UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS



Corpo e Mídia: fragmentos históricos da imprensa feminina no Brasil.

Adriana Braga  - sol@netu.unisinos.br

UNISINOS

 Resumo

Este trabalho tem por objetivo discutir alguns dados de contexto relacionados a um setor do campo discursivo midiático, a imprensa feminina. A partir do estudo da constituição histórica dessa mídia especializada no Brasil, procuro caracterizar as particularidades discursivas que compõem este produto cultural/midiático e suas relações com a produção e reprodução de elementos constitutivos das identidades femininas contemporâneas, no que concerne à proposição de padrões corporais idealizados de cunho estetizante, concomitantemente à origem e desenvolvimento históricos da mídia impressa voltada ao público feminino.

Palavras-chave: imprensa feminina (história); corpo; mulher.

A mulher, a cultura, a sociedade

A

condição da mulher na sociedade desde muito cedo foi objeto de minha atenção. Nunca me senti confortável com a maneira pela qual relações desiguais entre homens e mulheres eram naturalizadas e tomadas como evidentes. Autores das ciências sociais, da psicologia e da filosofia sempre me chamaram a atenção com textos que problematizavam a experiência feminina no âmbito das práticas sociais, denunciando tais desigualdades. Essa constatação é reiterada pela pesquisa universitária, onde autores como Sherry Ortner afirmam que “o status secundário da mulher na sociedade é um dos verdadeiros universais, um fato pan-cultural” (1974: 67)[1]. Três dados são considerados por Ortner como evidência dessa inferioridade: desvalorização social quanto aos produtos, aos papéis, às tarefas e ao meio social feminino; os arranjos sócio-estruturais que excluem as mulheres da participação nos postos mais altos da sociedade, ligados à institucionalização do poder; e mecanismos simbólicos, como por exemplo a atribuição de “sujeira” ou “impureza” relacionada à condição feminina. Esse ponto é extensamente desenvolvido por Hilia Moreira (1994: 78), que relata o problema estético para os produtores de discursos midiáticos em lidar com a representação do período menstrual, por exemplo.

O corpo feminino, para Bourdieu, é um “corpo-para-o-outro” objetificado pelo olhar e pelo discurso dos outros. A relação da mulher com o próprio corpo não se reduz a uma auto-imagem corporal. A estrutura social desta relação está na interação, nas reações, na representação que um corpo provoca no outro e como essas reações são percebidas. As mulheres são objetos simbólicos constituintes da dominação masculina e o efeito dessa estrutura coloca a mulher em um estado perene de insegurança corporal, “elas existem primeiro pelo, e para, o olhar dos outros, ou seja, enquanto objetos receptivos, atraentes, disponíveis” (Bourdieu, 1999: 82). Assim, esse padrão interacional que subordina a mulher e a torna mesmo dependente do olhar do outro – não só dos homens – traz como conseqüência a introjeção desse mesmo olhar, que se torna parte constitutiva do próprio ser feminino. Susan Bordo (1999: 250) comenta em seu artigo Feminism, Foucault and the Politics of the Body o primeiro ato público da segunda onda de protestos feministas nos Estados Unidos em agosto de 1968: ‘No More Miss America’, um movimento contra a objetificação das mulheres promovida pelos “concursos de beleza”. Segundo ela, as participantes desse evento ganharam a reputação de “bra-burners”, mesmo que nenhum soutien tenha sido de fato queimado em tal ocasião. O que houve foi uma enorme “Lata de Lixo da Liberdade”, onde foram jogados soutiens, cintas, rolinhos para cabelo, cílios postiços, perucas, e exemplares de várias revistas femininas como: Cosmopolitan (que no Brasil chama-se “Nova”), Family Circle e The Ladies’ Home Journal. Lendo algumas edições atuais dessas revistas, mais de trinta anos depois, pode-se perceber que a objetificação das mulheres contida em seus discursos ainda é uma realidade.

