Anos de ditadura: a censura no rádio do interior gaúcho



Anos de ditadura: a censura no rádio do interior gaúcho

Vera Lucia Spacil RADDATZ [1]

Ângela Maria ZAMIN [2]

Resumo: Os anos de ditadura no Brasil impediram o funcionamento de muitas emissoras de rádio no país e a livre expressão daquelas que permaneceram no ar. Este trabalho resgata o contexto histórico dos anos da ditadura militar, focalizando as formas de censura sofridas pelo rádio em cidades do interior do Rio Grande do Sul. A metodologia de pesquisa apóia-se em depoimentos orais e relatos de profissionais do rádio que estavam exercendo a atividade radiofônica naquele período, dando seu testemunho para o resgate de uma história que está se perdendo, pois arquivos e documentos foram queimados, restando apenas a possibilidade de reconstituir a comunicação radiofônica realizada na época da ditadura pela memória de quem viveu tais experiências. Este artigo aponta ainda para a necessidade de preservar a memória do rádio brasileiro para que a história seja contada pelas vozes de seus protagonistas.

Palavras-chave: Rádio. Ditadura. Censura. Rio Grande do Sul

1. Introdução

Os meios de comunicação social, como as emissoras de rádio e televisão, jornais e revistas, cuja fonte de trabalho é a expressão e a circulação de idéias e informações, tiveram de se adequar a uma série de normas e ordens advindas de Atos Institucionais, ofícios, telegramas e recomendações por escrito, endereçadas diretamente às direções dos veículos, numa demonstração clara de que estava instituída uma rigorosa forma de controle sobre as informações que deveriam chegar à sociedade.

Neste artigo pretendemos relatar e analisar como o veículo rádio atravessou os anos da ditadura, focalizando, por amostragem, a realidade das rádios do interior do Rio Grande do Sul naquele período. Elegemos algumas emissoras como base para nosso estudo, por serem de abrangência regional e representarem diferentes pontos do interior gaúcho. São, portanto, objetos desta pesquisa a Rádio Cachoeira, de Cachoeira do Sul (centro do estado); Rádio Charrua, de Uruguaiana, Rádio Alegrete, de Alegrete (fronteira oeste), Rádio Progresso, de Ijuí (região noroeste), Rádio Vera Cruz, de Horizontina, Rádio Colonial, de Três de Maio (fronteira noroeste).

A reconstituição dos fatos aqui relatada é resultante de entrevistas realizadas com profissionais que atuaram nestas emissoras no período da ditadura militar. Segundo Aquino (1999), os depoimentos atuam como contraponto à pesquisa empírica. “Entende-se que no esforço de interpretação da experiência humana, o depoimento do contemporâneo assume o papel de um instrumento de análise privilegiado, na medida em que reveste, ao mesmo tempo, das problemáticas vivenciadas no presente e no passado” (AQUINO, 1999, p. 24).

Apresentamos ainda fragmentos coletados em documentos arquivados em duas das emissoras pesquisadas – a Rádio Charrua, de Uruguaiana, situada na região de fronteira, e a Rádio Progresso de Ijuí, na região noroeste, esta fechada por 21 dias durante o regime militar. Esses documentos constituem-se como registros importantes para a fundamentação do conteúdo dessa pesquisa, pois fornecem elementos claros e precisos do modo como foi implantado o controle sobre a informação no rádio gaúcho.

A documentação utilizada – ao contrário dos bilhetes e ordens telefônicas que privilegiam a visão do Estado e, mais do que isso, de um Estado concebido como monolítico, livre de contradições e portador de uma só voz – procura resgatar a complexidade das relações sociais, expondo vozes silenciadas através do concomitante exercício da dominação e da resistência. O testemunho oral representou quase sempre um contraponto e um complemento do que se buscou na documentação (AQUINO, 1999, p. 24).

2. Os Anos da Ditadura

O quadro que se instalou no país antes do Golpe Militar era, segundo registram as historiadoras Elza Nadai e Joana Neves (1991), revolucionário. Reis Filho (2002) caracteriza este período como o mais turbulento da história republicana. Um plebiscito havia restabelecido um ano antes o presidencialismo, atribuindo plenos poderes a João Goulart e desencadeando uma discussão acirrada entre as facções contrárias e favoráveis a seu governo. No início da década de 60 o país era formado por dois blocos: um progressista e voltado para mudanças no âmbito sócio-político; outro conservador ou de direita, representado pelos partidos UDN e PSD. Já neste período estavam em evidência os grupos estudantis e os de trabalhadores rurais e urbanos. Nadai e Neves (1991) destacam que o conjunto formado por estes grupos, adeptos de mudanças na sociedade brasileira, era denominado de esquerda. A imprensa foi outro componente fundamental do período pré-64, inserida numa dimensão em que, de um lado, estavam as redes de televisão e os grandes jornais alinhados à direita e, do outro, empresas contrárias a defesa das classes dominantes.

