Carlos Drummond de Andrade - CAFIL UFMT



Carlos Drummond de Andrade

 

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Remissão

Itabira do Mato Dentro - MG - 1902

* - * - 1987

Tua memória, pasto de poesia,

tua poesia, pasto dos vulgares,

vão se engastando numa coisa fria

a que tu chamas: vida, e seus pesares.

Mas, pesares de quê? perguntaria,

se esse travo de angústia nos cantares,

se o que dorme na base da elegia

vai correndo e secando pelos ares,

e nada resta, mesmo, do que escreves

e te forçou ao exílio das palavras,

senão contentamento de escrever,

enquanto o tempo, em suas formas breves

ou longas, que sutil interpretavas,

se evapora no fundo do teu ser?

Retorno

Itabira do Mato Dentro - MG - 1902

* - * - 1987

Meu ser em mim palpita como fora

do chumbo da atmosfera constritora.

Meu ser palpita em mim tal qual se fora

a mesma hora de abril, tornada agora.

Que face antiga já se não descora

lendo a efígie do corvo na da aurora?

Que aura mansa e feliz dança e redoura

meu existir, de morte imorredoura?

Sou eu nos meus vinte aons de lavoura

de sucos agressivos, qe elabora

uma alquimia severa, a cada hora.

Sou eu ardendo em mim, sou eu embora

não me conheça mais na minha flora

que, fauna, me devora quanto é pura.

Resíduo

De tudo ficou um pouco

Do meu medo. Do teu asco.

Dos gritos gagos. Da rosa

ficou um pouco

Ficou um pouco de luz

captada no chapéu.

Nos olhos do rufião

de ternura ficou um pouco

(muito pouco).

Pouco ficou deste pó

de que teu branco sapato

se cobriu. Ficaram poucas

roupas, poucos véus rotos

pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.

Da ponte bombardeada,

de duas folhas de grama,

do maço

- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.

Fica um pouco de teu queixo

no queixo de tua filha.

De teu áspero silêncio

um pouco ficou, um pouco

nos muros zangados,

nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo

no pires de porcelana,

dragão partido, flor branca,

ficou um pouco

de ruga na vossa testa,

retrato.

Se de tudo fica um pouco,

mas por que não ficaria

um pouco de mim? no trem

que leva ao norte, no barco,

nos anúncios de jornal,

um pouco de mim em Londres,

um pouco de mim algures?

na consoante?

no poço?

Um pouco fica oscilando

na embocadura dos rios

e os peixes não o evitam,

um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.

Não muito: de uma torneira

pinga esta gota absurda,

meio sal e meio álcool,

salta esta perna de rã,

este vidro de relógio

partido em mil esperanças,

este pescoço de cisne,

este segredo infantil...

De tudo ficou um pouco:

de mim; de ti; de Abelardo.

Cabelo na minha manga,

de tudo ficou um pouco;

vento nas orelhas minhas,

simplório arroto, gemido

de víscera inconformada,

e minúsculos artefatos:

campânula, alvéolo, cápsula

de revólver... de aspirina.

De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.

Oh abre os vidros de loção

e abafa

o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,

e sob as ondas ritmadas

e sob as nuvens e os ventos

e sob as pontes e sob os túneis

e sob as labaredas e sob o sarcasmo

e sob a gosma e sob o vômito

e sob o soluço, o cárcere, o esquecido

e sob os espetáculos e sob a morte escarlate

e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes

e sob tu mesmo e sob teus pés já duros

e sob os gonzos da família e da classe,

fica sempre um pouco de tudo.

Às vezes um botão. Às vezes um rato.

ROMARIA

A Milton Campos

Os romeiros sobem a ladeira

cheia de espinhos, cheia de pedras,

sobem a ladeira que leva a Deus

e vão deixando culpas no caminho.

Os sinos tocam, chamam os romeiros:

Vinde lavar os vossos pecados.

Já estamos puros, sino, obrigados,

mas trazemos flores, prendas e rezas.

No alto do morro chega a procissão.