A imprensa feminina pertence, sociologicamente, a um capítulo da cultura de massa, que há pelo menos três décadas tem sido foco de atenção de vários estudos acadêmicos. Edgar Morin já demonstra uma preocupação acerca do papel dessa mídia na construção da feminilidade em um de seus textos da década de 1960. Morin (1986: 162) considera que as reivindicações feministas ficaram por muito tempo inacessíveis ou restritas às esferas superiores da sociedade em conseqüência de uma dualidade radical que cortava a cultura feminina em duas partes sem comunicação. De um lado, a cultura da feminilidade, desenvolvida na imprensa feminina e que confirmava e confinava a mulher no seu papel tradicional; do outro, a ideologia da intelligentsia feminista, ignorada e filtrada pela cultura da feminilidade, que por sua vez recusava a cultura da feminilidade como alienação (ver, nesse sentido, Morin, 1998: 85). Morin situa entre 1967-1971 o “acontecimento” , que estabelece a integração entre a intelligentsia e as grandes massas femininas possibilitando uma “ideologia da mulher”. A partir daí, o impulso tomado pela contestação feminina toma forma de militância em países como França e Estados Unidos, e essa vanguarda contamina o universo dos meios de comunicação de massa, promovendo um processo que Morin define como “infiltração” na imprensa feminina. Segundo ele, a revista Elle e depois a Marie Claire realizaram as primeiras “osmoses culturais” entre feminilidade e feminismo na forma de modificação de suas revistas. Dessa forma, o sentido sociológico desse tipo de mídia se rende, em função de um avanço da condição feminina e passa também a contribuir para o desenvolvimento do movimento feminino na direção da forma contemporânea desses periódicos.

Um breve histórico

P

roduto de uma demanda social e de um contexto histórico que definem seus rumos, a imprensa feminina e sua história, ou das publicações que a precederam, se confunde com a história da própria imprensa surgida a partir da invenção de Gutenberg em torno de 1450. O primeiro registro de uma publicação voltada às mulheres data de apenas um século depois: em 1554 circulava em Veneza Il libro della bella donna, de F. Luigi, de acordo com Mary Del Priore (2000). A partir de então, o fenômeno da revista feminina desde seus primórdios, de modo crescente manteve conquistando seu espaço em um mercado social que movimenta números altíssimos e estimula alianças e concorrências ferozes no setor econômico. O fenômeno surgiu na Europa, no século XVIII, chegando no Brasil só muito mais tarde, em 1827, tendo crescido com muita vitalidade, alcançando hoje a posição de segundo lugar no ranking das revistas, ficando atrás apenas das tiragens das revistas de informação semanais

A organização de dados históricos sobre a imprensa feminina que vem a seguir, se baseia em leituras que resgatam a origem e o desenvolvimento da revista feminina, principalmente Del Priore (2000) e Buitoni (1990). A primeira publicação para mulheres com circulação regular apareceu na Inglaterra em 1693: Ladies’ Mercury[2]. Na segunda metade do século seguinte, na Alemanha, Itália, Áustria vários periódicos femininos já circulavam tratando de literatura, aconselhamento sentimental e horós[3]copo. A moda ganhou publicações exclusivas a partir de 1800. No contexto europeu, foi na França que a imprensa feminina mais se desenvolveu. Desde meados do século XVIII, jornais franceses conhecidos em toda Europa publicavam poemas, crônicas, falavam sobre teatro e moda. A publicidade já se esboçava em anúncios de fábricas e lojas. A Revolução Francesa conferiu uma motivação política a vários jornais. Embora a maioria ainda conservasse os contos literários, trabalhos manuais e fofocas em suas páginas.

A designação “magazine” e o formato de revista ganharam força nos Estados Unidos. Ladies Magazine, fundado em 1828, trazia entretenimento, aconselhamento e serviço e teve muito sucesso.