O contexto político conturbado e complexo e o comício de 13 de março de 1964, no qual se anunciaram as reformas de base, marcaram o início do fim do governo de João Goulart, taxado neste período de comunista. O que era uma iminência tornou-se fato concretizado entre 31 de março e 1º de abril. O movimento do Golpe Militar iniciou com a sublevação em Minas Gerais; o avanço de tropas em direção ao Rio de Janeiro e Brasília; a saída de Jango da capital e seu asilo no Uruguai; a entrega do cargo de presidente a Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara; e o início da repressão em todo o país.

A ditadura militar que se instalou sob arquitetura do general Golbery do Couto e Silva foi gestada “na matriz da Guerra Fria e da Doutrina de Segurança Nacional” (KUCINSKI, 2002, p. 541), e caracterizada pela ruptura da normalidade institucional e bloqueio da participação popular no processo político, tendo por meta a segurança e o desenvolvimento do país. “Golpe ou revolução, o movimento de 64 se propõe ao ‘milagre’ de salvar a nação, restaurando-a no plano social, no plano econômico e no plano político. Restringe a liberdade de informação e anula direitos essenciais do cidadão” (BAHIA, 1990, p. 320).

A nova configuração que se instala pela atuação dos militares é pautada pela crença de que “os meios de comunicação brasileiros são usados como uma arma pelos inimigos” (MARCONI, 1980, p. 27), neste caso, e assim como havia sido no Estado Novo de Vargas, os comunistas. Neste sentido, os militares voltam-se para o controle da circulação de informação de duas formas: “A primeira foi supervalorizar a “informação” (não confundir com a comunicação); a segunda foi controlar todo o fluxo de notícias, veiculado pelos meios de comunicação, através de decretos revolucionários e leis nem sempre legítimas” (MARCONI, 1980, p. 27-28).

A ênfase dada à informação pelos militares é destacada por diferentes autores. Marconi aponta para o número de órgãos militares e civis de segurança e informações implementados a partir de 1964, afirmando que “teoricamente, todos estes órgãos deveriam apenas prestar assessoria ao aparelho do Estado na preservação da real segurança nacional [...] eles têm servido apenas como meros órgãos de repressão política a serviço dos detentores do poder” (MARCONI, 1980, p. 28). Aquino (1999) enumera os órgãos ligados à informação:

o Serviço Nacional de Informação (SNI) e suas ramificações regionais, as Segundas Seções (de Informações) das Forças Armadas, o Centro de Informação do Exército (CIE), o Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), o Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), o(s) DOI/CODI(s) (Departamentos de Ordem Política e Social) (1999, p. 15).

A preocupação dos militares se voltou também a outra esfera da informação – aquela veiculada aos cidadãos. “Encarava-se como necessário o controle da informação a ser divulgada, para preservar a imagem do regime, num exercício de ocultação que passa, inclusive, pela negação da visibilidade, ao leitor, de suas próprias condições de vida” (AQUINO, 1999, p. 15). Neste sentido, quando da censura prévia, os oficiais das Forças Armadas atuaram como censores, função esta que passou ao Departamento de Polícia Federal, órgão subordinado ao Ministério da Justiça, que ficou encarregado de executar a censura política às informações e, conseqüentemente, preservar a moral e os bons costumes.

As críticas à ideologia do Estado começam a surgir com maior ênfase após a edição de uma nova Lei de Imprensa[3] e da Lei de Segurança Nacional, que somadas apresentavam inúmeras proibições à imprensa. Como tentativa de centralizar a propaganda política governamental ocorreu, ainda em 1967, a criação da Assessoria Especial de Relações Públicas e com ela a repressão do movimento estudantil, das passeatas e dos protestos. Em contrapartida, este órgão passou a divulgar o projeto da Transamazônica, o Plano de Integração Social e o Proterra, além da nova Constituição.

