelo pai. Ele próprio chega a se lembrar que sentia atração por sua mãe e hostilidade a seu pai, na época da primeira infância.

Este insight deve ter-lhe ocorrido ao ler a peça Édipo Rei, do dramaturgo grego Sófocles, a que já fiz referência, falando da mitologia greco-romana. Com Freud, o mito se transforma em complexo. A relação íntima paterna e materna, se não superada pelo relacionamento afetivo com outras crianças, cria uma dependência tão forte a ponto de tornar-se traumática e provocar desvios de comportamento.

Com a publicação das duas obras, Psicopatologia da vida cotidiana (1904) e Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud apresenta sua teoria sobre o funcionamento da mente e do comportamento humano. Sua tese de que toda neurose é de origem sexual escandaliza o mundo, sendo uma revolução comparável à de Copérnico (a Terra gira) e à de Darwin (o homem descende de macacos). A descoberta da força do inconsciente e seus conceitos sobre libido e repressão foram absolutamente revolucionários, mudando radicalmente os estudos da psique humana.

Simultaneamente, ele inova também na técnica terapêutica, passando da hipnose ou do simples estado de relaxamento do paciente para o método das associações-livres, fazendo com que o próprio doente participe na busca da causa da neurose. Freud ensina que nossa mente, na qual podemos distinguir vários níveis, é dominada por vontades primitivas que estão escondidas sob a consciência e se manifestam em sonhos ou em momentos de relaxamento psíquico. Vou tentar explicar as três camadas de consciência que compõem a estrutura da personalidade humana, comforme a teoria freudiana, vulgarizada pelos termos id (Inconsciente, código natural), ego (eu consciente, código racional) e superego (consciência moral, código cultural):

1) Id é um pronome neutro latino, que significa “isso”, o que está aí mas que não se vê, ultizado por Freud para indicar o impulso instintivo do indivíduo, o que resta de “animal” em nós (sem considerar a vantagem do animal que não sofre do sentimento de culpa!). Recebe também o nome de infra-ego , por estar por baixo do eu consciente, ou de subconsciente (precisamente, Freud usa o termo “pré-consciente”). O Id, regido pelo princípio do prazer, se apresenta incógnito e usa disfarces para enganar as pessoas e induzi-las a fazer coisas que a consciência repudia. Constitui a reserva inconsciente de impulsos e desejos, de origem genética, que têm a função de preservar e reproduzir a vida. O Id aflora em sonhos, em atos involuntários, no estado de embriaguez ou sob efeito de drogas.

2) Ego: o “eu” consciente, a parte da vida psíquica encastelada entre os desejos do Id e a repressão do Superego. É a instância da racionalidade que olha para a realidade e busca alcançar os objetos de desejo do Id, tentando não transgredir as exigências do Superego.

3) Superego: o terceiro agente da vida psíquica vai se formando aos poucos, a partir da primeira infância. Ele também surge ao nível do inconsciente, como o Id, mas em oposição a ele, pois não é de origem natural, mas cultural. O Superego se forma pela interiorização de normas éticas e sociais, provenientes da família, da escola, das crenças religiosas, do meio ambiente. Ele cria um eu “ideal”, formado sobre um conjunto de valores apenas desejados pela sociedade, mas não realmente ou plenamente vividos pelo indivíduo: castidade, honestidade, justiça, caridade etc. Pode ser considerado um vigilante atuando como juiz da moralidade necessária para a estabilidade social.

É pela interação destes três níveis da psique humana que se forma a personalidade. O Ego, a camada consciente e racional, é constantemente bombardeado pelos dois lados opostos e conflitantes, pressionado pelos desejos insaciáveis do Id, de um lado, e pela severidade repressiva do Superego, do outro. O Superego censura os impulsos, especialmente os sexuais, que a sociedade e a cultura proíbem ao Id, impedindo o indivíduo de satisfazer plenamente seus instintos e desejos. Se o Ego se submeter ao Id, o homem torna-se imoral, perverso; se acatar as ordens do Superego, ele viverá numa insatisfação que o torna infeliz. A solução do impasse estaria, portanto, em adotar a filosofia do velho mestre Epicuro, que afirmara a felicidade residir no meio termo, no equilíbrio entre dois extremos. Mas ser filósofo não é para qualquer um!

De acordo com Freud, o ser humano experimenta repetidamente pensamentos e sentimentos muito dolorosos ao ponto de se tornarem insuportáveis. Tais sensações (assim como as recordações a elas associadas), não podendo ser expulsas totalmente da mente, fogem da zona da consciência, refugiando-se no Id, o receptáculo do inconsciente. O Ego sofre pela angústia existencial, o ser humano estando dividido entre o principio do prazer (que requer satisfação imediata e não conhece limites) e o principio da realidade (que estabelece normas). O Ego, portanto, tem a dupla função: ora, recalcar o Id satisfazendo o Superego; ora, satisfazer o Id violando os limites impostos pelo Superego. No indivíduo considerado “normal”, essa dupla função é cumprida sem muito sofrimento. Mas nos neuróticos e psicóticos o Ego sucumbe, ou porque o Id e o Superego exercem uma força excessiva, ou porque o Ego é muito fraco.

Daí a necessidade do tratamento psicanalítico para tentar descobrir a causa de distúrbios de comportamento. Mais uma vez, Freud é inspirado pela cultura grega. Como o mito de Édipo fora o ponto de partida para sua teoria sobre o complexo materno, assim o estudo da filosofia de Platão ajuda o cientista austríaco na descoberta da divisão da alma nas três partes apontadas acima e na formalização do tratamento terapêutico. O filósofo grego, adotando o método da maiêutica, o processo dialético e pedagógico do mestre Sócrates, que ensinava dialogando com seus discípulos, antecipara, por quase dois milênios, o tratamento psicanalítico. Semelhantemente, Freud começa seguindo a técnica do amigo e colega Breuer, a chamada “cura pela fala”: o paciente vai associando lembranças do passado com sintomas da doença, superando, assim, a neurose pelo esclarecimento do trauma. A diferença entre os dois estudiosos residia no fato de que Freud acreditava que as memórias reprimidas, nas quais se baseavam os sintomas da histeria, eram sempre de natureza sexual.

Com a ocupação de Viena pelos nazistas, Freud, por ser de família judía, perdeu quatro irmãs levadas para campos de concentração. Ele foi salvo pela interferência de Roosevelt, então Presidente dos EUA, e pelo pagamento de um resgate, refugiando-se em Londres, onde viveu o último ano de sua vida (1939), na companhia da filha, a psicanalista Anna Freud. Conforme seus biógrafos, o mestre austríaco morreu de um câncer na mandíbula, de que estava acometido desde 1924. As dores se intensificaram com a velhice e ele pedia doses de morfina cada vez maiores. Supõe-se que tenha morrido de uma overdose, suplicando pela eutanásia.

Freud, acima de acertos ou possíveis derrapadas face aos posteriores avanços da ciência, teve seu incalculável mérito por considerar o impulso sexual como algo natural, afastando o sentimento de culpa que até então atormentava especialmente as almas mais religiosas. A hagiografia, disciplina que narra a vida dos santos, registra muitos casos de devotos que, para livrar-se de desejos carnais, castigavam seus corpos, usando cilícios diretamente sobre a pele. Conforme a doutrina católica, o ato sexual era um pecado em si, a libido sendo considerada a fonte de todo o mal, pois vinha da matéria e não da alma, do Demônio e não de Deus, de acordo com o princípio do maniqueísmo.

E tal mentalidade não mudou muito. Lembro que, quando criança, estudei como interno num seminário na Itália e, de manhã cedinho, ao acordar, um padre vinha examinar se havia manchas de esperma nos lençóis, que acusassem alguma ejaculação. Mesmo se fosse involuntária, devia correr me confessar para sair do estado de pecado mortal. E custou para me libertar de tamanha escória moral! Por enfrentar tais tabus, Freud, junto com Darwin e Marx, continua sendo visto por todas as igrejas como uma encarnação demoníaca.

As fases da libido:

Sigmund Freud desenvolve sua teoria da motivação explicando que a força orientadora do comportamento está no inconsciente. Este é regido pelo instinto sexual, que visa a sobrevivência da espécie, como a alimentação está na base da conservação individual. Comida e sexo: eis os dois instintos fundamentais que regem a vida de qualquer ser vivo, aos quais tudo está subordinado. No ser humano, o desenvolvimento do Id se daria dos primeiros meses até o sexto ano de vida, passando por três estágios, de acordo com a área na qual a libido está mais concentrada:

1) a fase oral (hedonismo bucal), quando o prazer se localiza nos lábios que sugam o seio materno, a mamadeira, a chupeta, os dedos;

2) a fase da libido anal, quando o prazer reside na evacuação da comida ingerida, manifestado pelas brincadeiras de amassar objetos de barro ou lambuzar-se com comida cremosa;

3) a fase genital ou fálica, quando o desejo começa a se voltar para as partes do corpo que excitam os órgãos genitais. Nessa fase, para os meninos, a mãe é o objeto do desejo e do prazer; para as meninas, é o pai.

Tal comportamento humano os gregos expressaram pelos mitos de Édipo (que mata o pai e casa com a mãe Jocasta) e de Electra (que participa da morte da mãe para vingar o assassinato do pai Agamenão). Pelo complexo de Édipo, de um lado, o menino disputa com o pai as atenções da mãe; de outro lado, o pai vê no filho um futuro rival que irá substituí-lo no poder. Esta tendência humana subconsciente está evidente no mito de Urano (Céu) que detesta os filhos e os esconde ao nascerem. Para vingar-se, a mãe Terra ajuda o filho Saturno a cortar os testículos do pai. Das Divindades Primordiais dos gregos, passando pelas relações incestuosas narradas na Bíblia, chegamos à cultura moderna, onde a força do instinto ainda continua sendo motivo para estudo científico ou criação artística. A dramaturgia de Nelson Rodrigues está impregnada do complexo de Édipo: paixões incestuosas, estupros, prostituição, traições na própria família são os temas mais recorrentes, adaptados também para cinema e televisão, pois o povo gosta de ver representado seus desejos mais recônditos e inconfessáveis ao nível do Superego.

O modo de desenvolvimento das três fases iniciais da vida humana tem reflexos no adolescente e no adulto, passando por processos psíquicos, como fixação (recalque), regressão, transferência, sublimação que, aos poucos, vão determinando o tipo de personalidade de cada um. A relação íntima, na primeira infância, entre os pais (ou as pessoas que assumam suas funções) e os filhos tem uma importância fundamental. A representação do “pai” e da “mãe” irá ecoar pela vida afora, determinando o tipo de comportamento do ser humano na família, na escola, no trabalho, na sociedade. De um modo geral, a atração que um menino sente pela mãe é superada pelo relacionamento afetivo com outras crianças e pelo sentimento erótico pela namorada e esposa. Mas há casos patológicos que devem ser investigados para descobrir a origem do trauma e providenciar a cura adequada pelo tratamento psicanalítico ou psiquiátrico.

Para a construção de seu modelo de análise psíquica, Freud recorre a mais dois mitos criados pelos gregos: Eros (Amor) e Tânatos (Morte). Tais personagens são símbolos de energias vitais, que ele chama de “pulsões”, as quais, embora opostas, estão sempre interagindo. Eros é a pulsão sexual com tendência a preservar e reproduzir a vida, enquanto Tânatos é a pulsão da morte que leva à segregação e à destruição. No caso da alimentação, por exemplo, o prazer da comida, que está em função da manutenção da vida, é seguido pela necessidade da digestão (destruição dos alimentos) e da defecação (expulsão dos resíduos). Vida e morte andam juntas, compondo o ciclo do início e do fim. Isso lembra a historinha shakespeariana do rei que come o peixe, que comeu o verme, que comera as fezes do rei.

É preciso salientar que Freud, embora tivesse dado importância fundamental à libido, ele não a reduz ao ato sexual, como também não acha que este tenha sempre como fim a conservação ou a reprodução. Ele explica que a criança, ao chupar o dedo, não está obedecendo à necessidade de alimentação, mas apenas ao prazer do contato com seu corpo. Há uma grande variedade de objetos que podem ser uma fonte de prazer, sem chegar à consumação do ato sexual, nem ter outra finalidade a não ser o gozo. É a aceitação do prazer em si, apenas enquanto prazer. É neste ponto que Freud realiza sua revolução, contestando uma moral religiosa milenária, que só permite a prática do sexo dentro do casamento e para fim procriativo. Ele verifica que as tendências sexuais reprimidas são a principal causa dos distúrbios psíquicos. Ai vai uma pergunta que enseja outras:

Por que os psicanalistas, em lugar de tratar apenas dos pacientes, não encabeçam uma campanha contínua e esclarecedora para lutar contra a repressão sexual e salientar o papel fundamental da afetividade na primeira infância? Não seria melhor prevenir do que remediar? Por que todas as religiões, sistematicamente, condenam o prazer sexual, se ele está na origem da vida? Por que ir contra a natureza que, por suposto, foi criada por Deus e na forma que aí está? Por que não acabar com a hipocrisia de considerar lícito apenas o sexo “abençoado” pelo matrimônio, visto como uma “compensação” do ônus de criar filhos?

Se fosse assim, por um princípio de coerência, por que não considerar pecaminosa também a relação sexual com mulher grávida, estéril ou de idade avançada? Por acaso, o homem deve imitar os animais que fazem sexo somente quando estão na época do cio? Por que, em lugar de proibir ou reprimir, não educar os fiéis para uma atividade sexual responsável, segura, prazerosa? E o Estado, que se quer laico, por que não atua junto às famílias e nas escolas para que as crianças tenham uma educação sexual sadia, tomando precauções, não contra o prazer, mas contra a precocidade da prática do sezo, a gravidez indesejada, as doenças venéreas?

Jung: a teoria dos arquétipos

Sigmund Freud, como todos os grandes cientistas, filósofos e artistas, não morreu por completo, pois seus ensinamentos continuam iluminando as mentes dos que, livres de tabus e preconceitos, querem realmente conhecer a verdade existencial. Em 1908, fundou a Sociedade Psicanalítica de Viena, reagrupando em torno de si vários discípulos, entre os quais se destaca C.G. Jung. Este, como tantos outros antigos alunos, passou a discordar do mestre em alguns pontos da doutrina paicanalítica, assim como proposta por Freud. Mas isso era inevitável porque o conhecimento científico está sempre em continua evolução. Os seguidores de Freud tentaram aperfeiçoar métodos e técnicas de análise, bem como estabelecer relações profundas entre psicanálise e outras disciplinas humanísticas (Linguística, Antropologia, Sociologia). Recursos da Psicanálise são utilizados por cineastas, poetas, dramaturgos, pintores.

A principal contribuição de Jung foi transformar a “libido” freudiana em energia vital, algo que transcende a sexualidade. Ao inconsciente individual de Freud ele acrescenta o inconsciente “coletivo”, indo além do fator puramente genético. Ele chama “arquétipos” às experiências milenares da humanidade, transmitidas por mitos, lendas, contos de fada. Os arquétipos seriam os modelos de vida, as imagens psíquicas do inconsciente coletivo, que se transmitem ao longo de muitas gerações. São eles que determinam nosso sentir, pensar, agir. Segundo Jung, dentro de nós existiriam os arquétipos do amor e do ódio, da paz e da guerra, da abnegação e do egoísmo etc. Tais formas primordiais se manifestam ao nível do fazer, ocasionalmente, conforme as determinações do tempo e do espaço.

São estes arquétipos os responsáveis pelo incentivo ao instinto gregário (de “grei”, grege, manada), comum ao ser humano e animal. Infelizmente, os homens, como formigas ou abelhas, aceitam passivamente padrões religiosos, políticos e morais conforme uma herança familiar e uma cultura milenar, sem se perguntar se correspondem à lógica do pensamento, à verdade histórica ou ao nosso desejo de felicidade. A pergunta é quantos milhares de séculos ainda tem que passar para o homo sapiens usar a cabeça para refletir e se libertar do espírito de dependência mental? Até quando iremos acreditar piamente no que está escrito em livros falsamente considerados sagrados ou nas palavras de prepostos divinos (padres, pastores, rabinos, aiatolás) ou líderes políticos? Pensar é preciso!

X – Karl Marx: a utopia comunista

“Toda revolução começa com os idealistas e acaba com os tiranos”

Já não lembro mais quem disse a frase acima, que reflete muito bem a trajetória da revolução comunista. Ela iniciou com jovens idealistas franceses e alemães, inconformados com os efeitos da revolução industrial, que tirara os homens do campo para serem explorados pelos donos de fábricas. Decênios de luta de trabalhadores, ligados à Internacional Socialista, contra os detentores do poder político e econômico foram coroados com o triunfo da revolução bolchevique que, a partir de 1917, instalou o regime comunista na antiga URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). O movimento revolucionário terminou quando o povo russo não agüentou mais o despotismo sanguinário de dirigentes comunistas, pedindo uma nova ordem social. O símbolo do fim do Comunismo foi a derrubada do muro de Berlim (1989), que separava a parte rica da Alemanha democrática do lado miserável da Berlim oriental. E isso aconteceu porque aos jovens idealistas Marx e Engels sucederam os tiranos Lênin e Stalin.

Traços biográficos

Karl Marx (1818-1883) é considerado o pai do Comunismo. Filósofo e sociólogo alemão, ele revolucionou o mundo político e econômico da Europa. Filho de um advogado judeu convertido ao protestantismo, estudou Direito nas Universidades de Bonn e Berlim, dedicando-se principalmente ao estudo da Filosofia e da História Universal. Seu primeiro emprego foi como jornalista da Gazeta Renana, ofício que lhe deu a oportunidade de conhecer diretamente os problemas sociais da Alemanha e da França, onde passou a residir, nutrindo-se das teorias de Proudhon e de outros pregadores de idéias socialistas. Em Paris, e logo depois em Bruxelas, onde fundou a Sociedade dos Operários Alemães, desenvolveu uma intensa atividade política, estabelecendo contatos com trabalhadores militantes nas fileiras dos revoltosos contra a miséria em que vivia a classe popular nos países do centro da Europa, ainda dominada pelo Estado feudal prussiano.

Decisiva foi a amizade de Marx com Friedrich Engels, filho do dono de uma fábrica de fiação em Manchester. Estudante idealista, na linha dos hegelianos de esquerda, que pretendiam destruir a Religião tradicional e o Estado existente, realizou uma pesquisa na indústria do pai sobre os efeitos do Capitalismo no Proletariado. A tese foi publicada com o título “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”. Marx conheceu Engels em Paris, em 1844, começando uma amizade que durou a vida toda, regada pela comunhão dos mesmos ideais. Juntos, redigiram o Manifesto do Partido Comunista, no fatídico ano de 1848, quando estouraram várias revoluções na Europa. No ano seguinte, expulso sucessivamente da Bélgica, da Alemanha e da França, Marx se refugia na Inglaterra, onde é acolhido pelo amigo Engels, que o ajuda na elaboração de sua obra-prima O Capital (Das Kapital), cujo Livro I foi publicado em 1867. Os dois outros volumes do Capital foram editados por Engels, após a morte do amigo.

Formação intelectual

Marx, como Freud (e a maioria dos formadores de consciência), tivera uma sólida educação humanista. Apresentou, na Universidade de Iena, uma tese sobre “As diferenças da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro”. O estudo dos antigos atomistas lhe abriu o caminho para a concepção materialista do mundo, afastando-o das crendices religiosas. Mas foi um aluno de Hegel, Ludwig Feuerbach, seu contemporâneo e conterrâneo, que o introduziu para o materialismo dialético e histórico. Na sua obra mestra, A essência do cristianismo (1841), o filósofo alemão dá a entender que a idéia de Deus está implícita no desenvolvimento da própria humanidade, não havendo nada que transcenda a realidade. Também o que chamamos de alma, espírito ou inteligência, é composto de átomos materiais. Feuerbach chega a afirmar que “o homem é o que come”, pois é o alimento a nutrir os neurônios do nosso cérebro.

Karl Marx reconheceu o mérito do filósofo idealista Hegel ao fundamentar a teoria do conhecimento sobre o método dialético. O termo e o sentido de dialética (“a palavra em movimento”, o diálogo) são bem antigos. Heráclito achava que o mundo da realidade não tem estabilidade alguma, estando em contínuo movimento, sujeito a mudança e transformações. Ele exemplifica a idéia do panta rei (“tudo corre”) pela bela imagem do homem que não consegue banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois, na segunda imersão, nem as águas nem o homem serão os mesmos.

Diferentemente do modo “causal”, pelo qual se estabelece uma relação de causa e efeito entre dois fatos (as nuvens carregadas provocam a chuva), o modo “dialético” salienta os elementos de conflito entre duas ações, cujo choque provoca uma nova situação: a briga entre casais pode levar à separação; consequentemente, a luta contra a solidão existencial pode induzir o homem e a mulher a uma nova união, e assim sucessivamente. Os elementos do esquema básico do método dialético são “tese”, “antítese” e “síntese”. A tese propõe uma idéia ou situação, enquanto a antítese contesta o que estava anteriormente colocado. Do conflito entre tese e antítese surge a síntese, que reúne os elementos contrários do embate e se anuncia como tese de um novo processo dialético.

Karl Marx passa a criticar a dialética de Hegel por ser idealista e abordar apenas o movimento do espírito, enquanto a dialética que ele propõe é um método de análise da realidade, que vai do concreto ao abstrato. Marx afirma que Hegel tinha descoberto o caminho certo para captar a verdade, só que a fazia andar de cabeça para baixo, visto que a verdade não está no mundo das idéias, mas na realidade cotidiana, caminhando de fora para dentro e não no sentido contrário. E isso porque Hegel, vivendo enfiado em salas de aula ou em bibliotecas, não tinha contato com os problemas cotidianos. Diferentemete, o discurso de Marx é materialista e histórico: o método dialético nos incita a revermos o passado à luz do que está acontecendo no presente, ao mesmo tempo em que se questiona o momento atual com olhos postos no futuro.

Pensamento econômico e político: Capitalismo e Comunismo

Pela teoria do materialismo histórico, a consciência dos homens é determinada pela realidade social (e não o contrário, conforme a dialética subjetivista e idealista de Hegel). Quer dizer, é o conjunto dos meios de produção que constitui a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura política e jurídica, que forma uma determinada consciência social e moral. No sistema capitalista, o empregado vende ao proprietário dos meios de produção sua força de trabalho, que não deixa de ser ela também uma mercadoria, submetida à lei da concorrência (oferta e procura: quando há desemprego, o salário é mais baixo). Marx chama de “mais-valia” à diferença entre o valor produzido pelo trabalho e o salário pago ao trabalhador. A taxa da mais-valia exprime o grau de exploração do assalariado. Seguindo a lei natural do egoísmo individual ou de grupos econômicos, a tendência do empregador é aumentar a mais-valia, explorando o trabalho humano. Conseqüência disso é o acúmulo do capital de um lado e a miséria do trabalhador na outra ponta.

A crítica mais profunda que Marx tece contra o sistema capitalista é a alienação dos trabalhadores. Estes não conseguem adquirir os bens que eles próprios produzem, sentindo-se estranhos a suas criações. A contradição dialética entre as condições de produção e o acesso desigual aos bens produzidos, entre trabalho e distribuição de riqueza, só pode ser resolvida pela luta de classes, que é vista como a força motriz da história. Isto ocorre quando massas empobrecidas do proletariado entram em confronte com os poucos capitalistas que, possuindo os meios de produção, exploram a mão de obra, não pagando aos operários o justo preço do seu trabalho. Os donos das empresas embolsam a mais-valia como lucro, pagando aos trabalhadores o mínimo necessário para sua subsistência. A não divisão dos lucros leva a dois malefícios:

1) o pagamento do trabalho apenas para o empregado não morrer de fome segue o modelo social das épocas de escravidão, quando era praticada a caridade em lugar da justiça;

2) a concentração do capital nas mãos de poucas pessoas gera o imperialismo nacional e internacional: as grandes empresas devoram as pequenas, que não suportam o peso da concorrência desleal, e se expandem além das fronteiras, subjugando as economias de povos mais pobres e tecnologicamente atrasados.

Daí a luta entre classes sociais desaguar na luta entre nações, provocando conflitos e guerras. É a lei da selva: o mais forte come o mais fraco! O Capitalismo torna-se um Imperialismo disfarçado de democracia, pois os poderosos impõem uma ideologia pela qual seus interesses são apresentados como se fossem os interesses da sociedade toda.

Infelizmente, a exploração do trabalho humano existiu antes da revolução industrial na Inglaterra e continua existindo ainda hoje, em vários lugares, inclusive sob regimes considerados democráticos. No Brasil, há uma longa história de opressão dos operários, que remonta à época colonial quando os donos de engenho se serviam da mão de obra escrava. Sem ir longe no tempo ou no espaço, no interior do Estado de São Paulo, o mais rico e progressista do nosso país, recentemente, após o boom do etanol, milhares de cortadores vivem no submundo da produção da cana, em condições precárias, sem ter os direitos trabalhistas garantidos. Os produtores se enriquecem egoisticamente, enquanto os trabalhadores rurais vivem na miséria mais esquálida, ainda sendo ameaçados com a perda do emprego pela mecanização da lavoura.

Será que um dia a sociedade humana irá entender que o sistema de participação nos lucros, além de ser a forma mais justa de relacionamento entre patrão e operário, é também, em muitos casos, a mais eficiente? Urge chegar a uma síntese entre a tese capitalista e antítese marxista. Na época de Marx, o capitalismo era um sistema econômico selvagem, sem economia de mercado, valendo a lei do mais forte. Não havia nenhuma legislação trabalhista nem sindicatos que defendessem os direitos dos operários. Em escala internacional, ainda não existia a Organização Mundial do Comercio, nem leis antitruste. E o Estado era omisso na defesa dos trabalhadores.

No regime comunista, houve uma reviravolta: o Estado passou a se hipertrofiar, matando a economia de mercado e a livre concorrência. Os burocratas do partido se enriqueceram às custas da grande massa trabalhadora, substituindo os antigos capitalistas. É necessário, portanto, que as duas principais instituições da sociedade humana, o Estado e o Mercado, estejam continuamente interagindo.

Para Marx, também a religião é uma forma de alienação, de que se serve a classe dominante para manter o povo subjugado. A prática de qualquer tipo de religiosidade é o sintoma de um sistema social enfermo, que precisa de remédios. A cura é colocada na crença na existência de outro mundo, sobrenatural, onde estão projetados os ideais de vida impossíveis de serem alcançados aqui na terra: a justiça, a bondade, o amor entre todos os homens, sem distinção de classes ou de cores. A religião, portanto, torna-se “o ópio do povo”, a droga indispensável para poder suportar todas as desgraças. O pior é que acaba com a esperança de um dia encontrar a salvação neste mundo.

Mas, recentemente, uma corrente esclarecida da Igreja Católica está tomando consciência da importância da religião lutar contra a iniqüidade social. No final dos anos 60, o ex-frei brasileiro Leonardo Boff deu início ao movimento chamado Teologia da Libertação com propósitos retomados mais tarde pelo Fórum Social Mundial. A essência destes dois movimentos é a luta para uma maior justiça social. O papa João Paulo II, em ocasião da “Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano”, realizada em Puebla, cidade do México (1979), também ele, embora contrário à postura ideológica de Boff, confessava que “o capital tem uma hipoteca social”.

Sem condenar diretamente o sistema capitalista, o Santo Padre ensinava que toda a grande fortuna tem origem e sustentação no trabalho humano. É uma “hipoteca” porque o lucro do capitalista está relacionado diretamente com a produção dos bens proporcionado pelo labor dos operários. De outro lado, se o trabalhador não tiver um ganho justo, como poderá comprar os bens que ele produz? Para quem o patrão irá vender a mercadoria? Portanto, recompensar adequadamente quem trabalha, além de ser um ato de justiça, é questão de sobrevivência do próprio capitalismo.