Os periódicos dependiam do serviço dos correios até então. Na segunda metade do século XIX, a imprensa feminina aumentou seu alcance em função do crescimento industrial. Nos Estados Unidos as revistas começaram a ser vendidas nas livrarias a partir de 1869. Nessa época surgiram os moldes de roupa de papel, que foram encartados nos periódicos, provocando uma explosão nas vendas. Dessa forma, a imprensa feminina, que em princípio era luxo para poucas, as que sabiam ler, expandiu-se por toda Europa e Estados Unidos. Na França, a partir da Revolução Francesa, na Itália, concomitante à luta pela independência, e na Alemanha surgiram, os primeiros periódicos femininos com conteúdo político, discursos revolucionários clamavam pelos direitos das mulheres. Estrutura estatal e jurídica de proteção do trabalho feminino, direitos civis das mulheres, restabelecimento do divórcio, ação de investigação de paternidade, direito de exercer certas profissões, direito ao voto da mulher, foram causas defendidas por esses periódicos.

No início do século XX, as publicações femininas ultrapassaram a marca de um milhão de exemplares. O Ladies’ Home Journal, o primeiro a introduzir arquitetura e decoração em suas páginas, teve a maior tiragem do mundo em 1919.

No Brasil, foi no início do século XIX que começou o funcionamento da imprensa feminina. A primeira publicação para mulheres, segundo Buitoni (1990), O Espelho Diamantino, data de 1827, mesmo ano em que se tem o serviço regular de vapores entre Rio de Janeiro e Santos, que contribuiu com a imprensa que começava. Outros estudos listam o também carioca A Fluminense Exaltada, de 1832, como o primeiro jornal brasileiro feminino. Em Recife, São Paulo e Rio de Janeiro, várias publicações se sucederam contemplando o público feminino. A temática literatura era constante nos periódicos até o fim do século, e dividiam espaço com moda, artes, variedades. A Marmota, jornal de grande sucesso de 1849 a 1864, publicou as primeiras litografias impressas no papel no Brasil em forma de figurinos.

Em meados do século XIX, o folhetim foi um recurso muito utilizado nos jornais brasileiros. Originalmente, era um espaço destacado no rodapé dos jornais, que trazia variedades. O romance seriado apropriou-se deste espaço dando-lhe autonomia e o folhetim passou a designar esse gênero de ficção e não mais o espaço de variedades do jornal. As revistas femininas do final do século XIX ofereciam um espaço considerável para os conteúdos literários. Vários romances de autores importantes foram publicados pela primeira vez nas suas páginas. Muitos títulos surgiram em função exclusiva da literatura e também abriram espaço para a produção literária feminina da época.

Moda e literatura compunham o par principal que sustentava as publicações femininas brasileiras. Um eixo de sustentação que colaborava com a imagem doméstica da mulher, conforme destacado por Buitoni (1990: 41), que considera os veículos conservadores nesse ponto. Por alguns títulos da época, O Lírio, A Violeta, A Borboleta, O Beija-Flor, A Esmeralda, A Grinalda, O Espelho pode-se inferir como a mulher era vista pela sociedade desse tempo.

O caráter noticioso só apareceu nos jornais do início do século XX. Com a chegada da fotografia e as mudanças sociais do período, os jornais se reconfiguraram. No segmento das publicações femininas, a Revista da Semana, lançada em 1901 no Rio de Janeiro inaugurou a novidade da fotografia. Apresentava edições que tratavam de assuntos variados e traziam muitas ilustrações.

A Revista Feminina, lançada em 1914 por Virgínia de Souza Salles, foi a maior revista brasileira surgida até então. Contando com um esquema comercial que associava assinaturas da revista com a venda de produtos para mulheres fabricados pela mesma empresa, esta publicação circulou até 1936 com uma tiragem em torno de 15 mil exemplares de 90 páginas (números significativos para a época). Entre os produtos fabricados pela Empresa Feminina Brasileira, associada à revista, foi disponibilizado pela primeira vez a tinta para colorir os cabelos. A Revista Feminina anunciava estes e outros produtos.