No governo de Costa e Silva foi implantado a Ato Institucional de número 5, o AI-5, que acabou por sacudir de vez as pilastras que sustentavam um patamar de censura que, de certa forma, até então era aceitável. O AI-5 determinava a censura de toda e qualquer forma de manifestação do pensamento, impondo, nesta dimensão, o controle dos meios de comunicação de massa.

2.1 A Censura de 1968-78

O AI-5[4] de fato legalizou a censura no Brasil. Todas as formas de expressar idéias e manifestações foram vetadas. O AI-5 iniciou como resposta dos militares ao pronunciamento do deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, que conclamou, em protesto contra a violência, o boicote as comemorações do 7 de setembro, Independência do Brasil, e a conseqüente proteção da imunidade concedida pela Congresso ao deputado.

Todas as pessoas que lidavam, de alguma maneira, com a opinião pública – jornalistas, professores, intelectuais e artistas – ficaram sob suspeição do regime militar. Segundo Medina, obras de todas as formas de arte – música, teatro, cinema, literatura, artes plásticas etc – eram censuradas, havia repressão a artistas e “tolhimentos à informação jornalística e à ficção nos meios de comunicação social, da telenovela aos noticiários de rádio” (2002, p.424). Smith (2000) destaca que a sociedade civil autônoma também se tornou suspeita, em especial líderes trabalhistas e rurais, estudantes e membros da Igreja.

É unânime entre os autores que, embora a censura começasse em 1964, com o golpe dado pelos militares, ficou mais violenta em dezembro de 1968, a partir do AI-5. Foram dez anos, até 1978, segundo Smith (2000), marcados por uma censura à imprensa que assumiu diferentes formas, todas elas ilegais e negadas. “De 1968 a 1978, a Polícia Federal expediu proibições contra a divulgação de assuntos noticiosos específicos e vigiou a imprensa para ver se as proibições estavam sendo cumpridas (SMITH, 2000, p. 135).

2.2 Isto não pode. Isto pode. Isto já não pode mais.

Pero es que, además, la radio – como la prensa y la TV – da información. Dar información es comunicar hechos, acontecimientos, principios sobre los que construir, reforzar o contrastar opiniones y opciones políticas. La radio hace política incluso cuando no hace política. Incluso con la música. Incluso cuando calla. Incluso con el silencio. Incluso si la callan (BELAU, 1996, p. 274).

Ofícios, bilhetes e telefones encaminhados às redações foram os modos recorrentes como a imprensa brasileira sofreu censura política. Marconi (1980) aponta como comprovação de que a censura foi ganhando força o fato de que, com o tempo, as proibições deixaram de ter sua autoria identificada.

Além desta forma de censura, Aquino aponta a autocensura dos próprios veículos, “na medida em que, após a transmissão das proibições, cabia ao órgão de comunicação acatá-las, censurando internamente a divulgação de determinadas notícias” (1999, p.22). Soma-se a isto “a ameaça tática contida no recibo que o jornalista deveria assinar, as próprias proibições acenavam com represálias [...]. Assim, se um órgão de comunicação fizesse qualquer referência “desairosa” ao governo ou Serviço Nacional de Informações já se sabia de antemão qual a pena prevista” (MARCONI, 1980, p. 48). O autor destaca ainda:

Os órgãos de comunicação que ousaram se rebelar contra as vergonhosas proibições escritas e telefônicas tiveram de suportar, por longo tempo, a indesejável presença de policiais-censores, a lerem, nas redações ou oficinas gráficas, todos os originais produzidos pelos jornalistas. Ou então se sujeitar a enviar para as sedes da Polícia Federal no Rio de Janeiro, São Paulo ou até mesmo Brasília, às próprias custas, as matérias, para que fossem julgadas por misteriosos juízes, suficientemente autônomos para determinar o que mais de 100 milhões de brasileiros poderiam ou não tomar conhecimento (MARCONI, 1980, p. 61).

Smith (2002) considera a autocensura como subcategoria da censura. “Existe algo a dizer, você sabe disso mas não diz. Não é o silêncio da ignorância ou da falta de discernimento, e sim, o da abstenção consciente. Os resultados para o público [...] sequer sabe que lhe está sendo negada informação” (SMITH, 2000, p. 136). Kucinski afirma que “ao suprimir a própria informação de que a informação está sendo suprimida, a autocensura torna-se, para o opressor, a melhor forma de controlar a informação” (2002, p. 541). Ao tratar da autocensura, Medina afirma:

Tão logo afrouxa o autoritarismo central, recrudescem os autoritarismos intermediários, os autoritarismos bem localizados no grupo de trabalho e, o que é mais sutil, a repressão íntima, freqüentemente chamada de autocensura, ou, no meu entendimento, a afirmação do conservadorismo nas rotinas profissionais que não dão margem à rebeldia (2002, p. 428).

