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NOVOS CONTRIBUTOS TEÓRICOS PARA UMA VELHA POLÊMICA: INEXISTÊNCIA DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO E CONDIÇÕES DA AÇÃO[1]

Flávia Moreira Guimarães Pessoa[2]

Aline Reis Fonseca[3]

RESUMO

O presente artigo analisa, sob o ponto de vista processual, a conseqüência jurídica da ausência de vínculo empregatício quanto ao reconhecimento de carência de ação na Justiça do Trabalho. O estudo aborda a teoria eclética da ação, adotada pelo vigente Código de Processo Civil brasileiro, à luz dos princípios da efetividade processual, celeridade e instrumentalidade das formas, a fim de demonstrar que as denominadas condições da ação enquadram-se perfeitamente na categoria das questões processuais ou das questões de mérito.

PALAVRAS-CHAVE: vinculo empregatício, condições da ação, Neoprocessualismo e teoria eclética.

1. A VELHA QUESTÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO E CONDIÇÕES DA AÇÃO

Os operadores da justiça do trabalho enfrentam, diariamente, o mesmo problema: inúmeras contestações suscitando carência de ação por ausência de alguma das condições da ação. Uma velha polêmica, sem dúvida.

A solução encontrada pelo processo do Trabalho foi remeter a questão ao mérito, sem muito discutir sobre a propriedade ou não da adoção da teoria eclética pelo Código de Processo Civil.

O presente artigo visa justamente a fazer essa abordagem. O Código de Processo Civil (CPC) brasileiro, por influência dos ensinamentos do professor italiano Enrico Tullio Liebman, adotou expressamente a teoria eclética sobre o direito de ação. De acordo com essa teoria, o direito de ação, não obstante independesse da existência ou não do direito material de que o autor se alega titular, estaria condicionado à existência de três condições, a saber, legitimidade das partes, possibilidade jurídica do pedido e interesse de agir. A ausência de qualquer das condições da ação implicaria a extinção do processo sem julgamento de mérito. Como consequência, a sentença seria inapta a produzir coisa julgada material.

Ocorre que a teoria eclética não explica com que fundamento haveria atuação do Estado-juiz nos casos em que o processo é extinto sem resolução do mérito por carência de ação. Ademais, verifica-se que a ilegitimidade ordinária da parte e a impossibilidade jurídica do pedido, apesar de constituírem hipóteses de improcedência manifesta do pedido do autor, dão ensejo a uma decisão que apenas produz coisa julgada formal, de forma que o autor não ficará impedido de ajuizar novamente a mesma demanda. Assim, observa-se que o primeiro processo terá dado origem a uma decisão jurídica desprovida de qualquer eficácia para o réu.

Não tem sentido, no atual estágio do Direito Constitucional, que a solução jurídica oferecida pelo Estado para um caso de evidente improcedência do pedido seja uma decisão absolutamente ineficaz, em total prejuízo para réu. O direito fundamental de ação, mais do que assegurar a possibilidade de que se ingresse em juízo, garante o direito a um devido processo legal, com todas as suas garantias, que tutele de forma célere, adequada e efetiva os direitos materiais.

Assim é que importa analisar a ausência de vinculo empregatíco, uma das questões mais comuns da justiça do trabalho, como questão de mérito. Desta forma, inclusive, vem se orientando o Tribunal Superior do Trabalho, embora sem entrar nos pontos teóricos da discussão:

RECURSO DE REVISTA - FAXINEIRA - VÍNCULO EMPREGATÍCIO - RECONHECIMENTO - IMPOSSIBILIDADE - TRABALHO EVENTUAL E NÃO SUBORDINADO. Inviável o reconhecimento de vínculo empregatício com faxineira que prestava serviço duas vezes por semana, no máximo, nas dependências da reclamada, podendo escolher o horário em que se ativava, assim como os meses do ano em que trabalhava. Entendimento diverso ensejaria o vilipêndio aos arts. 2º e 3º da CLT, uma vez que ausentes a subordinação e a não eventualidade necessárias à formação do liame em comento. Recurso de revista conhecido e provido.       ( Processo: RR - 1188100-34.2002.5.04.0900 Data de Julgamento: 09/12/2009, Relator Ministro: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, 1ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 18/12/2009) .

JOGO DO BICHO. VÍNCULO EMPREGATÍCIO. NULIDADE. De conformidade com a jurisprudência sedimentada do Tribunal Superior do Trabalho (OJ nº 199 da SBDI1), com ressalva do Relator, revela-se inviável, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, o reconhecimento de vínculo empregatício entre arrecadador de apostas de jogo do bicho e o respectivo banqueiro, em virtude da ilicitude de objeto. Recurso de que se conhece e a que se dá provimento.(Processo: RR - 482654-46.1998.5.18.5555 Data de Julgamento: 06/03/2002, Relator Ministro: João Oreste Dalazen, 1ª Turma, Data de Publicação: DJ 12/04/2002

O presente trabalho, portanto, analisa a questão sob o ponto de vista teórico e busca dar subsídios à adoção de decisões nesse sentido.

2. A TEORIA ECLÉTICA DA AÇÃO

No decorrer da história do Direito Processual, o conceito de direito de ação foi objeto de muita polêmica. Até meados do século XIX, prevaleceu a teoria imanentista da ação, a qual sustentava que o direito de ação se confundiria com o próprio direito material em reação a uma lesão sofrida (FREIRE, 2005).

A partir da polêmica travada entre Windscheid e Müther, nasceu a teoria concretista da ação, segundo a qual o direito de ação seria o direito a um julgamento favorável (MACHADO, 2005). Assim, somente haveria direito de ação quando existisse o direito material. Dizer que o autor era carecedor de ação seria equivalente a afirmar que ele não possuía o direito material invocado.

No entanto, a concepção concreta do direito de ação não conseguia explicar com que fundamento se instaurava a atuação jurisdicional nos casos em que o pedido fosse julgado improcedente. Por essa razão, no final do século XIX, com a publicação dos trabalhos dos juristas Alexander Plósz e Heinrich Degenkolb, surgiu a teoria abstrata sobre o direito de ação (SILVA, 2001).

De acordo com a concepção abstrata, o direito de ação seria o direito a que o juiz se manifestasse, pouco importando o conteúdo da decisão final. Para os defensores dessa teoria, o direito de ação seria incondicionado e conferido a todos indistintamente.

Em meados do século XX, o processualista italiano Enrico Tullio Liebman elaborou a teoria eclética. Conforme essa concepção, o direito de ação corresponderia ao direito a um julgamento de mérito e estaria condicionado à existência de partes legítimas, pedido possível e interesse de agir. A falta de qualquer das condições da ação acarretaria a extinção do processo sem julgamento de mérito (LIEBMAN, 2001).

É certo que a teoria eclética e a concepção abstrata se aproximavam no ponto em que consideravam o direito de ação como o direito a um provimento jurisdicional, qualquer que fosse o seu teor. O ponto de discórdia entre as duas teorias residia, no entanto, na definição do momento em que começaria a atividade jurisdicional (SILVA, 2001).

Em sua obra “Estudos sobre o Processo Civil brasileiro”, Liebman (2001, p. 101/102) sustenta que o mérito da causa representa o conflito de interesses traduzido pelo pedido do autor e pela contestação do réu. O julgamento do mérito admitiria, então, dois possíveis resultados: procedência e improcedência do pedido formulado.

Partindo do conceito de que o mérito é o conflito de interesses entre as partes, Liebman defende que todas as questões por ele não abrangidas constituem questões prévias, cuja análise pode levar ou à continuação do processo para conhecimento do mérito, caso em que o despacho saneador seria o instrumento adequado para decidi-las, ou à terminação do processo sem conhecimento de mérito, caso em que as questões prévias seriam decididas por sentença (LIEBMAN, 2001, p. 104).

As questões prévias, esclarece o autor (LIEBMAN, 2001), serviriam para que o processo se realizasse em respeito às devidas garantias de imparcialidade, eficiência, ordem e respeito ao direito de terceiros. Isso porque tanto o pedido como o processo deveriam ser adequados ao conflito de interesses existente entre as partes. Do contrário, defende, não poderia haver julgamento do mérito.