A Semana de Arte Moderna de 1922 não foi sequer mencionada nas revistas que circulavam na época e que já eram muitas. Em 1928 foi lançada O Cruzeiro, que na década de 1940 contava com grande popularidade. A revista ilustrada era semanal e acompanhava os acontecimentos no grande espaço dedicado ao jornalismo. Outros títulos tratavam da agenda cultural da cidade e de literatura quando surgiu a fotonovela. O estilo apareceu na França em 1938 com muito êxito. Chegou no Brasil ainda na forma de quadrinhos desenhados e em 1951 com fotos nas páginas de Grande Hotel, da Editora Vecchi.

Alguns dados de mercado

A

Editora Abril estava no seu início quando lançou a revista Capricho, em 1952. O diferencial que atraiu as leitoras foi a publicação das fotonovelas em uma única edição ao invés da versão em capítulos. A revista cresceu rapidamente chegando a uma tiragem de 500 mil exemplares no final da década de 50. Atualmente a publicação é quinzenal, não anuncia sua tiragem e nem o tempo de circulação. Como uma “cinqüentona” estereotipada, Capricho esconde a idade. A revista, assim como o site, não apresenta os números do ano de circulação e de tiragem, somente o número daquela edição. Apesar da idade avançada, o periódico que se volta para as adolescentes apresenta outro perfil editorial:

ágil, está sempre sintonizada com seu público, com reportagens que ajudam as garotas a conviver com as mudanças que ocorrem nessa fase importante da vida. É focada em comportamento: fala da relação com os amigos, a família, os meninos e a escola. Discute temas polêmicos, como a Campanha Capricho Camisinha, e traz informações sobre serviços, compras e lazer. (site da Abril, 2002)

Outros títulos foram lançados atrás do mesmo filão, como a Sétimo Céu da Editora Bloch, mas mesmo assim a Capricho continuava liderando o mercado. A Editora Abril, fortalecida com o sucesso de suas primeiras revistas e atenta para a vinculação do consumo com a publicação feminina, lançou em 1959 a revista Manequim. A revista está no mercado há 43 anos e hoje se define como

a revista da mulher criativa e com habilidade manual. Ensina como usar e fazer as roupas da moda e ainda dá informações sobre beleza, culinária, artesanato e decoração. Esclarece dúvidas e aconselha sobre acessórios e complementos. Em todas as edições, oferece à leitora o Caderno de Moldes, com explicações técnicas sobre como confeccionar as roupas. O Caderno de Cozinha também acompanha a revista, com receitas fáceis e rápidas. (site da editora Abril, 2002)

Quando o periódico “diz” que “esclarece dúvidas e aconselha sobre ...”, pressupõe que haja um saber a respeito de alguma coisa. E a revista se propõe a ocupar o lugar do saber sobre o corpo feminino. Ainda ao longo do texto lêem-se palavras como “ensina”, “explicações”, “fáceis”, “rápidas”, permitindo a leitura da proposição de um lugar “pedagógico” ocupado pelo discurso dessa revista feminina.

A revista Claudia foi a primeira revista feminina brasileira com nome de gente e foi lançada pela Editora Abril em 1961. Vale ressaltar que foi onde Carmen da Silva encontrou abrigo (de 1963 a 1985) para grande parte de seus textos, embora esses conteúdos pouco tenham transbordado para o resto da revista. Mas, como disse Buitoni, “seu grande filão é o mundo doméstico” (1990: 50). Ainda hoje, a revista define os “temas que dizem respeito à mulher: profissão, vida em família, casa, moda e cozinha” (site da Abril: 2002). Ao instituir uma mulher, a revista institui também “temas” que lhe dizem respeito. A revista Claudia destaca-se no cenário da imprensa na América Latina e no segmento feminino como a publicação mais importante. Em 150 páginas editoriais, em média, por mês, garante 2,5 milhões de leitoras e uma circulação de 425.500 exemplares mensais (IVC – abr/2001).