Além das restrições impostas por meio das proibições, órgãos de comunicação foram alvo de atentados e invasões de redações e jornalistas foram presos arbitrariamente, espancados, torturados e calados, quer pelo exílio, quer pelo ‘suicídio’, quer pela autocensura. Para Marconi, “a violência física é apenas a demonstração escancarada do inconformismo daqueles que se julgam atingidos pelo trabalho da imprensa” (1980, p. 92).

3. O Rádio sob Censura

Uma das indagações que sempre aparece quando conversamos sobre o período da ditadura militar é quando de fato terminou a censura no país. A afirmação recai sobre o governo de João Baptista Figueiredo, de 15 de março de 1979 a 15 de março de 1985. Entretanto, alguns registros, como o Oficio nº 032/82, do Diretor Regional do DENTEL, em Porto Alegre, para o Diretor da Rádio Charrua, de Uruguaiana, faz a seguinte solicitação:

Para melhor executarmos nossa tarefa de fiscalizar as disposições legais vigentes, solicitamos a fineza de nos mandar enviar, a partir desta data, com a devida antecedência, a programação semanal dessa emissora, bem como indicar os horários dos programas de cunho jornalístico, político e de atualidades, que não possuam roteiro escrito prévio.[5]

O documento, assinado pelo engenheiro Yapir Marotta, dá seqüência a uma série de outros remetidos anteriormente pelos órgãos responsáveis pelo controle e fiscalização. O Ministério das Comunicações, por meio do DENTEL, distribuiu aos órgãos de radiodifusão Tópicos da Legislação, com o subtítulo “Vale a pena relembrar”, cujo teor deveria ser observado. Entre as recomendações está a preocupação com a moral. O documento lembra o Decreto 51.134/61, publicado no DOU em 3 de agosto de 1961:

Não será permitido, no rádio ou na televisão, programa que: contenha cenas imorais, expressões indecentes, frases maliciosas, gestos irreverentes capazes de ofender os princípios da são moral; possa exercer influência nefasta ao espírito infanto-juvenil, pelas cenas de crueldade ou desumanidade, de vícios ou crimes. [6]

No ano de 1975 o ofício nº 35/GAB/DG/75, do Departamento de Polícia Federal, assinado pelo Diretor Geral Moacyr Coelho e endereçado à Rádio Charrua, chamava atenção para o fato de que “alguns jornais, revistas e emissoras de televisão insistem em ultrapassar a faixa normal do direito de informar.” Porém deixava claro que havia preocupação do Ministro da Justiça quanto ao “efeito negativo que causam, perante a opinião pública, notícias ou programas que coloquem em extraordinária evidência pessoas envolvidas em crimes considerados como de maior repercussão.” [7]

A Rádio Charrua encaminhava, por seu programador autorizado, Carlos Garcez, em 1º de fevereiro de 1982, ao Chefe da Seção de Censura de Diversões Públicas, do Departamento da Polícia Federal de Uruguaiana, uma solicitação para ser aprovada e liberada uma programação comercial pelo período de um mês. Esse documento está carimbado com a devida nota de liberação, datada do dia seguinte, pelo Chefe Delegado Luiz Dall’Agnese.[8] Este mesmo órgão, que funcionava na Ponte Internacional, junto ao Destacamento de Fuzileiros Navais, anunciava em documento assinado por Jerônymo Ferreira, denominado Censor Federal, em 1967, que qualquer espetáculo ou irradiação dependia de aprovação prévia desse Serviço.[9]

O ofício nº 167/69, de 23 de setembro de 1969, emitido por José Carlos Ourique, na época Chefe do Posto DPF, de Uruguaiana, ao diretor da Rádio Charrua, relaciona o nome de 69 músicas proibidas pela Censura Federal. Entre elas destaca-se: Baile dos Cabeludos, de Gildo de Freitas; Filosofia do Samba, de Odilon Silva; Resposta ao Carlinhos, de Juca Chaves; e O terror da zona norte, de Reginaldo Rossi.[10]