Segundo Liebman, somente no caso em que a lide realmente fosse julgada é que haveria o direito de ação. Por isso, o processualista italiano define a ação como direito de provocar o julgamento do pedido formulado pelo autor, fosse ele procedente ou improcedente.

É de se destacar que, sob a influência do professor Alfredo Buzaid, discípulo de Liebman e autor do anteprojeto do atual Código de Processo Civil, a concepção eclética foi adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Com efeito, dispõe o art. 3° do CPC que para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade. Em complemento, o art. 267, VI, do CPC determina a extinção do processo sem resolução de mérito no caso de não concorrer qualquer das condições da ação.

Para a teoria eclética, o direito de ação só existiria quando presentes todas as condições da ação, quais sejam, legitimidade das partes, possibilidade jurídica do pedido e interesse de agir. Na ausência de qualquer dessas condições, a hipótese seria de “carência de ação”, devendo o processo ser extinto sem resolução do mérito. O direito de ação seria, portanto, o direito de obter um provimento de mérito, o que somente seria possível se o autor preenchesse todas as denominadas condições da ação.

De acordo com Liebman (2001, p. 106), o interesse de agir estaria presente quando houvesse para o autor utilidade e necessidade na obtenção de seu pedido, de forma que, por esse meio, pudesse haver a satisfação do interesse material que ficou insatisfeito pela conduta de outra pessoa. Em síntese, o interesse de agir seria decorrente da necessidade de tutelar, por meio do processo, o interesse substancial violado (LIEBMAN, 1985).

O interesse de agir se subdivide em interesse-utilidade e interesse-necessidade. O interesse-utilidade estaria configurado quando o processo pudesse propiciar algum proveito ao demandante. Assim, na petição inicial deve o autor demonstrar que a providência jurisdicional requerida é apta para tutelar a situação fática por ele narrada, conferindo-lhe uma situação jurídica de vantagem (MAGGIO, 2008, p. 74).

Por sua vez, o interesse-necessidade seria exigido como forma de transformar o exercício da jurisdição no último instrumento de solução de conflitos. Somente no caso de não haver outros meios para a satisfação voluntária do interesse restaria configurada a necessidade da atividade jurisdicional (MAGGIO, 2008, p. 74).

Insta ressaltar que existe uma forte corrente doutrinária que relaciona o interesse de agir também a um terceiro elemento: a adequação do provimento judicial e do procedimento. Essa corrente sustenta que, além de demonstrar a necessidade e utilidade da tutela jurisdicional, o autor deveria ainda indicar o procedimento e o tipo de provimento adequados à proteção dos pedidos mediato e imediato perseguidos em juízo (MANCUSO, 1997, p. 132).

Já a legitimidade das partes, de acordo com a definição apresentada por Liebman (2001, p. 107/108), seria a pertinência subjetiva da lide nas pessoas do autor e do réu. Dessa forma, haveria legitimidade da parte quando a ordem jurídica reconhecesse o autor e o réu como as pessoas a quem se faculta, respectivamente, propor e contestar a demanda.

Dispõe o art. 6° do CPC que ninguém está autorizado a pleitear em juízo, em nome próprio, na defesa de direito alheio, salvo se autorizado por lei. Assim, a regra geral no ordenamento jurídico pátrio somente legitima para atuar em juízo o titular da relação jurídica deduzida pelo demandante (CÂMARA, 2006). Nessa hipótese, fala-se que o demandante é legitimado ordinário para a causa.

Como exceção, pode uma norma jurídica autorizar que um terceiro vá a juízo, em nome próprio, na defesa de interesse alheio, o que significa que, em alguns casos, terá legitimidade de parte alguém que não é titular da relação jurídica deduzida no processo. Nessa situação, fala-se em legitimidade extraordinária para a causa (CÂMARA, 2006).

De acordo com Liebman (1985, p. 159), a legitimidade extraordinária decorre de um especial interesse pessoal reconhecido pela lei ao substituto. Não havendo legitimidade extraordinária, o caso será de carência de ação, devendo haver extinção do processo sem resolução do mérito.

A última das condições da ação é a possibilidade jurídica do pedido, que, segundo Liebman (2001, p. 106), consiste na possibilidade de o juiz, na ordem jurídica a que pertence, proferir a decisão pedida pelo autor. Trata-se, portanto, da admissibilidade em abstrato do provimento pedido pelo autor (LIEBMAN, 1985).

Segundo o texto legal, a ausência de qualquer das condições da ação dá ensejo a uma decisão que apenas transita em julgado formalmente. Sucede que não há nenhuma utilidade no provimento de carência de ação, se ao autor é reconhecido o direito de re-propor, quantas vezes o seu bel prazer desejar, essa mesma demanda. Não há nenhuma lógica em se oportunizar ao demandante a possibilidade de pedir inúmeras vezes a mesma tutela jurisdicional já negada pelo juiz nos casos em que a improcedência é macroscópica.

Sem dúvidas, o reconhecimento de que a sentença de carência de ação também produz coisa julgada material seria a solução mais compatível com o princípio da instrumentalidade do processo (COSTA, 2005). Ele impediria a repetição da mesma demanda inúmeras vezes perante o Poder Judiciário e resolveria definitivamente a questão posta a exame em juízo.

3. ANÁLISE DAS CONDIÇÕES DA AÇÃO À LUZ DO NEOPROCESSUALISMO

A teoria eclética, ao determinar que a ausência de uma condição da ação leve à extinção do processo sem resolução de mérito, acarreta entraves à efetividade processual. Ocorre que, com o nascimento do Neoprocessualismo, entende-se que o Direito Processual Civil deve ser reinterpretado a partir da Constituição.

É certo que, da garantia constitucional do devido processo legal, decorre que o processo deve servir como instrumento para efetivar os direitos materiais. Sob essa perspectiva, as denominadas condições da ação devem ser re-analisadas, a fim de que se encontre a sua verdadeira natureza jurídica.

3.1 A necessidade de releitura do Direito Processual Civil à luz da Constituição

Historicamente, observa-se que foi durante o Iluminismo que se difundiu a ideia de que a lei seria a tradução da vontade geral e do bem comum, confundin-se com a com ido com a própriarmas, ser corrigido pela parte ou pelo juiz, como cedente do pedido.do-se com a própria noção de direito. Nesse período, começou-se a exigir uma sistematização racional do direito em um ordenamento dotado de unidade, coerência e hierarquia (CAMBI, 2007).

Com o surgimento do Estado Social, surgiram diversos grupos voltados para a proteção de determinados setores da sociedade, que atuavam pressionando o Poder Legislativo a fim de que fossem elaboradas leis diferenciadas. Desde então, passou-se a perceber que a lei não era dotada das características de impessoalidade e de coerência da forma tão pura como pregava o positivismo clássico (MARINONI, 2007).

Nesse mesmo contexto histórico, o Estado, ao negar proteção a certos setores da sociedade, deu ensejo à criação de alguns “ordenamentos privados”. Dessa forma, ao lado do direito posto pelo Estado, passou a existir uma nova fonte de produção do direito, o que contribuiu para que se superasse a ideia de que haveria uma correspondência absoluta entre o direito e a lei estatal (MARINONI, 2007, p. 42).

Como desdobramento dessas reflexões críticas ao Positivismo, após o fim da Segunda Guerra Mundial, surgiu um movimento que ficou conhecido como Constitucionalismo Contemporâneo ou Neoconstitucionalismo, cuja origem social, segundo destaca Barroso (2005), encontra-se nas duas grandes guerras ocorridas no século XX e nas experiências do fascismo, nazismo e comunismo.

Nesse período, observou-se que a legalidade formal e a neutralidade valorativa do direito poderiam acobertar atrocidades. Assim, deveria ser formado um movimento que pregasse a superação do positivismo formal e que atribuísse força normativa às normas constitucionais, a fim de impedir que a lei pudesse fundamentar situações de total desrespeito aos direitos fundamentais e aos valores de justiça (BARROSO, 2005).