As revistas Nova e Carícia surgiram na Editora Abril como resultado de uma demanda social de informação sobre sexo. Afinal, já eram os anos 1970 e o assunto começava a deixar de ser tabu. A temática do sexo é freqüente nos periódicos femininos desde então. A revista Nova é um exemplo dos títulos que privilegiam o assunto em cada edição. A Nova faz parte da rede Cosmopolitan internacional e é a revista mais vendida no mundo. No Brasil, foi lançada em 1972 e depois de 30 anos de mercado ostenta uma circulação de 328.800 exemplares mensais (IVC – abr/2001). A leitora, segundo seu próprio discurso é uma “mulher dinâmica, curiosa, independente economicamente, com alto nível cultural e que gosta de vida social”. O sucesso de Nova originou outra publicação: Nova Beleza, “a revista da mulher que quer ficar bonita, jovem e saudável por mais tempo”. Os números de circulação dessa revista, 115.500 exemplares bimestrais, demonstram a autonomia conquistada pelo “suplemento”.

A Editora Abril é a maior editora de revistas da América Latina. As revistas são o principal produto da editora e representam 64% dos negócios do grupo. Atualmente, disponibiliza 233 títulos de revistas por ano, que são lidos por 30 milhões de pessoas. No ano 2000, a editora alcançou a marca de 224 milhões de exemplares vendidos e 4,6 milhões de assinaturas (mais de dois terços de toda a base de assinaturas do país), veiculando 47.700 páginas de anúncio. Com esses números ocupa a confortável posição de líder hegemônica em circulação, assinaturas e publicidade no Brasil. Com um parque gráfico e tecnologia da informação de ponta, tem a maior gráfica da América Latina e ainda expande o seu domínio no ramo das revistas eletrônicas, que já fazem par com as impressas. A editora conta com um sistema de distribuição próprio que garante a sua independência e controle total sobre o processo de produção das revistas desde a elaboração da pauta até as mãos da leitora, como orgulhosamente fazem questão de anunciar nos materiais de divulgação. Toda esta estrutura aliada aos altos números alcançados garante à editora a posição isolada de líder do mercado, tanto do ponto de vista econômico quanto simbólico. Abaixo, os 16 títulos da Editora Abril voltados para o público feminino e os números de circulação de cada um.

|Título |Circulação |Periodicidade |

|ANAMARIA |161.000 exemplares |semanal |

|BOA FORMA |241.900 exemplares |Mensal |

|CAPRICHO |166.800 exemplares |quinzenal |

|CLAUDIA |425.500 exemplares |mensal |

|ELLE |57.500 exemplares |mensal |

|MANEQUIM |382.100 exemplares |mensal |

|MINHA NOVELA |120.400 exemplares |semanal |

|NOVA |328.800 exemplares |mensal |

|NOVA BELEZA |115.500 exemplares |bimestral |

|TUDO |84.916 exemplares |semanal |

|VIVA! MAIS |413.000 exemplares |semanal |

|CLAUDIA COZINHA |62.600 exemplares |bimestral |

|CONTIGO! |171.100 exemplares |semanal |

|FAÇA E VENDA |129.900 exemplares |mensal |

|MINHA NOVELA |120.400 exemplares |semanal |

|NINA–PONTO CRUZ |194.300 exemplares |mensal |

Fonte: IVC 2001

O poderio editorial da Abril tornou-se ainda maior quando ela incorporou a Editora Símbolo em 1999. A Editora Símbolo foi fundada em 1987 com o lançamento da revista Corpo a Corpo. É a terceira maior editora do país, tem 8 títulos de circulação nacional e todos para o público feminino. Vários periódicos da Editora Símbolo apresentam o mesmo perfil editorial de títulos da editora Abril, abrindo uma espécie de concorrência consigo mesmos, dando uma impressão de livre mercado que dissimula uma situação perto de monopólio.