Radiogramas documentam proibições demandadas pelo Departamento de Polícia Federal à Rádio Charrua. Um deles, de 30 de novembro de 1970, do Ministro do Exército, retransmite proibição de qualquer publicação de carta resposta ou entrevista de Dom Helder Câmara dirigida ao Governador de São Paulo.[11] A cópia autêntica, como eram denominadas muitas das ordens expedidas pelo Departamento de Polícia Federal, de um outro radiograma, de 7 de junho de 1969, foi fixada no quadro de avisos da Rádio Charrua, determinando aos funcionários as recomendações recebidas do Ministro da Justiça, conforme segue:

4º ) “ QUANTO” A POLITICA – 1º NÃO PUBLICAR NOTICIA VG COMENTARIOS VG ENTREVISTAS OU DECLARAÇÕES VG MESMO POR INTERPOSTA PESSOA VG DE QUEM HAJA SOFRIDO QUAISQUER DAS SANÇÕES COMINADAS NOS ATOS INSTITUCIONAIS NRS 1-2 ET 5 VG ESPECIALMENBTE VG DE 9 DE ABRIL DE 1962 –VG 27 DE OUTUBRO DE 1965 VG E 13 DE DEZEMBRO DE 1968 VG RELATIVOS A ASSUNTOS POLITICOS PT – [...] [12]

João René Cobelli[13], atual diretor da Rádio Charrua chegou à emissora em 1977, em plena ditadura, e lembra de algumas coisas bem pontuais: “[...] os comerciais tinham que ser encaminhados à Polícia Federal para serem carimbados, [...] as músicas que iam rodar no dia seguinte também tinham que ser relacionadas”. A principal punição para quem não seguisse as regras era a ameaça de fechamento da emissora. Cobelli conta que foi imediatamente chamado ao quartel para um almoço quando a Rádio Charrua criticou a atitude do prefeito quando, em dada ocasião, este colocou correntes em volta da praça para impedir a circulação de carros e a população protestou, conforme relata:

Quando terminou o almoço, me levaram para tomar um cafezinho na sala do General. [...]. Então o General disse: você sabe que aqui é área de fronteira, eu tenho autoridade pra mandar fechar a tua rádio, nós podemos acabar com tudo [...] olha, vou mandar chamar as autoridades aqui para fechar tua rádio se continuar isso. Ele é meu amigo e isso aqui é área de fronteira [...] Não podia dizer nada que não agradasse à revolução[14].

Em 74, era também obrigatório enviar ao Departamento da Polícia Federal a relação dos patrocinadores. Segundo Cobelli, “eles pressionavam os patrocinadores para que não anunciassem em quem estivesse contra eles”. A rádio-escuta da Polícia Federal, em Uruguaiana, funcionava, segundo Cobelli, da seguinte forma: “Eles tinham um rádio grande e um funcionário todo o dia escutando pra ver se tinha alguma coisa fora ou não, se iam dizer alguma coisa ou não”.

Já em Cachoeira do Sul, de acordo com o depoimento de José Schneider Silva[15], durante 40 anos gerente de rádio, a Rádio Cachoeira AM viveu dias mais tranqüilos durante a ditadura. A emissora pertencia à Rede de Emissoras Reunidas e quase tudo era definido pela direção geral e depois retransmitido às demais por meio de inspetores, funcionários, telefone ou carta. O radialista lembra do ano de 1961, antes mesmo da Revolução, quando a Rádio Cachoeira, ainda de madrugada, aderiu à rede da legalidade. O radialista conta que no mesmo dia amanheceu um grupo de dez ou doze militares em frente à rádio, os quais disseram estar fazendo a segurança da emissora e lá permaneceram por 14 dias, com direito inclusive a uma sala.

Ele justifica que foi muito fácil a convivência com os militares, pois a rádio era a emissora oficial de Cachoeira do Sul, embora existisse outra. A parceria acontecia principalmente na realização de festas e eventos comunitários. Durante o regime militar José Schneider ressalta que “[...] tinha que ter cuidado, bom senso no que selecionava para ir ao ar”. O radialista conta também que havia um setor no quartel de Cachoeira do Sul somente para gravar os telefonemas da rádio e do jornal.