Como resultado, formou-se o movimento Neoconstitucionalista, o qual sustenta que o princípio da legalidade não deve corresponder apenas a uma simples análise formal do processo de elaboração da lei. Mais do que isso, deve exigir que a produção normativa seja submetida a um controle de constitucionalidade (MARINONI, 2007).

Os valores supremos que serviriam para limitar e conformar a lei aos princípios de justiça foram, então, inseridos na Constituição. Além disso, para possibilitar a efetivação do controle material das leis, as normas constitucionais foram dotadas de eficácia normativa e de rigidez, tornando-se insuscetíveis de modificação pela legislação ordinária (MARINONI, 2007).

Com a subordinação da lei aos princípios constitucionais de justiça e aos direitos fundamentais, o trabalho do jurista deixa de se restringir a uma mera descrição do texto legal. Hoje, mais do que revelar as suas palavras, cabe à doutrina projetar uma nova imagem da lei, corrigindo-a e adequando-a aos princípios de justiça e aos direitos fundamentais (MARINONI, 2007, p. 44).

Foi o movimento Neoconstitucionalista que indicou a necessidade de se criar um catálogo de garantia e direitos fundamentais aos cidadãos frente aos abusos estatais (CAMBI, 2007). Como consequência, a dignidade da pessoa humana, além de ser consagrada constitucionalmente, passou a ser entendida como valor constitucional supremo, que confere caráter unitário e sistêmico aos direito fundamentais.

Além da valorização da dignidade da pessoa humana, o Neoconstitucionalismo caracteriza-se, ainda, pela rematerialização constitucional, de forma que a Constituição, mais do que normas sobre a organização do Estado, passou a consagrar as opções políticas, as diretrizes e os direitos fundamentais (CAMARGO, 2008).

É de se destacar que a ideia de constitucionalização do Direito se relaciona à aptidão das normas constitucionais de se irradiarem, com força normativa, por todo o sistema jurídico. Dessa forma, as finalidades e os valores contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a funcionar como marco a partir do qual todas as normas de direito infraconstitucional devem ser interpretadas (BARROSO, 2005).

Também é marca do Constitucionalismo Contemporâneo o reconhecimento da força normativa da Constituição, superando-se a ideia de que a Lei Maior seria apenas uma carta de meras intenções. Nesse ponto, registre-se que a hermenêutica jurídica estabeleceu a distinção entre regras e princípios e conferiu a estes força normativa. Além disso, mencione-se, os direitos fundamentais foram dotados de aplicabilidade imediata e utiliza-se, cada vez mais, da técnica legislativa das cláusulas gerais (CAMBI, 2007, p. 7/8).

O Neoconstitucionalismo acarretou, ainda, uma profunda alteração na teoria das normas. Isso porque, enquanto a doutrina Clássica fazia uma distinção entre princípios e normas, hoje, prevalece a ideia de que a norma é o gênero cujas espécies são os princípios e regras (CAMBI, 2007).

Nesse ponto, cumpre mencionar que as regras, de uma forma geral, aplicam-se automaticamente ao caso concreto, através da técnica de subsunção. Já os princípios permitem a busca de soluções adequadas às pretensões sociais legítimas através de um meio-termo entre a vinculação e a flexibilidade. Utiliza-se, dessa forma, a técnica de ponderação, que possibilita o ajuste da Constituição às especificidades do caso concreto (CAMBI, 2007).

Diante disso, conclui-se que o Neoconstitucionalismo é o movimento que, visando conferir força normativa à Constituição, afastou a lei e os Códigos do centro do ordenamento jurídico, fazendo com que eles passassem a gravitar em torno das normas constitucionais. Dessa forma, o Neoconstitucionalismo acabou por impor uma releitura de todos os demais ramos do Direito, a fim de que ficassem submetidos aos contornos traçados pela Constituição.

No âmbito do Direito Processual Civil, é de se destacar que o Neoconstitucionalismo impõe que o processo, além de funcionar como um instrumento de afirmação de muitos dos direitos reconhecidos pela Carta Magna, busque sempre seu fundamento de validade na Constituição. Assim, surgiu o movimento Neoprocessualista, que consiste na fase teórica em que o processo é estudado de acordo com as bases do Neoconstitucionalismo. (CAMBI, 2007, p. 1).

O Neoprocessualismo, conforme destaca Eduardo Cambi (2007, p. 30), surgiu em decorrência dos seguintes fatores: o posicionamento da Constituição no centro do ordenamento jurídico, o fenômeno da constitucionalização dos direito materiais e processuais fundamentais, o surgimento de microssistemas jurídicos, a tendência à adoção da técnica legislativa das cláusulas gerais e o aumento dos poderes do juiz.

Como resultado do Neoprocessualismo, anota Fredie Didier (2008, p. 29), nasceu a teoria circular dos planos material e processual, segundo a qual o processo deve ser adequado à proteção dos direitos fundamentais, ao tempo em que deve ser por eles estruturado. Noutras palavras, as regras processuais devem a um só tempo respeitar e tutelar os direitos fundamentais.

Desde logo, destaque-se que a expressão “neo” pretende chamar atenção para a mudança de paradigmas. Não se buscam alterações meramente no plano teórico. Mais do que isso, deve-se procurar adequar o processo às novas situações sociais, políticas e econômicas, bem como àquilo que a Constituição coloca como objetivo fundamental, a fim de que sejam encontradas soluções mais efetivas para os problemas processuais (CAMBI, 2007, p. 2).

Portanto, o objetivo do Neoprocessualismo é assegurar que o processo observe as garantias decorrentes do devido processo legal, a exemplo do contraditório, da ampla defesa, da igualdade das partes, da publicidade, da motivação, da economicidade, da efetividade e da celeridade, e, ao mesmo tempo, cumpra a sua função de instrumento de tutela dos direitos e garantias fundamentais.

No que concerne ao direito de ação, insta destacar que a Constituição vigente incluiu no rol dos direitos e garantias fundamentais o art. 5°, XXXV, o qual dispõe que a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Assim, garantiu-se não apenas o direito de acesso a justiça, mas também um verdadeiro direito fundamental a uma tutela jurídica efetiva, adequada e célere (CAMBI, 2007, p. 24).

O direito de ação, analisado à luz da Constituição, deve abranger: o direito de ingresso em juízo; a observância das garantias inerentes ao devido processo legal; a efetiva possibilidade de participação das partes na formação do convencimento do juiz; a adequada, tempestiva e célere análise, pelo juiz, das questões discutidas no processo; e, ainda, a construção de técnicas processuais adequadas à tutela dos direitos materiais (CAMBI, 2007, p. 25).

De se destacar que o direito de ação, conforme previsto constitucionalmente, é assegurado a todos, independentemente do preenchimento de qualquer condição (DIDIER, 2008). Assim, fica evidente que a opção constitucional foi pela teoria abstrata pura da ação. Dessa forma, a adoção da teoria eclética pelo Código de Processo Civil não se coaduna com a previsão constitucional de um direito de ação incondicionado.

Ademais, os princípios da efetividade processual e da instrumentalidade das formas, que decorrem implicitamente da garantia do devido processo legal, impõe a extinção da categoria denominada condições da ação. Com efeito, a análise da possibilidade jurídica do pedido e da legitimidade ordinária da parte implica o exame do mérito da demanda. Assim, a decisão que extingue o processo sem resolução de mérito representa uma violação ao princípio da efetividade do processo (COSTA, 2005).

Outrossim, não tem lógica dizer que o autor, após provocar a atividade jurisdicional por meio da ação, é carecedor desta. É precisamente o direito de ação que justifica a movimentação da máquina judiciária estatal para efetivação de direitos. O processo pode ser extinto por ausência de pressupostos de existência e validade de seu desenvolvimento. Contudo, não é técnico dizer que inexistia direito de ação.