Revolução bolchevique: Lênin e Stalin

No decorrer da Primeira Guerra Mundial, o sonho da instalação de um governo de regime comunista encontrou condições favoráveis na Rússia, o grande país do Leste europeu. O imperialismo czarista de Nicolau II tornou aguda a crise crônica da miséria social. As tropas descontentes, os camponeses famintos e os operários explorados se juntaram a intelectuais simpatizantes com os ideais do nascente marxismo, que pipocavam em países da Europa central. Em 1917, a Revolução Comunista depõe o czar e implanta um “Estado operário e democrático”. O líder da transformação radical foi Lênin, um jovem marxista, que tivera um irmão executado por pertencer a um grupo populista contrário à ditadura czarista. Ele viajou pela Suíça, Alemanha e França, onde entrou em contato com os movimentos socialistas. Ao voltar para sua terra foi detido e condenado à deportação na Sibéria. Após a Revolução de Outubro, Lênin se tornou o primeiro chefe de Estado da antiga URSS.

Lênin, no II Congresso dos Sovietes (“conselhos” populares), põe em evidência os princípios ideológicos dos Bolchevistas (“a maioria” dos revolucionários que se vestiam de vermelho), entre os quais se destacam: separação da Igreja e do Estado; reforma agrária; igualdade entre homens e mulheres; controle das empresas pelos operários; nacionalização dos bancos. O mais triste é que, para consolidar a revolução proletária, ele reputou indispensável silenciar os inimigos da classe operária, dando o primeiro passo para a construção de um Estado policial cruel e autoritário. Respondeu-se, portanto, à violência czarista com outra violência, a do regime comunista, que fez milhares de vítimas para se consolidar no poder.

Observamos, de relance, que eliminar a memória do passado é condição essencial para a afirmação de qualquer modalidade de totalitarismo. O que a Igreja da Idade Média fez com relação à cultura greco-romana é semelhante ao que o marxismo tentou fazer na Europa moderna, apagando a memória do passado através de lavagem cerebral, de processo de depuração de idéias. Lênin, na luta para subjugar a velha Rússia e instaurar o comunismo, não tolerou nenhuma voz dissonante. Assumiu o papel de um Messias, o dono de uma nova verdade inquestionável. E o povo acreditou tanto nele que seu corpo não foi enterrado, mas embalsamado, na espera de que o progresso da ciência pudesse fazer dele o primeiro ser humano a voltar à vida. Infelizmente, o ser humano não consegue viver sem mitos: mata um (Cristo) e logo cria outro (Lênin)!

Feroz ditador foi, porém, Josef Stalin, o secretário-geral do partido comunista, que sucedeu à morte de Lênin e governou a ex-URSS com métodos brutais, por quase três décadas, de 1924 a 1953. Egresso de um seminário ortodoxo, juntou-se a Lênin em 1905, também ele sendo preso e deportado. Após a Revolução, passou a fazer parte do politburo, promovendo um processo de centralização e de coletivização da produção. Estimulou a indústria pesada e conseguiu um grande progresso tecnológico graças à disciplina operária, ao trabalho forçado e ao culto da ideologia socialista. Apoiado num poderoso aparelho estatal, para livrar-se dos inimigos políticos procedeu a um expurgo maciço, eliminando antigos dirigentes do Komintern e do Exército Vermelho. Em 1941 aderiu à Segunda Guerra Mundial, lutando contra a Alemanha nazista.

A vitória bélica e a corrida espacial deram a Stalin enorme prestígio na Rússia e nas democracias populares anexadas à URSS. E a onda de repressão dentro e fora da União Soviética continuou até sua morte, em 1953. A ele sucederam mais cinco Chefes do Império Soviético: Kruchev, Brejnev, Andropov, Chernenko e Gorbachev. Este último, face à crise econômica do regime comunista, tentou conciliar o sistema totalitário com as liberdades democráticas pelos processos da Glasnost (transparência), que permitia liberdade de expressão, e Perestróica (reestruturação), que adaptava o sistema econômico à nova realidade. Enfim, em 1961, o Comunismo no Leste europeu chegou ao fim. Acabou a Guerra Fria e foi derrubado o muro de Berlim, juntando outra vez a Alemanha Ocidental com a Oriental. Atualmente, o regime comunista ainda persiste em alguns países (China, Coréia do Norte, Cuba), mas com adaptações exigidas por novas realidades sociais.

XI - Modernidade: proposta de um Humanismo laico

Vanguarda

A palavra “moderno” é uma evolução fonética do latim hodiernus, adjetivo formado de hodie (hoje), qualificando o que é atual, com relação à pessoa que fala. Evidentemente, o que era moderno no ano passado, já não o é agora. Na história da nossa cultura, podemos encontrar vários momentos rotulados como modernismo: 1) chamamos de línguas modernas (português, italiano, francês etc.), os idiomas que surgiram a partir do séc. XI d.C, em oposição às línguas antigas (grego e latim); 2) no Brasil, deu-se o nome de Modernismo à adaptação das correntes da Vanguarda Européia, revolução cultural consagrada pela famosa “Semana de Arte Moderna”, evento de 11 a 18 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo; 3) usa-se o termo moderno para indicar o tempo atual, como sinônimo de contemporaneidade. A meu ver, as denominações “pré” ou “pós” moderno são semanticamente incorretas, pois a primeira se refere ao passado e a segunda ao futuro. O termo modernidade deveria ser entendido apenas como sinônimo de atualidade.

A partir do início do séc. XX, antes e durante as duas Guerras Mundiais, surgiram na Europa vários movimentos de renovação literária e artística. Embora diferentes nos vários países, quanto aos modos de manifestação, eles comungavam o mesmo espírito de “antipassadismo”. Apregoavam a ruptura contra toda a cultura do passado, especialmente as tradições acadêmicas de poetas e artistas românticos ou parnasianos. O nome genérico de vanguarda é de origem francesa: avant-gard, antônimo de retaguarda, significa avançar, lutar na frente. Vou falar, de leve, sobre alguns movimentos da vanguarda européia que influenciaram nosso modo de sentir e de pensar.

Futurismo

Em 1909 saiu publicado no jornal Le Figaro de Paris o “Manifesto Futurista”, de autoria do poeta italiano Marinetti, que deu origem aos vários movimentos literários e artísticos da Vanguarda Européia. A proposta era fazer tábua rasa do passado, construindo uma arte diferente, capaz de expressar a nova realidade da era da máquina. O novo espírito devia se manifestar não apenas na literatura, mas em todas as artes: pintura, escultura, arquitetura, teatro, música. Portanto, seguindo o exemplo de Marinetti, vários autores futuristas foram divulgando manifestos respectivos a cada arte, sugerindo novas normas de composição e princípios ideológicos diferentes.

O movimento futurista teve alguns aspectos positivos como, por exemplo, a criação da atmosfera de libertação que alimentaria a arte moderna e contemporânea. A recusa de seguir as normas estéticas de românticos, parnasianos ou realistas, impostas pelas anquilosadas academias de Ciências, Letras e Artes, foi, sem dúvida, um avanço civilizacional. Mas o desejo de destruir por completo a milenar tradição cultural era um absurdo, pois nada se constrói a partir do nada. O Futurismo tinha a pretensão de acabar não apenas com o Humanismo (a cultura baseada na tradição filosófica e literária), mas também com o humanitarismo (o sentimento da piedade). Este pensamento de Marinetti explica bem sua postura mecanicista:

“O sofrimento de um homem não é para nós mais interessante

de que o sofrimento de uma lâmpada atingida pelo curto-circuito”.

Expressionismo

A explosão da estética expressionista começou na Alemanha, contemporaneamente ao Futurismo na Itália. Em Berlim, em 1912, a livraria e galeria de arte Derem Sturm reuniu os trabalhos de alguns pintores chamados “expressionistas”, porque para eles a arte era expressão do “eu” subjetivo, operando de dentro para fora, do centro para a periferia, contrariamente ao “Impressionismo” da época realista, cuja estética estava baseada no movimento de fora para dentro. Das artes plásticas, especialmente da pintura, a estética expressionista passou também a ser utilizada pela literatura, cinema, dança, música, teatro. Em literatura, encontra no lirismo sua manifestação mais apropriada. As combinações rítmicas, os cortes surpreendentes, o jogo de imagens ousadas, permitiram a sublimação do patético e a exaltação das paixões. O processo técnico usado era a extrema liberdade léxica, sintática e semântica. Os temas mais explorados pelos poetas expressionistas são o sexo, visto por uma nova ótica moral; a crítica à sociedade, atacando autoritarismo e hipocrisia; a simpatia para com o mundo dos miseráveis e dos injustiçados. O movimento expressionista tem em comum com o Futurismo a disposição de demolir a cultura passada e criar um novo homem; mas dele se difere pelo pacifismo, pelo sentimento de fraternidade universal e pelo desprezo da civilização materialista, industrial, mecanizada. Por não aderir ao Nazismo foi por ele destruído, a partir de 1933, quando Hitler subiu ao poder. No Brasil, o Expressionismo marcou uma forte influência no teatro de Oswald de Andrade e de Nélson Rodrigues e na pintura: Portinari (especialmente as cinco telas da série Emigrantes), Osvaldo Goeldi, Emiliano Di Cavalcanti, Lasar Segall.

Dadaísmo

Um decênio depois, durante a Primeira Guerra Mundial (1915-1918), surgiu na Suíça outro movimento de Vanguarda, ainda mais radical do que o Futurismo, chamado Dadaísmo, de “dá-dá”, as primeiras sílabas pronunciadas por uma criança, que não significam nada. É a ausência de sentido da vida que poetas e artistas querem expressar face aos horrores da guerra. É a rebelião da juventude contra os velhos detentores do poder, que usam os progressos da ciência para matar e destruir. Este sentimento de descrença nos valores humanos, junto com a vontade de anarquia, é expresso em forma de arte pela estética do acaso: a pintura automática, a poesia por colagem de recorte de jornais, a escultura pela mistura de materiais diversos.

Os dadaístas ridicularizavam os valores tradicionais e convidavam os visitantes de exposições a destruírem seus próprios quadros e outros objetos de arte, pois achavam que nada podia ter um valor eterno. Para demonstrar seu repúdio da concepção de vida burguesa, eles davam risadas durante os funerais e choravam nas cerimônias de casamento. O Dadaísmo representa a forma artística do niilismo filosófico, já presente no pessimismo de Schopenhauer.

Surrealismo e Cubismo

André Breton (1896-1966), filósofo, poeta, médico, soldado francês, saiu do movimento dadaísta quando percebeu que a postura niilista não levava a nada. Apaixonado pela psicanálise de Freud, achou que a crise existencial pudesse ser superada pelo encontro do meio termo entre o lado político ou real do ser humano e sua parte inconsciente, onírica. Chamou de “surrealismo” ao novo movimento por ele idealizado, que tinha como propósito anular as barreiras entre o sonho e a realidade. Para tanto, lançou mão do método do automatismo psíquico pelo qual o pensamento se liberta do controle exercido pela razão e por qualquer outro condicionamento de ordem religiosa, estética, ética ou social. Daí a exaltação do maravilhoso que se encontra no mundo do sonho e da fantasia ou nos estados psíquicos paranormais. A finalidade era fazer sair o surreal (a parte mais recôndita da alma) fora do seu esconderijo.

É bom salientar que a proposta surrealista da superação dos limites da razão e da consciência humana é uma característica geral da cultura moderna e contemporânea, podendo ser encontrada na ciência, na filosofia e na arte. Está na geometria não euclidiana, na física quântica, na teoria da relatividade de Einstein, no intuicionismo de Bergson, na descoberta freudiana das forças do inconsciente. Está também no teatro de Antonin Artaud, no cinema de Buñuel e de Rossellini, na poesia de Paul Éluard e Apollinaire, na crítica de Gaston Bachelard, na pintura de De Chirico, de Salvador Dali. Está especialmente nas telas de Pablo Picasso, o maior artista do século passado, o pai de outro movimento da vanguarda, o Cubismo.

Esta nova técnica pictórica reproduz plasticamente a idéia de que a realidade não deve ser vista a partir de um único ângulo. A estética cubista faz ver “simultaneamente” aquilo que a visão normal só apresenta sucessivamente. Enquanto a pintura tradicional está centrada no impressionismo, procurando apreender a realidade “tal qual a vemos”, na sua aparência, através da nossa percepção limitada dos objetos, o Cubismo tenta apresentar a realidade “tal como ela é” na sua essência, em suas múltiplas facetas. Passo, agora, a falar um pouco a respeito de mais algumas personalidades que deixaram marcas profundas na cultura do século passado: Einstein, Kafka, Fernando Pessoa.

Albert Einstein: a teoria da relatividade

“A ciência é a tentativa de fazer com que a diversidade caótica da nossa experiência sensível corresponda a um sistema lógico uniforme de pensamento”

A afirmação acima é de Albert Einstein (1879-1955), que levou até o campo das ciências a dúvida dos filósofos e a perplexidade dos artistas que inquietavam o espírito humano na primeira metade do século passado, negando qualquer forma de determinismo ou crença em verdades absolutas. Alemão, filho de judeus, educado num colégio católico, teve dificuldades na aprendizagem escolar e só de adulto revelou sua genialidade no domínio da matemática. Exerceu a humilde função de verificador de patentes no serviço público de Berna, até começar a publicar artigos revolucionários, que lhe fizerem merecer o Prêmio Nobel de Física, em 1921. Levou uma vida de viajante, estudando e ministrando palestras em várias cidades européias, até aceitar uma cátedra na Universidade de Princeton, naturalizando-se norte-americano, em 1940.

A expressão “tudo é relativo” tornou famoso Einstein, da mesma forma que outras frases imortalizaram outros autores: “Eppur si muove” (a terra gira), de Galileu; “o homem descende do macaco”, de Darwin; “Freud explica”, com referência ao complexo edipiano; “a religião é o ópio do povo”, de Marx. São as marcas da genialidade, as verdades essenciais, que os grandes homens deixaram para a posteridade.

Não tenho competência para explicar cientificamente a teoria da relatividade, nem a conhecida fórmula E= mc², sendo E a energia, m a massa e c a velocidade da luz, e muito menos os princípios da física quântica que Einstein aprendeu de seu patriota Marx Planck. Limito-me a relevar que Einstein realizou uma revolução na concepção da categoria do Tempo, semelhante a que os cientistas renascentistas Copérnico e Galileu fizeram com relação ao Espaço. O Tempo não é visto mais como um valor absoluto, independente do Espaço, pois o cientista alemão demonstra que as duas categorias andam juntas.

O grande achado de Einstein foi ter colocado o observador dentro da ciência natural para funcionar como perspectiva ou ponto de vista. O tempo, assim, é calculado a partir da posição de quem vê. Isso já vinha sendo feito na ficção literária. As narrativas de “fluxo de consciência” de Proust, Joyce, Virginia Woolf, Clarice Lispector, influenciadas pelo Intuicionismo do filósofo francês Henri Bergson e seu conceito de tempo como durée (duração), exploram o tempo interior ou psicológico. Este não segue a cronologia dos acontecimentos, mas as livres associações de idéias e sentimentos do narrador, misturando o presente com a recordação do passado e a imaginação do futuro.

Para Einstein, também no mundo da física o tempo deixa de ser uma grandeza independente e objetiva para se tornar subjetiva, relativa ao observador. A imagem de uma estrela que dista anos-luz da terra não é a mesma daquela que chega ao telescópio do cientista, pois o modo de sua recepção é alterado pelo percurso realizado. Quer dizer, o observador vê a estrela como era “há pouco” e não como é “agora”.

Vou dar um exemplo de fácil entendimento. Partindo do aeroporto de Auckland (Nova Zelândia), ao chegar a Buenos Aires (Argentina), via rota polar, olhando no meu relógio, pude perceber que chegara duas horas antes de ter saído de lá. E isso porque o vôo durou 12 horas, enquanto a diferença do fuso horário da Oceania é de 14 horas. Da mesma forma, uma pessoa que viaja muito de trem ou de avião tem a sensação de viver mais do que aquele que não sai de casa, pois a multiplicidade dos espaços visitados parece alterar a noção do tempo.

O princípio da relatividade está presente também no plano moral. Conforme sua etimologia, o morem (moral) latino, correspondente ao ethos (ética) grego, se refere a usos e costumes de povos ou grupos sociais, que variam no tempo e no espaço. O que é permitido agora e aqui pode ser proibido lá ou num outro tempo. Por exemplo, conforme a tradição de tribos de esquimós, que vivem a grande distância uma da outra, o dono da casa oferece ao visitante, além do teto e da comida, também a cama da esposa. E se ofende se o hospede não achar sua mulher atraente. Simplesmente, o esquimó oferece o que gostaria de receber, se estivesse na mesma situação do visitante. A hospitalidade é uma necessidade de sobrevivência, em lugares onde não há restaurantes, nem hotéis.

Mas a assertiva “tudo é relativo, inclusive a verdade” que se ouve por aí, pronunciada por aficionados entusiastas de Einstein, é verdadeira apenas em termos. Como toda a regra, ela tem exceções. Há realidades de ordem matemática, física, biológica, histórica ou até ética que não são relativas, mas absolutas, pois verificáveis e logicamente incontestáveis. Tomemos, por exemplo, o mandamento bíblico “não furtarás”. Como já tentei explicar anteriormente, ao falar de Moisés e de Kant, esta é uma exigência moral absoluta, válida em qualquer tempo e em qualquer lugar onde se vive em sociedade.

O respeito ao que é do outro é um “imperativo categórico”, na linguagem do filósofo Emanuel Kant, que constitui a base da vida em comunidade. Se não aceitarmos este princípio como verdadeiro e absoluto, teríamos de ir viver na selva e não numa aldeia e muito menos numa cidade civilizada. O homem voltaria a seu estado primitivo de animal selvagem, sendo regido pela lei do mais forte. De outro lado, um relativismo total, com valor absoluto, se negaria a si próprio, visto que a afirmação “tudo é relativo” é uma contradição em seus termos: se tudo é relativo, também a lei da relatividade deve ser considerada como relativa. Simples questão de lógica!

Einstein, além de ser um cientista genial, foi também um pensador brilhante, que participou dos problemas de sua época, assumindo posições sobre assuntos palpitantes, tais como o Estado de Israel, o repúdio ao nazismo, o regime soviético, a luta contra a proliferação de armas nucleares, a existência de Deus. A este respeito, recentemente veio a público uma carta inédita dirigida ao filósofo e amigo Eric Gutkind, datada de 1954, ano anterior a sua morte, em que Einstein considera qualquer prática religiosa como “infantil”, afirmando textualmente no seu manuscrito: “A palavra Deus é para mim nada mais do que expressão e produto da fraqueza humana”. Seu pensamento sobre religião aparece mais claramente numa entrevista concedida a jornalistas. Interrogado acerca de sua fé, ele responde:

“Eu não acredito em um Deus pessoal, e nunca neguei isso; ao contrário, o disse claramente. Assim, se há algo em mim que possa ser chamado de religioso é a ilimitada admiração pela estrutura do mundo na medida em que nossa ciência possa revelá-la... Eu não acredito na imortalidade do indivíduo, e considero que a ética é uma preocupação exclusivamente humana sem qualquer autoridade sobre- humana por trás dela” (in Christopher Hitchens, Deus não é grande, pág.249).

Tais declarações dão a impressão de contradizer algumas afirmações feitas anteriormente, quando, em plena atividade acadêmica, Einstein era obrigado a usar um discurso “politicamente correto”. Naquela época a confissão de ateísmo era algo de execrável. Ainda hoje, não causa estranhamento alguém se professar judeu, budista, evangélico, muçulmano, católico, espírita ou homossexual. Mas coitado do homem que afirmar publicamente ser ateu: é olhado como se fosse um leproso. Nossa sociedade admite apenas a liberdade da crença, não da descrença!

Franz Kafka: o absurdo existencial

A complexa personalidade de Franz Kafka (1883-1924) é fruto do cruzamento de quatro culturas: judaica, cristã, alemã e checa, pois ele nasceu de família judia, na cidade de Praga, de tradição católica e dominada pelo império germânico. Sua portentosa ficção literária acusa a influência dessas etnias, bem como de sua educação familiar e de suas atividades profissionais. Isto pode ser verificado através de uma breve análise das três narrativas mais importantes de Kafka, consideradas suas obras-prima: O Processo, O Castelo e A Metamorfose.

O protagonista do romance O Processo, Joseph K., uma manhã é acordado no seu quarto de pensão por dois indivíduos que lhe comunicam sua prisão, sem dar-lhe explicação alguma. Apenas dizem que ele pode responder ao inquérito em liberdade, continuando sua vida normal de alto funcionário de um banco. Ele tem somente a obrigação de submeter-se aos interrogatórios no tribunal de justiça, quando intimado. Avisado pelo telefone, Joseph se apresenta ao juiz de instrução, que o confunde com um pintor de paredes. Enquanto K. pronuncia um longo discurso tentando demonstrar o absurdo de sua detenção, o juiz fica olhando revistas pornográficas e um estudante de direito faz sexo com a lavadeira que, com o consentimento do marido, se entrega ao pessoal do tribunal para não perder o emprego.

Não conseguindo saber do que ele é acusado, K. contrata um advogado que lhe faz longos discursos sobre a máquina burocrática do tribunal, mas, quanto ao seu processo, pede tempo para apresentar a petição inicial, pois está aguardando o momento oportuno. Além disso, ele vive acamado. O único consolo de K. é transar com a jovem e bela empregada do advogado, que costuma satisfazer sexualmente os clientes do patrão, condoída pelo pressentimento de serem condenados. Ele vai ter alguma notícia sobre o processo apenas pelo capelão da prisão, durante uma visita à Catedral, que o informa sobre o processo, dizendo-lhe que o tribunal inferior considerara sua culpa provada. Às reclamações de K. contra a justiça, o abade responde narrando-lhe o apólogo do homem que passa longos anos de sua vida perante a porta da lei, impedido por uma sentinela de entrar, morrendo sem ter acesso a ela. Depois de um ano de idas e vindas do tribunal sem conseguir descobrir qual é o delito cometido, dois oficiais de justiça chegam, de noite, à pensão e levam Joseph até uma pedreira. Lá, tiram suas roupas, dobram sua cabeça numa pedra, sacam um facão de açougueiro e cortam seu pescoço, como se fosse um frango. No alto de um prédio, uma mulher olha o assassinato e fecha a janela.

Este é um pequeno resumo do enredo do romance de Kafka, objeto de inúmeros estudos de críticos de todos os países civilizados. O Processo, como as outras obras do ficcionista checo, só pode ser analisado ao nível simbólico, pelo princípio da analogia. As personagens ficcionais representam idéias, sentimentos ou comportamentos da vida real. Eis algumas leituras possíveis:

a) Interpretação psicanalítica. O estudo da biografia de Kafka nos informa que seu pai era uma pessoa austera e intransigente. A imagem do seu progenitor incomunicável e insensível à necessidade de afeto teria criado no pequeno Joseph um complexo de inferioridade, personificado no juiz inatingível que aparece no romance, símbolo do autoritarismo paterno.

b) Interpretação religiosa. Pela educação judaica recebida, Kafka é levado a acreditar no relato bíblico do pecado original, pelo qual os homens são acusados de uma culpa que não cometeram. A salvação estaria na graça divina, mas Deus, simbolizado pelo Juiz da Suprema Corte de Justiça, é um ser misterioso e inatingível. E seus intermediários, representados por padres, juízes, advogados e funcionários do tribunal, são seres ineptos e corruptos. A revolta de K. no tribunal simbolizaria a revolta do homem contra Deus, que o acusa de um pecado que não cometeu e lhe nega a possibilidade de defesa pela sua incomunicabilidade.

c) Interpretação racista. Alguns estudiosos vêm neste romance, como em outras obras kafkianas, a antecipação do holocausto dos judeus que irá acontecer uma década após a morte do escritor. É a reativação do mito bíblico do “hebreu errante” que, sem pátria, se sente estrangeiro na terra onde vive. O regime nazista, como a corte da Justiça no romance, acusará os judeus de uma culpa inexistente e sem direito de defesa. Basta ser circuncidado para ser considerado um criminoso!

d) Interpretação sociológica. O Processo pode ser visto como a representação artística da impotência do indivíduo face às instituições políticas e religiosas irracionais e corruptas, contra as quais é inútil lutar. A organização social destrói a individualidade: todos sabem que ele é acusado, embora ninguém saiba do quê; todos estão dispostos a ajudá-lo, embora ninguém possa fazer nada por ele. Quem acusa, quem julga e quem condena K. não é um ser determinado, mas o sistema como um todo.

e) Interpretação existencial. A culpa do protagonista do romance poderia ser vista no isolamento humano. O personagem de ficção Joseph K., como a pessoa do mundo da realidade Franz Kafka, não consegue se integrar no consórcio social onde reina a hipocrisia. Ele fica à margem dos valores ideológicos: não tem um lar, vivendo sozinho numa pensão, não tem esposa, mas apenas amantes, não curte amizades nem tem envolvimento afetivo com colegas ou clientes do banco onde trabalha. E paga por isso, como toda pessoa que não consegue se integrar no convívio social. Configura-se, assim, o absurdo existencial: os homens se reúnem em sociedades, criam instituições civis, militares e religiosas para sua proteção material e espiritual, e são essas mesmas instituições que esmagam os homens que as criaram.

No romance O Castelo, encontramos alguns pontos temáticos já explorados em O Processo. O protagonista é nomeado apena com a letra K. Ele é descrito como um agrimensor que, numa noite, chega num vilarejo governado por um senhor que vive num castelo sobre a colina. Para poder trabalhar, ele necessita chegar até o dono das terras que mora lá no alto, mas é impedido pela hostilidade dos moradores do burgo e dos burocratas do castelo. Para conseguir seu intento, ele seduz a jovem Frieda, amante do poderoso funcionário Klamm. Assim ele penetra nos meandros da burocracia castelana. Mas, abandonado pela moça, sozinho e sem forças para chegar ao dono do castelo, acaba perdendo até a noção da própria identidade.

Nesta obra de Kafka predomina o tema da xenofobia, simbolizando o judeu errante, sem pátria, que luta em vão para ser bem aceito pelo povo que o hospeda. Mas, de um modo geral, pode representar o esforço de qualquer indivíduo que queira se integrar numa comunidade, o homem que luta para obter um lar e um trabalho, sendo hostilizado pela incomunicabilidade humana, pelo egoísmo grupal que fecha as portas para quem vem de fora. Essa lógica parece absurda, olhando de fora, mas por dentro é de uma coerência que nos assusta. Ainda hoje assistimos ao triste espetáculo de emigrantes de regiões pobres que são enxotados ao chegarem em cidades prósperas, cujos habitantes não estão dispostos a dividir nada com gente que tem outra cultura.

A Metamorfose é a obra mais conhecida de Kafka. O titulo, etimologicamente, significa “além da forma”, transformação. O tema da mudança de forma é bem antigo. Famosa é a obra As Metamorfoses, do escritor latino Apuleio (séc. II d.C.), conhecida vulgarmente pelo nome O Asno de Ouro, que narra a história do jovem Lúcio transformado em burro pelas artes mágicas de uma feiticeira. No conto do escritor checo, o protagonista Gregor Samsa, ao acordar certa manhã, percebe que seu corpo está transformado num inseto medonho, parecido com uma enorme barata, não sabendo entender o que aconteceu. Trata-se de um fato completamente extraordinário, pois não há uma explicação de ordem científica, religiosa ou mágica. A mudança de forma é um fantástico absoluto, fruto de um puro acaso.

Gregor, apesar de seu aspecto animalesco, não perdeu as características humanas do sentir e do pensar e, por isso, pode refletir sobre sua nova situação. Ele tenta sair da cama para não perder o horário do trem que o levaria à firma onde trabalha como caixeiro-viajante. Mas não consegue e fica preocupado, pois ele é o único sustento dos pais e da irmã, uma mocinha que estuda piano. O atraso provoca a chegada do inspetor da firma na sua casa e a revelação da sua nova forma de inseto monstruoso. Seu aspecto provoca nojo e repulsa no empregador e nos familiares. Apenas a irmã fica com dó e lhe leva comida no quarto. Não podendo mais contar com ele, seus familiares são obrigados a providenciar o próprio sustento: o pai arruma um emprego de guarda num banco, a irmã vai trabalhar como garçonete e a mãe intensifica seus bordados. Gregor, sentindo-se rejeitado e inútil, decide não mais se alimentar, entregando-se à morte.