Um leproso de opa empunha o estandarte.

As coxas das romeiras brincam no vento.

Os homens cantam, cantam sem parar.

Jesus no lenho expira magoado.

Faz tanto calor, há tanta algazarra.

Nos olhos do santo há sangue que escorre.

Ninguém não percebe, o dia é de festa

No adro da igreja há pinga, café,

imagens, fenômenos, baralhos, cigarros

e um sol imenso que lambuza de ouro

o pó das feridas e o pó das muletas.

Meu Bom Jesus que tudo podeis,

humildemente te peço uma graça.

Sarai-me, Senhor, e não desta lepra,

do amor que eu tenho e que ninguém me tem.

Senhor, meu amo, dai-me dinheiro,

muito dinheiro para eu comprar

aquilo que é caro mas é gostoso

e na minha terra ninguém não possui.

Jesus meu Deus pregado na cruz,

me dá coragem pra eu matar

um que me amola de dia e de noite

e diz gracinhas a minha mulher.

Jesus Jesus piedade de mim.

Ladrão eu sou mas não sou ruim não.

Por que me perseguem não posso dizer.

Não quero ser preso, Jesus ó meu santo.

Os romeiros pedem com os olhos,

pedem com a boca, pedem com as mãos.

Jesus já cansado de tanto pedido

dorme sonhando com outra humanidade.

Rosa Rosae

Rosa

e todas as rimas

Rosa

e os perfumes todos

Rosa

no florindo espelho

Rosa

na brancura branca

Rosa

no carmim da hora

Rosa

no brinco e pulseira

Rosa

no deslumbramento

Rosa

no distanciamento

Rosa

no que não foi escrito

Rosa

no que deixou de ser dito

Rosa

pétala a pétala

despetalirosada

Segredo

A poesia é incomunicável.

Fique torto no seu canto.

Não ame.

Ouço dizer que há tiroteio

ao alcance do nosso corpo.

É a revolução? o amor?

Não diga nada.

Tudo é possível, só eu impossível.

O mar transborda de peixes.

Há homens que andam no mar

como se andassem na rua.

Não conte.

Suponha que um anjo de fogo

varresse a face da terra

e os homens sacrificados

pedissem perdão.

Não peça.

Sentimental

Ponho-me a escrever teu nome

com letras de macarrão.

No prato, a sopa esfria, cheia de escamas

e debruçados na mesa todos contemplam

esse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,

uma letra somente

para acabar teu nome!

- Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...

E há em todas as consciências um cartaz amarelo:

"Neste país é proibido sonhar."

SENTIMENTO DO MUNDO

Tenho apenas duas mãos

e o sentimento do mundo,

mas estou cheio de escravos,

minhas lembranças escorrem

e o corpo transige

na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu

estará morto e saqueado,

eu mesmo estarei morto,

morto meu desejo, morto

o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram

que havia uma guerra

e era necessário

trazer fogo e alimento.

Sinto-me disperso,

anterior a fronteiras,

humildemente vos peço

que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,

eu ficarei sozinho

desfiando a recordação

do sineiro, da viúva e do microscopista

que habitavam a barraca

e não foram encontrados

ao amanhecer esse amanhecer

mais noite que a noite.

Sinal de apito

Um silvo breve: Atenção, siga.

Dois silvos breves: Pare.

Um silvo breve à noite: Acenda a lanterna.

Um silvo longo: Diminua a marcha.

Um silvo longo e breve: Motoristas a postos.

........(A este sinal todos os motoristas tomam

.........lugar nos seus veículos para movimentá-los

.........imediatamente.)

Sonetilho do Falso Fernando Pessoa

Itabira do Mato Dentro - MG - 1902

* - * - 1987

Onde nasci, morri.

Onde morri, existo.

E das peles que visto

muitas há que não vi.

Sem mim como sem ti

posso durar. Desisto

de tudo quanto é misto

e que odiei ou senti.