3.2. Releitura do direito de ação a partir da perspectiva instrumental do processo

A re-análise do direito de ação a partir de uma perspectiva instrumental tem por objetivo a ampliação do acesso à ordem jurídica justa e a garantia de maior efetividade ao processo (COSTA, 2005).

Assim, é necessário repensar o instituto das condições da ação no ordenamento jurídico vigente, a fim de extrair dele um significado que gere resultados mais eficazes na aplicação da norma processual. Sob esse novo enfoque, a ideia de que as condições da ação desempenham o papel de pressupostos da existência do próprio direito de ação vem perdendo espaço. Em seu lugar, surge uma nova corrente que optou por agrupar os pressupostos processuais e as condições da ação na categoria de pressupostos de admissibilidade do provimento jurisdicional (COSTA, 2005, p. 121).

Conforme destaca Susana Henrique da Costa (2005, p. 124), as condições da ação podem ser utilizadas como técnica processual sob dois aspectos. Primeiramente, elas constituem verdadeira tutela diferenciada quando sua ausência é reconhecida no início da relação jurídica processual. Ademais, por poderem ser reconhecidas de ofício pelo juiz, as condições da ação se inserem na categoria das objeções.

Em ambos os casos, as condições da ação se afiguram como uma técnica de economia processual, pois impedem a continuação de um processo que evidentemente não prosperará, haja vista a manifesta improcedência da pretensão do autor. Sob esse viés, alguns autores, a exemplo de Cândido Rangel Dinamarco (2005), defendem a manutenção das condições da ação no ordenamento jurídico. Segundo Dinamarco, (2005, p. 315), “não seria ético nem econômico dar sequência a um processo que nada produzirá de efetivo na vida dos litigantes”.

Ocorre que, a partir de uma perspectiva instrumental, o direito de ação acaba por configurar um direito tanto do autor como do réu, tendo em vista que os princípios constitucionais relativos ao processo devem ser efetivados para ambos. Dessa forma, assim como o é para o autor, também para o réu deve ser assegurado o direito de exigir o cumprimento das garantias constitucionais processuais. Logo, o direito de ação constitui uma garantia conferida a ambas as partes da relação jurídica processual de obter do Estado instrumentos aptos à efetiva proteção de seus direitos (COSTA, 2005, p. 118).

Como consequência, tanto no caso de ilegitimidade das partes como no caso de impossibilidade jurídica do pedido, o réu tem o direito de impedir uma injusta invasão de sua esfera jurídica. Isso porque, em ambas as hipóteses, é manifesta a improcedência da pretensão do autor.

É de se destacar que a garantia de acesso à ordem jurídica justa assegurada ao réu impõe que esse processo gere um resultado eficaz. Desse modo, não basta que a sentença produza coisa julgada formal. Mais do que isso, é necessário que o autor fique impedido de importunar novamente o réu para rediscutir a questão no bojo de um novo processo.

Nesse ponto, insta analisar as conclusões obtidas pela teoria da asserção, a qual sustenta que as condições da ação devem ser verificadas em consideração aos fatos afirmados na petição inicial. De acordo com essa teoria, somente haveria impossibilidade jurídica do pedido se o juiz, com os elementos apresentados pelo autor na petição inicial, pudesse verificar que o ordenamento jurídico veda a sua pretensão. No entanto, caso a análise dessa condição da ação exigisse a produção de alguma prova, o caso seria de julgamento improcedente do pedido (CÂMARA, 2006).

Da mesma forma, apenas haveria ilegitimidade das partes se o juiz, prima facie, pudesse concluir que o autor ou o réu não são os sujeitos da relação jurídica material que se pretende discutir em juízo. De outro lado, caso a ilegitimidade fosse constatada após a instrução probatória, haveria julgamento do mérito da demanda (CÂMARA, 2006).

Como se vê, a teoria da asserção tenta ajustar a solução legal oferecida pelo art. 267 do CPC aos princípios da instrumentalidade processual, efetividade e economicidade. Sucede que essa teoria acabou por tratar de maneira diferente situações incontestavelmente iguais.

Com efeito, a ilegitimidade das partes e a impossibilidade jurídica do pedido, dependam ou não da produção de provas para serem reconhecidas, conforme opção adotada pelo Código de Processo Civil, constituem hipóteses de ausência de condição da ação. Por se tratar de situações semelhantes, a solução jurídica deveria ser a mesma para ambos os casos. A única solução compatível com o princípio da efetividade processual seria reconhecer que essas denominadas condições da ação envolvem o exame do mérito, razão pela qual deveria haver a extinção do processo com resolução de mérito.

Por outro lado, no caso de ausência de interesse de agir por inadequação da via eleita ou do provimento pleiteado, a regra geral, com base no princípio da economicidade, deveria ser a do aproveitamento dos atos processuais praticados, com a possibilidade de correção, pelo juiz ou pelo autor, do equívoco na escolha do procedimento (DIDIER, 2005, p. 287).

Por fim, é de se observar que a carência de ação por falta de interesse-necessidade, interesse-utilidade ou ilegitimidade extraordinária da parte leva a uma análise meramente processual. Dessa forma, não seria necessário criar uma nova categoria para enquadrar essa situação, pois ela já se amoldaria perfeitamente ao caso de ausência de pressuposto processual de formação válida e regular do processo (DIDIER, 2005).

3.3 Possibilidade jurídica do pedido e legitimidade ordinária das partes à luz do princípio da efetividade processual

Há muita divergência sobre a natureza jurídica das condições da ação. De um lado, a teoria do trinômio defende que elas seriam uma categoria autônoma, intermediária entre os pressupostos processuais e o mérito. De outro, a teoria do binômio sustenta que apenas existiriam questões processuais e questões de mérito, sendo que as condições da ação se enquadrariam nessa segunda categoria. Dentro da teoria do binômio existem, ainda, autores que defendem que algumas das condições da ação seriam questões processuais e outras seriam questões de mérito (COSTA, 2005).

A depender da posição que se adote, haverá alterações relevantes em matérias como a produção de coisa julgada material e o cabimento de ação rescisória, quando se reconhecer a ausência de uma das condições da ação (COSTA, 2005, p. 76).

De acordo com Susana Henriques da Costa (2005, p. 95/96), não obstante o positivado no Código de Processo Civil, o mais coerente seria reconhecer que todas as condições da ação são questões de mérito. Isso porque, para verificar a sua presença, o juiz deveria partir da análise da relação jurídica de direito material. Assim, a decisão que reconhece a ausência de qualquer das condições da ação decorre sempre da apreciação do mérito, devendo, por isso, transitar materialmente em julgado.

No entanto, ao contrário do que defendem os adeptos da teoria do binômio, Susana Henriques da Costa (2005, p. 98) propugna pela manutenção das condições da ação no ordenamento jurídico, uma vez que elas desempenham uma função importante em favor da efetividade do acesso à justiça.

De fato, as condições da ação, por permitirem o imediato reconhecimento de situações de manifesta improcedência do pedido do autor, possuem um caráter eminentemente instrumental. Elas evitam que se gaste tempo e trabalho em um processo cuja solução jurídica é evidente.

A questão é que, mais do que uma técnica de economicidade e celeridade processual, as denominadas condições da ação também devem corresponder a uma técnica de efetividade.

O princípio da efetividade, de acordo com definição apresentada por José Roberto dos Santos Bedaque (2007, p. 49), traduz-se na exigência de que, observado o equilíbrio entre os valores segurança e celeridade, seja proporcionada às partes o resultado desejado pelo direito material.

De um lado, não se pode, em nome da celeridade, ignorar as garantias decorrentes do princípio do devido processo legal. De outro lado, a morosidade excessiva do processo pode ocasionar o sacrifício de alguns direitos fundamentais. Assim, o juiz deve primar por um processo justo, que garanta efetivamente às partes o direito de influir no seu resultado, sem perder de vista que o processo é apenas um instrumento de concretização dos direitos materiais (BEDAQUE, 2007).