Na fronteira oeste, Rafael Vilar Rios[16] trabalhava na Rádio Alegrete AM durante o regime militar. Ele fez rádio durante 50 anos e naquela época era locutor. Ressalta que as notícias que chegavam de Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo vinham censuradas e eram transmitidas ao natural. Quanto às notícias veiculadas, Rafael Vilar Rios comenta que “as locais eram aquelas eminentemente de interesse da sociedade e de desenvolvimento, não havia nenhum cunho político, por isso a censura foi muito amena”.

Rios afirma, ainda, que não havia uma proibição ferrenha e a equipe fazia rádio com entusiasmo. Assim como em Cachoeira do Sul, em Alegrete parecia haver um bom entendimento com os militares, conforme destaca Rios:

[...] Não houve assim uma censura acentuada sobre as emissoras do interior, principalmente as de caráter comunitário como sempre foi encarada a rádio até 1960. [...] Só o aspecto político que era meio proibido.[...] Pela distância, a censura não era tão grande assim, os militares eram pessoas que se integravam à sociedade. [17]

Distância dos grandes centros, como Rio, São Paulo e Porto Alegre foi também o motivo apontado por Alberto Kryszczun[18], locutor da Rádio Vera Cruz, de Horizontina, desde a sua abertura, em 1962, até 1977, para ter atravessado com relativa tranqüilidade os anos da ditadura sendo profissional de rádio. Localizada na fronteira noroeste, Horizontina fazia parte da área de segurança nacional, mas não havia forte controle, conforme ressalta Kryszczun:

Então a gente sofria censuras, com certeza. Mas, na época (...) aqui era muito distante (...) a gente vivia mais ou menos tranqüilo. Não era aquela coisa toda de se assustar. (...) eu lembro que nós tínhamos programa aqui em língua alemã e esse programa foi proibido pela censura, inclusive não era só alemã, era língua estrangeira.[19]

A opinião do radialista Honorato Foletto,[20] da Rádio Colonial, de Três de Maio, cidade vizinha à Horizontina, é diferente. Ele considera que “talvez o interior tenha sofrido muito mais censura do que emissoras da capital porque a censura aqui [...] era feita por qualquer autoridade, uma pessoa se intitulava autoridade [...] e vinha fazer censura para a rádio Colonial”.

A Rádio Colonial foi muito visada pelo regime militar porque já havia se integrado à Cadeia da Legalidade anos antes. Um grupo de cadetes da Brigada Militar instalou-se na cidade logo depois da Revolução, pois havia boatos de que no município havia se formado um grupo de guerrilheiros, conforme ressalta Foletto:

[...] a rádio colonial foi o foco desse pessoal que vieram, entraram, revistaram, além do pessoal que ficou fora do prédio armado, bem armado. Os que adentraram ao recinto vasculharam peça por peça, gaveta por gaveta e foi uma coisa assim, que foi estarrecedor para nós os funcionários [...] foi uma coisa muito violenta. [...] A gente permaneceu durante um tempo muito tempo sob custódia daquele pessoal. E o mais interessante é que nós criamos uma amizade muito grande com aquele pessoal.[21]

Mas os ecos da relação de amizade firmada pela equipe da Rádio Colonial com os militares no decorrer da ditadura não repercutiram do mesmo modo em Ijuí, na região noroeste. A Rádio Progresso de Ijuí sofreu as punições da censura de modo muito forte. Catorze dias depois do golpe militar, a emissora, cujos acionistas eram em sua maioria do PTB, o mesmo partido de Brizola e Jango, teve seus estúdios lacrados para transmissão durante 21 dias. Em 1969, dois de seus diretores foram presos e um terceiro, que estava enfermo, permaneceu no hospital sob a guarda dos militares.

Delfino Coimbra[22], mesmo aposentado, trabalha na Progresso, de Ijuí, desde o ano de 1959 e relembra a experiência mais difícil dos tempos de ditadura – o dia de fechamento da emissora: “Quando faltava uns dois minutos para as 19h, antes da Agência Nacional, chegou o capitão do Exército Heitor Soares com a ordem de fechamento da rádio. Foram 21 dias”.