Nem Fausto nem Mefisto,

à deusa que se ri

deste nosso oaristo,

eis-me a dizer: assisto

além, nenhum, aqui,

mas não sou eu, nem isto.

Soneto da Perdida Esperança

Perdi o bonde e a esperança.

Volto pálido para a casa.

A rua é inútil e nenhum auto

passaria sobre meu corpo.

Vou subir a ladeira lenta

em que os caminhos se fundem.

Todos eles conduzem ao

princípio do drama e da flora.

Não sei se estou sofrendo

ou se é alguém que se diverte

por que não? na noite escassa

com um insolúvel flautim

Entretanto há muito tempo

nós gritamos: sim! ao eterno.

Ter ou não ter namorado

Quem não tem namorado é alguém que tirou férias remuneradas de si mesmo. Namorado é a mais difícil das conquistas. Difícil porque namorado de verdade é muito raro. Necessita de adivinhação, de pele, saliva, lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia. Paquera, gabira, flerte, caso, transa, envolvimento, até paixão é fácil. Mas namorado mesmo é muito difícil. Namorado não precisa ser o mais bonito, mas ser aquele a quem se quer proteger e quando se chega ao lado dele a gente treme, sua frio, e quase desmaia pedindo proteção. A proteção dele não precisa ser parruda ou bandoleira: basta um olhar de compreensão ou mesmo de aflição.

Quem não tem namorado não é quem não tem amor: é quem não sabe o gosto de namorar. Se você tem três pretendentes, dois paqueras, um envolvimento, dois amantes e um esposo; mesmo assim pode não ter nenhum namorado. Não tem namorado quem não sabe o gosto da chuva, cinema, sessão das duas, medo do pai, sanduíche da padaria ou drible no trabalho.

Não tem namorado quem transa sem carinho, quem se acaricia sem vontade de virar lagartixa e quem ama sem alegria.

Não tem namorado quem faz pactos de amor apenas com a infelicidade. Namorar é fazer pactos com a felicidade, ainda que rápida, escondida, fugidia ou impossível de curar.

Não tem namorado quem não sabe dar o valor de mãos dadas, de carinho escondido na hora que passa o filme, da flor catada no muro e entregue de repente, de poesia de Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes ou Chico Buarque, lida bem devagar, de gargalhada quando fala junto ou descobre a meia rasgada, de ânsia enorme de viajar junto para a Escócia, ou mesmo de metrô, bonde, nuvem, cavalo, tapete mágico ou foguete interplanetário.

Não tem namorado quem não gosta de dormir, fazer sesta abraçado, fazer compra junto. Não tem namorado quem não gosta de falar do próprio amor nem de ficar horas e horas olhando o mistério do outro dentro dos olhos dele; abobalhados de alegria pela lucidez do amor.

Não tem namorado quem não redescobre a criança e a do amado e vai com ela a parques, fliperamas, beira d’água, show do Milton Nascimento, bosques enluarados, ruas de sonhos ou musical da Metro.

Não tem namorado quem não tem música secreta com ele, quem não dedica livros, quem não recorta artigos, quem não se chateia com o fato de seu bem ser paquerado. Não tem namorado quem ama sem gostar; quem gosta sem curtir; quem curte sem aprofundar. Não tem namorado quem nunca sentiu o gosto de ser lembrado de repente no fim de semana, na madrugada ou meio-dia do dia de sol em plena praia cheia de rivais.

Não tem namorado quem ama sem se dedicar, quem namora sem brincar, quem vive cheio de obrigações; quem faz sexo sem esperar o outro ir junto com ele. Não tem namorado que confunde solidão com ficar sozinho e em paz. Não tem namorado quem não fala sozinho, não ri de si mesmo e quem tem medo de ser afetivo.

Se você não tem namorado porque não descobriu que o amor é alegre e você vive pesando 200Kg de grilos e de medos. Ponha a saia mais leve, aquela de chita, e passeie de mãos dadas com o ar. Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a alma com leves fricções de esperança. De alma escovada e coração estouvado, saia do quintal de si mesma e descubra o próprio jardim. Acorde com gosto de caqui e sorria lírios para quem passe debaixo de sua janela. Ponha intenção de quermesse em seus olhos e beba licor de contos de fada. Ande como se o chão estivesse repleto de sons de flauta e do céu descesse uma névoa de borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante a dizer frases sutis e palavras de galanteio.