A sentença de carência da ação, por ausência de legitimidade ordinária da parte ou possibilidade jurídica do pedido, constitui verdadeira tutela diferenciada conferida ao réu, uma vez que, tendo em vista a manifesta improcedência da pretensão do autor, permite um julgamento definitivo do processo. Se a decisão não produz coisa julgada material, restará negado, ao réu, que tem razão, o direito à tutela jurídica estatal.

Com efeito, a ilegitimidade ordinária das partes diz respeito à inocorrência de identidade entre as partes da relação jurídica de direito material e as partes da demanda. Ora, se o autor e o réu não são os titulares da relação jurídica deduzida em juízo, conclui-se que o autor não possui o direito material ou, se o possuir, não será em face daquele réu. Consequentemente, em ambos os casos, há clara prestação jurisdicional de mérito em favor do réu (MUSSI, 1987).

Por essa razão, Didier (2000, p. 71) sustenta que, na hipótese de ilegitimidade ordinária das partes, a solução jurídica mais adequada seria o julgamento improcedente do pedido. Didier exemplifica que, numa ação reivindicatória, caso o juiz, após proceder a uma longa atividade de instrução, verifique que o autor não é o proprietário, a extinção do processo sem julgamento de mérito violaria o princípio da economia processual. De fato, não tem sentido que, depois de toda a movimentação estatal realizada, seja prolatada uma decisão que somente produza coisa julgada formal.

Ao acionar o Poder Judiciário, as partes pretendem resolver definitivamente uma situação jurídica. Se a decisão não produz coisa julgada material, paradoxalmente, será possível ao autor, que tivera seu processo extinto por ausência desta condição da ação, repeti-lo quantas vezes o seu bel prazer assim o desejar. Como resultado, o processo resultaria em uma decisão jurídica ineficaz, com manifesto prejuízo para todos (DIDIER, 2000, p. 71).

Ainda considerando o exemplo da ação reivindicatória, Didier (2000, p. 72) ressalta que, para constatar que o autor não é proprietário da coisa vindicada, o juiz teve que adentrar no mérito da causa. Mais do que uma análise puramente processual, o juiz foi obrigado a verificar se o autor possuía ou não o direito material que pleiteava. Concluindo que o autor não é o titular desse direito, a solução mais adequada seria o julgamento improcedente do pedido. Somente assim, a situação jurídica das partes restaria definitivamente resolvida.

No que concerne à impossibilidade jurídica do pedido, destaque-se que também essa hipótese diz respeito à improcedência manifesta do pedido do autor. Se o ordenamento jurídico veda a pretensão deduzida em juízo, fica patente que o demandante não possui o direito alegado. Por essa razão, a sentença deve julgar o mérito e, consequentemente, produzir coisa julgada material (COSTA, 2005).

Dessa forma, também no caso de impossibilidade jurídica do pedido, que, segundo Didier (2000, p. 77), é a mais esdrúxula e despropositada das condições da ação, a solução adotada deveria ser o julgamento improcedente do pedido. Não há dúvidas de que essa condição da ação diz respeito ao próprio exame do direito material. Ela se traduz no reconhecimento de que não há correspondência entre o fato alegado pelo autor e o fato legalmente previsto como fundamento de sua pretensão. Assim, não há que se falar em extinção do processo sem resolução de mérito. O caso é de sentença que analisa o mérito e, portanto, transita materialmente em julgado.

De se observar que a teoria eclética permite que situações iguais levem a resultados diferentes. Isso porque, segundo a teoria de Liebman, quando o autor alega na petição inicial de uma ação de usucapião que é possuidor de um imóvel por apenas dois anos, o caso seria de impossibilidade jurídica do pedido. De outro lado, caso esse mesmo autor houvesse alegado na inicial que possuía o imóvel há 25 anos, mas, no final do processo, ficasse comprovado que o tempo de posse era inferior ao alegado, e, portanto, insuficiente para a usucapião, o caso seria de julgamento improcedente do pedido. Embora ambas as situações sejam semelhantes, as soluções jurídicas adotas foram diferentes (DIDIER, 2000, p. 78).

Paradoxalmente, para o primeiro caso, em que a improcedência era macroscópica, o Código de Processo Civil impõe uma solução menos rigorosa, qual seja, a extinção do processo sem julgamento de mérito. O mais adequado seria que, por se tratar da forma mais avultante de improcedência, o processo, desde logo, fosse extinto com julgamento de mérito, assim como já acontece com os casos de decadência e prescrição (DIDIER, 2000, p. 79).

Essa seria a solução mais consentânea com os princípios da efetividade e da economia processual. No plano lógico, não é razoável imaginar que, por razões de economia, nosso ordenamento jurídico permita a extinção do processo por impossibilidade jurídica do pedido, mas, por outro lado, possibilite sua repetição, pois não veda a propositura de nova e idêntica ação, bem como não empresta a essa decisão força de coisa julgada material.

3.3.1 O cabimento de ação rescisória da sentença de falsa carência de ação

A decisão final que reconhece a carência da ação, quando não mais sujeita a recurso, transita em julgado formalmente. Assim, a questão não pode mais ser rediscutida dentro do mesmo processo, pois não existem outros meios para esse fim (COSTA, 2005, p. 148). Nesse sentido, dispõe o art. 268 do CPC que, com exceção das hipóteses de perempção, litispendência e coisa julgada, a extinção do processo não obsta a que o autor intente de novo a mesma ação.

Evidentemente, a se interpretar literalmente esse dispositivo, toda a característica instrumental das condições da ação ficaria esvaziada. Com efeito, a decisão que reconhece a carência de ação seria inútil se o autor não fosse impedido de re-propor indefinidamente a demanda. Caso a sentença não ficasse acobertada pelo manto da coisa julgada material, ao autor seria conferida a oportunidade de pedir inúmeras vezes a mesma tutela jurisdicional, o que ocasionaria uma manifesta violação ao direito do réu à efetividade processual (COSTA, 2005).

Ocorre que a sentença de carência de ação por impossibilidade jurídica do pedido ou ilegitimidade ordinária da parte é, na realidade, uma sentença de mérito, que produz efeitos para fora do processo, sendo acobertada pela imutabilidade. Pela sua própria natureza, essa decisão final analisa, sim, a pretensão do autor em sua demanda, motivo pelo qual deve transitar materialmente em julgado. Somente assim, nenhum outro juiz poderia conhecer da relação de direito material já decidida de forma definitiva, o que impediria que o réu fosse molestado novamente com a re-propositura da mesma demanda (COSTA, 2005).

Para manobrar a incoerência do enquadramento da possibilidade jurídica do pedido e da legitimidade das partes na categoria das condições da ação, ganhou força, na doutrina e na jurisprudência, uma interpretação no sentido de que o art. 268 do CPC somente permitiria a re-propositura de um processo extinto por carência de ação, caso o demandante saneasse o vício do processo anterior (COSTA, 2005).

Dessa forma, somente poderia haver a re-propositura da mesma ação, quando implementada a condição faltante. Nesse sentido, veja-se a seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DEMANDA ANTERIOR JULGADA EXTINTA SEM CONHECIMENTO DO MÉRITO, POR AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL. REPRODUÇÃO INTEGRAL DA MESMA AÇÃO ANTERIOR. INADMISSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 268 DO CPC.

- É inadmissível, no caso, a repropositura automática da ação, ainda que o processo anterior tenha sido declarado extinto sem conhecimento do mérito. Recurso especial não conhecido.

(STJ, REsp 191934/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ 04/12/2000, p. 00072).

Por óbvio, esse entendimento produz um resultado prático que melhor se alinha à perspectiva instrumental do processo. Contudo, essa solução desrespeita manifestamente a técnica processual, na medida em que desvirtua o conceito de coisa julgada formal (COSTA, 2005, p. 162).

Com efeito, ao defender que a re-propositura da demanda extinta por ausência de uma condição da ação está condicionada à correção desse vício, os autores adeptos dessa corrente acabam reconhecendo que a sentença que extingue o processo por carência de ação produz coisa julgada material (DIDIER, 2005).