A Metamorfose, como outras ficções de grande valor artístico e humano, é uma obra aberta, possibilitando interpretações variadas ao longo do tempo. O protagonista Gregor Samsa pode simbolizar o indivíduo esmagado pela sociedade, sofrendo uma tríplice degradação: física, pela deformação do seu corpo; funcional, pela perda do emprego; afetiva, pelo abandono da família. Quando ganha dinheiro, é estimado; quando se torna inútil, é varrido como lixo. Mas é preciso observar que seu processo de degradação provoca, por ironia do destino, um processo de melhoramento da família que ele tanto amara. Pai, mãe e irmã encontram no trabalho sua realização existencial, passando a viver melhor do que quando eram sustentados por Gregor. Dá-se uma inversão de perspectiva, pela qual quem tenta ajudar acaba, sem querer, prejudicando as pessoas que ama. É uma das sutilezas do mundo “kafkiano”, o adjetivo que passou a indicar o que é ilógico, estranho, apavorante, burocraticamente tortuoso.

Fernando Pessoa: a personalidade despedaçada (os “heterônimos”)

A produção literária em versos do maior poeta de língua portuguesa traz quatro principais assinaturas, as de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, além de outras de autores menores. Quer dizer, são quatro grandes poetas num só ou um poeta que se divide em quatro personalidades distintas. É o fenômeno da “heteronímia”, que tanto caracteriza a poesia de Fernando Pessoa. Heterônimo significa, etimologicamente, “outro nome”, diferente de pseudônimo que é um falso nome. Os heterônimos foram concebidos como seres diferentes de seu autor, pois Fernando Pessoa não apenas assinou poemas com nomes fictícios, mas criou, junto com cada nome, uma personalidade humana e poética com biografia e visão do mundo específica. Essencialmente, a heteronímia é um desdobramento de personalidade: da aparente unidade intelectual e psíquica de Fernando Pessoa emanam e se substancializam diferentes modos de sentir o mundo e a poesia. Ele procura entender e botar para fora as diversas tendências humanas, filosóficas e artísticas que estavam confusas no seu espírito:

“Multipliquei-me para me sentir,

Para me sentir, precisei sentir tudo,

Transbordei, não fiz senão extravasar-me,

Despi-me, entreguei-me,

E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente...

Quebro a alma em pedaços

E em pessoas diversas”.

Estas “pessoas diversas” são os heterônimos, dos quais apresento um rápido esboço:

Fernando Pessoa “ortônimo” (com o nome verdadeiro): o poeta do saudosismo português.

Fernando Pessoa (1888-1935), “ele próprio”, nasceu em Lisboa, mas com apenas sete anos de idade foi morar na África do Sul, pois sua mãe contraiu segundas núpcias com o cônsul português em Durban. Lá, ele completa os estudos do ginásio e do colégio, familiarizando-se com os principais autores da literatura anglo-americana: Shakespeare, Milton, Byron, Keats, Edgar Allan Poe. Com 17 anos, em 1905, ele volta para Portugal e nunca mais sai do país natal, inteirando-se com a tradição poética portuguesa e participando da renovação modernista. Ele se sustenta fazendo traduções, especialmente do inglês para o português. Sua primeira produção literária, anterior à criação dos heterônimos, é uma coletânea de poemas líricos e saudosistas, publicada com o título Mensagem, onde Fernando Pessoa enaltece os fundadores da nacionalidade portuguesa, as viagens marítimas e o mito do Sebastianismo. Transcrevo e analiso brevemente um poema famoso que ilustra a estética e a temática desta primeira fase do escritor português:

Ulisses

O mito é o nada que é tudo.

O mesmo sol que abre os céus

É um mito brilhante e mudo –

O corpo morto de Deus,

Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,

Foi por não ser existindo.

Sem existir nos bastou.

Por não ter vindo foi vindo

E nos creou.

Assim a lenda se escorre

A entrar na realidade.

E a fecundá-la decorre.

Em baixo, a vida, metade

De nada, morre.

O título do poema remete ao mito de Ulisses, o herói grego que participou da Guerra de Tróia e, depois de dez anos de lutas e mais dez anos de sofrimento no mar, conseguiu retornar para sua terra natal, a ilha de Ítaca, onde o esperava a fiel esposa Penélope. Durante esta longa viagem, ele teria chegado até a ponta extrema da península ibérica, onde estavam as lendárias Colunas de Hércules, e lá teria fundado a cidade de Lisboa, nome que é uma evolução fonética de Ulissipona (“a cidade de Ulisses”). É este nome latino que aparece como título do livro Mensagem.

No primeiro verso, Fernando Pessoa nos dá sua definição do mito, de um modo geral: o mito é “o nada que é tudo”. Para entendermos o paradoxo poético: o mito é o “nada”, uma mentira, do ponto de vista da realidade histórica, porque é fruto da imaginação popular que inventa fatos fantásticos acerca de seres sobrenaturais; mas o mito é “tudo” do ponto de vista espiritual, porque o povo não consegue viver sem crenças que lhe expliquem a causa dos fenômenos e lhe determinem as regras de conduta. Assim, através de outro oxímoro, o poeta define o Sol, símbolo do renascimento diário, como o corpo “morto” de Deus, pois coisificado num astro, mas, ao mesmo tempo, “vivo” porque é sua luz que dá calor e possibilita a existência da vida no universo.

Na segunda estrofe, Fernando Pessoa faz referência ao mito específico de Ulisses (“Este”, um anafórico do título do poema), que chega à costa atlântica (“aqui”) e dá origem ao povo lisboeta (“nos criou”). E continua o mesmo jogo de oposições entre existir e vir (no plano mítico) e não existir e não vir (no plano histórico). Enfim, é a crença numa origem sobrenatural que estimula o povo português a imitar as façanhas de seu fundador Ulisses, aventurando-se no mar e conquistando novas terras.

A última estrofe tem como momento ideológico a proliferação do mito: este fecunda a realidade e se espalha entre os povos. A oposição da parte espiritual, alimentada pelo mito, e de sua parte material, expressa pelo advérbio de lugar “em baixo”, na terra, é apresentada por um dúplice oxímoro de contrários: vida, em oposição à morte, e metade, em oposição ao nada. O poeta, tendo definido o mito como um nada-tudo, a vida “metade de nada”, passa a ser também “metade de mito”. Quer dizer, a vida humana é regida, de um lado, pela força do mito, e, de outro lado, pela força da realidade. O que “morre” no ser humano é a sua parte material, que é perecível, ao passo que o elemento mítico, por ser espiritual, perpetua-se no seio da humanidade, sendo fator de seu progresso civilizacional.

Aberto Caeiro: o poeta da natureza

A este heterônimo Fernando Pessoa atribui a autoria de três coletâneas de poemas: “O Guardador de Rebanhos”, “O Pastor amoroso” e “Poemas inconjuntos”. Transcrevo um trecho do poema 5º do Guardador de Rebanhos:

Não acredito em Deus porque nunca o vi.

Se ele quisesse que eu acreditasse nele,

Sem dúvida que viria falar comigo

E entraria pela minha porta dentro

Dizendo-me, “Aqui estou”! ...

Mas se Deus é as flores e as árvores

E os montes e sol e o luar,

Então, acredito nele,

Então acredito nele a toda a hora,

E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores

E os montes e o luar e o sol,

Para que lhe chamo eu Deus?

Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;

Porque, se ele se fez, para eu o ver,

Sol e luar e flores e árvores e montes,

Se ele me aparece como sendo árvores e montes

E luar e sol e flores,

É que ele quer que eu o conheça

Como árvores e montes e flores e luar e sol.

Os versos acima dispensam qualquer tratado de metafísica ou de teologia. Afinal, se Deus existisse realmente e quisesse se comunicar com os homens por que não o faria? Acreditar que ele se revelou a Moisés, a Maomé ou a qualquer outro profeta é ter uma concepção mesquinha de Deus, que privilegiaria um homem ou um povo em detrimento de outros. O que, por um simples raciocínio lógico, é a negação de sua própria existência, visto que é inconcebível a idéia de um deus injusto ou faccioso. A concepção religiosa deste heterônimo, mais do que ateísta, é panteísta: a idéia que ele tem de deus não é transcendente, mas imanente à natureza. Se ele existe, se ele é o próprio projeto inteligente, ele rege o mundo como matéria e não como espírito e, por isso, não está nem um pouco preocupado com a individualidade de cada um de nós!

Alberto Caeiro é imaginado por Fernando Pessoa como um jovem loiro, de olhos azuis e inocentes, que nasceu em Lisboa em 1889, mas viveu toda sua vida na roça, na companhia de uma velha tia. Morreu tuberculoso, em 1915. Sua formação escolar não passou do curso primário e sua poesia pretende ser como sua vida: simples e instintiva, inspirada pelo contato direto com a natureza, cuja presença ele sente pelo olhar, cheiro e tato. Ele é considerado o “mestre” dos outros heterônimos por ter criado uma nova escola estética, o versolivrismo, livrando a poesia das normas tradicionais e dos esquemas de estrofes, de rimas, de ritmos, de figuras de estilo.

Ele representa a faceta de Fernando Pessoa como poeta da realidade objetiva, que descreve o que vê e sente, sem qualquer elucubração mental, inimigo de todas as filosofias, superando todos “os ismos” de sua época: saudosismo ou futurismo, simbolismo ou decadentismo. Se quisermos atribuir um “ismo” à poética de Alberto Caeiro, o que mais lhe convém é o “Sensacionismo”: a poesia deve descrever, numa linguagem clara, os seres e os objetos assim como são apreendidos pelos sentidos. Pela visão deste heterônimo, Fernando Pessoa parece aceitar os princípios da Fenomenologia, proposta pelo filósofo seu contemporâneo Edmund Husserl, que afirmava a verdade dos seres e dos objetos estar em si mesmos, sendo captada pela experiência que deles temos. Por tal estética, o objeto artístico deve ser visto como algo que está à nossa frente, como um “fenômeno”, algo que aparece a nós, e que pode ser analisado em seus elementos constitutivos, independentemente de sua origem.

Ricardo Reis: a herança clássico-pagã.

Pela pseudobiografia, este heterônimo nasceu na cidade do Porto, em 1887, um ano antes de seu criador, Fernando Pessoa, que o define como “latinista por educação alheia” e “semi-helenista por educação própria”. Ele teria estudado num colégio de jesuítas e se formado em medicina. Por cultivar ideais monárquicos, Ricardo não concordou com o regime político dominante em Portugal e, em 1919, emigrou para o Brasil, onde morreu, em 1935, no mesmo ano de Fernando Pessoa.

Embora se considere discípulo de Alberto Caeiro pelo amor à natureza e pela liberdade de espírito, o heterônimo Ricardo Reis não aceita o versolivrismo, achando que a superioridade da poesia sobre a prosa está em submeter a emoção a uma forma rigorosa, seguindo os cânones estéticos dos autores clássicos. Também quanto ao conteúdo, a poesia deve entender e expressar a realidade objetiva assim como é vista e sentida pela generalidade dos homens, e não através de um prisma individual que a deforma. Deste modo, Ricardo Reis retoma os ideais greco-romanos de vida e de arte: a harmonia de formas, o equilíbrio do sentimento, as normas da conveniência e da decência, o desejo da inteligibilidade do homem e do mundo, a busca da felicidade nesta terra. Talvez a leitura de um poema nos ajude a entender a faceta da personalidade de Fernando Pessoa, apresentada pelo heterônimo Ricardo Reis:

Como se cada beijo

Fora de despedida,

Minha Cloe, beijemo-nos, amando,

Talvez que já nos toque

No ombro a mão, que chama

A barca que não vem senão vazia;

E que no mesmo feixe

Ata o que mútuo fomos

E a alheia soma universal da vida

Neste poema, como em outras Odes deste heterônimo, encontramos explorados temas fundamentais da alma humana, presentes especialmente na filosofia do grego Epicuro e na poesia do romano Horácio: a fugacidade do tempo, a imprevisibilidade e a imparcialidade da morte, a inelutabilidade do destino, a efemeridade da juventude e, portanto, o convite a viver o momento presente, o carpe diem. O conteúdo ideológico é expresso por imagens belíssimas: a necessidade de viver intensamente qualquer momento de amor, como se fosse o último, face à inevitabilidade da morte, apresentada como uma mão que bate no ombro, chamando-nos para o barco que faz a travessia para o mundo do desconhecido. Lá, no vale comum, é anulada qualquer individualidade.

Álvaro de Campos: o poeta da era das máquinas.

O heterônimo Alberto Caeiro foi imaginado por Fernando Pessoa como um mestre de civilização e a ele foram atribuídos dois discípulos em antítese entre si: o poeta clássico Ricardo Reis, que recorda e exalta a cultura greco-romana, olhando para o passado; e Álvaro de Campos, o poeta do mundo moderno, que olha para frente. Este heterônimo teria nascido em Tavira, em 1890, filho de judeus portugueses. Teria estudado na Universidade de Glasgow, na Escócia, e se formado em engenharia naval. Ele acusa as influências literárias de Walt Whitman, escritor norte-americano considerado escandaloso em sua época, quer pela forma de sua poesia (verso livre e vocabulário de baixo calão), quer pelo conteúdo (exaltação da sensualidade impudica), e de Marinetti, o poeta italiano fundador do Futurismo. Mais do que explicar, prefiro sentir sua poesia pela leitura de alguns trechos da sua Ode Triunfal, onde o poeta lusitano retrata a corrupção dos políticos e manifesta sua simpatia pela massa popular, a “maravilhosa gente humana que vive como os cães”, sempre mantida longe da civilização:

À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica

Tenho febre e escrevo.

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,

Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos...

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,

Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,

Agressões políticas nas ruas,

E de vez em quando o cometa de um regicídio

Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus

Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!...

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,

Que emprega palavrões como palavras usuais,

Cujos filhos roubam às portas de mercearias

E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! –

Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.

A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa

Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão,

Maravilhosa gente humana que vive como os cães,

Que está abaixo de todos os sistemas morais,

Para quem nenhuma religião foi feita,

Nenhuma arte criada,

Nenhuma política destinada para eles!

Como eu vos amo a todos, porque sois assim,

Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,

Inatingíveis por todos os progressos,

Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

Concluindo este leve ensaio sobre a poética de Fernando Pessoa, entendo que o tradutor, o pastor, o médico e o engenheiro, apesar de suas características antitéticas, devem ser considerados como configurações diferentes de um mesmo ser, preocupado em expressar artisticamente os problemas vitais que o afligem: a luta entre o livre- arbítrio e a obediência às normas estéticas e sociais; a constatação do que tudo é ilusão, não existindo valores absolutos; a hipocrisia humana; o pensamento como destruidor da beleza original das coisas; a impraticabilidade da vivência de qualquer ideal, clássico ou moderno. A meu ver, Fernando Pessoa na poesia, como Machado de Assis na prosa, é um grande cético na vida e na arte. Construiu vários modos de ver e de poetar para que se negassem reciprocamente. Mas a grandeza da literatura não está em resolver problemas, mas em questionar o mundo, expressando em forma de arte seus absurdos.

Quero ainda salientar que a descoberta de uma pluralidade dentro da pseudo- unidade da personalidade humana ocorre, a partir do início do séc. XX, não apenas na arte poética, mas também na prosa literária (o romance Ulisses, de James Joyce), no teatro de Pirandello (Seis personagens em busca de um autor), na pintura cubista de Picasso. E tal postura estética é influenciada pela filosofia existencialista de Kierkegaard, pelo intuicionismo de Bergson, pela teoria da relatividade de Einstein. Enfim, estava no ar a nova visão do homem, não mais como ser monolítico, mas plurifacetado. Com efeito, os nomes regidos pelo prefixo grego monos (monarquia, monogamia etc.), correspondente ao latino solus (solitário, único) entraram em declínio, iniciando a época da biodiversidade.

Choque de civilizações: totalitarismo secular e fundamentalismo religioso.

A sociedade humana passou por diversos ciclos de cultura, que a levaram a profundas transformações: nômade, agrícola, guerreira, comercial, industrial. Atualmente vivemos na era da globalização, sob a égide de uma tecnologia de ponta que, por um sistema rápido de informação, aproxima civilizações muito diferentes, mostrando o requinte do luxo ao lado da extrema miséria. O polêmico historiador norte-americano David Landes, no seu livro A Riqueza e a Pobreza das Nações (1998), retoma, de uma forma mais ampla e fora do conflito religioso, a tese já clássica de Marx Weber (1864-1920), exposta na famosa obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.

Para os dois estudiosos, a disparidade de crescimento entre os diversos países dos cinco continentes tem como causa fundamental a falta de cultura e de espírito de trabalho. A análise histórica da decadência de civilizações outrora florescentes (Egito antigo e Islamismo medieval, por exemplo) apresenta como elementos determinantes a política absolutista, o baixo nível do ensino público, a projeção da felicidade humana no além-túmulo, a falta de liberdade e de democracia, o espírito quietista e contemplativo. Os países que evoluíram foram os que conseguiram superar as tradições fundamentadas na crença em deuses e soberanos, investindo maciçamente na educação laica e no avanço científico.

O espírito de liberdade e de democracia levou à formação de nações economicamente sólidas: USA, Japão, Alemanha e outros países europeus. A história nos ensina que só uma forte cultura laica e democrática pode levar a um desenvolvimento social e artístico duradouro por atingir a grande massa de um povo. E nenhuma nação pode propiciar felicidade a seus cidadãos, se estiver circundada por povos economicamente subjugados, pois seu poderio absoluto vai semear ódio e vingança, provocando guerras e terrorismo. O lado positivo da globalização (aumento da riqueza mundial e avanço tecnológico) é prejudicado por aspectos negativos: doenças que surgem em regiões subdesenvolvidas logo se espalham, tornando-se pandemias; um maior fluxo de emigrantes que, abandonando regiões miseráveis, invadem países mais progressistas, causando desemprego e conflitos étnicos. Sem falar das crises econômicas mundiais que sempre atingem mais fortemente povos e classes sociais mais pobres, pois os poderosos costumam somar lucros e dividir prejuízos.

É preciso entender que ninguém pode ser feliz no meio da miséria. O pesquisador americano Samuel Huntington, pelo influente livro O Choque das Civilizações, publicado em meado dos anos 90, é considerado o profeta da era atual. Parece que ele previu o desastre de 11 de setembro de 2001, quando o terrorismo islâmico derrubou as Torres Gêmeas de Nova York, ao escrever que haveria um choque iminente entre o Ocidente avançado e o mundo muçulmano que parou no tempo. Ele considera a civilização ocidental como a mais progressista, pois fundamentada em princípios sólidos, herdados das instituições constitucionais que se sucederam à Revolução Francesa (1789): democracia liberal, mercado livre e forma de governo laico.

Através do processo de Globalização, a civilização norte-americana tenta impor sua cultura (e seu mercado!) aos outros povos. O exemplo bem sucedido foi o milagre da Comunidade Européia. Mas, no mundo africano e asiático, a missão é mais difícil pelo apego a tradições religiosas milenares. A história nos ensina que todo regime teocrático é “involutivo”, pois qualquer tipo de “fundamentalismo”, sendo dogmático, é fixo e retrógrado, impedindo o avanço científico e o melhoramento humano. A religião islâmica está causando o mesmo estrago no Oriente Médio (talvez pior, por ser mais violento) do que a religião católica na Idade Média européia. Tanto atraso acaba ofendendo a inteligência humana. Não é preciso demonstrar que o fanatismo religioso, de qualquer credo, é a perene causa da guerra, da injustiça, da miséria, da ignorância, da escravidão moral e econômica de um povo. Deus está muito bem lá no Céu, mas quando desce na Terra e assume o poder público pelas mãos (ou lábias!) de bispos, pastores, talibãs ou aiatolás, é uma desgraça cívica, na certa!

As duas Guerras Mundiais e outros horrores

A modernidade da primeira metade do século passado, se foi benigna pelo progresso das ciências, de outro lado, deixou um lastro de violência nunca visto. Entre 1914 e 1945 aconteceram duas Guerras Mundiais, que causaram a morte de milhões de europeus, além de genocídios e limpezas étnicas. Na Europa, havia várias potências disputando o cenário político: Alemanha, França, Reino Unido, União Soviética, além de nações emergentes no continente americano (USA) e na Oceania (Japão). Havia, então, uma “multipolaridade” de interesses políticos, militares, econômicos, culturais.

Mas, com o fim da 2ª Guerra Mundial, a segunda metade do século começou a tomar o aspecto da bipolaridade: os dois maiores países vitoriosos, USA e URSS, começaram um guerra fria, cada qual querendo impor seu domínio. Capitalismo e Comunismo entraram num confronto que só terminou com a queda do muro de Berlim, em 1989. Os Estados Unidos da América do Norte, então, assumiram a hegemonia mundial, dando-se o fenômeno da unipolaridade: eles impuseram sua moeda, sua economia, sua língua e cultura aos outros povos. Acontece, porém, que nenhuma forma de imperialismo, seja ele capitalista ou comunista, multipolar, bipolar ou unipolar, salvou a humanidade de tragédias vergonhosas que são um insulto à nossa inteligência e sensibilidade. Lembro apenas alguns acontecimentos monstruosos que revelam a existência de uma crueldade niilista no coração da cultura moderna:

I - Holocausto nazista

Em grego, a palavra holocausto significa “todo queimado”, com referência aos animais oferecidos às divindades, ritual praticado também por tribos judaicas, conforme registrado no Velho Testamento. Depois da 2ª Guerra Mundial, o termo Holocausto passou a indicar o extermínio de milhões de judeus por Adolf Hitler. Mas o regime nazista massacrou também outros indesejados como comunistas, sindicalistas, eslavos, Testemunhas de Jeová, deficientes físicos ou mentais, homossexuais. Estes grupos pereceram lado a lado nos campos de concentração e de extermínio. Para serem mais facilmente identificados, os presos eram obrigados a afixar no peito triângulos coloridos. Por exemplo: os judeus usavam dois triângulos sobrepostos, de cor amarela, formando a Estrela de Davi; já os homossexuais eram obrigado a pôr no peito um triângulo cor de rosa. O número certo de mortos, desde 1933, quando começou o regime nazista na Alemanha, até seu fim, em 1945, é desconhecido, mas, segundo alguns estudiosos, estima-se que a quantidade de pessoas desaparecidas ou assassinadas durante o conflito chegue a seis milhões de pessoas.

Além das matanças maciças, consideradas uma forma de higienização por incineração, os nazistas utilizavam os presos políticos para experiências médicas em prisioneiros, incluindo crianças. Famoso se tornou o medico nazista Josef Mengele, que passou à história com o nome de “Anjo da Morte” pelos experimentos cruéis e bizarros feitos nos prisioneiros de Auschwitz. Quanto à origem do anti-semitismo, os estudiosos acham que, além do motivo imediato de apossar-se da riqueza dos judeus, os nazistas cristãos se fundamentavam em algumas afirmações do apóstolo Paulo de Tarso:

pelos seus pecados os judeus têm de ser punidos...

os judeus desagradam a Deus e são inimigos de todos os homens.

Afinal, não foram os judeus os assassinos de Cristo? É sintomático o fato de a Igreja Católica, na época de Hitler, nunca ter condenado publicamente o Holocausto do povo hebreu. Infelizmente, Pio XII, ao assumir o papado em 1939, enviou uma carta ao Füher Adolf Hitler assegurando seu apoio à liderança nazista. Evidentemente, o Santo Padre não podia prever aonde iria levar a sanha sanguinária do ditador alemão. Isso é uma prova de que o Papa não é “infalível”, como reza o dogma católico!

2) Hiroshima e Nagasaki

São as duas cidades japonesas destruídas pela bomba atômica. Trata-se de outra forma de Holocausto, o nuclear, não menos violento daquele perpetrado contra os judeus. Em 6 de agosto de 1945, após a rendição da Alemanha nazista, a Força Aérea dos EUA, para vingar-se da derrota naval em Pearl Harbour e acabar com a Guerra que ainda continuava no Pacífico, lançou uma bomba atômica sobre a cidade de Hiroshima. Instantaneamente, os prédios desapareceram junto com a vegetação, os corpos de seres humanos e de animais se desintegraram e a cidade toda pegou fogo. Os efeitos da radiação ultravioleta se sentiram a kilômetros de distância e quem sobreviveu sofreu males terríveis. Não bastasse o horror de tamanha crueldade, três dias depois, os norte-americanos bombardearam outra cidade japonesa, Nagasaki, com mais um ataque nuclear. Nosso poeta Vinicius de Morais descreve tamanha covardia em versos emocionantes:

A ROSA DE HIROXIMA

Pensem nas crianças // Mudas telepáticas // Pensem nas meninas

Cegas inexatas // Pensem nas mulheres // Rotas alteradas

Pensem nas feridas // Como rosas cálidas

Mas oh não se esqueçam // Da rosa da rosa // Da rosa deHiroxima

A rosa hereditária // A rosa radioativa // Estúpida e inválida

A rosa com cirrose // A anti-rosa atômica

Sem cor sem perfume // Sem rosa sem nada.

3- Arquipélago Gulag

O nome “Gulag” é um acrônimo, correspondente à sigla russa de “Diretório Geral dos Campos de Trabalho Corretivo”; e “arquipélago", metaforicamente, significa uma vasta “corrente de ilhas”, os campos de concentração desconhecidos pelo público. O Arquipélago Gulag é o título de um romance de Alexandre Soljenitsin (1918-2008), pelo qual ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 1970. Como oficial soviético, o autor lutou contra a invasão nazista. Mas, por ter-se manifestado contra os métodos liberticidas do ditador Josef Stalin, foi condenado aos trabalhos forçados, reservados a quem cometesse crimes de opinião (tinha publicada uma piada contra Stalin!). Com a morte do ditador, em 1953, ele é libertado e publica Um dia na vida de Ivan Dennisovich (1962), onde relata a triste vida cotidiana de um prisioneiro do Gulag. Esta obra é comparada a Recordações da casa dos mortos, de Dostoievski e lhe dá fama literária. Mas, com a volta da linha dura na época de Brejnev que sucedera a Kruchev, foi retomada a repressão na URSS e Soljenitsin foi expulso do país. Retornou à Rússia em 1978, acolhido como herói nacional.

Sua obra-prima, de 1.800 páginas, é uma narrativa sobre fatos que foram presenciados pelo autor, quando esteve preso num campo do Gulag. Nela, denuncia a insanidade do regime autoritário e ataca a cumplicidade de russos com os horrores do regime stalinista. Mas, em fim de vida, se torna crítico do regime russo do pós-comunismo, condenando a corrupção estatal. Não poupa também a crítica aos EUA e a OTAN por terem asfixiada a soberania da Rússia, pondo ressalvas à economia de mercado. Enfim, Soljenitsin colocou-se contra qualquer postura ditatorial ou imperialista, constituindo mais um momento de alerta da consciência humana na história da cultura ocidental.

1968: Maio despedaçado e filosofia hippie

Os horrores descritos acima, perpetrados a mando de líderes que governavam as grandes potências da Europa e da América, provocaram a crise dos ideais de justiça e de amor entre os povos. A juventude, idealista por natureza, se rebelou contra as autoridades constituídas. O ano de 1968 se tornou famoso por revoltas no mundo todo. O estopim da insurreição foi a morte de Martin Luther King, ativista contra a segregação racial nos EUA, Prêmio Nobel da Paz em 1964, assassinado no dia 4 de abril por um branco racista. Os estudantes dos campi universitários norte-americanos aproveitaram a rebelião dos negros para fazer violentos protestos contra a Guerra do Vietnã, que já durava havia quase um decênio. Mas o epicentro da revolta dos jovens estudantes foi a cidade de Paris. A agitação começou nas universidades e logo se espalhou pela cidade toda. No dia 10 de maio, fizeram barricadas e incendiaram viaturas policiais, no Quartier Latin. No dia 13, foi organizada uma greve geral. Charles de Gaulle, então Presidente, conseguiu contornar a situação, mas a insurreição do maio parisiense deixou marcas indeléveis, estendendo-se a vários países, tendo repercussões inclusive no Brasil.