A revista Atrevida da Editora Símbolo apresenta o público para quem se volta: “a adolescente que procura por informação sobre as mudanças que estão ocorrendo em sua vida, a procura de conselhos sobre todas as novidades dessa fase”. Se comparado com o perfil de público descrito pela editora Abril para a revista Capricho, notar-se-á pouca diferença. Dessa mesma maneira, a revista Corpo a Corpo da Símbolo “compete” com a Boa Forma, da Abril, a Tititi com a Contigo!, a Uma com a Claudia e a Chiques e Famosos com a Caras, que apesar de ter uma editora própria, também faz parte do grupo Abril. Os números da Editora Símbolo:

|Título |Número de Leitores |Tiragem |Periodicidade |

|ATREVIDA |972.000 |150.000 exemplares |mensal |

|CORPO A CORPO |440.000 |120.000 exemplares |mensal |

|TITITI |946.000 |230.000 exemplares |semanal |

|CHIQUES E FAMOSOS |413.000 |100.000 exemplares |semanal |

|UMA |101.000 |100.000 exemplares |mensal |

|RAÇA BRASIL |760.000 |60.000 exemplares |bimestral |

|DIETA JÁ! |372.000 |100.000 exemplares |mensal |

|MEU BEBÊ |161.000 |80.000 exemplares |mensal |

Fonte: Marplan 2001

A hiper-segmentação contemporânea da imprensa feminina surge em conseqüência das demandas vindas de setores da sociedade, fazendo com que essa mídia se divida segundo recortes de classe social, etários, de estilo, de prioridades e mesmo étnicos. De modo que não faz sentido pensar na categoria “revista feminina” como um todo coeso, na medida em que cada uma se volta especificamente para as mulheres adolescentes, maduras, pobres, de elite, emergentes, que cozinham, que costuram, que vêem novelas, que querem emagrecer, negras, etc. Entretanto, compõem no seu somatório um interessante mosaico do feminino em nossa sociedade que, de uma certa maneira espelha o ‘ser mulher’ nela.

Apesar da evidente abrangência do domínio da Editora Abril e suas associadas no mercado editorial brasileiro, outras editoras de menor vulto, mas não menos importantes, disputam espaço em cada banca de revista com suas publicações, engendradas a partir de motivações editoriais diferentes e dirigindo-se aos mesmos públicos e a diversos outros.

A Editora Globo tem um porte menor que a Abril em termos editoriais, mas não se for considerado o grupo do qual faz parte. As organizações Globo, um verdadeiro império no ramo de televisão (aberta, cabo e satélite), imprensa e rádio, fornecem toda a estrutura, prestígio e capital conquistado no mercado nacional ao longo de anos a serviço de qualquer produto que leve a sua “marca”. Tem 11 títulos no mercado, dos quais 5 se destinam à mulher. A revista Marie Claire foi lançada no Brasil em 1991 , uma versão brasileira da famosa revista que circulava na França desde 1937 (com interrupção durante a Segunda Guerra até 1954). No Brasil de hoje, a revista apresenta um perfil editorial que promove o seu diferencial a partir da aquisição de prêmios jornalísticos distribuídos por instituições prestigiosas. Assim, associa à própria imagem uma distinção pela “inteligência”, que pode ser estendida àquelas que lerem as suas matérias. A representação da “mulher Marie Claire” fica clara no texto abaixo, retirado de um anúncio publicitário:

Ela se preocupa com a casa e com a educação dos filhos. Vê novela, adora cozinhar e quer tudo sempre organizado. Também trabalha, se diverte, vota com consciência e expõe suas opiniões com vigor. É uma mulher que se interessa por temas diferentes, como a vida e as idéias das drag-queens.

Assim é a nossa leitora. Assim é a mulher Marie-Claire.

Marie Claire. Chique é ser inteligente.