Isso porque, com o suprimento da condição faltante, haverá sempre uma alteração na relação jurídica de direito material deduzida em juízo pelo autor. Logo, sempre ocorrerá a modificação de um dos elementos da demanda, razão pela qual o caso não será de re-propositura da mesma demanda, mas sim de ajuizamento de uma nova ação (DIDIER, 2005).

É verdade que essa interpretação extraída do art. 268 do CPC atende ao princípio da efetividade do processo, conferindo maior segurança jurídica ao réu. Todavia, disso não se pode concluir que a crítica às condições da ação como categoria autônoma restaria desprovida de qualquer sentido prático (COSTA, 2005, p. 163).

Primeiro, porque o Direito Processual, como ciência autônoma que é, não pode se contentar com a adoção de soluções práticas que distorçam a realidade de seus institutos. Se a decisão que extingue o processo por carência de ação impede a re-propositura da mesma demanda, deve-se reconhecer que houve trânsito em julgado material (COSTA, 2005, p. 164). O caso, na verdade, é de julgamento improcedente do pedido, pois a impossibilidade jurídica e a ilegitimidade ordinária para a causa constituem questões de mérito, e não condições da ação.

Além disso, conforme destaca Susana Henriques da Costa (2005, p. 166), essa interpretação enviesada do art. 268 do CPC acaba por criar um caso de imutabilidade qualificada de uma decisão que apenas transita em julgado formalmente. Isso porque, além de não ser cabível a re-propositura da demanda sem o implemento da condição faltante, a decisão também não poderá ser objeto de ação rescisória, pois, segundo a teoria eclética, não seria uma decisão de mérito. Assim, cria-se um caso de decisão que, apesar de não produzir coisa julgada material, será mais definitiva do que a própria sentença de mérito, pois não estará sujeita a nenhuma hipótese de alteração.

Na tentativa de contornar essa incoerência, a jurisprudência criou a figura das “falsas carências”, que corresponderia aos casos em que o julgador da ação rescisória acaba por admiti-la, sob a argumentação de que a sentença, apesar de ter julgado o autor carecedor de ação, na realidade adentrou no mérito da demanda (COSTA, 2005).

Segundo Dinamarco (2005, p. 319), as sentenças de falsas carências decorrem da forte propensão dos tribunais a, influenciados pela adoção explícita da teoria eclética da ação pelo Código de Processo Civil, tratar como carência de ação alguns casos de ausência do direito do autor perante o réu. Assim, a sentença, em verdade, não considerou a demanda inadmissível por falta de alguma das condições da ação, mas sim, julgou-a improcedente.

Nas hipóteses de sentenças de falsa carência de ação, os tribunais pátrios admitem o cabimento de ação rescisória, conforme demonstram os acórdãos a seguir transcritos (COSTA, 2005, p. 167):

Ação Rescisória. Sentença de mérito. Precedente da corte. 1. Precedente da corte admite, em tese, a rescisória, "nada obstando tenha-se dado pela carência de ação, quando o julgamento foi de mérito", o que não ocorre neste caso, quando o pleito está calcado no art. 1.132 do Código Civil, não desafiado pela sentença, que, pura e simplesmente, limitou-se a extinguir o processo por ilegitimidade de parte, uma vez que ainda vivo o ascendente.

2. Recurso especial não conhecido. (STJ, RESP 127956/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 22/06/1998, 73).

Processo Civil. Apreciação do mérito. Inocorrência da afirmada carência. Recurso provido para ensejar o processamento da Rescisória. 1. Por possibilidade jurídica do pedido entende-se a admissibilidade da pretensão perante o ordenamento jurídico, ou seja, previsão ou ausência de vedação do direito vigente do que se postule na causa. 2. A circunstância do julgado ter proclamado a carência de ação é irrelevante para o cabimento da rescisória (CPC, art. 485) se na realidade houve pronúncia de mérito” (STJ, RESP 1678/GO, 4ª Turma, Rel. Min. Fontes de Alencar, DJ 09/04/1990, p. 02744).

Como exemplo de sentença de falsa carência, Dinamarco (2005, p. 320) cita que, quem foi dono do veículo causador de um acidente, mas, apesar de seu nome constar dos registros oficiais, já não o era quando este aconteceu, não responde pelos danos causados. Isso porque, de acordo como Código Civil, apenas o proprietário responde pelos fatos da coisa. Assim, a hipótese deveria ser de julgamento improcedente do pedido, e não de carência de ação por ilegitimidade ordinária das partes.

No entanto, é incompreensível o motivo pelo qual nessa hipótese não se poderia dizer que o sujeito passivo é parte ilegítima. Ora, se a pessoa citada como ré não é mais a dona da coisa, haverá ilegitimidade da parte, e, como consequência, o pedido deverá ser julgado improcedente.

Ao invés de efetuar manobras para adequar os conceitos jurídicos ao entendimento dominante, seria mais compatível com os escopos processuais que os doutrinadores reconhecessem a sentença de carência de ação por ilegitimidade da parte ou impossibilidade jurídica do pedido como sentença de mérito, que produz coisa julgada material. Assim, seria possível solucionar, de forma técnica, e sem que se gerem confusões práticas, o problema da rescindibilidade da sentença de carência de ação, quando preenchida alguma das hipóteses do art. 485 do CPC (COSTA, 2005, p. 167).

Essa orientação, apesar de se afastar do entendimento positivado na teoria de Liebman, é a que melhor se ajusta à perspectiva metodológica do processo publicista e instrumental. Ela atende à necessidade de se garantir a efetividade processual também para o réu, ao tempo em que mantém a coerência do sistema e evita confusões práticas.

3.3.2 A possibilidade de reforma da sentença de falsa carência

Conforme exposto, a teoria eclética de Liebman considera as condições da ação como questões preliminares, que não adentram no mérito da demanda (LIEBMAN, 2001). Logo, a sentença que erroneamente decretasse a carência de ação, por não resolver o mérito, não configuraria error in iudicando, mas sim error in procedendo. Por essa razão, o recurso dessa sentença somente admitiria a invalidação dessa decisão judicial, não permitindo a imediata reforma (COSTA, 2005).

Assim, antes da introdução do §3°, ao art. 515 do CPC, a sistemática processual determinava que, em qualquer caso de sentença terminativa, o tribunal não poderia reformar a decisão, mas apenas anulá-la. Dessa forma, o sistema antigo permitia que a sentença de carência de ação, ainda quando proferida com cognição exauriente, fosse, muitos anos depois da propositura da ação, anulada pelo tribunal em razão da existência de error in procedendo (COSTA, 2005, p. 169).

A fim de solucionar os problemas decorrentes da impossibilidade de imediata reforma da sentença que reconhecesse a carência de ação, os tribunais pátrios, nos casos em que o processo já se encontrasse pronto para julgamento, começaram a justificar que o caso seria de sentença de falsa carência (COSTA, 2005).

Como exemplo, observe-se a seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça:

Processo Civil - Mérito. Para verificar se houve exame do mérito há que pesquisar se a pretensão formulada foi decidida. Isso tendo ocorrido, não importa que a sentença haja, equivocadamente, afirmado que o autor era carecedor da ação. Fica o tribunal, no julgamento da apelação, autorizado a examinar todas as questões pertinentes ao merecimento. Concordata - pedido de restituição. Inexiste sub-rogação, a autorizar a pretensão de restituir, por parte da instituição financeira que, tendo aberto crédito a concordatária, efetua o pagamento de mercadoria por essa adquirida.

(STJ, RESP 31766 / RS, 3ª Turma, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJ 25/04/1994, p. 13480).

Com a introdução do §3°, ao art. 515 do CPC, pela Lei 10.352/01, passou a se admitir expressamente que o tribunal, nos casos de extinção do processo sem julgamento de mérito, poderia julgar desde logo a lide, se a causa versasse questão exclusivamente de direito ou se estivesse em condições de imediato julgamento.