O radialista destaca que nos dias que antecederam ao fechamento sentia que havia algo no ar. O Relatório da Rádio Progresso de Ijuí[23] ao Capitão Gil Nascimento, de 5 de maio de 1964, na página 2, destaca que, “em data de 5 de abril do corrente por Decreto nº 16.536, o Governo do Estado [...] consumou a intervenção da emissora”. De 5 a 12 de abril “toda a programação da rádio, principalmente a noticiosa passou sob o crivo da interventoria”. O Relatório esclarece ainda “que no dia 14, às 19 horas, por ordem do III Exército, foram suspensas as atividades da emissora, e lacradas todas as suas dependências”. Coimbra recorda que o fechamento era para ser definitivo: “tanto que direção e os próprios funcionários saíram apelar para autoridades. [...] Em Santa Maria tinha um general e através dele se conseguiu convencer as autoridades que a rádio não tinha nada a ver com política”.

Mas o controle continuava. Os próprios redatores faziam uma espécie de autocensura, conforme relembra Coimbra: “era pra própria emissora cuidar, tanto que o Valdir Heck e eu tínhamos a obrigação de ler os noticiários da rádio. Eles chamavam de a revolução redentora. [...] Na época não se podia dizer ditadura de maneira nenhuma”. Os mesmos fatos são também relembrados pelo professor universitário Arnildo Pommer[24], redator publicitário da emissora naquele período:

Não se podia utilizar a palavra ‘revolução’, a palavra ‘social’, qualquer coisa que conotasse uma atividade política. Havia um sem número de palavras de ordem que deveriam ser sempre utilizadas, como: ordem, povo trabalhador.Um conjunto de palavras que evocassem um sentimento de calma e tranqüilidade e que a população estava satisfeita com o governo. [25]

Os anos mais violentos da ditadura foram entre 1964 e 1969. E novamente em 9 de maio de 1969, a Progresso de Ijuí sofreria mais uma vez as conseqüências de ser uma rádio identificada politicamente com a esquerda. Seus diretores, Décio Barriquelo e Ary Boger, foram chamados ao gabinete do Tenente Coronel Ruy de Castro no 7º G Can 75 AR, onde receberam ordens de prisão. A folha número 4 do ofício[26] endereçado À ABERT em 19 de maio de 1969 pela Progresso e assinado pelos diretores registra o ocorrido: “Fomos presos e mantidos incomunicáveis por mais de 34 horas para depor, como testemunhas, no inquérito militar especial aberto em 9.4.69 (que tratou da prisão do vereador como já dissemos anteriormente) e sobre o assunto nada foi perguntado!!!”

Assim como outras emissoras no país, a Rádio Progresso experimentou os dissabores de fazer rádio sob censura e guarda em seus arquivos páginas e páginas amareladas em que reafirma o compromisso de nortear “suas atividades embasada em preceitos legais e no respeito às determinações dos poderes constituídos”.[27]

4. Considerações Finais

O rádio no interior do Rio Grande do Sul viveu a ditadura de modo obediente, sob protesto, mas quase em silêncio. Não havia outra alternativa senão cumprir as ordens do regime militar ou então lhe seria aplicada a punição mais temida: fechamento da emissora ou prisão de radialistas ou diretores.

É relevante destacar que o governo percebeu que seria mais eficiente manter o poder pela persuasão do que pela força. Para tanto, precisariam, no âmbito da comunicação, “calar quem era contrário e fortalecer os que estivessem de acordo com sua política” (CAPARELLI, 1983, p.96). Para os militares a manutenção do controle sobre a imprensa era fundamental a sua sustentação no poder.

A idéia de que a ditadura estava ocorrendo era unânime. Entretanto, esta palavra era proibida, assim como qualquer manifestação pública que não estivesse devidamente aprovada pelo regime. Pelos depoimentos dos radialistas podemos perceber que algumas emissoras de rádio assimilaram de modo positivo a presença e o controle dos militares sobre elas, manifestando inclusive relações de amizade com os mesmos, o que pode parecer controverso, pois “a mesma mão que te reprime é a mesma que tu afagas”.[28]

Fazendo a leitura deste aspecto, entendemos que os anos prolongados de ditadura e a reprodução diária de uma mesma rotina de controle acabaram amenizando, no interior do Rio Grande do Sul, a existência de censura. A presença cotidiana dos militares e a obrigação dada às rádios de fiscalizar elas mesmas os seus noticiários locais, embora promovesse a autocensura, criava a ilusão de que a ditadura estaria ocorrendo em outro lugar. Mesmo em emissoras como a Progresso de Ijuí, onde houve o fechamento da rádio e prisão de seus diretores, percebemos um sentimento de busca de respeito e auto-afirmação diante da autoridade, bastando observar para tanto a linguagem da correspondência oficial dirigida a elas.