A revista Criativa, lançada pela Rio-Gráfica Editora em 1989, trazia trabalhos manuais e dicas práticas. Depois de passar a ser editada pela Globo, se apresenta como aquela que ajuda a leitora “a ficar por dentro do mundo da moda, a tirar proveito das novidades da beleza e a acompanhar as tendências em decoração (...)”. Abaixo, alguns números de publicações da Editora Globo:

|Título |Total de Leitores |Circulação |

|Marie Claire |1.205.000 |123.484 |

|Criativa |1.551.000 |92.455 |

Fonte: (IVC – maio/2000) e Marplan

O mercado editorial das revistas femininas conta ainda com a participação de uma série de pequenas editoras que juntas representam uma diversidade significativa de “vozes” nesse campo discursivo. Várias editoras representam essa parcela do mercado. Por exemplo: Editora Edicom (Estética), Editora Nova Sampa (Bela Mulher), Editora Novo Mundo (Dieta e Cia), Editora Multimagem (Estética), RG Santoro Editores (Estilo e Cabelos), Editora Escala (Alô mulher! e Minha Revista), United Magazines (Plástica e Beleza), massa falida da Bloch (Desfile), são algumas delas.

Uma pedagogia do feminino

A

partir de processos de enunciação, esse setor específico da mídia, a imprensa feminina, desenvolve um “modelo de conselheiro” que visa tutorizar e monitorar certas dimensões do corpo feminino. Edgar Morin (1986: 111) aponta esse caráter de conselheira das mídias, que traz “além das informações, conselhos, e incitamentos de toda ordem”. Uma mídia que recorre a uma espécie de sabedoria leiga acerca do corpo que associa bom senso a outros campos do saber – científico, estético, médico – na tentativa de se constituir em autoridade para falar sobre a mulher, e nessa fala, pode-se notar uma pedagogia, modos de dizer, de convencer, que visam indicar sobre esse corpo, condutas, comportamentos e técnicas próprias de seus discursos, através de suas enunciações. O conhecimento é positivado para tutorizar o modelo ideal de corpo. Tarefas que eram confiadas a outras matrizes da sociedade (almanaque, literaturas que circulavam preocupadas com a questão da performance do corpo feminino) quando se tratava da formação da mulher, vão sendo desempenhadas, em uma larga medida, pela imprensa feminina. A mídia trabalha um corpo ideal, mas subjacente a esse trabalho discursivo, ela está instituindo um ideal de corpo. Alguns exemplos ilustram esse tópico:

1. Cabelo lindo em pleno verâo: um roteiro ensina como lavar, tratar e proteger corretamente (Corpo a Corpo: janeiro/2002)

2. Veja como emagrecer 7 kg e ficar em forma para entrar com facilidade nas roupas de verão (Dieta Já!: novembro/2001)

3. Sob o sol de verão: saiba como manter cabelo e pele bonitos e saudáveis (Raça Brasil: dez/2001-jan/2002)

(grifo da autora)

Alguns textos precedem minhas preocupações no exame dessa instituição do corpo realizada pela mídia. Oscar Traversa (1997) aponta para a considerável emergência, nos anos 20, de produtos anunciados como remédios – cremes, sabões e pós – para os males da superfície visível do corpo, exposta ao olhar do outro, e, mais que isso, para a porção máxima de exibição do corpo: o rosto. A partir da pesquisa de Traversa, que toma por objeto a imprensa feminina de 1918 a 1940, percebe-se o movimento dos dispositivos de gestão da experiência moderna. Sob a gestão das mídias, o corpo feminino é colocado em sua nudez em praça pública para ser tutorizado por pedagogias que tecem as características que “devem ter” esse corpo.