O ano de 1968 teve outros acontecimentos tristemente memoráveis: no dia 5 de junho, logo após sua vitória nas eleições primárias da Califórnia, foi morto Bob Kennedy, irmão de John F. Kennedy, assassinado cinco anos antes; em julho, a mídia divulga para o mundo as imagens da extrema miséria em que vive o povo de Biafra, em luta separatista contra a Nigéria; em agosto, acontece a repressão à Primavera de Praga, o massacre do povo checo, que ansiava por um socialismo mais humano, esmagado pelos tanques comunistas do Pacto de Varsóvia; em outubro, na Praça das três Culturas da Cidade do México, as forças da ordem massacram mais de 200 estudantes que protestavam pelas liberdades democráticas.

Alguns estudiosos vêem Maio de 68 apenas como uma revolta estudantil, outros como uma revolução política, outros como uma reviravolta cultural. Na verdade, foi uma tentativa de uma radical transformação antropológica, que deve ser conectada com o surgimento do movimento hippie, visando uma nova visão do mundo, uma nova concepção do homem e da sociedade. Tratava-se da difusão de idéias, hoje normalmente aceitas, mas, naquela época, bem revolucionárias: liberdades democráticas, direitos das minorias, igualdade entre homens e mulheres, brancos e pretos, heterossexuais e gays.

O termo hippie deriva do inglês hipster, relacionado com a cultura americana negra dos “beatniks”. John Lennon, que foi o principal porta-voz pop do movimento hippie, criou o nome da sua famosa banda "The Beatles" a partir da chamada “Geração Beat”. Na década de 60, os hippies dos EUA começaram um movimento considerado “contracultura”, contestando qualquer tipo de guerra (especialmente a do Vietnã) ou de violência, qualquer forma de autoritarismo, nacionalismo ou racismo. Adeptos de religiões orientais contemplativas (Hinduísmo e Budismo) ou nativas norte-americanas, viviam em comunidades ou como nômades, no contato direto com a natureza, praticando um socialismo anarquista. O movimento hippie surgiu como contestação dos valores tradicionais da classe média americana, sustentados pelo sistema econômico do capitalismo totalitarista e consumista.

Os hippies passaram a negar a legitimidade do governo, do militarismo, dos monopólios da indústria e do comércio. Recusaram a massificação em nome da afirmação da individualidade, não seguindo moda alguma, vestindo cada qual a seu modo, de forma extravagante. Algumas expressões da filosofia de vida hippie se tornaram famosas: “Façam amor, não façam a guerra”; “Façam sexo, não façam crianças”; “Faça o que você quiser, desde que não faça mal a ninguém”; “Sua liberdade termina onde começa a liberdade do outro”; “é proibido proibir”.

E aqui vai a pergunta: por que uma filosofia de vida tão verdadeira não teve sucesso? Minha resposta: porque faltou acrescentar mais uma palavrinha ao binômio “Paz e Amor”. Faltou a palavra “Trabalho”: os hippies, em lugar de produzirem bens para a sociedade, passavam a maioria do tempo num “dolce far niente”, consumindo drogas. De forma semelhante aos religiosos que vivem apenas de contemplação e de rezas, eles não percebem a contradição e o lado egoísta de sua escolha: dependem daquilo que desprezam, pois se alimentam dos bens produzidos pelas pessoas que trabalham. Se viver como homens é viver na companhia de outros homens, isto implica num intercãmbio de atividades úteis e na limitação da liberdade individual.

11 de setembro de 2001: a violência gera a violência

Os antigos romanos diziam vis vim roborit (uma violência provoca outra). O brutal e absurdo atentado suicida contra as duas torres gêmeas do World Trade Center de Nova York e outros alvos nos EUA, acontecido no fatídico 11 de setembro de 2001, só pode ser consequência de um ódio incomensurável, fruto de uma vingança milimetricamente premeditada. Além das espantosas perdas humanas (morreram 3234 pessoas) e materias (os dois edifícios de 110 andares, 4 estações do metrô, dezenas de construções nos arredores, os 4 aviões sequestrados e destroçados) é preciso considerar o efeito psicológico sobre o povo americano, pela primeira vez atacado por forças inimigas no coração da sua pátria.

Conforme foi posteriormente apurado pela Inteligência americana, o motivo dos ataques era o cumprimento de uma intenção declarada da Al-Qaeda (rede terrorista), expressa na fatwa (uma ordem emitida por um representante da lei islâmica) de 1998, emanada por Osama bin Laden. A fatwa aponta os três pecados cometidos pelos Estados Unidos, pelo quais os norte-americanos deviam ser punidos: a) apoio miltar a Israel; b) ocupação da península arábica; c) agressão contra o povo do Iraque. Para se vingar desta vingança, em março de 2003, o Presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, apoiado por alguns países europeus, mas sem o consentimento da ONU, invade o Iraque, a pretexto de encontrar armas de destruição em massa. Não encontrou armamento algum, mas a guerra no Iraque continua, dando motivo para outros ataques terroristas no mundo inteiro.

Abaixo ídolos e líderes

O 11 de setembro deixou claro que nenhum Imperialismo é eterno. A história nos ensina que um império, assim como qualquer outro organismo, nasce, cresce, chega ao apogeu e acaba, sucumbindo à sua própria grandiosidade, desaparecendo ou se transformando. Foi o que aconteceu com os impérios macedônico, romano, napoleônico, entre outros. Os Estados Unidos da América do Norte demonstraram sua vulnerabilidade e sua hegemonia não pode mais ser considerada absoluta. Eles têm que dividir seu poder com a União Européia, a Rússia, a China, o Brasil, a Índia e com outras potências emergentes, além de respeitar entidades e acordos internacionais, em paridade de direitos e deveres.

O próprio sistema capitalista mundial deve ser revisto. O colapso financeiro de setembro de 2008, provocado pela queda das bolsas de valores no mundo inteiro, como conseqüência da falência hipotecária na Inglaterra e nos EUA, é um sinal da necessidade de regulamentar o comércio livre. De um lado, ninguém (indivíduo, empresa ou governo) pode fazer o passo maior do que a perna, gastando o que não tem ou contraindo dívidas de uma forma irresponsável. De outro lado, não se pode continuar a permitir que banqueiros e seguradoras acumulem os lucros sozinhos, enquanto, na hora do prejuízo, recorram ao socorro do dinheiro público, provocando crises econômicas cuja maior vítima é sempre a massa popular indefesa. A meu ver, a única forma honesta de ganhar diheiro é trabalhando e não especulando, praticando agiotagem. O capitalismo selvagem é tão ilusório e pernicioso como o comunismo estatal.

Mas, infelizmente, o homem não aprende com a história e repete sempre os mesmo erros, deixando-se levar pela ambição, pelo egoísmo, pelo desejo sádico de escravizar os outros. O princípio do totalitarismo pode ser encontrado no começo da civilização, quando o homem cria o arquétipo do poder pelo mito de Júpiter, o deus que manda arbitrariamente no céu e na terra. O despotismo está nos patriarcas da Bíblia e do Corão, nas monarquias orientais da Índia e da China, nos Imperadores romanos, nos caciques incas e astecas, nas cortes católicas da Idade Média. Está também na Genebra protestante de Calvino, no nazismo de Hitler, no fascismo de Mussolini, no comunismo de Stalin, na ditadura do Generalíssimo Franco na Espanha, no regime de Sadam Hussein, na Cuba de Fidel Castro. Como disse Marcel Proust:

“a persistência de um costume está, geralmente,

em relação direta com seu absurdo”

.

É isso aí: quanto mais absurdo é um governo absolutista, mais permanece no poder. Parece que o homem não consegue superar o instinto gregário, a fase animalesca do automatismo e da irracionalidade, precisando sempre de um pastor que o conduza. Daí o culto à personalidade que pode ser constatado no stalinismo soviético e chinês, nos santos protetores do catolicismo, nos pastores carismáticos do protestantismo, na palavra inquestionável de Maomé. Na verdade, a cegueira mental é muito pior do que a cegueira física, porque ela é voluntaria e impede a percepção da verdade. O pior cego é quem não quer enxergar. O que é barbárie passa a ser considerado como civilização.

O que mais espanta não é a maldade ocasional, mas a banalização do mal. Recentemente, o Museu do Holocausto da capital dos EUA tornou publica uma série de fotos, tiradas em 1944, pouco antes do fim II Guerra Mundial, que mostram enfermeiras festejando o extermínio de judeus, homossexuais e deficientes físicos, no campo de concentração de Auschwitz. Anos depois, um psiquiatra americano interrogou nazistas levados a julgamento em Nuremberg sobre os horrores cometidos e a resposta foi que apenas cumpriram ordens e, portanto, suas consciências estavam tranqüilas. É essa “normalidade” que espanta, a obediência cega a determinações de um líder carismático, a institucionalização do crime. Historiadores da ocupação da Polônia pelos alemães também afirmam que os policiais de Hitler fuzilavam mulheres e crianças com a maior naturalidade.

Mas isso não aconteceu apenas no domínio nazista. Os horrores se encontram em qualquer conflito bélico. Na atual guerra dos EUA contra o Iraque, por exemplo, aconteceu algo semelhante: foram publicadas fotos de soldados norte-americanos que se divertiam com jovens prisioneiras iraquianas, seviciando seus corpos com cigarros acesos. A gente pode compreender e desculpar o erro ou o pecado do homem como indivíduo, mas quando é toda uma instituição pública a cometer, tolerar ou aplaudir atos criminosos, nos colocamos nos limites da civilização, renegando qualquer sentimento de humanidade.

É preciso urgentemente rediscutir o problema da obediência militar ou civil: até que ponto o homem é obrigado a obedecer a uma ordem, se ela for irracional ou desumana? Por que ser obrigado a participar de guerras, a matar gente que nem se conhece? Anos atrás lí uma notícia de jornal que me deixou pasmado: um supermercado pegou fogo e os guardas, a mando do gerente, fecharam as portas porque, na confusão, algumas pessoas estavam levando mercadorias sem passar pelo caixa. É obrigação moral obedecer a uma ordem dessas? Será que uma vida humana tem valor menor do que um pacote de bolachas?

E o que dizer, então, dos conflitos étnicos, que acontecem não apenas em Ruanda ou no Sudão, mas também na civilizada e próspera Europa? Diferenças de línguas, costumes ou religiões levam a divergências nos planos político e social, causando confrontos sangrentos. Na base de tudo está a infinita estupidez humana: a pessoa preconceituosa não se dá conta de que ela é um mero acaso de loteria biológica. Ninguém escolhe quando, onde, como ou de quem vai nascer. Por que, então, curtir sentimentos de superioridade? Quem sabe, um dia, a humanidade terá condições de realizar o “sonho” de Martin Luther King. Ele imaginava um futuro em que

“brancos e negros, judeus e gentios, protestantes e católicos,

descendentes de escravos e de donos de escravos,

todos viverem em harmonia, sentado à mesa da irmandade”.

Para que este futuro possa acontecer é preciso a vitória do indivíduo que pense com sua cabeça, não sendo mais vítima de tradições milenares. É preciso acabar com os dogmatismos religiosos e os governos absolutistas, o egoísmo individual e de grupos, a obediência cega a líderes políticos, a exploração do trabalhador, a corrupção e a impunidade. Nesse futuro desejado cada um ganharia conforme os méritos e seria julgado pelos seus atos e não pela cor de sua pele, pela herança de sua etnia ou pela sua fé. Enfim, o homem se convenceria de que ninguém pode ser feliz no meio da ignorância e da miséria.

Em nossos dias, apesar do enorme avanço tecnológico e dos benefícios provenientes da globalização, especialmente a vulgarização do acesso à Internet e do uso da telefonia celular, se agravam os temores que provocaram a revolução de Maio de 68. O progresso da ciência traz consigo o perigo da disseminação de armas nucleares, com a conseqüente possibilidade da destruição em massa. Não está superado o perigo do choque de civilizações, especialmente entre Ocidente e Oriente, subliminarmente alimentado pelo fundamentalismo religioso. É inegável o fato de que os países árabes, de religião maometana, estão tomados pelo desespero porque regimes ditatoriais e remotas tradições teocráticas impedem o funcionamento de uma social-democracia. O contato com o capitalismo, conseqüência da recente globalização, aumenta a corrupção interna e o ódio atávico entre a cultura judaico-cristã e a islâmica, provocando o intervencionismo militar de um lado e o terrorismo do outro.

Acrescente-se o fato de que os conflitos étnicos não são mais localizados, mas se espalham pelo mundo todo. Levas de gente pobre de países africanos, asiáticos, balcânicos e da América Latina emigram clandestinamente para regiões mais desenvolvidas da Europa e da América do Norte em busca de trabalho e de asilo, criando também lá bolsões de miséria e choques de cultura. Problemas de nacionalidade acabam adquirindo feições de religiosidade, centrados em dois pólos: evangélicos norte-americanos, de um lado, e muçulmanos das Arábias, do outro, cada qual exercendo influências em regiões carentes.

Assim, o gênero humano, em lugar de progredir, está acusando um retrocesso, uma volta à barbárie. Os economistas explicam que os altos índices de desigualdade entre os povos acusam “uma dependência do ponto de partida”. Se é assim, por que os organismos internacionais não tentam cortar o mal pela raiz, procurando eliminar a pobreza na sua origem? Melhor do que assistir refugiados é ajudar a criar postos de trabalho nos países deles, exigir governos democráticos que não deixem faltar escolas para as crianças e promovam o planejamento familiar de forma que ninguém tenha mais filhos do que possa sustentar e educar decentemente.

A estrutura intelectual do Ocidente se assenta na idéia de que o mal nasce da ignorância, causa principal da pobreza material e espiritual. Este era o pensamento de Sócrates, retomado pelo Iluminismo, segundo o qual a redistribuição eqüitativa dos recursos, junto com a educação do povo, poderia vencer o mal social e a humanidade poderia alcançar o supremo bem, que é a justiça e o amor entre os povos. Mas o monstro do absolutismo religioso e político, que sempre manteve a grande massa de analfabetas na ignorância, fez prevalecer a idéia terrível de que o sofrimento é conatural ao homem e o mal é uma forma de estar no mundo e, portanto, não pode ser eliminado, mas apenas “medicado” pela caridade nesta vida e pela esperança de uma vida melhor no além.

O filósofo americano Sam Harris ensina que a religião, como o tribalismo, o racismo ou a corrupção da classe política, exacerba os conflitos humanos por ser um fator de divisão. A fé impede o diálogo, pois toda pessoa crente se torna impermeável a novas evidências ou a novos argumentos, achando que encontrou a verdade única e definitiva. A crença num Deus pode ser benéfica ao nível pessoal, como uma espécie de consolo, uma terapia psicológica, mas ela é extremamente nociva no plano coletivo por obstar políticas de desenvolvimento cívico. A verdade é que qualquer religião nasce da mentira e se alimenta da hipocrisia, ensinando às crianças que o irmãozinho foi trazido pela cegonha, o vovô foi para o céu, a masturbação causa cegueira. Não seria melhor acostumar a criança com a realidade existencial, ensinar a lidar com o sofrimento e a morte, a contentar-se com a felicidade possível, sem criar um mundo de ilusões na sua cabecinha?

Infelizmente, a maioria das pessoas continua seguindo o instinto de rebanho, achando mais cômodo ser crédula e enganada do que raciocinar. A expressão Vox Populi, Vox Dei (a voz do povo é a voz de Deus) é uma grande mentira. A massa popular se deixa dominar por lideranças carismáticas, religiosas ou políticas, tornando-se cúmplice das piores atrocidades, embora involuntariamente, por abdicar do uso da razão. Por acaso, não foi o povo que condenou à morte criaturas maravilhosas como Sócrates e Jesus Cristo? Não foi o povo que apoiou os regimes sanguinários de Hitler, Stalin, Sadam Hussein, Bush? Benito Mussolini, o fundador do Fascismo, certa vez, antes de aderir à 2ª Guerra Mundial, propôs aos italianos: “pão ou canhão?”. O povo preferiu o canhão. E deu no que deu!

Afinal, se o homem é tradicionalmente definido como um animal racional, quando se recusa a pensar com sua própria cabeça, reduzindo-se a um cego cumpridor de ordens ou observador de normas, pode ser considerado um ser “humano”? Efetivamente, a diferença específica entre o homem e o animal é apenas o uso da inteligência, pois obedecer aos instintos primordiais da conservação própria (pela busca do alimento) e da espécie (pela relação sexual) é comum aos dois gêneros. Os ordenamentos jurídicos e políticos que devem governar a sociedade, bem como crenças e preceitos pregados pelas várias religiões, não podem se afirmar contra a estrutura lógica da mente humana, nem as descobertas científicas ou a realidade histórica. Função da fantasia humana é enriquecer, mas nunca contrariar a verdade existencial.

No próximo capítulo, vou apresentar algumas idéias sobre uma política voltada para a construção de uma verdadeira cidadania. Agora, convido o leitor para uma reflexão sobre o que tentei expor até agora, sintetizando os principais tópicos que contestam o fanatismo religioso:

a) Estrutura do Universo e Origem do Homem

É suma burrice e imensa falácia, no dia de hoje, ainda acreditar ao pé da letra no que está escrito no Gênesis sobre o nascimento do mundo e do homem. Na época de Moisés, como também de Buda, Cristo ou Maomé, não se conheciam as civilizações da bacia amazônica, da Oceania, dos Andes, da Patagônia. Não se imaginava que, além da Terra, considerada chata e imóvel, existissem outros planetas, que pudessem ser habitados por outros seres. Não se imaginava que o Universo existisse há mais de 13 bilhões de anos, que os primeiros hominidas (os mamíferos arquétipos do homem) nasceram na África há cinco milhões de anos. E também Moisés não sabia nada sobre dinossauros, vírus, bactérias, acelerador de prótons, DNA. E isso porque ele era apenas um homem do seu tempo. Se fosse realmente um “profeta”, aquele que prevê o futuro por inspiração divina, ele saberia dessas coisas.

A maioria dos crentes (católicos, protestantes, judeus ou muçulmanos) responde a esta pergunta com o argumento de que Deus foi revelando gradativamente, aos poucos e através de vários Profetas, as verdades existenciais, conforme ia se desenvolvendo a capacidade do cérebro humano, ao longo do tempo e do espaço conhecido. Esta resposta enseja algumas perguntas:

1) Admitir que a inteligência está em continuo processo de melhoramento não implica na aceitação da teoria darwinista da evolução? Por que, então, não abandonar de vez a crença na criação do homem por um ato divino, único e distinto?

2) Por que, depois das descobertas revolucionárias de Galileu, Darwin e Einstein, não apareceu mais nenhum Profeta para continuar nos esclarecendo sobre os mistérios do Universo?

3) A existência de tanta ignorância e contradições nas Escrituras não deveria acabar com o mito da revelação divina, considerando-as apenas como produtos da mente humana limitada no tempo e no espaço?

4) Por que não considerar os mitos bíblicos apenas da mesma natureza educativa que atribuímos ao maravilhoso da mitologia greco-romana ou de outras culturas?

A meu ver, quanto à sacralidade, não há diferença entre Abraão disposto a sacrificar seu filho Isaac à vontade de Jeová e Agamenão que oferece sua filha Ifigênia no altar da deusa grega Diana. E, quanto à moralidade, os ensinamentos que se encontram na filosofia do grego Sócrates ou na poesia do latino Horácio são muito mais edificantes, além de esteticamente melhor elaborados, do que os registrados nos toscos versículos de Moisés ou Maomé.

b) Deus, Espíritos, Milagres

A religião surgiu na infância da humanidade quando não havia nenhuma informação científica sobre os fenômenos da natureza. Não haveria igrejas se a humanidade não tivesse temido os raios, a peste, o eclipse, a epilepsia, a morte. E, na atualidade, ela persiste de uma forma intensa nas povoações indígenas que vivem conforme a natureza, em redutos isolados que impedem o progresso civilizacional. Mas ela está presente também no coração das pessoas cultas que não se conformam com a morte, as doenças, as injustiças neste mundo, projetando os desejos de uma vida melhor num imaginário além-túmulo.

Postula-se, assim, a existência de um mundo sobrenatural, etéreo, fora do tempo e do espaço, povoado por divindades e espíritos desencarnados. As três religiões monoteístas chamam de Deus a uma entidade “puro-espírito”, absoluta, eterna, que, em certo momento (saindo da eternidade?), teria resolvido criar o mundo da matéria. Ele teria privilegiado uma única espécie deste novo mundo, o homem, criado à sua imagem e semelhança, concedendo-lhe uma alma imortal. O homem seria, então, um ser híbrido: material e mortal pelo corpo (semelhante aos animais), mas espiritual pela alma eterna, qualidade que teria em comum com os anjos e os demônios, outras entidades espirituais (sem sexo e sem idade) que Deus teria criado dentro da eternidade.

Os seres humanos, portanto, como os deuses do paganismo, teriam nascimento, mas não morte: após a breve passagem neste mundo temporal, sua alma, desencarnada do corpo (mas a ser reencarnada outra vez no Julgamento Final, quando haveria a “ressurreição da carne”), gozaria da vida eterna no paraíso ou no inferno, conforme méritos ou culpas. Segundo a Doutrina Espírita, a reincorporação se daria imediatamente após a morte, o espírito vagando de corpo em corpo até conseguir a total purificação. Já pela doutrina cristã, a alma não preexiste ao corpo, mas seria insuflada por Deus no feto durante a gestação. Os teólogos não explicam em que exato momento se daria a animação do embrião, nem onde ficariam as almas dos mortos antes do fim deste mundo, nem como a materialidade dos corpos recuperados após o Juízo Universal poderia gozar ou sofrer no outro mundo, feito de pura espiritualidade.

Há imaginação mais fértil do que essa? É de fazer inveja a qualquer conto fantástico de Franz Kafka! O pior é que se considera alienado ou louco quem não acredita nisso! Já no bíblico Livro dos Salmos está escrito que é “insensato” o homem que não tem fé no Deus de Moisés. Também naquela época remota os incrédulos eram considerados pessoas de miolo mole. Na antiga URSS, os dissidentes eram colocados em asilos de loucos, acusados de sofrer de delírios reformistas e, por isso, de ter perdido a noção de autoconservação, enfrentando o perigo de uma repressão impiedosa. A história da humanidade está repleta de gente acusada e condenada por apostasia, heresia ou bruxaria por se atrever a contestar uma ideologia aceita pela maioria. O brasileiro, ainda hoje, considera o ateu como um ser sem caráter e sem moral, como décadas atrás se pensava dos comunistas que comiam criancinha, de homossexuais ou de negros, acusados de fazerem trabalhos sujos. Uma pesquisa recente revela que apenas uma ínfima porcentagem de brasileiros votaria num homem que afirme não acreditar em Deus. Ele não se elegeria nem como síndico de um prédio!

Para gente simples, sem cultura, a prova mais evidente da existência de Deus são os milagres, entendidos como sinais da presença ou da participação divina no mundo que Ele criou. Conforme já disse Voltaire, não há um povo em meio ao qual incríveis prodígios não aconteceram, especialmente quando poucos sabiam ler e escrever. Todas as mitologias, clássicas e indígenas, fazem referência a numerosos atos que consideram milagrosos. De um modo geral, é considerado milagre a superação de qualquer ocorrência extraordinária, que não pode ser explicada pelas leis da natureza ou pelo raciocínio humano: tragédias naturais, anomalias, doenças incuráveis, perturbações psíquicas.

Conforme a crença num Deus Criador e Provedor, o Arquiteto do “projeto inteligente” de que falamos anteriormente, nada escapa à vontade divina: não cai uma folha de uma árvore, se Ele não quiser. Como se explica, então, a presença da dor e da iniqüidade no mundo? Por que, ao mesmo tempo em que regiões são devastadas por enchentes ou maremotos, outras sofrem pela seca? Se Deus é poderoso e bondoso por que não leva o excesso de água do Rio Grande de Sul para irrigar as terras do Nordeste brasileiro? E por que, em lugar de atender às preces de suplicantes, permite que um ônibus transportando peregrinos caia num ribanceira? A resposta “foi Deus que quis assim!” pode satisfazer uma mente inteligente?

A verdade histórica é que os milagres começam a definhar na medida em que a ciência avança e o povo adquire cultura. A geologia está evidenciando que terremotos, ciclones, estiagens ou epidemias têm causas naturais, pois vivemos num planeta que ainda está esfriando, com rachaduras originadas pelo deslizamento de placas tectônicas, pela ação incontrolável de ventos provocados pelo choque de correntes térmicas, pela proliferação de vírus e bactérias. É a ignorância disso que alimenta o mito da intervenção divina, além de que, na maioria das vezes, a presumida ação milagrosa é fruto de equívoco, de alucinação, de histeria coletiva, pois o fato é contado de uns para outros, chegando ao nosso ouvido de segunda ou terceira mão. Sintomático é que os milagres só acontecem em regiões campesinas, entre gente pobre e sofrida, com baixo nível de informação: Nossa Senhora de Lourdes na França, Fátima em Portugal, Montevergine na Itália, Guadalupe no México, Aparecida do Norte no Brasil.

Entendo e justifico a crença do povo nos milagres. Gente pobre ou doente, não encontrando ajuda na sociedade dos homens, procura o refúgio na fé em entidades sobrenaturais, orando para obter graças divinas. O que acho vergonhosa é a exploração da crença popular por líderes religiosos ou políticos. Benjamin Franklin, Presidente dos USA, num de seus discursos, atribuiu a uma intervenção divina a descoberta do pára-raios: “coube a Deus, em sua bondade para com a humanidade, finalmente, revelar a ela o meio de proteger...”. Interessante é o “finalmente”: por que Deus esperaria tanto tempo para ensinar aos homens como se defender dos raios numa tempestade? A pregação de pastores protestantes, especialmente evangélicos, nos canais televisivos, é simplesmente abominável: forjam as mais incríveis curas milagrosas para enganar crédulos e extorquir dízimos!

Mas a Igreja Católica não deixa por menos: para cada dia do ano inventou um santo padroeiro e milagreiro. Pelo culto de tantas divindades, islamitas e protestantes acusam os católicos da volta ao politeísmo. A resposta é que os santos não são considerados divindades, mas apenas intercessores ou intermediários entre a humanidade e a divindade. A diferença, porém, entre Mercúrio, o deus romano do comércio, e o São Jorge cristão é quase irrelevante. O correspondente Hermes dos gregos também era o mensageiro entre Júpiter, o pai dos deuses, e os homens. O Velho e o Novo Testamento estão repletos de episódios considerados milagrosos. Apenas para citar um exemplo, lemos no Evangelho de Mateus (27, 52-53):

“Abriram-se os túmulos e muitos corpos dos santos falecidos ressuscitaram.

E, saindo dos túmulos após a ressurreição de Jesus,

entraram na Cidade Santa e foram vistos por muitos”.

Onde está, então, a peculiaridade do milagre de Cristo ao ressuscitar Lázaro se, naquela época, era costume muita gente acreditar em ressurreições? E por que nos tempos modernos ninguém mais ressuscita? O que dizer, então, a respeito do culto das relíquias, os pedaços do corpo ou de objetos de santos? Calculam os pesquisadores que com as lascas e os pregos da Cruz de Jesus, que se encontram espalhados pelo mundo todo, poderia se formar uma cruz com mais um quilômetro de comprimento. Chegaram até a comercializar as penas do Espírito Santo, aparecido sob forma de pombo. Mas aí entramos no campo da superstição que, além de irracional, é estúpida e beira o ridículo.

c) O pecado original e a vinda de Cristo

Já examinamos, no capítulo sobre Moisés, o relato bíblico acerca do pecado de Adão e Eva. Agora, perguntamos: se era vontade de Deus que, após o castigo, houvesse o perdão, por que Ele demorou tanto para enviar um Redentor? E não podia Ele mesmo perdoar sem precisar de um Messias? E por que não se serviu de Abraão, de Moisés ou de outro patriarca do Velho Testamento? E se fosse realmente necessária a encarnação de seu Filho, a segunda pessoa da Santíssima Trindade, por que se lembrou disso apenas uns dois mil anos atrás e não antes? Ele, como ser eterno, não é o senhor do tempo? E que culpa tem as almas dos justos que, por terem nascidas antes da vinda de Jesus na terra, não podem alcançar o céu? E os seres humanos que vieram ao mundo depois de Cristo, mas que não tiveram a sorte de serem batizados, por que deveriam ser privados da visão de Deus?