Com a permissão de julgamento imediato da lide pelo tribunal nos casos de extinção do processo sem julgamento de mérito, possibilitou-se que a hipótese de equívoco na apreciação da possibilidade jurídica do pedido e da legitimidade das partes pudesse ser, desde logo, corrigida pelo tribunal. Nessa medida, o art. 515, §3°, do CPC corrige as distorções do sistema anterior e confere maior celeridade ao processo (COSTA, 2005, p. 169).

É de se notar, no entanto, que a solução prevista no §3°, do art. 515, do CPC, acaba por distorcer a regra de que a sentença terminativa viciada constitui um caso de error in procedendo, que apenas admite a interposição de recurso para anular da decisão.

Dessa forma, verifica-se, novamente, que a alternativa mais técnica seria reconhecer, de uma vez por todas, que o exame da possibilidade jurídica do pedido ou da legitimidade ordinária da parte constitui questão de mérito, que pode dar ensejo ao julgamento improcedente do pedido. Assim, havendo vício na sentença, o caso será de error in iudicando, razão pela qual o recurso interposto admite a imediata reforma da decisão recorrida pelo tribunal ad quem.

3.4 Interesse-adequação e princípio da instrumentalidade das formas

Uma técnica segura para se encontrar a justa composição entre a celeridade e a segurança consiste na simplificação do procedimento, com a efetiva aplicação do princípio da instrumentalidade das formas. Isso porque, como ressalta Bedaque (2007, p. 51), o sistema processual não deve ser interpretado como uma “camisa-de-força”, que retire do juiz a possibilidade de ajustar os atos processuais às especificidades de cada processo.

A adaptação do processo a seu objeto ocorre tanto no plano legislativo, com a elaboração de procedimentos e previsão de formas adequadas às necessidades das hipóteses antevistas, como no plano processual, com a concessão de poderes ao juiz para promover a adequação no caso concreto (DIDIER, 2001).

No que concerne ao interesse de agir na modalidade interesse-adequação, o Código de Processo Civil exige que o provimento desejado e o procedimento indicado na inicial sejam aptos a tutelar eventual direito material que possua o autor. Ainda que o equívoco na escolha do procedimento ou do provimento não fosse decorrente de um propósito subalterno ou ilícito do autor, o caso seria de carência de ação por ausência de interesse de agir (FREIRE, 2005, p. 173).

É de se ressaltar, entretanto, que o interesse-adequação não pode servir como um pretexto para que o juiz, fugindo aos verdadeiros e reais objetivos do processo, dê ensejo à sua extinção. Nos termos do art. 284 do CPC, se o magistrado verificar que a petição inicial apresenta irregularidades capazes de dificultar o julgamento do mérito, o que inclui o erro quanto ao procedimento indicado ou provimento desejado, deve determinar que o autor a emende ou complete no prazo de dez dias (FREIRE, 2005).

De mais a mais, conforme destaca Rodrigo da Cunha Lima Freire (2005, p. 174), o magistrado deve se ater ao conteúdo da demanda formulada pelo autor, e não ao rótulo ou nome dado à ação. Mesmo porque o direito moderno não constitui um sistema de ações, mas sim de direitos, que são tutelados pela ação quando há necessidade.

De acordo com Didier (2005, p. 287), o que se considera ausência de interesse-adequação poderia se enquadrar em alguma das seguintes hipótese: a) impossibilidade jurídica do pedido; b) casos em que o próprio sistema processual admite a fungibilidade, o que deveria ser a regra; c) erro do nome atribuído à ação, o que poderia ser corrigido pelo próprio juiz; ou d) não sendo possível a correção pelo próprio juiz, o caso seria de determinar que o autor alterasse o pedido, conforme autoriza o art. 264 do CPC.

Quanto à utilização da técnica de fungibilidade como forma de dar aplicação ao princípio da instrumentalidade das formas, destaque-se a previsão, pelo art. 805 do CPC, da possibilidade de que a medida cautelar seja substituída, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, pela prestação de caução ou de outra garantia menos gravosa para o requerido. Na mesma linha, o art. 920 do CPC, autoriza que o juiz, no caso de propositura de uma ação possessória em vez de outra, outorgue a proteção legal adequada para a tutela do caso concreto (DIDIER, 2005, p. 287).

O mesmo se diga quanto à escolha do procedimento adequado para tutelar o direito do autor. Também nesse caso a solução, em regra, deveria ser a possibilidade de correção, pelo autor ou pelo juiz, do equívoco na indicação do procedimento, e não a extinção do processo sem resolução de mérito (DIDIER, 2005, p. 287).

Não obstante, destaca Didier (2005, p. 288), o art. 267, VI, do CPC tem sido utilizado pelo juiz como uma válvula de escape para não admitir o processamento de demandas em que houve erro na escolha do procedimento. Assim, são numerosos os casos de extinção de mandados de segurança, processos cautelares e ações monitórias, por exemplo, sob essa alegação.

Não se tem incentivado o juiz a aplicar o disposto no art. 295, V, CPC, que impõe a correção do procedimento sempre que isso puder ser feito. Aliás, antes da citação, todas as hipóteses de defeitos formais, como é o caso da inadequação do provimento desejado e do procedimento indicado na inicial, podem ser retificadas pelo juiz (DIDIER, 2005, p. 288).

Qualquer erro na escolha do procedimento, por mais aberrante que seja, pode ser corrigido. Como exemplo, Didier (2005, 288) cita que, no caso de impetração inadequada de mandado de segurança, o juiz poderia determinar a emenda da inicial a fim de que o autor providenciasse a adequação do instrumento da demanda ao procedimento correto. Com o aproveitamento dos atos praticados, seria evitada a necessidade de nova provocação jurisdicional e de novo pagamento de custas.

Ademais, gize-se, o objetivo do autor, ao provocar o Estado-juiz, é resolver definitivamente o conflito jurídico que possui com o réu. Se o juiz extingue o processo sem resolução de mérito por ausência de interesse-adequação, o demandante certamente ficará insatisfeito com a solução conferida ao processo. Mesmo porque, aos olhos do autor, nada obstava a que o magistrado, observando a necessidade e a utilidade da tutela jurídica, adequasse o procedimento ou o provimento às especificidades do caso concreto.

É certo que o princípio da efetividade impõe a observância da operosidade, a qual se traduz no dever, imposto às partes processuais e a seus advogados, de atuarem da maneira mais adequada para se alcançar os resultados almejados (BEDAQUE, 2007, p. 50). Esse dever, por óbvio, abrange a obrigação de utilização da técnica correta pelas partes.

No entanto, a previsão de que o processo seja extinto sem análise de mérito no caso de escolha de procedimento ou provimento inadequado para a tutela do direito do autor constitui valorização excessiva da formalidade dos atos, o que contraria os escopos do processo. Com efeito, a consequência da sentença terminativa será a insatisfação do autor com a prolongação da pendência de seu conflito, não obstante todo o trabalho, tempo e dinheiro por ele investido. Inevitavelmente, o autor não terá outra escolha que não re-propor a mesma demanda.

Assim, o Estado-juiz, mais cedo ou mais tarde, terá que apreciar o conflito material deduzido pelo autor em juízo, sendo certo que, à luz do princípio da instrumentalidade das formas, o magistrado deveria, desde logo, aproveitar os atos processuais já praticados. Somente assim, restaria satisfeito o objetivo do demandante de que seu conflito fosse definitivamente resolvido, ao tempo em que se evitariam o pagamento de novas custas processuais e a postergação da atividade jurisdicional.

Por fim, cumpre destacar que as consequências danosas de um sistema processual que valoriza excessivamente a formalidade dos atos atingem principalmente os economicamente menos favorecidos, que, na maioria dos casos, dependem do insuficiente serviço de assistência judiciária fornecido pelo Estado (BEDAQUE, 2007, p. 50). Para esses consumidores do serviço judiciário, a demasiada valorização da forma processual representaria um verdadeiro entrave ao acesso à ordem jurídica justa.

