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CAP XX

Antes o mundo não existia

Quando eu vejo as narrativas, mesmo as narrativas chamadas antigas, do Ocidente, as mais antigas, elas sempre são datadas. Nas narrativas tradicionais do nosso povo, das nossas tribos, não tem data, é quando foi criado o fogo, é quando foi criada a Lua, quando nasceram as estrelas, quando nasceram as montanhas, quando nasceram os rios. Antes, antes, já existe uma memória puxando o sentido das coisas, relacionando o sentido dessa fundação do mundo com a vida, com o comportamento nosso, com aquilo que pode ser entendido como o jeito de viver. Esse jeito de viver que informa nossa arquitetura, nossa medicina, a nossa arte, as nossas músicas, nossos cantos.

Alguns anos atrás, quando eu vi o quanto que a ciência dos brancos estava desenvolvida, com seus aviões, máquinas, computadores, mísseis, eu fiquei um pouco assustado. Eu comecei a duvidar que a tradição do meu povo, que a memória ancestral do meu povo, pudesse subsistir num mundo dominado pela tecnologia pesada, concreta. E que talvez a gente fosse um povo como a folha que cai. E que a nossa cultura, os nossos valores, fossem muito frágeis para subsistirem num mundo preciso, prático: onde os homens organizam seu poder e submetem a natureza, derrubam as montanhas. Onde um homem olha uma montanha e calcula quantos milhões de toneladas de cassiterita, bauxita, ouro ali pode ter. Enquanto meu pai, meu avô, meus primos, olham aquela montanha e vêem o humor da montanha e vêem se ela está triste, feliz ou ameaçadora, e fazem cerimônia para a montanha, cantam para ela, cantam para o rio, mas o cientista olha o rio e calcula quantos megawatts ele vai produzir construindo uma hidrelétrica, uma barragem.

Nós acampamos no mato, e ficamos esperando o vento nas folhas das árvores, para ver se ele ensina uma cantiga nova, um canto cerimonial novo, se ele ensina, e você ouve, você repete muitas vezes esse canto, até você aprender. E depois você mostra esse canto para os seus parentes, para ver se ele é reconhecido, se ele é verdadeiro. Se ele é verdadeiro ele passa a fazer parte do acervo dos nossos cantos.

Mas um engenheiro florestal olha a floresta e calcula quantos milhares de metros cúbicos de madeira ele pode ter. Ali não tem música, a montanha não tem humor, e o rio não tem nome. É tudo coisa. Essa mesma cultura, essa mesma tradição, que transforma a natureza em coisa, ela transforma os eventos em datas, tem antes e depois.

1- O texto de Ailton Krenak indica outra forma de pensar o mundo da cultura. Você acredita que o tipo de cultura defendido por ele tem condições de sobreviver num mundo cada dia mais tecnificado?

2- O que esse tipo de visão de mundo pode ensinar para as pessoas que vivem em nossa sociedade, no século XXI?

Estragou a televisão

— Iiiih...

— E agora?

— Vamos ter que conversar.

— Vamos ter que o quê?

— Conversar. É quando um fala com o outro.

— Fala o quê?

— Qualquer coisa. Bobagem.

— Perder tempo com bobagem?

— E a televisão, o que é?

— Sim, mas aí é a bobagem dos outros. A gente só assiste. Um falar com o outro, assim, ao vivo...

— Sei não...

— Vamos ter que improvisar nossa própria bobagem.

— Então começa você.

— Gostei do seu cabelo assim.

— Ele está assim há meses, Eduardo. Você é que não tinha...

— Geraldo.

— Hein?

— Geraldo. Meu nome não é Eduardo, é Geraldo.

— Desde quando?

— Desde o batismo.

— Espera um pouquinho. O homem com quem eu casei se chamava Eduardo.

— Eu me chamo Geraldo, Maria Ester.

— Geraldo Maria Ester?!

— Não, só Geraldo. Maria Ester é o seu nome.

— Não é não.

— Como não é não?

— Meu nome é Valdusa.

— Você enlouqueceu, Maria Ester?

— Por amor de Deus, Eduardo...

— Geraldo.

— Por amor de Deus, meu nome sempre foi Valdusa. Dusinha, você não se lembra?

— Eu nunca conheci nenhuma Valdusa. Como é que eu posso estar casado com uma mulher que eu nunca... Espera. Valdusa. Não era a mulher do, do... Um de bigode.

— Eduardo.

— Eduardo!

— Exatamente. Eduardo. Você.

— Meu nome é Geraldo, Maria Ester.

— Valdusa. E, pensando bem, que fim levou o seu bigode?

— Eu nunca usei bigode!

— Você é que está querendo me enlouquecer, Eduardo.

— Calma. Vamos com calma.

— Se isso for alguma brincadeira sua...

— Um de nós está maluco. Isso é certo.

— Vamos recapitular. Quando foi que nós casamos?

— Foi no dia, no dia...

— Arrá! Está aí. Você sempre esqueceu o dia do nosso casamento. Prova de que você é o Eduardo e a maluca não sou eu.

— E o bigode? Como é que você explica o bigode?