E os milhões de judeus, muçulmanos, budistas e espíritas que não acreditam na divindade de Jesus Cristo e na necessidade do batismo irão todos para o Inferno? E, se o sacrifício de Jesus era suficiente para salvar a humanidade, por que enviar outro profeta, Maomé? Afinal, o Deus dos cristãos não é o mesmo Deus adorado por judeus e islamitas? As religiões monoteístas, as três, não descendem igualmente do patriarca Abraão? E se, por acaso, Jeová, o Deus Pai e Alá, além de nomes, são também três entidades divinas diferentes, em quem acreditar? E qual seria o verdadeiro Profeta enviado por Deus: Moisés, Cristo ou Maomé? E a Lei que deve guiar os filhos de Deus é a Torá, o Evangelho ou o Corão? Sendo as três Escrituras conflitantes, com qual está a verdade? Na dúvida, para não contrariar nenhum deus, é aconselhável não professar religião alguma!

Parentes e amigos já me acusaram de eu ser excessivamente crítico, achando que estou errado em fazer tantas perguntas, pois Deus, sendo o Todo-Poderoso, faz o quer, quando quer e como quiser, sem precisar dar satisfação a ninguém. Eu penso diferentemente. Suposto que minha vida foi um dom divino, se Deus me deu inteligência para pensar, Ele vai querer que eu faça uso dela e não aceite nada que seja contra o raciocínio lógico. Muito pelo contrário, a maior ofensa que o homem possa fazer a Deus é não usar a inteligência, sob pena de renunciar à diferença específica que distingue o homem da besta.

E nenhum homem é obrigado a pensar com a cabeça de outro, a acreditar no que alguém disse por se achar “iluminado” por Deus. As chamadas revelações divinas não passam de alucinações. As biografias dos grandes fundadores de religiões (Moisés, Paulo de Tarso, Maomé, entre outros) relatam que eles sofriam de distúrbios psíquicos que provocavam “visões”, imaginariamente atribuídas à intervenção de entidades sobrenaturais. Os considerados profetas, como outros seres humanos, estavam sujeito ao engano. Tanto é verdade que suas afirmações dogmáticas, posteriormente, foram desmentidas pelo progresso das ciências e pela indagação histórica e filosófica. A verdade deve ser colocada sempre acima da crença. Minha natureza racional se recusa a acreditar sem pensar, sem convicção pessoal. Estou convencido de que a fé não pode ter prioridade sobre a razão, pois é por meio da razão que cada um deve justificar – e, se necessário, rejeitar – a fé que herdou de seus pais.

d) Moral religiosa ou cívica?

O sábio grego Aristóteles ensinara que a virtude é uma disposição para fazer o bem, adquirida e não inata. Quer dizer, o homem não nasce bonzinho. A criança, como o animal ou qualquer ser humano primitivo, é fundamentalmente egoísta, preocupada em satisfazer seus instintos e desejos, não respeitando o que é dos outros. Portanto, desde cedo, deve ser educada para a prática das virtudes que lhe permitam viver no convívio de outros de forma pacífica: a sinceridade, o respeito ao bem alheio, a polidez, a tolerância, a caridade, a obediência, o amor ao estudo e ao trabalho, a prática da afetividade e da amizade. O ensinamento de tais virtudes deve fazer parte de uma formação antropológica sem nenhuma ligação ou dependência de normas religiosas. Ter uma conduta decente independe de professar a fé cristã, budista ou islamita.

Estamos falando de valores éticos universais, que cumpre defender contra dogmas e práticas de moralidade, ensinados por esta ou aquela religião. Talvez possamos distinguir o que é “ético” (bom para todos) do que é “moral” (relativo a um determinado grupo social). O problema é que o conceito de moral (do latim mores = costumes, usos), quando relacionado com determinada religião, adquire o sentido de imutável, absoluto, pois sagrado, imposto por uma vontade divina inquestionável. Tomemos, apenas como exemplo, o preceito bíblico da circuncisão: o corte da pele do prepúcio do menino devia ser uma medida de higiene e profilaxia, talvez necessária três mil anos atrás para povoações que viviam no deserto e sofriam pela falta de água. Mas é praticada ainda hoje (e também por adultos que se convertem ao judaísmo), quando a ciência médica proporciona ao homem meios bem mais suaves para resolver um problema de saúde.

Costume semelhante à circuncisão dos hebreus é a infibulação: em regiões da África, de religião animista ou muçulmana, a menina é submetida à retirada do clitóris e à sutura dos lábios vaginais para evitar que sinta prazer sexual antes da noite de núpcias. A permanência de tamanha crueldade, antes de ser atribuída a uma vontade divina, deve ser vista como sinal da infinita estupidez humana. Um amigo evangélico me confessou que gostaria de ir a baile, mas sua religião proíbe a dança, pois o contato físico pode induzir em tentação. Que absurdo! A dança é uma arte universal, considerada a linguagem do corpo, praticada por culturas indígenas e pelos povos mais civilizados.

É evidente que a liberdade de culto permite a qualquer grupo social a prática de seus rituais. Mas, se houver conflito, deve prevalecer a moral cívica sobre a religiosa. A ética de princípios deve ceder a uma ética contextual, pois o bem público não pode ser prejudicado por mandamentos pressupostamente divinos. Alguns exemplos: a luta contra a AIDS não pode ser impedida pela proibição eclesiástica do uso da camisinha; as pesquisas com células-tronco devem ser consideradas eticamente válidas por contribuírem para a cura de muitas doenças; uma mulher que quiser abortar, para salvaguardar a saúde física e psíquica sua ou do feto, não pode ser tratada como uma criminosa; o divórcio deve ser permitido para homens e mulheres encontrarem um novo caminho para a felicidade; não deveria ser proibido ajudar alguém que queira libertar-se de um sofrimento insuportável e inútil pela eutanásia; não deixar que uma crença religiosa, que proíbe a transfusão de sangue, cause a morte de um ser humano.

Nenhuma religião pode ser utilizada para justificar qualquer forma de sofrimento, físico ou psíquico, individual ou coletivo. Nenhum dogma pode considerar moral a guerra, a tortura, o homem-bomba, o terrorismo, o racismo, a corrupção, a hipocrisia. Infelizmente, sentimentos negativos estão imersos no oceano de coletividades vítimas de longas tradições conservadoras. O corpo anônimo de massas populares, dirigido por líderes fanáticos ou interesseiros, é induzido a seguir normas cristalizadas no tempo e transmitidas de geração para geração.

O preceito religioso é racionalizado ou revisitado pela hipocrisia: a regra da Ordem franciscana proíbe andar a cavalo (na Idade Média, o cavalo era o meio de transporte do rico, enquanto o pobre andava a pé ou no burrico), mas o frade pode viajar de avião de primeira classe; a Torá veta o trabalho de sábado, mas o judeu pode pagar alguém para fazer isso; o Dalai Lama pode visitar uma prostituta desde que outra pessoa pague; é proibido ao muçulmano xiita fazer sexo fora do casamento, mas nada impede que ele contraia núpcias temporárias, por algumas horas, divorciando em seguida; o católico deve abster-se da carne na 6ª feira santa, mas pode comer uma bacalhoada regada a vinho do Porto. Não se reflete sobre o “espírito” da lei, mas apenas na aplicação da norma jurídica ou moral ao pé da letra.

Faz-se necessário, então, usar a razão e rejeitar o tradicionalismo, que impede o exercício da liberdade e a busca da felicidade. O pior inimigo do homem é seu “caldo cultural”, a educação religiosa que recebeu de seus ancestrais, quando aceita piamente, sem questionamento. Se a tradição contivesse a verdade, não haveria necessidade de tantos profetas. O fato de que a moral religiosa encontra-se despedaçada numa multiplicidade de Escrituras, entre si contrastantes, que apareceram ao longo da história da humanidade, põe em dúvida sua origem divina. Se, portanto, as leis morais procedem do homem e não de Deus, é melhor a gente se deixar guiar antes pelo bom-senso e pelo interesse cívico do que pela fé num sobrenatural hipotético.

Pensamento alargado: resenha de obras recentes sobre filosofia e religiosidade.

Na última década, trabalhos sobre filosofia estão tentando superar o lugar-comum de que ela seja uma matéria abstrata, apenas de interesse de poucas mentes privilegiadas. A filosofia está sendo vista agora como uma alternativa ou complementação de outras disciplinas preocupadas com o bem-estar do homem, como indivíduo e como cidadão, a par da sociologia, psicologia, antropologia, política. Sobretudo, como substituta da Religião, apresentando uma resposta diferente, se não contrária, ao que as várias crenças até agora vieram pregando, sem êxito algum. Luc Ferry chama de “pensamento alargado”, este novo modo de responder à questão do sentido da vida.

O problema central a ser resolvido é a resposta à questão da salvação, face à finitude do ser humano e a sua impotência perante a dor e a morte. Apavora-nos o never more (“nunca mais”), o famoso estribilho do poema O Corvo, de Edgar Allan Poe, pois a morte representa o fim, o irreversível, o que não volta mais. O ser humano não se conforma com isso, em dividir com as outras criaturas, animais e vegetais, o mesmo triste destino do fim da existência. Aí ele inventa outro mundo, espiritual, povoado por divindades que lhe prometem a sobrevivência da alma, a parte do seu ser considerada imortal. Tudo muito bonito e fácil, pois os deuses, inventados pelas religiões, exigem do homem apenas um ato de humildade: se acreditar em Deus, ele te salvará! Só que, até agora, pelo visto, Ele não salvou ninguém. Muito pelo contrário, as pessoas que mais rezam, são as que mais sofrem e o mundo sobrenatural existe apenas na cabeça de gente crédula, que tem preguiça de pensar, deixando-se levar pela conversa de líderes carismáticos.

A filosofia, diferentemente, responde ao problema buscando a salvação em nós mesmos e não em entidades transcendentais, num “Outro”, num Deus apenas pressuposto, cuja natureza a razão humana não consegue entender. Por que, então, não aceitar o inevitável? Se a dor e a morte fazem parte da vida, temos que conviver com elas, tentando sofrer o menos possível. A filosofia antiga já pregava o “desapego”, a indiferença perante as vicissitudes da vida que a gente não poderia alterar. Estóicos e epicuristas consideravam a filosofia como “a medicina da alma” por nos ajudar a superar o medo da morte. Por que temer a morte, se não há encontro com ela? Quando somos vivos, ela não está aqui; e, quando ela chega, já a gente não está mais neste mundo. De outro lado, já pensaram como seria triste a vida sem a morte? Ficar velho, doente, caduco e não poder dar um fim a seus dias? Por que o homem não deveria seguir a lei cósmica que reza “tudo o que nasce morre”? E, se a alma humana nasceu junto com o corpo, por que não deveria morrer junto também?

Na verdade, a dor de o homem se considerar um animal sem futuro é insuportável para mentes não acostumadas ao raciocínio. É muito mais confortável acreditar na promessa de sermos imortais e reencontrar nossos entes queridos após a morte física, um dia, num mundo feito de pura espiritualidade. Tal esperança é boa demais para ser descartada. Mas, por isso, pagamos um preço muito alto: a renúncia ao espírito crítico e a convivência com a mentira e a ilusão.

Apresento, a seguir, uma resenha de alguns livros, que me ajudaram na elaboração deste trabalho, como indicação bibliográfica e sugestão de leituras. Eles têm em comum os mesmos temas (filosofia, religião e política) e o mesmo tempo de publicação (todos recentes), além do fato de serem “traduções” (pelo que eu saiba, nenhum estudioso brasileiro tratou do palpitante assunto sobre o “pensamento alargado”: aqui vai o convite, estou passando a bola!).

Luc Ferry: Aprender a viver (filosofia para os novos tempos). Objetiva, 2007.

Nasceu em Paris, em 1951, docente de Filosofia, foi Ministro da Educação na França, no biênio de 2002-04. Sua obra, que obteve um grande sucesso internacional, é a proposta de um Humanismo “secular” ou laico, no sentido de que o homem não precisa de religião para ser feliz. Pelo contrário, as crenças irracionais mais atrapalham do que ajudam. Na verdade, não se trata de algo novo, mas um convite ao retorno à prática filosófica da Grécia antiga, como já assinalei falando de Sócrates (o questionador das ideologias), Platão (a proposta de uma sociedade comunitária), Aristóteles (política e cidadania), Epicteto, Sêneca e Marcus Aurélio (a “virtude” do Estoicismo), Epicuro (o “prazer ponderado”). Luc Ferry releva que esta corrente de pensamento foi interrompida pelo advento do Cristianismo que substituiu o uso da razão pela fé no sobrenatural, projetando a felicidade num outro mundo. Com os movimentos filosóficos do Racionalismo, Idealismo e Existencialismo, aos poucos, o homem volta a buscar a salvação em si mesmo e neste mundo, sem deuses e sem ídolos.

Lou Marinoff: Mais Platão, menos Prozac (a filosofia aplicada ao cotidiano).

Record, 2006.

Ele é o criador de um movimento internacional de aconselhamento filosófico, apresentado como alternativo ou substitutivo dos tradicionais métodos da psicanálise e da psiquiatria. Lou Marinoff se tornou filósofo por acaso. Nasceu no Canadá, em 1952, e tocou numa banda de rock até os 30 anos, quando ganhou uma bolsa na Universidade de Londres para cursar Filosofia da Ciência. Formado, arrumou emprego na Universidade de Vancouver, ligado ao departamento de ética aplicada. Começou a dar entrevistas na mídia e a dar conselhos, quando procurado, aplicando a dialética socrática. Tendo sucesso, abriu um escritório em Nova York, atendendo uma clientela de homens e mulheres angustiados com problemas profissionais e afetivos. Para resolver as depressões, Marinoff recorreu à sabedoria antiga dos pensadores gregos e orientais. Aplicando a doutrina de Confúcio, ele ensina que o homem deve viver em harmonia com as leis da natureza, que deveriam moldar qualquer processo social ou político. Numa entrevista, ele afirmou que ''boa parte dos problemas no mundo hoje é causada por pessoas que não têm dúvida nenhuma. Veja o caso dos fanáticos religiosos''.

Hannah Arendt (1906 - 1975): As origens do totalitarismo. Companhia das Letras,1989.

Judía, socióloga e teórica política alemã, emigrou para os EUA após a ascensão do nazismo. Foi discípula e amante do mestre existencialista Heidegger, formando-se em filosofia na Universidade de Heidelberg. Mas sua importância está diretamente relacionada com o pensamento político da segunda metade do século passado, com reflexos no momento presente, visto que suas idéias são de uma atualidade impressionante. Ela se tornou mundialmente famosa pela cobertura jornalística do julgamento de Eichmann, passado à história como o exterminador dos judeus. Foi desta experiência, pelos interrogatórios de testemunhas, que ela chegou ao conceito da “banalidade do mal”: a condescendência com a tortura e a prática da maldade pelos burocratas, que aplicam as leis sem nenhum questionamento, contrição ou remorso, tornam o sofrimento das vítimas como algo normal, conatural a seres humanos considerados inferiores. Daí sua luta para diferenciar o bem do mal e a defesa da liberdade em qualquer circunstância. Outro conceito fundamental da pensadora alemã é a associação do Nazismo com o Comunismo. Para ela, Hitler e Stalin são duas faces, embora opostas, do mesmo Totalitarismo, que comete crimes hediondos contra o indivíduo e a família, em nome da construção de uma sociedade de massas ideologicamente manipuladas. Sua obra nos ajuda a refletir sobre os tempos atuais e a entender as lutas de etnias dilaceradas por guerras nacionalistas. Enfim, quer a ideologia nazista quer a comunista se afirmaram pela exploração da boa fé do povo e de sua tendência à agregação e à dependência de uma liderança política ou religiosa.

Norberto Bobbio (1909-2004): O filósofo e a política (Antologia). Contraponto, 2007.

Senador vitalício da República italiana, professor de filosofia, direito e política por longos anos, com 2025 títulos publicados, entre livros, artigos, ensaios e comentários, Noberto Bobbio é considerado um dos maiores intelectuais do fim do século passado. Ele discutiu as três principais ideologias contemporâneas: o nazi-fascismo, o comunismo e a democracia liberal, sempre defendendo a concepção relativista da verdade, recusando qualquer forma de fanatismo. Mas seu liberalismo nunca o levou ao ponto de concordar com a desigualdade e a injustiça social, procurando sempre uma terceira via entre o bloco comunista e o mundo capitalista. Um estudioso de Bobbio afirma que ele pertence a uma “minoria de nobres espíritos que defenderam até ao fim, uns com o sacrifício da própria vida, nos anos duríssimos, a liberdade contra a tirania, a tolerância contra o atropelo, a unidade dos homens acima das raças, das classes e das pátrias, contra a divisão entre eleitos e réprobos".

Karen Armstrong: A Bíblia (Uma Biografia). Zahar, 2007.

Karen Armstrong nasceu na Inglaterra, em 1944, de uma família católica irlandesa. Com 21 anos professou os votos de freira, assumindo o nome de Irmã Martha. Mas, decepcionada com a vida religiosa, abandonou o convento e foi estudar Literatura Inglesa na Universidade de Oxford. Sofrendo de epilepsia, encontrou dificuldades para obter um trabalho. Em 1981, com a publicação de uma narrativa sobre sua experiência no convento, conseguiu notoriedade e foi convidada como comentadora em programas televisivos de assunto religioso. Para filmagens sobre a vida de Paulo de Tarso, acabou passando um tempo em Jerusalem, tornando-se uma especialista das religiões relacionadas com o patriarca Abraão. Recentemente, em 2005, Karen foi convidada para participar do projeto "Aliança das Civilizações", promovido pelas Nações Unidas com o fim de estabelecer um diálogo entre o Ocidente e o mundo islâmico. Na sua obra-prima, A Bíblia, ela tenta distinguir a história do mito, apontando os autores, o tempo e o espaço em que foram escritos a Tora e os Evangelhos.

André Comte-Sponville: O Espírito do Ateísmo (Introdução a uma espiritualidade sem

Deus). Martins Fontes, 2007.

Esta obra de Comte-Sponville, professor de filosofia, nascido em Paris em 1952, consta de três capítulos, pelos quais ele tenta responder a três perguntas fundamentais: 1º) Pode-se viver sem religião? Resposta: sim, se não se confundir a “fé” (crença cega numa entidade sobrenatural) com a “fidelidade”, a adesão a idéias e sentimentos de uma comunidade. Não acreditar na divindade de Jesus Cristo não quer dizer renunciar ao caldo cultural em que o católico ou o protestante foi criado. 2°) Deus existe? Resposta: o autor revisita as tradicionais “provas” da existência de Deus e refuta todos os argumentos, considerando qualquer dogma religioso como um entrave para a prática de um autêntico humanismo. 3º) Que espiritualidade para os ateus? Resposta: não confundir espiritualidade com fanatismo. Embora não se acredite num mundo sobrenatural, podem-se cultivar valores absolutos, como verdade, justiça, honestidade. Os estóicos pregavam isso antes da chegada de Cristo e há muitos ateus mais éticos do que devotos hipócritas. Enfim, com base numa sólida formação filosófica, André Comte-Sponville prega o retorno aos ideais do Humanismo e do Iluminismo convencido de que nenhuma sociedade pode se considerar civilizada sem cultivar o espírito da liberdade, da laicidade e da tolerância.

Richard Dawkins: Deus, um delírio. Companhia das Letras, 2007.

O biólogo inglês Richard Dawkins se tornou famoso, entre os estudiosos de genética, a partir da publicação de O Gene Egoísta, em 1976. Por esta obra e pela mais recente Deus é um delírio, se notificou como o maior divulgador do darwinismo no mundo. Ele é considerado o apóstolo do ateísmo e o embaixador da ciência, ao demonstrar que, racional e cientificamente, é mais fácil negar do que provar a existência de um Deus, entendido como um ser sobrenatural, onipotente e misericordioso, conforme a crença comum a todas as religiões. Dawkins afirma que a esta conclusão chegaram os maiores cientistas, filósofos e artistas de todos os tempos, não confundindo a postura teísta ou panteísta de alguns (Spinoza ou Einstein, por exemplo) com qualquer forma de religiosidade. Eles admiraram a maravilhosa estrutura do macrocosmo e do microcosmo, que a inteligência humana lhes fez descobrir, e ficaram atônitos perante o mistério do universo, não entendendo dar nenhum atestado de fé num ente sobrenatural, visto como criador e curador dos seres humanos. Sua postura é bem radical contra o fundamentalismo religioso, visto não apenas como inimigo da ciência, mas também como uma perversão moral, instigando a luta étnica e a hipocrisia social.

Christopher Hitchens: Deus não é grande (Como a religião envenena tudo). Ediouro,

2007.

Este outro autor britânico é mais um jornalista polêmico do que filósofo, cientista ou estudioso de política. Analisando textos das três grandes religiões monoteístas, o autor chega à conclusão de que o conceito de Deus é uma conseqüência do medo da morte e os dogmas judeus, cristãos e islâmicos são responsáveis pela repressão sexual e o atraso da evolução do homem. Sua originalidade está no conceito de que qualquer religião é puro fruto do acaso, de algumas circunstâncias completamente aleatórias. Vamos ler um pedaço da sua obra: “Dos milhares de possíveis religiões no deserto, assim como dos milhões de espécies em potencial, um ramo por acaso deitou raízes e cresceu. Passando por mutações de uma forma judaica a uma cristã, ela (a religião) acabou sendo adotada, por razões políticas, pelo imperador Constantino e foi transformada em crença oficial com - no final - uma forma codificada e obrigatória de seus muitos livros caóticos e contraditórios. Quanto ao islamismo, ele se tornou a ideologia de uma conquista altamente bem-sucedida, adotada por dinastias governantes de sucesso, e então codificada, estabelecida e promulgada como lei da terra. Uma ou duas vitórias do outro lado e nós no Ocidente não seríamos reféns de disputas provincianas que aconteceram na Judéia e na Arábia antes que houvesse registro. Poderíamos ser devotos de uma crença inteiramente diferente - talvez hindu, asteca ou confucionista”. Eu, como qualquer outra pessoa de mente livre, poderia assinar em baixo a esta síntese lúcida da história da religião, apresentada por Hitchens!

Michel Onfray. Tratado de Ateologia. Rocco, 2007.

O autor acima, filósofo hedonista francês, também nosso contemporâneo, afirma que o homem fez de Deus seu espelho dotado da capacidade de formar uma imagem invertida, atribuindo-lhe todas as qualidades que o ser humano não possui, mas gostaria de ter: imortalidade, amor infinito, onipotência, onividência etc., incompatíveis com a física e psique humana. Ele acha que os três monoteísmos (judaísmo, cristianismo e islamismo) comungam o mesmo sentimento de repulsa à inteligência, ao raciocínio lógico, à liberdade, aos prazeres da vida. Em nome de um livro só, A Bíblia, os crentes desprezam todos os outros. O Tratado de Ateologia releva que os homens criam seus deuses com duas finalidades: um refúgio para as frustrações da vida e a manipulação da massa ignorante por líderes carismáticos que aproveitam da boa fé para levar todo tipo de vantagens. Pela indução coletiva de pensamento, um episódio considerado extraordinário é repetido tantas vezes que acaba sendo incorporado à normalidade, tido como crível e impassível de correções, pois acontecido por vontade divina. Citando textualmente Onfray: “O último deus desaparecerá com o último dos homens. E com o último dos homens desaparecerá o temor, o medo, a angústia, essa máquina de criar divindades”.

XII – Construindo uma Cidadania: ensaio sobre a cegueira política

Em busca de uma identidade nacional

“Nosso principal objetivo deve ser reconstruir a sociedade

sobre uma base tal que a pobreza se torne impossível”

A expressão acima é de Oscar Wilde, escritor irlandês que viveu de 1854 a 1900. Tal afirmação foi quase fatídica: os povos do Norte da Europa (anglo-saxões e escandinavos, principalmente), um século depois, alcançaram um nível de cidadania que chega quase ao ideal. Eles debelaram a miséria, construindo um Estado de democracia e de liberdade, sem descuidar da justiça social: salários satisfatórios e conforme o mérito de cada um, planejamento familiar e controle de natalidade, eficiente sistema educacional e de saúde, transportes coletivos funcionais (trens velozes e metrôs).

Mas será que não existem pobres na Suécia ou na Dinamarca? Existem sim, mas podem reparar que são famílias de emigrantes que chegaram lá provenientes de regiões atrasadas da África, do Oriente Médio, dos Bálcãs, da América central e meridional. Algo semelhante ao que acontece no Brasil com nossos irmãos nordestinos que chegam na metrópole de São Paulo em busca de trabalho e acabam morando em favelas ou em baixo de viadutos.

Vou resumir o testemunho de um brasileiro que vive na Europa, veiculado pela Internet. É um admirável exemplo de prática de cidadania. Escreve ele: “Já vai para 16 anos que estou aqui na Volvo, uma empresa sueca. Trabalhar com eles é uma convivência, no mínimo, interessante... A primeira vez que fui para lá, em 90, um colega sueco me pegava no hotel toda manhã. Era setembro: frio, nevasca. Chegávamos cedo na Volvo e ele estacionava o carro bem longe da porta de entrada (são 2.000 funcionários de carro). No primeiro dia eu não disse nada, no segundo, no terceiro... Depois, com um pouco mais de intimidade, numa manhã, perguntei: "Você tem lugar demarcado para estacionar aqui? Notei que chegamos cedo, o estacionamento vazio e você deixa o carro lá no final”.

Ele me respondeu, simplesmente assim: "É que chegamos cedo, então temos tempo de caminhar - quem chegar mais tarde já vai estar atrasado: melhor que fique mais perto da porta. Você não acha?"

Pergunto eu: por que o Brasil e outros países emergentes não podem alcançar, eles também, tal alto grau de cidadania, respeitando o seu semelhante, pondo fim ao egoísmo, à miséria, à ignorância, à violência? Será que os povos do Norte da Europa são mais bonitos, mais inteligentes ou suas terras produzem frutos mais saborosos do que os nossos? Ou será porque eles pensam e trabalham? Dizia Santo Agostinho: “Si iste et ille, cur non ego?” (se um ou outro pôde se tornar santo, por que eu não posso também?). A meu ver, é um problema de consciência nacional e de vontade política. Os dois fatores criam um círculo vicioso: não há consciência nacional porque aos políticos não interessa educar o povo, pois vivem da exploração de sua ignorância; e não há vontade política porque a grande massa, pobre e desinformada, escolhe mal seus representantes, vendendo o voto em troca de um benefício qualquer.

Alguns estudiosos da nacionalidade brasileira sustentam a tese de que a origem de nosso atraso civilizacional estaria no tipo de colonização. Enquanto os ingleses chegaram na América do Norte para fazer da nova terra uma nova pátria, esquecendo-se do fog de Londres, os dominadores portugueses e espanhóis viviam sentindo “saudade da terrinha”, de sua pátria de origem. Daí as repetidas viagens de ida e volta entre os dois continentes para comercializar produtos. A intenção da exploração é evidenciada pela monocultura: não se produzia o que era necessário para o desenvolvimento do Brasil, mas apenas o que podia ser comercializado em grande quantidade para o exterior. Daí os sucessivos ciclos econômicos do pau-brasil, cacau, cana de açúcar, café, ouro e de outros minerais. Só se começou a plantar alface no Brasil quando chegaram italianos e japoneses, no começo do século passado.

Esta tese é quase incontestável, pois baseada numa evidência histórica. Como dizem os juristas, contra os fatos não há argumentos: em todo o continente americano, os países colonizados por povos ibéricos são menos desenvolvidos com relação aos que foram descobertos por etnias do Norte da Europa. Enquanto os imigrantes de lá realizavam o “sonho” americano em busca de liberdade e prosperidade, os de cá, os colonizadores espanhóis e portugueses do México, América Central e Meridional, instauravam o “pesadelo” dos regimes ditatoriais, que exploravam a força do trabalho dos escravos e dos indígenas.