Hoje, não encontramos registros sonoros daquela época. Os documentos e registros, em papel, são poucos, mas o suficiente para compreender que os anos de ditadura foram singulares para as rádios e que deixaram marcas também nos ouvintes. A censura não cortou apenas notícias ou impediu manifestações. Ela deixou como herança o amordaçamento de toda uma geração, que hoje talvez não consiga se expressar sem passar pelo crivo da autocensura.

5. Fontes Consultadas

AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa e Estado Autoritário (1968-1978): o exército cotidiano da dominação e resistência: O Estado de São Paulo e Movimento. Bauru: EDUSC, 1999.

ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil: Nunca Mais – um relato para a história. São Paulo: Ed.Vozes, 1985.

BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica: história da imprensa brasileira. 4. ed. Revista e aumentada. São Paulo: Ática, 1990. v. 1.

BELAU, Ángel Faus. Radio y Poder Político. In.: Comunicación Social 1996/Tendencias: Poder, democracia y medios de comunicación. Madrid: Fundación para el Desarrollo de la Función Social de las Comunicaciones, 1996. p. 273-279.

CAPARELLI, Sérgio. Imprensa Alternativa. In: QUEROZ E SILVA, Roberto P. de. Temas Básicos em Comunicação. São Paulo: Edições Paulinas, 1983. p. 13-16.

COBELLI, João René. Rádio. Uruguaiana/RS, abr. 2006. Registro para pesquisa referente à censura no rádio. Entrevista concedida a Vera Lucia Spacil Raddatz.

COIMBRA, Delfino. Rádio. Ijuí/RS, mar. 2006. Registro para pesquisa referente à censura no rádio. Entrevista concedida a Vera Lucia Spacil Raddatz

FOLETTO, Honorato. Rádio. Três de Maio/RS, mar. 2006. Registro para pesquisa referente à censura no rádio. Entrevista concedida a Eduardo Mireski.

KUCINSKI, Bernardo. A primeira vítima: a autocensura durante o regime militar. In.: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias Silenciadas: História da Censura no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / Imprensa Oficial do Estado / Fapesp, 2002. p. 533-551.

KRYSZCZUN, Alberto. Rádio. Horizontina/RS, mar. 2006. Registro para pesquisa referente à censura no rádio. Entrevista concedida a Eduardo Mireski.

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[1] Mestre, Professora e Pesquisadora da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI, Ijuí/RS e Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – PPGCOM/UFRGS, Porto Alegre/RS – verar@unijui.tche.br – GT Mídia Sonora

[2] Jornalista, Bolsista CNPq, Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – PPGCC/UNISINOS, São Leopoldo/RS – angelazamin@ – GT Mídia Sonora

[3] A Lei n.º 5.250, de 09/02/1967, que regula a liberdade de manifestação do pensamento e da informação, em seu artigo 1º destaca: “É livre a manifestação do pensamento e a procura, o recebimento e a difusão de informações ou idéias, por qualquer meio, e sem dependência de censura, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer”, (, grifo das autoras)

[4] Entre outros pontos do AI-5, editado em 13 de dezembro de 1098, destaca-se: “CONSIDERANDO, no entanto, que atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la; [...] CONSIDERANDO que todos esses fatos perturbadores, da ordem são contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição. (, grifo das autoras)

[5] Arquivo Rádio Charrua, Uruguaiana/RS

[6] Idem 5

[7] Ibidem

[8] Ibidem

[9] Ibidem

[10] Ibidem

[11] Ibidem

[12] Ibidem

[13] Entrevista pessoal, concedida em abr. 2006

[14] Idem 13

[15] Entrevista pessoal, concedida em abr. 2006

[16] Entrevista pessoal, concedida em abr. 2006

[17] Idem 16

[18] Entrevista pessoal, concedida ao acadêmico da Unijuí, Ijuí/RS, Eduardo Mireski, em mar. 2006

[19] Idem 18

[20] Ibidem

[21] Ibidem

[22] Entrevista pessoal, concedida em mar. 2006

[23] Arquivo RPI, Ijuí/RS

[24] Entrevista pessoal, concedida em mar. 2006

[25] Idem 24

[26] Arquivo RPI, Ijuí/RS.

[27] Primeira página do ofício endereçado ao General Mário Poppe de Figueiredo, do Quartel General do III Exército em Porto Alegre/RS. Arquivo RPI, Ijuí/RS

[28] Adaptado de provérbio popular

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