— Fácil. Você raspou.

— Eu nunca tive bigode, Maria Ester!

— Valdusa!

— Está bom. Calma. Vamos tentar ser racionais. Digamos que o seu nO:l1e seja mesmo Valdusa. Você conhece alguma Maria Ester?

— Deixa eu pensar. Maria Ester... Nós não tivemos uma vizinha chamada Maria Ester?

— A única vizinha de que eu me lembro é a tal de Valdusa.

— Maria Ester. Claro. Agora me lembrei. E o nome do marido dela era... Jesus!

— O marido se chamava Jesus?

— Não. O marido se chamava Geraldo.

— Geraldo...

— É.

— Era eu. Ainda sou eu.

— Parece...

— Como foi que isso aconteceu?

— As casas geminadas, lembra?

— A rotina de todos os dias...

— Marido chega em casa cansado, marido e mulher mal se olham...

— Um dia marido cansado erra de porta, mulher nem nota...

— Há quanto tempo vocês se mudaram daqui?

— Nós nunca nos mudamos. Você e o Eduardo é que se mudaram.

— Eu e o Eduardo, não. A Maria Ester e o Eduardo.

— É mesmo...

— Será que eles já se deram conta?

— Só se a televisão deles também quebrou.

( A televisão é um dos meios de comunicação de maior penetração nas casas de pessoas de todas as classes sociais no Brasil. Você acha que ela tem a capacidade de isolar as pessoas ou define o espaço de uma nova sociabilidade no interior das famílias? Ela pode gerar discussões sobre temas importantes, de comportamento ou políticos, ou apenas distrai e aliena as pessoas?

Televisão e sexualidade

O famoso autor de novelas Agnaldo Silva, ao responder se o bombardeio de sexo na televisão aberta pode, de alguma maneira, estimular a sexualidade precoce nas crianças, respondeu da seguinte forma:

“Não é só na TV aberta. No Brasil, houve um momento em que esse negócio de sexo exacerbou de tal maneira que as meninas de 12 anos agora são moças! Houve uma mudança hormonal qualquer nas meninas – não nos meninos, que continuam meninos até os 18 anos – e elas, aos dez anos, começam a virar mulheres. É uma coisa pavorosa, porque você vê crianças com um apelo sexual incrível! Está errado! Isso foi uma mudança cultural no Brasil dos anos 1980 para cá que ainda não foi devidamente estudada pelos antropólogos e sociólogos de plantão, que estão mais preocupados com a política do que com qualquer outra coisa e não percebem que isso também é política. A brasileira não é diferente de nenhuma outra mulher do mundo, mas a levaram a acreditar que é um vulcão de sensualidade, e agora a maioria se comporta como tal. Vi em várias ocasiões pais que incentivam filhas de 7 anos a dançar na boquinha da garrafa! Essas coisas estão na TV, nas revistas, em todos os lugares! Aonde é que vamos parar? Foi por isso que botei aquela personagem adolescente grávida na novela, porque passei três vezes na frente de uma maternidade do Estado e vi que na fila das grávidas, onde havia umas 30 mulheres, pelo menos 20 eram adolescentes, e pelo menos duas não teriam mais de 11 anos. Todas lá, com o barrigão de fora, como se dissessem com orgulho: “olha até onde me levou a minha sensualidade!”

1- Você acha que a situação descrita por Agnaldo Silva é apenas uma visão pessoal ou é algo concreto, que pode ser observado no cotidiano?

2- Você acredita que a televisão tem o poder de afetar o comportamento das jovens porque elas são “socializadas” desde pequenas por programas de auditório?

3- Ao explorar cenas de sexo, as novelas formam um visão distorcida da vida sexual do brasileiro? Que interesse haveria em construir a imagem da mulher brasileira como “um vulcão de sensualidade”?

|Percentual de municípios que possuem os equipamentos |

|culturais e meios de comunicação no Brasil |

|Equipamentos culturais e |1999 |2001 |2005 |

|meios de comunicação | | | |

|Bibliotecas públicas |76,3 |78,7 |85,0 |

|Cinemas |7,2 |7,5 |9,1 |

|Teatros ou salas de espetáculos |9,1 |8,4 |10,7 |

|Museus |13,7 |18,8 |20,9 |

|Estações de rádio AM |20,2 |20,6 |21,7 |

|Estações de rádio FM |33,9 |38,2 |51,3 |

|Livrarias |35,5 |42,7 |31,0 |

|Provedores de Internet |16,4 |22,7 |46,0 |

|Unidades de ensino superior |— |19,6 |31,1 |

|Videolocadoras |63,9 |64,1 |77,5 |

|Estádios e ginásios esportivos |65,0 |75,9 |77,4 |

|Lojas de CDs, fitas cassete, e DVDs |34,4 |49,2 |54,8 |

Para organizar o conhecimento

1- Verifique no quadro ao lado os equipamentos culturais e meios de comunicação que se tornaram mais ou menos presentes nos municípios brasileiros no período de 1999 a 2005. Utilize os conceitos de cultura, ideologia e indústria cultural para analisar o significado do maior ou menor crescimento dos diferentes itens.

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