Olhando o mapa do Norte-América, é fácil verificar que, das três Nações que o habitam, EUA, Canadá e México, este último, de cultura espanhola, é o mais atrasado. Enquanto duas novas nações colonizadas, ainda ligadas à Comunidade Britânica (Austrália e Nova Zelândia) apresentam um altíssimo IDH (índice de desenvolvimento humano). A África do Sul, antes de expulsar os ingleses, também era um país de civilização adiantada: foi realizado em Johanesburgo o primeiro transplante de coração humano.

A meu ver, o sucesso dos povos anglo-saxônicos, comparativamente aos de origem latina, reside em dois pilares: o amor ao trabalho e o culto da cidadania. Quem costuma viajar para o exterior facilmente nota a diferença de mentalidade e de comportamento. Nos países escandinavos é difícil encontrar gente na rua ou nos botequins, especialmente no período de trabalho, ou passando altas horas da madrugada em baladas. E isso porque cada pessoa adulta é educada para providenciar seu sustento. Lá não há tanta gente vivendo à custa do erário público, ocupando “cargos de confiança” sem necessidade de prestar concurso para provar sua competência. Aqui basta ser parente ou amigo de algum político e logo se arruma uma boquinha de “assessor”. Também não há “bolsas” governamentais que estimulam a indolência.

Em países plenamente desenvolvidos, o conceito de cidadania tem voz ativa e passiva, implicando direitos e deveres. Nossa última Constituição, infelizmente, fala centenas de vezes dos direitos (da mulher, da criança, dos trabalhadores etc.), mas nunca das obrigações dos cidadãos perante a sociedade. Viver em comunidade implica o respeito ao nosso semelhante e ao que é público, isto é “de todo o mundo” e não de ninguém, qualquer um podendo botar a mão. Lembro que, já faz mais de cinqüenta anos, visitando a Universidade de Cambridge na companhia de minha irmã casada com um inglês, uma sobrinha de três anos foi mexer num canteiro de flores. Meu cunhado logo a tirou de lá, dizendo “it’s not possible; it’s public”. A criança podia tocar nas flores do jardim de sua casa, mas não de um lugar público. Um povo sai da barbárie e atinge um bom nível de civilização quando se convence de que o que é publico é mais importante do que é privado.

Infelizmente, uma pesquisa recente constatou que quase a metade dos brasileiros tolera a corrupção e o nepotismo, declarando que, se pudessem, eles também contratariam parentes e amigos para ocupar cargos públicos sem concurso, pouco se lixando com a falta de competência para exercer determinada função. E isto confirma o fato de que a sociedade brasileira ainda não percebeu a importância de separar o público do privado. É preciso tomar consciência de que desperdiçar dinheiro público é mais prejudicial à Nação do que assaltar bancos: o ladrão rouba o dinheiro apenas de uma instituição financeira e uma ou algumas vezes, enquanto o funcionário incompetente rouba o dinheiro dos impostos pagos por todos os cidadãos e de uma forma continuada, mesmo quando não trabalha mais e até depois da morre, sob forma de aposentadoria e pensão.

A raiz do mal: herança de ignorância, servidão, corrupção, nepotismo, impunidade.

Após meio milênio de história, o Brasil continua com os mesmos vícios originais de uma sociedade paternalista, assentada sobre a concentração de renda que provoca uma profunda desigualdade social. A corrupção é institucionalizada e, por ser geral, é considerada normal, gozando da impunidade. O povo se acostumou a conviver com a injustiça social, contentando-se com o assistencialismo. Todas as tentativas de mudar tal situação, visando a adoção de um regime verdadeiramente democrático, foram abortadas pelos governantes de plantão. Monarcas ou Presidentes, militares ou civis, uma vez alcançado o poder, mordidos pela mosca azul, deixam de lado os ideais de reforma da estrutura social e tomam medidas imediatistas para defender sua permanência na governança pelo abastecimento de seus currais eleitorais. Ainda hoje podemos perceber a divisão do nosso país em vastas regiões dominadas por famílias de políticos poderosos, de forma semelhante ao que acontecia com a instituição das Capitanias Hereditárias na época do Brasil Colônia.

Continua a ser alimentada a forma mais perniciosa de ditadura, sustentada não mais pelas armas, mas pela compra do voto popular: quem tiver mais dinheiro e influência política acaba sempre se elegendo e reelegendo, ficando tudo como estava antes. Lembramos a famosa frase do Príncipe de Salina, o protagonista do romance O Leopardo, de Tomasi di Lampedusa, ironizando as reformas propostas pelos conquistadores da Sicília, na época do herói nacionalista Giuseppe Garibaldi:

“Mudem tudo, mas apenas o suficiente para manter tudo

exatamente como está”!

O antigo coronelismo foi substituído pelos modernos programas sociais, utilizando acintosamente a máquina estatal. E a servidão continua, colocando-se sempre a caridade em lugar da justiça. O problema político brasileiro é muito profundo e de difícil solução, porque não é contingencial, mas de estrutura mental, de cultura. Não adianta dar ao povo o direito de voto, se o político simplesmente compra seu voto em troca de um favor qualquer. É muito perigoso dar uma arma na mão de uma criança, se ela não souber utilizá-la. Pela ignorância do manuseio ela poderá apontá-la contra si próprio.

Para um regime democrático realmente funcionar é preciso que a grande massa saiba ler e entenda o que está escrito, analisando a realidade à luz da verdade histórica e factual, sem tornar-se vítima de promessas dos demagogos de plantão. Onde foram parar os ideais da “Direta-Já” e da fundação do PT, o partido dos trabalhadores? Que adiantou termos conquistado a liberdade do voto popular, se a Nação continua imersa na costumeira cova da corrupção e da impunidade?

Não nos façamos ilusões: nenhum país vai realmente para frente sem debelar o monstro da corrupção. Ela atua como um câncer que corrói o tecido social, aos poucos destruindo as células vivas da Nação. Tirar o dinheiro de quem trabalha para sustentar vagabundos ou irresponsáveis não nos faz vislumbrar um futuro promissor para nossos filhos e netos. É preciso entender, de uma vez por todas, que o que faz a riqueza verdadeira e duradoura de um povo não é nenhum projeto macro-econômico, avanço tecnológico ou especulação financeira, mas o trabalho do cidadão. A riqueza do Estado é formada pelos impostos que ele cobra da classe produtora e dos assalariados. Ora, a finalidade primordial do dinheiro arrecadado pelo poder público é providenciar educação, saúde e transporte eficiente para a população.

Mas acontece que em nosso país, como em outros onde a massa popular não tem um desenvolvimento mental estimulado, esta finalidade não é atingida, pois os políticos se apossam do erário público para satisfazer seus egoísmos individuais ou de grupos. Daí o gasto do dinheiro de nossos impostos com o nepotismo e o empreguismo, preterindo funcionários eficientes em prol de incompetentes cujo mérito é apenas pertencerem ao esquema da corrupção; o desperdício com obras públicas suntuosas, inúmeras mordomias, viagens desnecessárias, licitações fraudulentas e obras superfaturadas; a injustiça na remuneração pelo trabalho, diferenciando funcionários federais, estaduais e municipais e permitindo um fosso enorme entre o salário mínimo e o teto altíssimo e não respeitado por quem tem o poder de aumentar o estipêndio em causa própria.

Infelizmente, o egoísmo é conatural ao homem e a corrupção sempre existiu e vai continuar em qualquer tempo ou lugar. Mas aqui não nos estamos referindo à corrupção cultural ou pontual (dar uma gorjeta a um policial ou favorecer um parente), mas, principalmente, à corrupção organizada e oculta (grandes empresários que sorrateiramente compram o apoio de governantes). O que se lamenta é a conivência do sistema político que permite o desaparecimento dos mecanismos de defesa do organismo democrático. A corrupção não é mais considerada como um crime de lesa-pátria, que deva ser rigorosamente punido pela força da lei. Ela se tornou uma prática normal dos Três Poderes da República, gozando da impunidade, apoiada inclusive pela maioria do povo, que continua dando seu voto a políticos indiciados ou até já condenados em primeira instância por improbidade administrativa.

O que causa estranhamento é a condescendência do povo brasileiro com os criminosos de colarinho branco. A multidão se revolta contra atos nefandos de estupradores, pedófilos, infanticidas, ameaçando seu linchamento, mas não demonstra a mesma ira contra empresários desonestos, políticos corruptos, religiosos picaretas. Não se reflete sobre o fato de que a ação destes últimos facínoras é muito mais perniciosa para a sociedade do que o ato isolado de doentes mentais. Um monstro pode destruir algumas vidas, enquanto o delinqüente de gravata é a causa da desgraça de milhares de seres humanos. É incalculável o numero de crianças que poderiam ter sido salvas do caminho do crime com o dinheiro público surrupiado por gente desonesta. É preciso que o poder do Estado pense nisso, pois, como dizia o sábio chinês Confúcio:

“ Não são as más ervas que sufocam o grão,

é a negligencia do cultivador".

A corrupção tem um alto custo econômico, social e humano, atingindo especialmente a classe mais pobre, que se vê privada dos recursos públicos desviados pela sanha dos poderosos, não tendo meios de defesa contra escolas deficientes e sistema de saúde precário. Maior ainda é o dano moral: ela corrói o elo da sociedade e degrada as instituições públicas. Como convencer nossos filhos de que o respeito ao que é do outro, a honestidade, constitui o fundamento da vida em sociedade, quando eles assistem diariamente ao assalto ao erário público pelos representantes do povo? Como condenar ladrões se o exemplo da ladroagem impune vem de cima? O peixe fede a partir da cabeça! É preciso salientar ainda a culpabilidade da classe política pelos crimes hediondos que vêm acontecendo. Assaltos, seqüestros, assassinatos, estupros, tráfico de drogas, bêbedos no volante e outros males sociais têm suas origens na infância abandonada pela família e não assistida pelo poder público.

Nova forma de Governo: Parlamentarismo e Bipartidarismo

Já se tornou um bordão afirmar que ainda não foi inventado um sistema político melhor do que o democrático, pelo qual todo o poder emana do povo e deve ser exercido com a finalidade primordial de prover o bem-estar da totalidade da população.  E nada mais justo, pois a fonte principal da riqueza de um País provém da arrecadação dos impostos pagos por trabalhadores, produtores e consumidores.  Acontece, porém, que o regime político que vigora no Brasil nunca respeitou a vontade da maioria dos eleitores, pois não são os homens mais votados que tem o poder de dirigir o País. 

Efetivamente, na prática, devido à fragmentação dos partidos, são as legendas nanicas que acabam dirigindo a Nação.  Explico: se o partido A recebe 40% dos votos, o B 30% e o C 15%, será este último (ou vários pequenos associados) a ser o fiel da balança.  E isso porque os partidos menos votados barganham seu apoio com um ou outro partido de maioria apenas relativa.  Para que qualquer projeto de lei possa ser aprovado é preciso fazer várias concessões: distribuir cargos, favores, privilégios; liberar verbas orçamentárias; traficar influências, passando a praticar o famigerado ditado franciscano “é dando que se recebe”, posto em conluio com o maquiavélico “o fim justifica os meios”.  Em nome de princípios ideológicos, muitas vezes amparados até por disposições legais injustas, são cometidas ações nefandas. A meu ver, o pluripartidarismo e o financiamento privado das campanhas eleitorais são as duas fontes principais da corrupção institucionalizada.

O remédio seria a adoção do sistema do Bipartidarismo, que já existia na antiga Roma republicana (anteriormente ao Imperialismo dos Césares), a mãe do Direito Público, onde havia apenas o partido Aristocrático (representante a elite social) e o partido Democrático (da massa popular).  Tal forma de regime funciona, ainda hoje, nas mais eficientes democracias modernas (Conservadores e Trabalhistas, na Inglaterra; Republicanos e Democratas, nos EUA, dois partidos (situação e oposição) em vários sistemas políticos da Norte da Europa).  A experiência negativa brasileira da Arena e do MDB não pode ser levada em conta, pois se deu durante o execrável regime militar-ditatorial, que impedia o livre exercício da liberdade, censurando a imprensa e os outros meios de comunicação. 

A proposta atual seria institucionalizar apenas dois partidos, representando a constante tensão entre a afirmação da liberdade individual e de corporações (a antiga “direita” conservadora) e a inclinação para uma maior justiça social (a antiga “esquerda” em defesa das classes menos favorecidas).  Simplesmente, longe de qualquer conotação ideológica ultrapassada, o primeiro poderia ser chamado de “Partido Liberal” (PL)  e o segundo de “Partido Social” (PS).  O termo “democrático” ou “republicano” deveria ser evitado por serem pleonasmos em países não governados por ditaduras.

Caberia ao Presidente da República (escolhido pelo Congresso, com mandato de oito anos, com possibilidade de renovação), não filiado a nenhum partido e com função apenas representativa e moderadora, indicar um Primeiro Ministro para colocar em prática o programa do partido vencedor. Teríamos, assim, a divisão do poder entre o Chefe do Estado (o Presidente da República) e o Chefe do Governo (o Primeiro Ministro). Este, tendo a maioria absoluta no Congresso Nacional, poderá nomear Ministros de Estado e outros assessores com ampla liberdade, sem depender do apoio da oposição.

Desta forma, estaria garantida a plena governabilidade, sem prejuízo da liberdade institucional, pois, se o governo não correspondesse às aspirações populares, não promovendo as reformas estruturais necessárias para o bem da coletividade, o Presidente da República poderia, em qualquer momento, indicar outra pessoa para compor um novo Gabinete. Em casos extremos, o Presidente poderia até dissolver o Parlamento e convocar novas eleições. Nesta última hipótese, um dispositivo legal deveria proibir qualquer Deputado Federal de concorrer a novos mandatos. Em contrapartida, o plenário da Câmara poderia substituir o Presidente da República, caso ele não agisse com justiça e probidade.

Mas, como todo sistema político, o Bipartidarismo também poderia apresentar inconvenientes.  O perigo maior seria cairmos numa “ditadura partidária”, se alguns chefões se apoderassem das rédeas de um partido, tornando-se donos das legendas, indicando os candidatos aos pleitos não por qualidades ou méritos, mas por intrigas e interesses espúrios, coibindo a liberdade individual de discordar e de se candidatar.  Tal perigo poderia ser esconjurado se fosse posto em prática o princípio democrático de fazer prevalecer a vontade da maioria.  Os dois partidos deveriam usar sempre o sistema de “prévias”, dando a todos os filiados o direito de escolher os candidatos a postos de comando.

Também para qualquer eleição de dirigente partidário, como para a escolha de candidatos a cargos públicos, deveria ser obrigatório consultar as bases, através de eleições internas.  E qualquer liderança não poderia durar mais de quatro anos.  Deveríamos evitar, além dos políticos profissionais, também os dirigentes de partidos ou sindicalistas de carreira.  Estes também deveriam ter um trabalho próprio e não viverem à custa do partido ou do sindicato.  Assim, tanto dentro do sistema político, quanto  no quadro partidário, haveria uma constante renovação de pessoas e de ideologias, gente nova substituindo as velhas lideranças para evitar o peleguismo. Democracia é renovação e não apropriação.

Mas a renovação de idéias não poderia sair do âmbito do partido, chegando ao ponto de permitir que cada militante que discordasse da direção partidária ou que não conseguisse uma vaga para sua candidatura, se achasse no direito de fundar um novo partido. A pluralidade partidária não deixa de ser uma patologia política, pois permite uma subdivisão incontrolável, movida por idiossincrasias ou veleidades pessoais. Nas eleições italianas de 2008, chegou-se ao absurdo de a autoridade eleitoral ser obrigada a aceitar a inscrição de 158 partidos. A cédula, composta de uma quantidade enorme de quadrinhos coloridos, deve ter levado à loucura o coitado do eleitor. Tal absurda fragmentação política é sinal de democracia ou de estupidez?

Urge, pois, a passagem do pluripartidarismo para o bipartidarismo e do sistema presidencialista para o parlamentarista, pois a atual conjuntura política se tornou um caos insuportável, de futuro pouco promissor, não importa quem seja o próximo Presidente. O Brasil nunca teve um Congresso envolvido em tantos escândalos, com tantos partidos de aluguel e representantes do povo interessados apenas na luta pelo poder com o fim de se enriquecerem a custa do erário público. Mas, se a maioria dos políticos não presta, a culpa, mais do que nos indivíduos, está no tipo de instituição que induz à corrupção. O sistema político que atualmente vigora no Brasil, em breve tempo, irá tornar nosso país simplesmente ingovernável.

Temos um sistema híbrido, um meio termo entre ditadura e democracia: o Presidente da República não consegue governar porque precisa da aprovação do Congresso e o Parlamento não consegue legiferar, pois a Presidência entope as pautas com Medidas Provisórias. Não tendo maioria, o governo é obrigado a fazer barganhas com a oposição, que só aprova novas disposições legais em troca de cargos e favores e se elas não ferirem direitos adquiridos e interesses de congressistas, magistrados ou burocratas do alto escalão da República. Daí a inoperância do poder executivo e do legislativo, sem falar do judiciário, perdido nos meandros de uma Constituição que se tornou uma colcha de retalhos. Deste modo, os governos se sucedem sem que as tão almejadas reformas político-sociais tenham início, cada Presidente culpando seu antecessor pelo fracasso.

O perigo maior é a perda das liberdades democráticas, a persistir a desmoralização política, a injustiça social e a violência urbana e camponesa. Como costuma acontecer, a massa popular, cansada do egoísmo dos líderes políticos, pode apelar pelo advento de um messias, um salvador da pátria, que possa colocar ordem na casa e satisfazer aspirações e necessidades populares voltadas para a segurança pública. Pode aparecer, então, um líder carismático, tipo Hitler, Stalin, Sadam Hussein, Fidel Castro, Hugo Chávez, um Big Brother brasileiro, o “Grande Irmão” da fábula de George Orwell, que tudo espiona, concentrando em suas mãos o poder absoluto. E isso seria o fim do sistema democrático, que não pode subsistir junto com nenhum “Salvador da Pátria”, seja ele religioso ou secular, comunista ou capitalista, que se perpetue no poder.

A acentuação da violência na cidade e no campo é um sinal da revolta contra as instituições completamente desmoralizadas. E o pior é que a perda das garantias democráticas não seria compensada por uma maior justiça social. A história nos ensina que nenhuma forma de ditadura foi boa para a grande massa de uma população, pois nenhum país se desenvolveu de uma forma sustentável durante regimes absolutistas, de esquerda ou de direita, em vista de que o estadismo não diminui, mas apenas esconde a corrupção. Precisamos visar a construção de um sistema político-social muito diferente do que tivemos até agora, simplesmente porque este nunca funcionou. Isso, embora muito difícil, é possível, se os cidadãos mais esclarecidos e com amor à pátria brasileira fizerem um constante movimento de renovação dos costumes políticos, exigindo a prática de uma verdadeira cidadania.

Sirva-nos, como exemplo, a Espanha do Generalíssimo Franco: durante várias décadas de ditadura, os espanhóis estiveram numa situação social bem pior do que o Brasil de hoje. Com a entrada no Mercado Comum Europeu e a adoção da democracia parlamentarista o país floresceu de uma forma esplendorosa, chegando a inverter a condição emigratória para imigratória: os cidadãos espanhóis não querem mais sair do seu país e não querem aceitar gente de cultura diferente. A economia da Espanha se tornou exportadora e seus habitantes alcançaram um invejável índice de desenvolvimento, porque quem agora manda lá é um Primeiro Ministro que, se não governar corretamente, a qualquer momento, perdendo a confiança do Congresso Nacional, poderá ser substituído pelo Rei-Presidente.

Enxugamento do Estado: sistema unicameral e proporção representativa equânime.

O Senado da República, além de inútil, é uma instituição nociva ao país, sendo um exemplo de que, como afirmou Fernando Pessoa, “a administração do Estado é o pior de todos os sistemas imagináveis”. Por experiência universal, a máquina pública deve ser enxugada ao máximo, reduzindo suas funções à garantia da ordem e da justiça social, além de cuidar da educação e saúde pública. Outras atividades devem ser deixadas a cargo de empresas privadas, cabendo ao Estado apenas o monitoramento e a supervisão.

Para fazer leis que regulamentem a vida do cidadão, por que há necessidade de duas Câmaras, a dos Deputados e a dos Senadores, a não ser para uma atrapalhar a outra e levar anos para um decreto ser publicado? Como andam as coisas agora, um projeto de lei tem que passar por um processo absurdo, chegando ao fim com os legisladores cansados e a matéria obsoleta: uma proposta tem que ser protocolada, analisada sobre sua conveniência, levada para uma Comissão que escolhe um relator. Este emite um parecer, que deve ser apreciado pela Câmara. Se aprovado, o projeto inicia uma caminhada não menos tortuosa no âmbito do Senado. Se houver alguma ementa, o processo volta para a Câmara e começa tudo de novo! Não seria mais funcional, além de mais econômico, simplesmente extinguir o Senado e ainda reduzir o número dos Deputados?

Se a quantidade de Deputados Federais fosse garantia do progresso de um Estado ou região, o Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil seriam as regiões mais desenvolvidas, pois, proporcionalmente, se beneficiam de um maior número de representantes no Congresso Nacional. Enquanto o Estado de Roraima tem 01 deputado para cada 50 mil habitantes, São Paulo tem 01 para cada 570 mil. Quer dizer, politicamente, um paulista vale onze vezes menos do que um cidadão que vive no Norte do país. Talvez essa seja a causa principal da enorme disparidade econômica entre as várias regiões do Brasil: onde há mais políticos, maior é o atraso, pois aumenta a roubalheira!

A atual representação do povo brasileiro na Câmara dos Deputados é uma das causas fundamentais do nosso governo clientelista, que gerou um atraso secular nas instituições políticas. A Constituição de 1988, ao estabelecer um número mínimo (oito deputados) e máximo (70) para cada Estado, incentivou a criação de novos Estados, aumentando desnecessariamente as despesas públicas. Em países realmente progressistas, o número de deputados federais, além de ser menor (os EUA têm apenas 435, contra os 513 do Brasil, embora nossa Confederação tenha menos eleitores), é proporcional ao número dos habitantes. O justo, portanto, seria que cada Estado brasileiro tivesse um percentual de deputados federais correspondente ao número de seus eleitores. Não teria chegada a hora de acabar com tamanha distorção? Afinal, não é a própria Constituição a pregar o princípio básico da isonomia, a igualdade de todos perante a lei? Isso é racional? Mesmo sendo legal, como uma norma injusta pode ser considerada ética?

O pior é que a imoralidade política acontece não só ao nível federal, mas se estende também no âmbito estadual e municipal. Criam-se prefeituras uma colada à outra, na mesma cidade. Metade de uma rua pertence a um município e outra metade a outra prefeitura, com impostos, taxas e normas burocráticas diferentes, levando à loucura os coitados dos contribuintes. Experimentei isso pessoalmente: contratado pela UFPE, fui morar no Recife e comprei um apartamento na praia da Piedade, continuação da Boa Viagem. Ao passar a escritura, descobri que eu não estava residindo na cidade do Recife, mas no município de Jaboatão dos Guararapes!

Separar cidades tem a única finalidade de criar novos cargos públicos em Câmaras ou Assembléias, com o fim de acomodar apadrinhados de políticos. Que saudade do tempo em que os vereadores prestavam seus serviços gratuitamente! A desculpa de que precisa pagar bem o funcionário público para evitar a corrupção cai por terra face à experiência de que os políticos melhor remunerados são os que mais roubam! Infelizmente, cada vez mais a atividade política está sendo vista como um modo fácil de ganhar dinheiro e de forma não sempre correta, que chega a ser imoral, embora seja “legal”.

Além de eliminar os senadores, deveria ser reduzido ao mínimo indispensável o número de deputados, vereadores, assessores, secretarias, ministérios, diretorias, repartições, comissões, presidências, lideranças etc.  Atualmente, um deputado federal tem o direito de nomear uma vintena de “assessores”.  Para fazer o quê?  A função de vice de cargos executivos e de suplente dos legislativos é realmente necessária? Se, ocasionalmente, faltar o Presidente da República, seu substituto natural poderia ser o Presidente da Câmara dos Deputados, como acontece em outros países que dispensam a figura do “vice”. Não seria uma despesa a menos? Será que se um Senador, Deputado ou Vereador entrar de férias ou ficar impedido por outro motivo, seu substituto terá condições de inventar novas leis em tão pouco tempo? E que adianta criar tantas leis, se as que já existem (e são inúmeras!) não são postas em prática? 

Eliminando os empregos parasitários e reduzindo as despesas com o serviço público, sobrariam mais verbas para a educação, a saúde, o transporte coletivo, a geração de trabalho produtivo.  Há cidades com duas ou mais Prefeituras, cujas Câmaras de vereadores são apenas cabides de emprego.  Se já se sustenta um corpo diplomático caríssimo (embaixadas, consulados, adidos culturais e comerciais) para cuidar dos negócios do Estado, por que o Presidente da Republica tem que se ausentar constantemente, levando caravanas em custosas viagens internacionais?  É realmente necessário gastar dinheiro público com a manutenção de um superavião particular, quando a Presidência poderia usar aviões da FAB ou de carreira, como fazem tantos governantes de países bem mais ricos do que o nosso?

Para que gastar tanto dinheiro com festas ou propaganda de empresas públicas?  Órgãos governamentais não têm que competir com firmas particulares. Com o dinheiro que o Governo Federal, os Estados e as Prefeituras gastam na divulgação das obras que fazem (ou que apenas prometem fazer), poderiam ser feitas mais obras. O desperdício do dinheiro público é a maior afronta à miséria em que vive boa parte do povo brasileiro. Um dia iremos compreender que uma mais justa distribuição da riqueza do nosso país, mais do que uma questão ideológica ou moral, é um imperativo cívico visando eficiência, pois todos ganhariam com ela.

Tem-se falado muito sobre estatizar ou privatizar como se os dois processos fossem excludentes e não complementares. É necessário que o Governo, além de utilizar os recursos públicos provenientes dos impostos, pode e deve recorrer ao capital privado, nacional ou estrangeiro, sempre que for preciso. Acima de qualquer interesse econômico pontual, o Estado deve zelar pelo bem estar da totalidade do povo, ora privatizando empresas públicas deficitárias, ora intervindo nas empresas privadas que não estão atendendo satisfatoriamente às necessidades da sociedade. Vou dar dois exemplos para esclarecer o que penso a respeito:

a) A Telebrás, empresa de telefonia nacional, até poucos anos atrás, não estava dando conta do recado, sendo muito difícil conseguir uma linha telefônica, de valor tão alto que devia ser declarada na “Declaração de bens” anualmente apresentada à Receita Federal. O Governo brasileiro resolveu, então, privatizar a companhia telefônica, possibilitando a concorrência de firmas privadas, tendo como conseqüência a explosão da telefonia fixa e celular que, em poucos anos, barateou os preços e permitiu o uso do telefone também pelo povo mais humilde.

b) Na contra face, a Varig, companhia aérea de capital privado, mas a única linha internacional com bandeira brasileira, foi à falência, prejudicando de uma forma incalculável, além dos funcionários que perderam o emprego, todos os brasileiros que por trabalho, saúde ou turismo precisam viajar para o exterior. As companhias internacionais, livres da concorrente brasileira, duplicaram o preço das passagens. E, até hoje, ninguém reclamou contra esta vergonha nacional: o Brasil, com quase 200 milhões de habitantes, tem que recorrer ao transporte aéreo de outros países que não têm nem um décimo de sua população! E o problema não é tecnológico, pois fabricamos e exportamos aviões! Não era o caso do Governo brasileiro intervir, nacionalizando a Varig e injetando dinheiro público para proteger seus cidadãos? O transporte coletivo não é obrigação do Estado?

Como se pode ver, o Governo teria que intervir, hora para privatizar, hora para estatizar, conforme os interesses do povo. Por que nossos políticos e burocratas não agilizam o funcionamento do dispositivo legal das PPPs, as Parcerias Públicas Privadas, que permitem a colaboração do capital público com o privado, fazendo média entre a pouca eficiência da empresa pública e a ganância das firmas particulares?