Para finalizar

H

istoricamente, a mulher, entendida como fenômeno de cultura, sempre esteve no alvo das preocupações dos grandes sistemas de leitura. Assim, em maior ou menor grau, o corpo feminino sempre esteve exposto, presente nas angulações dos processos da sociedade. Entretanto, esses processos, apesar de muitas vezes repousarem em práticas do passado, são resultado de semiotizações únicas, produzindo uma espécie de “versão atualizada” de antigas produções de sentido e padrões culturais. Cada experiência valorativa nas trocas sociais apresenta uma singularidade, na medida em que se organizam em dinâmicas particulares de cultura. Dessa forma, os discursos midiáticos e as ideologias neles contidos, estão em constante processo de elaboração, de reconstrução através das práticas dos atores sociais, suas falas e produções, negociações, em um processo sócio-interacional, sempre passíveis de mudança pela situação concreta e específica em que se encontram. Assim, considero importante destacar o papel do trabalho midiático na (re)construção de identidades atribuídas ao feminino.

O campo midiático reflete a sociedade e a cultura nas quais está inserido. Através do conteúdo e da forma de uma peça de mídia, vários aspectos da sociedade que a produz podem ser identificados. Pensada, elaborada e produzida por profissionais de uma mesma coletividade, a mídia influencia e é influenciada pela cultura que a abriga. As mídias não só interpelam os indivíduos da sociedade, como também articulam significados, construindo expectativas ligadas a identidades sociais particulares. A noção de articulação de significados demonstra o caráter instável das representações, que regulam as significações. Dessa maneira, os significados são abertos e desarticulações ou novas ligações sempre podem ser feitas. As pessoas, ao receberem essas mensagens, assumem a posição esperada ou a rejeitam e tentam encontrar posições alternativas.

Essas mesmas revistas que estampam corpos femininos seminus, objetificados em suas capas, também trazem outras informações. Nas suas várias seções, opiniões diversas se contrapõem em entrevistas, artigos, cartas de leitoras e outros espaços. Assim, as revistas disponibilizam não "um" discurso monolítico, mas uma pluralidade de discursos que, no espaço midiático, ganham visibilidade propondo definições da realidade, por vezes concorrentes, por vezes contraditórias. E é nas mãos da leitora, através de sua interpretação e desdobramentos pessoais, que a negociação dos significados se completa.

No que diz respeito às revistas femininas, não só elas, mas todo o sistema de mídia do qual elas são parte, serve de palco para as negociações que ocorrem entre os vários campos sociais. Por razões de mercado, interesses de toda ordem, luta por hegemonia, setores da sociedade usam a mídia para publicizar suas visões de mundo, na tentativa de alcançar públicos específicos e numerosos. E a mídia, tensionando interesses próprios, dá visibilidade a este processo.

Bibliografia

BORDO, Susan. “Feminism, Foucault and the Politics of the Body” in: PRICE, J. and SHILDRICK, M. (eds.) Feminist Theory and the Body – a reader.

New York: Routledge, 1999.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina.

Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999.

BUITONI, Dulcília Schroeder. Imprensa Feminina

São Paulo: Editora Ática, 1990.

DEL PRIORE, Mary. Corpo a Corpo com a Mulher.

São Paulo: Editora SENAC, 2000.

MOREIRA, Hilia. Cuerpo de Mujer.

Montevideo: Ediciones Trilce, 1994.

MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX – o espírito do tempo 2: necrose

Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986.

____________. O Método 4. As Idéias – habitat, vida, costumes, organização.

Porto Alegre: Sulina, 1998.

ORTNER, Sherry. “Is Female to Male as Nature Is to Culture?” in: ROSALDO, M. and LAMPHERE, L. (eds.) Woman, Culture and Society. Stanford, Stanford University Press, 1974.

TRAVERSA, Oscar. Cuerpos de Papel.

Barcelona: Gedisa, 1997.

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[1] Tradução pessoal. No original: the secondary status of woman in society is one of the true universals, a pan-cultural fact.

[2] Ladies´Mercury trazia em seus primeiros números uma seção de aconselhamento sentimental, com respostas a cartas que relatavam infortúnios amorosos das leitoras. Desde o início o caráter tutorial da mídia feminina, que institui um modelo de “conselheira” da mulher, e que pode ser notada na imprensa feminina contemporânea (ver capítulo 1), já se anunciava.

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