3.5 Interesse-necessidade, interesse-utilidade e legitimidade extraordinária como pressupostos de validade do processo

O interesse-necessidade decorre da exigência de que o processo seja utilizado como remédio extremo e indispensável ao cidadão. A demanda será necessária se não houver outro meio, a não ser o judicial, para dirimir o conflito de interesses resistido (FREIRE, 2005, p. 162). Nesse sentindo, fala-se, por exemplo, que o autor é carecedor de ação por ausência de interesse-necessidade quando ajuíza pedido de amparo assistencial sem o prévio indeferimento do pedido na via administrativa.

É certo que o art. 5°, XXXV, da Constituição Federal, ao dispor que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, consagra o direito de acesso aos tribunais como direito fundamental. Ao contrário da Carta Magna anterior[4], a atual Constituição não condiciona o ingresso em juízo ao prévio esgotamento das instâncias administrativas, ressalvada a hipótese de questões desportivas (DIDIER, 2008, p. 87).

Assim, a partir do momento em que deixou de haver jurisdição condicionada, não se pode estabelecer, a priori, uma condição para se ingressar no Judiciário. Contudo, pode ser que, no caso concreto, não exista interesse-necessidade de provocar o Estado-juiz. Por essa razão, exige-se que o autor demonstre concretamente o seu interesse.

No caso do pedido de amparo assistencial sem o prévio indeferimento administrativo, por exemplo, observa-se que não há lesão ou ameaça a direito que torne necessária a atuação judicial. Assim, para que seu pedido seja apreciado, o autor deve demonstrar, no caso concreto, o seu interesse, seja em razão de uma demora excessiva no trâmite do processo administrativo, ou mesmo porque o órgão administrativo já consolidou, para situações semelhantes ao caso do autor, a tese pelo indeferimento do pedido. Se não se demonstra a necessidade da atuação judicial, ainda que o caso fosse de procedência do pedido, o processo será extinto sem resolução de mérito.

Portanto, o interesse-necessidade não se confunde com o mérito. Trata-se, em verdade, de pressuposto de admissibilidade do processo, sem o qual o mérito não será apreciado. Seu exame deve ser sempre feito à luz do que o autor afirma na inicial, uma vez que a análise da efetiva existência de lesão ou ameaça a direito é questão de mérito.

Assim, na linha do que sustenta Didier (2005, p. 221), se o caso é de análise puramente processual, não é necessário que se elabore uma nova terminologia para identificar essa situação, que já se subsume à hipótese em que o processo é extinto pela ausência de pressupostos processuais de formação ou desenvolvimento válido e regular do processo.

Também a essa conclusão se chega para o caso do interesse-utilidade, que se traduz na exigência de que o processo aponte para um resultado capaz de ser útil para o demandante, removendo o óbice posto ao exercício de seu suposto direito (DINAMARCO, 1993, p. 155). A demanda será útil quando conferir ao autor uma vantagem que ele não possuía antes de seu ingresso em juízo.

Como exemplo de ausência de interesse-utilidade, cite-se o caso de um formando do curso de Direito que impetra mandado de segurança com pedido de medida liminar a fim de que seja deferida a sua inscrição no exame da Ordem, postergando-se a apresentação do diploma para o momento da entrega da carteira de advogado. Se a liminar não é apreciada a tempo, ou se, não obstante concedida, o estudante reprova em alguma fase do exame antes da concessão da segurança, haverá extinção do processo sem resolução de mérito em razão da ausência superveniente do interesse-utilidade.

Assim como o interesse-necessidade, essa modalidade de interesse também não constitui questão de mérito. O interesse-utilidade pode estar ausente ainda que o caso fosse de julgamento procedente do pedido. Portanto, trata-se de pressuposto de admissibilidade para que o mérito seja analisado.

Por último, a legitimidade extraordinária da parte diz respeito à autorização, conferida por lei, para que alguém pleiteie em nome próprio direito alheio. O exame dessa condição da ação, destaca Didier (2005, p. 260), não diz respeito ao mérito, mas apenas à possibilidade de que o autor conduza o processo em nome de outrem.

Com efeito, se alguém pleiteia em nome próprio direito alheio sem que esteja autorizado por lei, o juiz extinguirá o processo sem resolução de mérito em razão da ilegitimidade extraordinária. Essa decisão impedirá o exame da relação jurídica de direito material, do que se conclui que a análise da legitimidade extraordinária se refere a um pressuposto admissibilidade do processo.

Assim, o interesse-necessidade, o interesse-utilidade e a legitimidade extraordinária da parte constituem, na realidade, pressupostos de admissibilidade do processo, não havendo razão para que se criasse uma nova categoria, além da dos pressupostos processuais, a fim de enquadrar essa situação.

4. CONCLUSÃO

O Código de Processo Civil brasileiro, em seu art. 267, VI, adotou a teoria eclética de Liebman sobre o direito de ação. Segundo esse dispositivo, o processo deve ser extinto sem resolução de mérito quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual.

Ocorre que a teoria eclética não consegue explicar com que fundamento é provocada a atividade jurisdicional nos casos em que se reconhece a carência de ação. Ora, é o próprio direito de ação que justifica a movimentação da máquina judiciária estatal através da instauração do processo. Se a jurisdição é atividade inerte que só se inicia com a ação, não tem sentido falar, após o desenvolvimento de atos processuais, que o direito de ação inexiste.

Por tal motivo, não se justifica a extinção de processos sem julgamento do mérito nas hipóteses de carência de ação por ausência de vínculo empregatício entre as partes.

Aliás, conforme assegurado constitucionalmente, o direito de ação é atribuído a todos, independentemente do preenchimento de qualquer condição. Com efeito, dispõe o art. 5°, XXXV, da Constituição Federal que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Assim, a Carta Magna não estabeleceu nenhuma condição para que o autor ingressasse em juízo, tendo optado, portanto, pela teoria abstrata do direito de ação.

Levando em consideração que o Neoconstitucionalismo coloca a Constituição no topo da estrutura do ordenamento jurídico, o Direito Processual Civil, assim como os demais ramos do Direito, devem ser lidos e aplicados à luz da Constituição. Desse modo, a previsão de condições ao direito de ação deve ser tida como incompatível com o direito fundamental de inafastabilidade do controle jurisdicional assegurado constitucionalmente.

Por se tratar de instrumento de efetivação dos direitos materiais, não há lógica em se extinguir o processo sem resolução de mérito nos casos em que a relação jurídica de direito material é analisada pelo juiz. Ainda mais incoerente seria determinar que casos de improcedência manifesta implicassem decisões terminativas, destituídas de qualquer eficácia.

Ao contrário do que defende a teoria eclética, apenas existem dois tipos de questões: processuais e de mérito. Com efeito, todas as denominadas condições da ação se enquadram perfeitamente nessas duas categorias. A legitimidade ordinária da parte e a possibilidade jurídica do pedido são, na realidade, questões de mérito. Já a legitimidade extraordinária, o interesse-utilidade e o interesse-necessidade constituem questões processuais. Por último, o interesse-adequação consiste em mero equívoco que poderia ser corrigido pelo juiz ou pelo autor.

Assim, impõe-se o entendimento no sentido de que a ausência de vínculo empregatício entre as partes não pode levar à carência de ação, mas sim à improcedência dos pedidos formulados.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] Artigo produzido no âmbito do grupo de pesquisa: “Hermenêutica Constitucional Concretizadora dos Direitos Fundamentais e Reflexos nas Relações Sociais” da Universidade Federal de Sergipe.

[2] Juíza do Trabalho (TRT 20ª Região), Professora Adjunto da Universidade Federal de Sergipe, Especialista em Direito Processual pela UFSC, Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela UGF, Doutora em Direito Público pela UFBA, líder do grupo de pesquisa “Hermenêutica Constitucional Concretizadora dos Direitos Fundamentais e Reflexos nas Relações Sociais” da Universidade Federal de Sergipe.

[3] Pós-graduanda em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho

[4] O art. 153, §4°, da CF/67 previa que “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual. O ingresso em juízo poderá ser condicionado a que se exauram previamente as vias administrativas, desde que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de 180 dias para a decisão sobre o pedido.”

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