Estado laico e educação em tempo integral

“Se seus projetos são para um ano, semeie o grão;

se são para dez anos, plante a árvore;

se são para toda a vida, eduque o povo” (provérbio oriental)

“Podiam-se parir meninos educados,

se os pais já fossem bem criados” (Goethe)

“O livro, caindo n’alma,

É germe, que faz a palma,

É gota, que faz o mar” (Castro Alves)

As citações acima são provas de que educação e cultura são os fatores básicos da construção de uma cidadania aqui e em outros lugares, agora e sempre. O espetáculo mais vergonhoso que um País possa apresentar é a existência de crianças abandonadas, pedindo esmolas, cheirando cola ou traficando drogas. Cuidar da primeira infância e da adolescência é fator fundamental para a construção de uma verdadeira cidadania, de uma Nação que se possa considerar civilizada. A responsabilidade é tanto da Família quanto do Estado, pois o abandono das nossas crianças está na origem do desemprego, da delinqüência, da injustiça e da miséria social.

Quando os pais não podem, a obrigação de assistir as crianças é do governo (municipal, estadual e federal), garantindo creches e escolas para todos e em tempo integral. A criança deve ser assistida, no mínimo, oito horas por dia, para participar das aulas, fazer as tarefas de casa, ler jornais, revistas e livros, praticar esportes e alguma atividade artística. No orçamento público, a verba destinada à Educação deveria ser satisfatória, absolutamente prioritária e gasta com extrema eficiência porque, como está demonstrado pela experiência feita em vários países emergentes, aí reside o futuro de uma Nação.

Mas não se pode apelar apenas para os recursos públicos. Urge estabelecer prioridades para o gasto familiar, acabando com uma cultura baseada na inversão de valores: há gente pobre que se lamenta por não ter dinheiro para comprar o leite ou um gibi para as crianças, mas nunca renuncia à cervejinha ou à “pitadinha”. Está na hora de mudarmos o conceito do nosso “herói nacional”, o homem sem caráter e sem cultura, o carnavalesco vagabundo e irresponsável, tipo Sargento de Milícia ou Macunaíma da tradição literária brasileira. Vamos propor como modelo de herói para nossos jovens o homem estudioso, trabalhador e responsável por seus atos.

No Brasil, ultimamente, tudo evoluiu, com exceção da Educação, que deu marcha a ré, prejudicando o caminho para a construção de uma verdadeira cidadania. É preciso corrigir desvios gravíssimos, acontecidos nas últimas décadas, causados por políticos e burocratas incompetentes e presunçosos. Devem ser tomadas medidas urgentes, tais como: um currículo comum para as escolas do país todo, especificando a matéria essencial a ser ministrada para cada série; acabar com o sistema de progressão continuada, que leva à aprovação automática; propor bonificação para professores e funcionários das escolas que atingirem metas de qualidade; premiar a assiduidade e a fixação de docentes e discentes em salas de aula; criar classes especiais para alunos com graves dificuldades de aprendizagem; aumentar as horas de permanência nas escolas para fazer os deveres de casa, praticar esportes e artes, especialmente para crianças de famílias material ou afetivamente carentes.

O ensino público é tão ruim que algumas famílias estão praticando o Homeschooling, o ensino em casa, pedindo dispensa da obrigatoriedade de freqüentar escolas públicas ou privadas. Os pais, com a ajuda de professores particulares, assumem a responsabilidade de educar seus filhos. Este sistema de ensino já está regulamentado em vários países (EUA, Canadá, Inglaterra, México, entre outros), como modelo alternativo de aprendizagem, e justificado para proteger as crianças contra violências e tráfico de drogas. No Brasil, algumas famílias que tentam fazer o mesmo estão sendo processadas pelo crime de abandono intelectual, tratadas da mesma forma como se tratam os pais que negligenciam a educação dos filhos, tirando-os da escola para trabalhar ou pedir esmolas no cruzamento de avenidas. Por que estar tão contra o ensino doméstico se universidades modernas estão criando cursos de Educação a Distância (EaD) pelo contato virtual?

Mais uma vez, a moralidade da lei entra em questão. E, como sempre, o caminho justo deve ser encontrado no meio termo. A criança deve ser educada pela família e pela escola, de forma complementar. O ensino escolar é indispensável por dois motivos: 1) pouquíssimas famílias têm condições econômicas e culturais suficientes para a prática do homeschooling; 2) a freqüência nas escolas é importante para o cultivo da sociabilidade, irmanando crianças de classes sociais diferentes. Mas, se a criança não fizer o dever de casa, pouco adianta freqüentar uma escola, mesmo excelente. Se o estudante não retomar a matéria explicada pelo professor em classe, não fizer as tarefas exigidas, leituras complementares, consultas a manuais, dicionários, enciclopédias, internet, dificilmente vai aprender alguma coisa.

A educação das crianças, enfim, é um problema de tradição familiar, algo que vem do berço. Lembro que, quando eu era pequeno, ainda na Itália, meu pai (operário pobre e com apenas a escola primária) me obrigava a estudar mais quatro horas, além das quatro passadas na sala de aula. Na casa pequena, havia um cantinho considerado quase sagrado, destinado para as tarefas escolares. Ele me ensinava que, como os adultos eram obrigados a trabalhar oito horas por dia, assim as crianças deveriam ocupar oito horas diárias para a aprendizagem, na escola e em casa, com o fim de construir seu futuro. Se, no Brasil, ainda não existe esta tradição em todos os lares, é preciso criá-la, pois a educação é a fonte da maior riqueza de um país.

Nenhuma reforma política ou social irá funcionar por longo tempo, se antes não houver uma revolução educacional, criando-se a mentalidade de que sem cultura não poderá se conseguir um emprego decente, independência e liberdade, nem exercer plenamente o direito de cidadania. É preciso entender que a inteligência é uma faculdade que deve ser continuamente estimulada, pois ninguém nasce sabendo. Como exercitamos nosso corpo através de atividades físicas, especialmente pela prática de esportes, assim deveríamos desenvolver constantemente nossa atividade mental, estimulando os neurônios por meio de leituras e reflexões. Aos ideais olímpicos citius (mais rápido), fortius (mais intenso) e altius (mais alto), deveríamos acrescentar outro, cultius (mais sábio).

A educação de uma criança deve começar ainda na gestação, pois uma vida saudável e serena da mãe propicia um nascimento sem medo. E é na primeira infância que se forma a personalidade humana. Por isso que as autoridades brasileiras, acertadamente, estão aumentando a licença-maternidade de quatro para seis meses. Em países mais desenvolvidos o prazo é ainda maior, inclusive contemplando a licença-paternidade. O tempo da licença- gestante é compartilhado entre o casal, de comum acordo. Geralmente, a mãe cuida do bebê nos primeiros meses; depois ela volta para o trabalho e o marido assume seu lugar até terminar o prazo da licença. E nada mais natural, pois é apenas um preconceito achar que só a mãe tem habilidades e condições psicológicas para cuidar de um recém-nascido. Existem homens com maior competência e carinho do que mulheres para este fim. Portanto, pelo princípio constitucional da igualdade de direitos e deveres, é justo dividir o prazo de licença entre os cônjuges.

Outro fator fundamental para a educação é a necessidade da laicidade da Nação que se reflete no ensino público. O problema da ingerência da Igreja no governo do Estado é uma praga antiga e de difícil extinção, pois se trata de uma ação permanente e subliminar exercida sobre a grande massa do povo mantido na ignorância.  O sentimento religioso, conatural ao ser humano na sua ânsia de obter respostas aos problemas fundamentais da existência (Quem somos? De onde viemos? Por que sofremos e morremos? Para onde iremos após a morte?) é manipulado por representantes de igrejas e seitas que, prometendo a  felicidade num hipotético outro mundo, se enriquecem às custas da credulidade da população, fazendo a cabeça de seus fiéis.

Pela pregação da fé num ente sobrenatural, que nos daria a felicidade num outro mundo, padres, pastores, rabinos e aiatolás incutem nos jovens e nos adultos incautos o sentimento do pecado e do castigo infernal, induzindo à mortificação do corpo para a salvação da alma. Pior é que qualquer crença, considerando-se “ortodoxa” (fé verdadeira), leva à guerra entre fiéis de diferentes religiões: cada seita, achando-se detentora da verdade, tenta destruir a fé de outra, considerada falsa e mentirosa.  Chega-se a matar e se matar em nome de Deus. Há nações que educam as crianças a desprezar e odiar etnias que não professam a mesma religião, ensinando a usar armas no lugar de livros.

A História da Cultura no Ocidente, além de testemunhar inúmeras e sangrentas guerras religiosas, prova que toda forma de Teocracia (governo exercido pela autoridade religiosa) apresenta características peculiares: obscurantismo, hipocrisia, miséria, sentimento de culpa. Isso aconteceu particularmente na época medieval, quando a religião católica interrompeu o processo civilizacional do mundo greco-romano. Já falei disso em outro capítulo, mas nunca é demais refletir sobre o absurdo deste longo período histórico: o domínio religioso conseguiu paralisar por mais de seis séculos as atividades culturais e o progresso econômico e social de toda a Europa. É espantosa a comparação com a época anterior, o período clássico da Grécia. O culto do politeísmo, não intervindo na vida política, permitiu que os cidadãos de Atenas, utilizando a inteligência e a fantasia livre de preconceitos, lançassem as bases da nossa civilização. Eles criaram, então, a Democracia, a Filosofia, o Teatro, a Poesia, as Artes plásticas, a Olimpíada, ao longo de apenas  um século, o V a.C. 

Na Idade Média, enquanto o “vir europeus” entrava num processo de estagnação, o “homo arabicus” avançou culturalmente no tempo e no espaço. Mas, passados alguns séculos de glória, também o Islamismo entrou em decadência pela lutas fratricidas entre os descendentes de Maomé. Qualquer sociedade teocrática está predestinada ao retrocesso, porque o dogma religioso, fixado no passado, não admite evolução. A tese do malogro de qualquer governo clerical pode ser confirmada por um simples olhar no mundo atual: as regiões onde as crenças são mais vividas apresentam o pior índice de desenvolvimento social e cultural.  É lá que se alimentam os fanatismos, o absolutismo, o terrorismo, o machismo, a intolerância, a ignorância, a injustiça social, a corrupção, a miséria, o conceito de “pecado”, as várias doenças endêmicas que se espalham pelo planeta Terra.  Nesses territórios, a Filosofia, a Ciência e o Bom Senso não têm vez.

Felizmente, o Brasil é um país constitucionalmente laico e tolerante, permitindo o culto de qualquer religião, sem escolher uma como “oficial”.  Mas, enquanto o Estado respeita o sentimento religioso de seu povo, concedendo completa liberdade de culto, a Religião, contrariamente, não respeita as necessidades do Estado laico.  As várias igrejas e seitas continuamente estão invadindo o direito civil, impondo a seus fiéis normas éticas que impedem o desenvolvimento social.  Nenhuma ideologia religiosa deveria influir na solução de graves problemas sociais, como o planejamento familiar, a pesquisa científica com células-tronco, transgênicos, aborto, eugenia, eutanásia ou pena de morte.   Tais problemas devem ser resolvidos pela sociedade civil, com base no princípio democrático da vontade da maioria, sem a interferência de preconceitos religiosos.

Enquanto o Estado gasta milhões numa campanha nacional para prevenir o povo contra a AIDS e outras doenças transmitidas sexualmente, as igrejas proíbem o uso de camisinha e de outros preservativos ou anticoncepcionais; enquanto o Estado, para respeitar a liberdade individual, permite o divórcio e o convívio entre homossexuais, padres, pastores, rabinos e aiatolás condenam a penas eternas quem faz sexo fora do matrimônio.  Enfim, o cidadão deve obedecer a quem ou a quê?  Ao instinto natural da busca do prazer neste mundo ou a uma ideologia religiosa que lhe proíbe ser feliz nesta terra para alcançar a beatitude no céu?  A crença na existência de uma alma separada do corpo e de uma vida transcendental é uma questão de fé e pertence à alçada individual.  Seus corolários não podem atingir o tecido social como um todo.  A única norma moral que deveria reinar numa sociedade que se quer civilizada é a do respeito:  a si próprio, ao seu semelhante, à natureza, ao bem público.  Nossa vida seria infinitamente mais saudável e feliz, se todo o mundo adotasse apenas o princípio ético universal:

“faça o que quiser desde que não faça mal a ninguém”!

Paternidade Responsável: planejamento familiar, aborto, eutanásia

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura

o legado da nossa miséria”

A afirmação acima, do personagem Brás Cubas, manifesta a costumeira descrença de Machado de Assis nos valores impostos pela sociedade. Por sua ironia sutil ele questiona o direito do homem de pôr filhos num mundo onde reinam o egoísmo, a hipocrisia, o sofrimento. Pensamento semelhante tem Clarice Lispector:

“Meus pais me perdoaram por eu ter nascida. Eu não”

É significativo o fato que, ao nascer, enquanto o bebê chora, seus genitores esboçam um largo sorriso de contentamento por satisfazer o instinto natural da continuação da espécie. Pois bem, a este direito deveria corresponder o dever de assistir o recém-nascido ao longo de toda sua existência, especialmente na infância e na adolescência, quando mais precisa de ajuda, pois é quando se forma sua personalidade. O direito de um homem e de uma mulher terem filhos não pode anular o direito de um filho ter uma mãe e um pai que cuidem da sua existência. 

Infelizmente, no Brasil e em outros países com grandes bolsões de miséria, há gente que põe seres humanos no mundo como se fossem coelhos, “ao Deus cria”, sem as mínimas condições econômicas e psíquicas para cuidar do desenvolvimento satisfatório do fruto de uma relação sexual, amorosa ou ocasional, pouco importa.  Ainda hoje, num mundo que se acha civilizado, há camponeses que se orgulham de ter parido dúzias de filhos!  Como se isso fosse um mérito!  Se pai verdadeiro é quem educa, como um casal (ou, pior, uma mãe solteira), pode cuidar decentemente de muitos filhos?  Não há crime maior do que dar à luz um ser humano sem poder garantir-lhe casa, comida, saúde, educação e, sobretudo, amor. A responsabilidade paterna é insubstituível e o desajuste de uma criança abandonada se reverte em incalculável prejuízo para a coletividade toda, pois é aí que se encontra a origem da marginalidade.

Como nossos governantes respondem a esta questão fundamental de cidadania?  Com o silêncio e a omissão!  Os políticos, pelo medo de perderem os votos das grandes camadas religiosas, induzidas a não usar anticonceptivos por motivos morais, fazem vista grossa e não apresentam nenhum plano eficiente de controle de natalidade.  Através de programas assistenciais, especialmente da bolsa-família, o governo acaba estimulando a procriação irresponsável, pois há miseráveis que põem mais filhos no mundo para ganharem, para cada criança, uns trinta reais a mais por mês. E os políticos demagogos, para angariarem votos, ainda tiram fotos sorridentes com mulheres pobres e desdentadas com bebês no colo e rodeadas por pencas de crianças. Que lindas imagens de cidadania!

Tal absurdo ofende a inteligência e a sensibilidade humana! Enquanto nos países mais civilizados o índice demográfico é quase zero (nascem tantos cidadãos quantos morrem), no Brasil se chega a quase 2%, com a agravante de que a maior superpopulação se dá nas camadas mais indigentes.  É fácil constatar que quem teria condições econômicas para sustentar muitos filhos tem apenas um ou dois, no máximo, e quem não pode criar um filho sequer põe no mundo uma dúzia de descendentes.  Com a inevitável e injusta conseqüência social de que alguém será obrigado a cuidar dos filhos dele: uma avó, uma tia, uma governanta, um orfanato. 

Urge educar o ser humano a assumir a responsabilidade por seus atos, sem transferir o ônus de sua culpa para familiares ou órgãos de caridade.  Quem é “o pai da criança” que cuide dela e, se não o fizer, deveria ser-lhe  proibido  ter outros filhos. A vasectomia e a laqueadura são o meio mais eficaz para reduzir a ignorância, a miséria e a desigualdade social em toda a face da Terra. Não há número de creche que chegue se não se proibir a procriação irresponsável. O controle da natalidade é fundamental para evitar a marginalidade e os conflitos étnicos, provocados por jovens pobres e despreparados que abandonam suas cidades em busca de abrigo em outras regiões ou países. Evidentemente, o problema da explosão demográfica não é apenas do Brasil e somente de agora. Já Aristóteles, no séc. IV a.C., observara:

“Quanto mais desenvolvida for a espécie, menor será sua prole”.

O cientista americano Paul Ehrlich, que se confessa um “neomalthusiano” (da teoria de TR Malthus já falei no capítulo sobre Darwin), no seu livro A Bomba populacional, 1968, adverte que estamos correndo o risco de ultrapassar o limite da sustentabilidade da vida no nosso planeta. Enquanto nações ricas e desenvolvidas têm um rígido controle de natalidade, países da África, da Índia, do Oriente Médio e da América Latina, que contêm regiões de extrema penúria, aumentam sua população de uma forma irresponsável. A religião de Maomé permite ao fiel ter até quatro esposas. A pergunta é: mesmo que o pai tenha condições econômicas para sustentar a numerosa prole de várias mulheres, terá ele condições psíquicas para educar tantas crianças com a assistência e o amor do que elas precisam?

Felizmente, a história da formação dos haréns já está melhorando: enquanto, no longínquo séc. XV, o Sultão da Índia, Ghiyas-ud-Din Khilji, teve 15 mil mulheres, na atualidade, precisamente em setembro de 2005, o Rei da Suazilândia, MSWATI III, por um concurso entre 50 mil moças virgens, escolhia sua 13ª esposa, prometendo que seria a última. Mais recentemente, no Canadá, o empresário Winston Black-More, chefe de uma igreja mórmon, com 49 anos, se contenta com apenas 30 mulheres.

Mas já aparece uma luz no fim do túnel, vindo do próprio Extremo Oriente, tradicionalmente muito prolífero: a China promulgou e fez vigorar uma lei férrea que proíbe às mulheres de terem mais de um filho. Tal providência, junto com o investimento maciço na educação das crianças, fez com que, em apenas duas décadas, a China passasse de país emergente à Quarta Potência Econômica do Mundo.

A eficiência do planejamento familiar e a educação para a prática do sexo seguro e responsável facilitariam muito a solução de um gravíssimo problema ético e social: o aborto. Decidir quem tem o direito de dar início ou fim a uma vida, eis a questão. Todas as religiões professam a fé na origem divina do ser humano, considerando a vida como um dom de Deus, que colocaria uma alma imortal em cada corpo humano em algum momento da gestação. Até agora, porém, nenhum teólogo se dignou precisar onde e como se daria tal intervenção divina.

A neurociência nos ensina que a formação biopsíquica de qualquer ser humano está sujeita ao princípio geral da evolução. Ao tomar forma, o embrião torna-se feto, adquirindo características peculiares na dependência de traços genéticos e culturais. A mãe, via placenta, transmite ao feto sinais ambientais da vida intra e extra-uterina. A leitura destes sinais, feita pela massa cerebral, irá moldar a personalidade da criança. Portanto, a parte espiritual do ser humano, que nós chamamos alma, mente ou inteligência, constituída pelos neurônios, não é colocada lá, de fora para dentro e de uma vez, num determinado momento, mas se molda gradativamente, a partir de experiências anteriores ao nascimento e evoluindo até à morte cerebral.

Para a ciência biológica, que não cogita em nenhuma intervenção sobrenatural, a vida inicia quando um espermatozóide, penetrado no útero de uma mulher, consegue engravidá-la. O elemento genético masculino fecunda o feminino, dando início ao processo de desenvolvimento do feto, que leva aproximadamente nove meses até chegar a sua formação completa e vir à luz, saindo do corpo materno. O problema discutido é em que momento da gestação o feto pode ser considerado uma vida “humana”, por ter adquirido uma estrutura cerebral capaz de conter a inteligência, o elemento espiritual, o que os religiosos chamam de “alma”, que distinguiria o homem da besta. A maioria dos cientistas acha que este estágio de desenvolvimento craniano não se alcança antes da 12ª semana de gestação. Com base nisso, quase todos os países consideram não criminoso o aborto realizado até o terceiro mês de gravidez, pois não há humanidade sem vida mental.

A legislação brasileira (Código Penal, artigo 121) considera o aborto um ato não criminoso apenas em duas circunstâncias: “se não há outro meio de salvar a vida da gestante ou no caso de gravidez resultante de estupro”. Entendemos a ressalva do primeiro caso, pois pode se aduzir o princípio da legítima defesa; mas o segundo caso é um absurdo jurídico. Que culpa tem um feto se foi concebido por uma violência sexual? Se a proibição do aborto tem como justificativa a preservação da vida, então como condenar um inocente à pena de morte? Será que o feto gerado por estupro tem menos vida do que outro proveniente de uma relação consensual? Não se trata de uma abominável discriminação? Como a Justiça humana pode ser tão injusta? O autor dessa lei deveria ganhar um duplo Prêmio Nobel: da Crueldade e da Estupidez! O pior é que este artigo ainda continua vigorando, nas barbas de tantos políticos e juristas ilustres!

No fundo, trata-se de um subterfúgio legal para não admitir que não faz sentido considerar qualquer aborto como um ato criminoso. A meu ver, o aborto é um assunto de foro íntimo, que diz respeito apenas à mulher grávida. É somente ela quem deve decidir o que fazer com o que está dentro do seu corpo. Pode haver circunstâncias em que não é benéfico, nem para a mãe, nem para o feto, levar a gravidez até o fim. Há na natureza inúmeras gestações (não somente de seres humanos, mas também de animais e plantas) que não dão certo por malformações de vários tipos. Algumas chegam ao chamado “aborto espontâneo”, outras precisam de intervenção por motivos de ordem física ou psicológica, sempre conforme a vontade da gestante, pois ninguém, jamais, poderia obrigar alguém a abortar. O importante é que a decisão tenha em conta, mais do que o egoísmo da futura mãe, o interesse do nascituro, para não ferir o direito de um inocente. A mulher tem que se perguntar: será que o espermatozóide que fecundou meu útero gostaria de se tornar gente em condições tão precárias? Se a resposta for negativa, o aborto se aproxima da eutanásia.

À sociedade cabe defender a vida humana apenas depois que a criança “vem à luz”, tornando-se cidadã. Descriminalizar o aborto e conceder ajuda médica à mulher que considere o feto de vida improvável ou indesejada se tornaria um imenso benefício para o indivíduo e para a sociedade. Seriam evitados muitos sofrimentos de mulheres que, não tendo condições materiais ou psicológicas de levar adiante gravidez, parto e educação de um filho, envergonhadas pela irresponsabilidade, procuram casas clandestinas ou sites que vendem kits abortivos, arriscando sua vida. Do ponto de vista social, há várias teses demonstrando que a legalização do aborto reduz o nascimento de filhos indesejados e filhos indesejados têm maior chance de se envolverem em atividades criminosas.

Evidentemente, o aborto, por ser um ato de violência contra a natureza, deveria ser visto como último recurso. Prevenir é sempre melhor do que remediar. Se não houvesse tanta hipocrisia e preconceito moral, o Estado poderia fazer uma maciça e constante campanha de orientação sexual, visando uma ação preventiva através de uma política pública de educação reprodutiva. Mas, infelizmente, todas as igrejas consideram o planejamento familiar como um anátema, colocando seus defensores no ostracismo. Para a religião, preservativos, pílulas e outros meios contraceptivos são armas do demônio, letais para a salvação da alma. E isso porque o relacionamento sexual, em lugar de ser encarado como uma prática prazerosa e saudável, é visto como um ato pecaminoso. Nunca entendi porque as igrejas, quase todas, são contra o prazer sexual, legitimando a conjunção carnal apenas no casamento e para a procriação. Fazer sexo num período determinado, somente na época do cio, é uma característica animalesca, não humana!

Como o aborto, também a eutanásia diz respeito ao direito de viver ou morrer. O étimo grego significa “boa morte”: ajudar um enfermo incurável a morrer, pondo fim ao sofrimento, sendo esta sua vontade expressa ou presumida. Distingue-se a eutanásia “ativa", uma ação combinada entre o doente e outra pessoa para causar a morte, e a eutanásia “passiva” (ortotanásia), que não provoca deliberadamente a morte, mas interrompe o tratamento médico de manutenção do estado terminal. Qualquer forma de eutanásia é proibida pela religião, que acredita a vida humana pertencer a Deus, e pelo Estado, que tem como princípio a proteção da vida de seus cidadãos. A questão bioética é muito discutida e resolvida de modo diferente nos diversos países.

Mais uma vez, configura-se o choque entre o legal e o moral. Fui visitar na Itália, há pouco tempo, minha irmã mais velha em estado terminal. Passei uma semana, junto com outra irmã, cunhado, filhos e netos, assistindo seu imenso e inútil sofrimento, pedindo insistentemente que Deus a chamasse para si. Mas este Deus, em quem ela tanto acreditara a vida toda, se revelou insensível à sua dor. Afinal, se a gente não pediu para vir ao mundo, por que não ter o direito de sair dele quando quiser e descansar em paz? Por que aguentar tanto sofrimento e fazer padecer inutilmente tantas pessoas que nos amam? Decididamente, a religião torna infinita a estupidez! O ser humano sente mais compaixão pela dor de um animal (mata um cavalo doente) do que pelo sofrimento de um seu semelhante. A meu ver, muito mais “humanos” são os Kutchin, tribo de esquimós que vivem na região do Alasca. Neste lugar, as pessoas idosas e doentes, que não se sentem mais úteis, pedem para serem mortas pelos familiares, e estes obedecem a sua vontade. Se não podemos evitar a morte, destino final de todo ser vivo, por que não abreviar o sofrimento terminal? Confundimos sensibilidade com egoísmo ou fraqueza: não suportando a dor pela perda de um ente querido, deixamos que ele continue sofrendo!

Saúde e Previdência, Transporte Coletivo

O Sistema Unificado de Saúde (SUS) e de Aposentadoria e Pensões (INSS), atualmente em vigor no país, infelizmente, não estão sendo satisfatórios.  Tanto é verdade que, quem tem alguma possibilidade econômica, recorre a convênios médicos hospitalares e odontológicos privados e a previdências complementares para tratar do seu bem estar e garantir uma velhice decente.  A maior parte do dinheiro arrecadado pelo INSS se perde nos meandros da burocracia estatal, sendo muito mal aplicado, quando não surrupiado.  A pergunta é: se o Sistema Único de Saúde e de Aposentadoria, gerido pelo Estado, não está funcionando de uma forma eficiente, por que o cidadão é obrigado a pagar por uma prestação de serviço insatisfatória?  Por que tem que duplicar a despesa, pagando duas instituições, a pública e a privada?

O atual sistema previdenciário e de saúde poderia ser melhorado se se fomentassem, paralelamente, assistências médicas e previdências particulares regionalizadas.  Ao Estado caberia apenas o ônus da vigilância e da supervisão, como órgão regulador.  Cada dono de empresa ou empregador deveria ter a responsabilidade de cuidar da saúde de seus funcionários ou diretamente, se for uma empresa grande, ou indiretamente, através de convênio com instituições habilitadas.  O dinheiro que atualmente é recolhido pelo empregado e pelo empregador, seria destinado diretamente ao convênio médico-hospitalar escolhido pelo patrão, em conjunto com os trabalhadores. A instituição escolhida poderia ser substituída por outra, caso não funcionasse de uma forma satisfatória.  

Ao Ministério da Saúde e às Secretárias estaduais e municipais caberia o ônus de atender apenas aos desempregados e à  população mais carente, através de hospitais públicos e postos de saúde. Também caberia ao Estado a prevenção e o tratamento de doenças endêmicas, a distribuição de remédios genéricos para as pessoas pobres, junto com a supervisão dos convênios particulares. Pretender resolver o delicado problema da saúde pública através de um órgão centralizado num país imenso como o Brasil é uma tremenda falta de sensibilidade para com o sofrimento humano. O doente não pode esperar os longos trâmites burocráticos para contratação de médicos e funcionários ou para compra de equipamentos ou medicamentos. Em países civilizados é o médico que visita o paciente, pois este, por ser doente, não pode enfrentar longas filas.

O mesmo poderia acontecer com a Previdência Social: todo empregador, após consultar seus funcionários, poderia escolher o “fundo de pensão” em que seriam depositados, mensalmente, os recursos arrecadados.  Ao mudar de emprego, o trabalhador teria carimbado na sua carteira os anos e os meses pagos, podendo transmigrar para outro fundo sem perda alguma.  Chegado o tempo da aposentadoria, ele receberia um provento proporcional aos anos pagos e à percentagem depositada, sem limitação de teto e sem distinção entre quem trabalhou para o Estado ou para uma empresa privada, abolindo-se qualquer forma de privilégio. 

Se o princípio da “meritocracia” deve estimular o homem para o trabalho, é justo que, da mesma forma, quem mais plantou deveria colher mais, fazendo jus a uma aposentadoria correspondente a sua produção e contribuição.  Essa é a verdadeira “justiça social”.  E, mais uma vez, ao governo caberia apenas amparar uma minoria que, por motivos de doenças ou absoluta falta de recursos, não conseguiu acumular o suficiente para gozar de uma boa velhice. Enfim, é preciso entender que saúde e aposentadoria, assim como educação, transporte e segurança pública, são os alvos fundamentais a serem atingidos pelo pagamento de nossos impostos, sendo injusta e infrutífera qualquer tributação específica. Para a saúde, além do INSS e dos convênios médico-hospitalares e odontológicos, chegamos a pagar por vários anos também uma Contribuição Provisória (imposto sobre movimentação bancária), sem que a assistência fosse melhorada.

Transporte coletivo

Os últimos governos que presidiram o Brasil, ao sucatarem as ferrovias, cometeram um crime de incalculáveis conseqüências econômicas e ecológicas.  E ninguém pagou ou vai pagar por isso, porque os males cometidos contra a coletividade ficam sempre impunes. As nações mais civilizadas, há décadas, vêm aprimorando o transporte ferroviário, construindo locomotivas cada vez mais velozes para o transporte de pessoas e cargas. Enquanto isso, o Brasil engatou a marcha à ré, desprezando a evolução tecnológica neste setor vital para a economia de um país imenso como o nosso.

O olhar míope dos políticos se juntou à ganância das montadoras estrangeiras e das companhias petrolíferas e de pneumáticos para acabar com as linhas ferroviárias existentes, privilegiando as estradas de rodagem, meio de transporte mais lento, mais caro, mais perigoso e extremamente poluente.  Ninguém é contra a construção de caminhões e de automóveis na nossa terra. Mas, por que continuar com o vício da “monocultura”? Junto com o desenvolvimento da indústria automotora, por que não se cuidou também do transporte ferroviário, aéreo e fluvial? A estrada de ferro seria o transporte mais adequado para cobrir as longas distâncias e por usar a eletricidade, que é uma energia nossa, mais limpa e mais  econômica. 

E não faltaram propostas que vinham ao encontro dessa necessidade nacional.    Anos atrás, a imprensa noticiou a apresentação de um projeto de “trem-bala” entre São Paulo e Rio de Janeiro, que faria o trajeto entre as duas maiores capitais em apenas duas horas. Tecnologia japonesa, capital internacional, mão de obra brasileira, exigindo apenas dez anos de exploração para recuperar o dinheiro investido.  Em Brasília, conforme então vociferado, membros do Congresso Nacional boicotaram  o projeto, atendendo ao lobby das companhias de automóveis, de petróleo, de pneus, de autopeças, da ponte aérea, que se sentiram prejudicadas em seus interesses corporativistas.  Mais uma vez se evidência a origem de todos os nossos males: a corrupção da classe política, que apóia quem lhe dá dinheiro por baixo do pano, prejudicando os superiores interesses da maioria do povo. A classe política, fechada num egoísmo imediatista, não se preocupa com o futuro de nossos filhos e netos.  E este, que é o crime mais hediondo, continua impune!

Onde a preferência para o transporte rodoviário nos está levando?  As estradas de rodagem já não suportam mais a enorme carga transportada pelos caminhões do Norte ao Sul do país, esburacadas em sua maioria.  Nossas cidades estão cada vez mais entupidas de automóveis, com trânsito congestionado e poluição insuportável, provocando stress e doenças  respiratórias. As conseqüências dos congestionamentos, nas rodovias e nas cidades grandes, são terríveis e afetam fortemente a economia nacional, o nosso bolso e a nossa saúde. A saber: aumento do consumo de combustível; desgaste de equipamentos; poluição atmosférica; perdas de horas de trabalho; desgaste físico, nervosismo e stress. O pai da comunicação, Marshall McLuhan, um dia afirmara que a roda era a extensão do homem; hoje parece que está acontecendo o contrário; o homem se tornou escravo da roda!

Para melhorar o transporte coletivo deveriam ser tomadas umas medidas imediatas e outras em longo prazo. Urgentemente, é preciso socorrer a viação aérea, para evitar mais colapsos e desastres. É triste o espetáculo de velhos e crianças dormindo no chão de aeroportos. Além da modernização de equipamentos e da preparação de mais controladores, é preciso resolver o problema da falta de uma companhia aérea de bandeira nacional, de capital misto, tipo PPP (Parceria Pública Privada). É uma vergonha que um país com mais de 180 milhões de habitantes, construtor e exportador de aeronaves, não tenha uma competente linha aérea internacional.

Os brasileiros são obrigados a utilizar companhias estrangeiras, que cobram mais caro, não falam nossa língua e servem comidas exóticas. Nas linhas nacionais, o governo poderia baratear as passagens aéreas por isenção de impostos e subsídios. Fundamental, a médio e a longo prazo, é dar prioridade ao transporte ferroviário, quer para longas distâncias, quer para a condução urbana.  Todas as grandes cidades de países desenvolvidos fazem largo uso do metrô, que pode ser subterrâneo, aéreo ou ao nível do solo, com faixas exclusivas para locomotivas.  Um vagão de metrô transporta mais gente do que dúzias de automóveis, e de uma forma rápida, segura, mais econômica e menos poluente e estressante. 

É só fazer uma grande rede que conecte os principais bairros de uma cidade, como existe em Londres, Paris e Tókio. Lá, poucas pessoas usam o carro particular diariamente para ir trabalhar.  Se não tomarmos providências agora, nossos filhos e nossos netos herdarão o caos em termos de transporte, pois, a cada dia e no Brasil todo, milhares de carros e caminhões novos invadem rodovias e ruas e o espaço físico não se dilata.   Alternativa paralela seria o transporte fluvial, favorecido pela grandiosidade de nossos rios. Não seria de grande benefício para o país todo melhorar os portos existentes, criar novos ancoradouros, incentivar a construção naval? Será que nossos políticos pensam nisso?  E nós, que os reelegemos, somos burros ou masoquistas?

Trabalho, Meritocracia, Justiça

“Um dia trabalharei. E dentro de vinte e cinco ou trinta anos, no máximo,

cada homem trabalhará. Cada homem!”

Esta fala do barão Nikolai Tusenbach, personagem da peça As três irmãs, de Anton Tchekhov, representada em 1901, foi profética, pois, 16 anos depois, estourou a Revolução Bolchevique na antiga União Soviética, obrigando todos os homens a produzirem bens para a coletividade. Estava instalado o regime comunista com a pretensão de pôr em prática os ideais socialistas de Karl Marx. Pena que os privilégios, tirados da classe nobre da época czarista, reaparecessem ao longo do domínio dos burocratas soviéticos, levando a revolução comunista ao fracasso.

Na verdade, o trabalho é um direito e um dever fundamental do ser humano, sendo a única atividade que realmente nobilita nossa existência.  “Direito” porque, se não encontrar um emprego decente, como uma pessoa adulta pode sustentar a si e a sua família?  Mas é, sobretudo, um “dever”, pois, se o homem não se preparar para um ofício, dificilmente arrumará um bom emprego. Toda criança, desde cedo, deveria ser estimulada, pela Família e pelo Estado, a pensar no seu futuro, a se perguntar “o que vou fazer quando crescer”? Completado o ensino médio, se não tiver vocação pela intelectualidade e quiser ou puder fazer um curso universitário, deve escolher uma profissão, não importa qual. Qualquer trabalho torna-se nobre, quando é realizado por competência e amor. Quem adquirir um “saber fazer” alguma coisa (know how),  nunca estará desempregado por muito tempo. 

Acontece que alguns jovens, especialmente os que não recebem a atenção dos pais, se acostumam a uma forma leviana de vida, apenas curtindo baladas, “ficando” com namoradas e vivendo encostados em familiares.  Quando acordam para a vida, já adultos, entram em desespero, pois percebem que não conseguem competir com quem se preparou.  Pagam, assim, o preço da infração da lei cósmica, que impossibilita a colheita sem plantio.  E, se plantou vento, irá colher tempestade!  Quem foi vagabundo na juventude, dificilmente vai ter uma boa velhice. Há gente que não procura “trabalho”, mas apenas “emprego”.  É triste constatar que esta tendência já se tornou um fato cultural no nosso país, pois o exemplo vem de cima.  Muitos funcionários públicos vivem mamando nas tetas do governo, produzindo pouco e ganhando muito, em detrimento de outros que trabalham muito e ganham pouco.

No Brasil, a injustiça social, especialmente a salarial, é simplesmente pavorosa: o mesmo governo, que paga um mínimo de 450 reais, autoriza o pagamento de 45.000 ou mais para altos burocratas. É absurdo constatar que um ser humano acaba recebendo um salário cem vezes maior do que outro!  A proporção é descomunal, ofendendo a inteligência e a dignidade humana!  Em alguns países (especialmente da Escandinávia), cultural e economicamente mais desenvolvidos, a proporção não pode passar de quatro vezes:  se o salário mínimo é de mil euros, o governo não  vai pagar mais do que quatro mil para qualquer funcionário público.

 Quem sabe, um dia chegaremos a um “Estado de Direito”, onde a lei será igual para todos, na realidade e não apenas no papel; onde cada qual seria remunerado conforme o mérito, o trabalho realmente efetuado, com a abolição de qualquer forma de privilégio. Alguém poderia  nos dizer para que serve o cargo de “Delegado de Ensino”, ocupado por nomeação política?  Não bastam o Diretor da Escola e o Secretário da Educação para orientar as atividades docentes e discentes?  Para que tantos pedagogos, coordenadores, orientadores educacionais, assistentes sociais, psicólogos nas escolas públicas? Com tanto dinheiro gasto para intermináveis reuniões de estéreis “planejamentos”, poder-se-ia remunerar melhor o professor que realmente trabalha.

Estes são apenas alguns exemplos dos inúmeros cargos burocráticos de quase nenhuma utilidade, criados como cabides de empregos para gente envolvida com a política. Os muitos ministérios, secretarias, cargos públicos por indicação servem apenas para acomodar partidários e familiares de políticos. Infelizmente, os Três Poderes constitucionais, o Legislativo, o Judiciário e o Executivo, agem como corporações interessadas em defender os privilégios de seus membros: o primeiro legifera em causa própria, o segundo julga legal o que lhe convêm e o terceiro, a Presidência da República, que dá o exemplo de gastos desnecessários, ratifica os abusos. Os poderosos, ciosos de seus “direitos adquiridos”, pouco se importam com a transgressão do princípio constitucional da isonomia, a igualdade de todos perante a lei, pelo qual para o mesmo trabalho deveria haver retribuição idêntica.

Esta falta de sentimento de justiça social cria revolta no cidadão, quando vê que numa cidade vizinha, por pertencer a outro Estado, a  professora de cá ganha a metade da de lá; que o docente do ensino básico de um Município ganha mais do que o professor do ensino médio do Estado; quando o Prefeito vai de carro do ano buscar a “cesta básica”; quando a funcionária da Petrobrás, que trabalha na cidade do Rio de Janeiro, num escritório com ar condicionado, recebe o auxílio de “insalubridade”; quando um Juiz de Direito recebe, entre outros privilégios, ajuda de custos para pagar a escola particular de seus filhos, enquanto a balconista não encontra vaga para suas crianças na escola pública; quando o Presidente da República, em detrimento do seu concorrente, usa toda a máquina administrativa para se reeleger.

O problema é que, se em tese e pela lei, todos os homens são iguais, na prática, existem uns que se consideram “mais iguais” do que outros, conforme reza uma famosa fábula. Tentar levar vantagem é natural, faz parte do egoísmo humano. Por isso, cabe ao poder público coibir as injustiças. A verdade é que a democracia política só funciona se existir uma democracia econômica. É preciso entender que o bem público, no fim, se reverte também no bem privado. Recentemente, um empresário italiano fez uma experiência inédita: ele e sua família tentaram viver por um mês com o salário médio que pagavam a seus empregados. Experimentou que o dinheiro acabara no 20º dia. Resolveu, então, aumentar o ordenado dos funcionários não por generosidade, mas por puro egoísmo, pois verificou que o stress causado pela falta de dinheiro prejudicava a qualidade e a quantidade dos produtos.

Na verdade, é preciso entender que não se constrói cidadania alguma sem um profundo sentimento de justiça. Mas a justiça realmente existe? Esta interrogação ocupou o espírito de muitos estudiosos da natureza humana e do viver em sociedade. Um personagem de uma peça de Shakespeare, num diálogo sobre a resolução dos problemas do Reino, criticando os que cometem injustiças em nome da Lei, especialmente os advogados que, para defender criminosos, chegam a faltar com a verdade, exclama:

“Em primeiro lugar, matemos todos os advogados”

A Justiça romana, correspondente à grega Diké, era a deusa dos julgamentos, filha de Júpiter (o “Poder”) e de Themis (a “Prudência”), irmã da “Verdade”. Tal divindade alegórica era representada como uma mulher nua, de porte majestoso. A partir deste protótipo, ao longo da cultura ocidental, a Justiça recebeu várias configurações por escultores e pintores, que tentaram dar uma forma plástica ao conceito. A estatuária grega representa a Justiça como uma mulher bonita, sempre em pé, segurando na mão esquerda uma balança e na direita uma espada. De olhos bem abertos, observa o equilíbrio entre os dois pratos, pois é lá que se encontra o justo (ison=isonomia); a espada, além de indicar a força, simboliza também o cortar justo no meio as razões apresentadas pelos dois lados em litígio.

Já os romanos representavam a deusa Justitia com os olhos vendados, significando a imparcialidade nos julgamentos. Sem a espada, ela segura a balança com as duas mãos, como sinal de firmeza. A força está na palavra: jurisdição significa jus dicere (“dizer o que é certo, justo, direito”) e lex (“a lei”) tem como étimo o verbo legere (“ler” em voz alta, para ser ouvido por todos). Na visão medieval, uma pintura do séc. XIII retrata a Justiça ao lado da Prudência conversando nas nuvens, indicando claramente que a Justiça verdadeira só existe lá no Céu.

Na entrada da Suprema Corte da capital norte-americana, a Justiça é representada por uma estátua colossal, majestosa, colocada no alto da escadaria. A figura feminina está sentada, vestida solenemente, segurando na mão direita a Constituição de 1787. Em Brasília, na frente do Supremo Tribunal Federal, pode-se contemplar a escultura de Alfredo Ceschiatti: o Poder Judiciário é representado por uma mulher pequena, sozinha, sem a balança, com a espada descansando sobre suas pernas, de olhos vendados, talvez para não enxergar as mazelas dos Três Poderes.

Na cultura ocidental, foi Montesquieu, o precursor e teórico da Revolução Francesa, que codificou o direito natural das coisas na sua obra Do Espírito das Leis (1748), desenvolvendo a teoria da separação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, que está na base da maioria dos atuais governos constitucionais. Cada qual no seu lugar, fazendo o que lhe compete, sem invadir o espaço alheio e ganhando conforme o mérito. Tal conceito racional de justiça está descrito de uma forma bem simples na peça O Círculo de Giz Caucasiano, de Bertolt Brecht:

“Vocês que conhecem a história do círculo de giz,

lembrem-se da opinião dos antigos.

As coisas devem ser entregues a quem melhor as serve.

Eu quero dizer, as crianças às pessoas mais maternais

para crescer e florescer; as carruagens aos bons condutores

para que a viagem seja boa; e o vale aos que vão irrigá-lo

para que a colheita seja abundante”.

Mas será que essa justiça existe na realidade ou, se houver, ela é igual para todos? Ela é tão natural assim? Não se trataria apenas de um mito cultivado por agrupamentos civilizados? Efetivamente, se a gente olhar para a natureza, irá perceber desigualdades e criminalidade em todo lugar: uma árvore robusta e frutífera, contraposta a outra raquítica e estéril; o leão que mata e come o cordeiro indefeso, sem piedade alguma; enchentes aqui e secas acolá. O próprio ser humano não nasce com o sentimento de justiça: a criança é naturalmente egoísta, apossando-se da boneca que não é dela. Já citei, em outro lugar, a definição do filósofo inglês Thomas Hobbes: “o homem é o lobo do homem”. A meu ver, a idéia de justiça está intrinsecamente relacionada com a necessidade de viver em sociedade. Pertence ao código cultural e não natural. Em certo momento, o homem se deu conta de que, se não respeitasse a mulher do outro, este também não respeitaria a sua e começaria a briga, e a vida em comunidade se tornaria um inferno. Daí a necessidade do surgimento da lei e da punição.

Portanto, o que distingue uma sociedade civilizada de uma selvagem, não é a ausência da maldade ou da corrupção, mas sua impunidade. A previsão da não punição é o maior estímulo para a prática da delinqüência. A advertência moral não funciona sem o medo do castigo. As igrejas aterrorizam seus fiéis com as penas do Inferno, caso não se redimirem de seus pecados. Educação e punição devem ser considerados dois conceitos complementares e não excludentes. O que induz as crianças a estudar é o medo da reprovação e o conseqüente castigo paterno. Pode-se facilmente verificar que a conjunção da cultura do civismo com severas penalidades levou países a um alto grau de civilização.

Contrariamente, quando o rigor da lei é aplicado apenas aos pobres indefesos, temos o atraso civilizacional. Em países subdesenvolvidos, os grandes criminosos, especialmente os que assaltam o erário público, os sanguessugas da sociedade, dificilmente pagam pelos seus delitos. Tendo o poder econômico e a influência política, eles contratam os melhores advogados que, aproveitando das brechas que se encontram nas leis e da morosidade da máquina burocrática da Justiça, adiam a condenação ad infinitum, até a prescrição do crime.

Acrescente-se que, além do emaranhado absurdo do sistema judiciário e da incompetência de alguns membros, existe corrupção nos próprios Tribunais. Como diziam os antigos romanos: atque custodem quis custodiat? (“e quem vai tomar conta do guarda?”); ou, na expressão do escritor contemporâneo Norberto Bobbio: “quem controla os controladores?”. Machado de Assis é mais explícito: “é claro que a justiça, sendo cega, não vê se é vista, e então não cora”. Mas que vai se fazer: como os outros humanos, também os juízes estão sujeitos às limitações da nossa espécie. Da Justiça podemos dizer o mesmo que se costuma falar da Democracia: “ruim com ela, pior sem ela”!

Mas, quanto mais fraco é o homem, mais fortes deveriam ser as instituições jurídicas para se evitar falcatruas. O princípio constitucional de que “a lei é igual para todos” deveria ser aplicado de uma forma inexorável e em qualquer circunstância. Infelizmente, o conjunto de leis que vigoram atualmente (a própria Constituição, os Códigos Penal e Civil e outras fontes normativas) está eivado de privilégios e imunidades que anulam o preceito da isonomia, considerando uns cidadãos “mais iguais” do que outros. O pior é que a prática da desonestidade e da esperteza, de tão generalizada, se torna modelo de comportamento, pois o folgado, o malandro, o corrupto acaba tendo aceitação social. Na prática, desmente-se o princípio ético de que “o crime não compensa”. Compensa, sim, e como! O desonesto, o traidor das promessas públicas e privadas, além de ser repetidamente eleito para ocupar cargos públicos, se torna o protótipo do herói admirado pelo povão que exige que tais “virtudes” sejam encarnadas nos personagens de telenovelas. A massa popular sente um prazer masoquista em ser enganada e aprecia a capacidade de disfarçar, pois, como dizia ironicamente Machado de Assis, “O pecado, depois do pecado, é a revelação do pecado”.

Faz-se necessária nova ordem jurídica que acabe com imunidade parlamentar, foro privilegiado, voto secreto, distinção entre justiça militar e civil, regalias sem merecimento, segredo de justiça. Além do habeas corpus deveria funcionar o habeas data: nenhuma informação pode ser ocultada, nenhum negócio considerado sigiloso quando implicar em despesas com o dinheiro de nossos impostos. O sistema de escuta telefônica ou qualquer outra forma de invasão de privacidade deve ser permitido toda vez que estiver em jogo o interesse da coletividade. Quem não quiser ter sua vida vasculhada não ocupe cargos governamentais. É bom lembrar que o étimo da palavra República significa “coisa pública”, portanto, de todos, “visível” para qualquer cidadão. O regime democrático implica numa transparência absoluta. Recordemos as palavras de Martin Luther King: “a injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo o lugar”. A iniquidade é sempre causa de discórdia. O próprio Rei da França Luis XIV, autor da famosa frase “O Estado sou Eu”, reconhecia isso ao afirmar que toda vez que indicava alguém para ocupar um cargo de confiança arrumava cem inimigos e um ingrato.

Proposta de uma Constituinte sem políticos

“Só os visionários enxergam o óbvio”(Arnaldo Jabor)

O jornalista acima citado, Arnaldo Jabor, relata a seguinte confidência feita-lhe pelo imortal dramaturgo Nelson Rodrigues: se Deus perguntar para mim se fiz alguma coisa que preste na vida para entrar no céu, responderei: “Sim, Senhor, inventei o óbvio”. O escritor de peças e o crítico de arte concordam no fato de que o homem comum não enxerga a realidade das coisas que estão ao alcance de um simples olhar inteligente. Seguindo o instinto gregário, ele se alimenta do caldo cultural em que foi criado, sem pensar sobre a possibilidade de uma mudança da realidade que o faz sofrer, projetando sua felicidade num hipotético mundo sobrenatural.

As reflexões feitas ao longo deste despretensioso estudo sobre nossa realidade existencial ensejam medidas inovadoras, radicais. Mas, qual é a verdade que não dói?  Vamos continuar com o “faz de conta” de promover reformas sociais? De ilusão também se vive, mas se vive mal, ao sibilar de balas perdidas, com o medo de assaltos e seqüestros, entre brigas de policiais e traficantes de drogas. Também se vive mal à vista de crianças pedindo esmolas nos semáforos ou de milhares de mortes nas estradas esburacadas e nos aeroportos mal cuidados, olhando os políticos surrupiar o dinheiro público ou na esperança de um deus nos acuda. Se quisermos salvar o corpo infectado, faz-se necessário amputar os membros cancerígenos! 

É preciso entender que o problema da governabilidade do Brasil vem de longe e está nas instituições que tradicionalmente permitem o domínio permanente de oligarquias que sustentam e são sustentadas por currais eleitorais. A corrupção, como um câncer maligno, já se alastrou por todo o tecido social. Não tenhamos ilusões: enquanto os políticos continuarem a legiferar em causa própria e os juízes a tolerarem a impunidade e a injustiça, nenhuma reforma substancial irá ocorrer. A única saída possível do caos social e moral, em que sempre vivemos, mas agora está se tornando insuportável, colocando novamente em risco as liberdades democráticas, é a preparação de uma nova Carta Magna. Só com ela poderiam ser realizadas as reformas indispensáveis para o brasileiro usufruir direitos e praticar os deveres de cidadania. É preciso pensar numa nova ordem institucional que garanta, ao mesmo tempo, a estabilidade governamental e a possibilidade de mudança imediata, caso os anseios do povo não sejam atendidos.

Fundamental é que o conjunto de leis deveria ser elaborado não pelos atuais políticos detentores do poder, mas por uma Assembléia Constituinte composta de cidadãos honestos e competentes, imbuídos de um alto espírito patriótico, dispostos a trabalhar gratuitamente. Os constituintes deveriam jurar que não irão ocupar cargos públicos eletivos ou executivos, pois nunca deverá ser permitido legislar em causa própria. O pecado original da Constituição em vigor é que ela foi redigida por Deputados e Senadores da República preocupados mais em defender os privilégios corporativistas do que o bem estar social. Não preciso citar o nome de um ilustre Senador Constituinte pelo Estado de São Paulo que deixou seu cargo com o acúmulo de cinco polpudas aposentadorias, todas pagas com o dinheiro de nossos impostos!

Em vista de que a Presidência da República e os poderes do Legislativo e do Judiciário não estão interessados em promover as indispensáveis reformas estruturais, cabe à Sociedade Civil iniciar um movimento de conscientização para a construção de uma verdadeira cidadania. ONGs que cuidam de democracia, cidadania e transparência, ajudadas pelo “quarto poder”, constituído pelos meios de comunicação, deveriam convocar as forças vivas da Nação (Ordem dos Advogados, Sindicatos, Uniões de Estudantes, jornalistas, artistas, cientistas) para formular um esboço de Constituição, enxuta e assertiva. O projeto seria submetido à apreciação de todos os cidadãos, via Internet e outros meios de mídia interativa, para acolher sugestões. Sua redação final seria objeto de aprovação popular via Referendum ou Plebiscito.

Anteriormente a uma reforma do sistema político, qualquer eleição deveria ser considerada eticamente ilegítima. Um país é realmente democrático quando o voto popular é expresso livremente, sem nenhuma obrigação de ordem física ou moral. Ora, se o povo mais necessitado, que constitui a maioria absoluta dos eleitores, vende seu voto em troca de um benefício qualquer, sua escolha não está sendo livre. O voto de cabresto é a negação do próprio princípio democrático por causar um verdadeiro mercado: irá vencer quem tiver mais dinheiro para gastar ou, estando já no poder, oferecer mais regalias. Nossa desgraça é que o regime de prepotência ainda não acabou: apenas conseguimos substituir a ditadura pelas armas por uma ditadura pelo voto. Os governantes, para ficarem no poder, simplesmente compram o voto da massa popular mais carente e desinformada, em troca de uma bolsa, de um remédio, de uma assistência qualquer. Daí a formação dos currais eleitorais que permitem famílias de políticos dominarem imensas regiões por várias gerações, usando da máquina do Estado para sua propaganda eleitoral.

Para quebrar este domínio escravagista, portanto, é necessária uma nova ordem social. Não adianta fazer eleições se o povo não tiver maturidade suficiente para adquirir consciência de seus direitos e deveres, esperando a salvação num líder carismático. Eleições hipócritas, “para inglês ver”, existiam também na URSS, na Alemanha nazista, no Iraque de Sadam Hussein ou na Cuba de Fidel Castro. O lema Vox populi, Vox Dei é pura lorota. O povo sem cultura é dominado por impostores que sugam seu sangue. Uma vez por todas, é preciso convencer-se de que a salvação de uma Nação não está em algum Deus, Rei ou Presidente, mas no próprio povo, se adquirir consciência de que é ele que sustenta o Estado com o pagamento de impostos e não o contrário. Lutemos, pois, pela justiça e não pela caridade pública.

Termino estas ponderações reportando-me ao título que dei ao livro: Pensar é Preciso. A frase é uma glosa da expressão de Fernando Pessoa “navegar é preciso, viver não é preciso”. Alguns estudiosos interpretam os dizeres do ponto de vista histórico, outros do lado existencial. Navegar é preciso para conhecer novos mundos (especialmente com referência à aventura marítima portuguesa, cantada nos Lusíadas de Camões) e avançar na linha civilizacional. Mas para tanto precisamos de instrumentos de exatidão: bússola, razão, leis. E, sobretudo, a formação de uma consciência cívica, sedimentada no respeito ao nosso semelhante, em tudo que concerne a convivência em sociedade.

Como contraponto, para viver simplesmente, apenas como as bestas, não é preciso fazer uso da inteligência e do bom senso. Basta seguir o instinto gregário, vivendo conforme princípios ideológicos e costumes tradicionais, deixando-nos levar por crenças, preconceitos, temores, paixões. Pensar é preciso para superar o marasmo da opinião comum e atingir a harmonia e o amor universal entre os homens, só possível quando estes perceberem que ninguém pode ser feliz no meio do egoísmo individual ou de grupos e da ignorância generalizada, geradora da miséria material e espiritual de um povo. Atualmente, somos os humanos que ainda não superaram o estágio da selvageria, pois, na ilusão de sermos divinos por origem e destino, continuamos a nos esganar como animais!

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