Se você não tem namorado é porque não enlouqueceu aquele pouquinho necessário para fazer a vida parar e, de repente, parecer que faz sentido.

TOADA DO AMOR

E o amor sempre nessa toada:

briga perdoa perdoa briga

Não se deve xingar a vida,

a gente vive, depois esquece.

Só o amor volta para brigar,

para perdoar,

amor cachorro bandido trem.

Mas, se não fosse ele,

também que graça que a vida tinha?

Três presentes de fim de ano

I

Querida, mando-te

uma tartaruguinha de presente

e principalmente de futuro

pois viverá uma riqueza de anos

e quando eu haja tomado a estígia barca

rumo ao país obscuro

ela te me lembrará no chão do quarto

e te dirá em sua muda língua

que o tempo, o tempo é simples ruga

na carapaça, não no fundo amor.

II

corbeilles nem

letras de câmbio

nem rondós nem

carrão 69

nem festivais

na ilha d’amores

não esperes de mim

terrestres primores.

Dou-te a senha para

o dom imperceptível

que não vem do próximo

não se guarda em cofre

não pesa, não passa

nem sequer tem nome.

Inventa-o se puderes

com fervor e graça.

III

Sempre foi difícil

ah como era difícil escolher

um par de sapatos, um perfume.

Agora então, amor, é impossível.

O mau gosto

e o bom se acasalaram, catrapuz!

Você acha mesmo bacana esse verniz abóbora

ou tem medo de dizer que é medonho?

E aquele quadro (objeto)? aquela pantalona?

Aquela poesia? Hem? O quê? não ouço

a sua voz entre alto-falantes, não distingo

nenhuma voz nos sons vociferantes...

Desculpe, amor, se meu presente

é meio louco e bobo

e superado:

uns lábios em silêncio

(a música mental)

e uns olhos em recesso

(a infinita paisagem).

Tristeza do Império

Os conselheiros angustiados

ante o colo ebúrneo

das donzelas opulentas

que ao piano abemolavam

"bus-co a cam-pi-na se-rena

pa-ra li-vre sus-pi-rar"

esqueciam a guerra do Paraguai,

o enfado bolorento de São Cristóvão,

a dor cada vez mais forte dos negros

e sorvendo mecânicos

uma pitada de rapé,

sonhavam a futura libertação dos instintos

e ninhos de amor a serem instalados nos

arranha-céus de Copacabana, com rádio e telefone automático

Turno à Janela do Apartamento

Silencioso cubo de treva:

um salto, e seria a morte.

Mas é apenas, sob o vento,

a integração da noite.

Nenhum pensamento de infância,

nem saudade nem vão propósito.

Somente a contemplação

de um mundo enorme e parado.

A soma da vida é nula.

Mas a vida tem tal poder:

na escuridão absoluta,

como líquido, circula.

Suicídio, riqueza ciência...

A alma severa se interroga

e logo se cala. E não sabe

se é noite, mar ou distância.

Triste farol da ilha rosa.

ÚNI DÚNI TêNI

úni dúni têni

salamêni.

Balança, meu bem, balança

entre um e outro trapézio.

No verde tom da esperança,

a cor de prata do césio.

Circula o risco no espaço

como sangue nas artérias.

Os saltos mais perigosos

são fiorituras aéreas.

No limite da coragem,

no vão entre céu e terra,

um anjo luminescente

zomba da morte e da guerra.

É anjo? ou mulher? ou homem?

Sobre a pergunta sem nexo,

o novo arco-íris desdobra

todos os raios do sexo.

De "Amar se Aprende Amando"

Verbo Ser

Que vai ser quando crescer?

Vivem perguntando em redor. Que é ser?

É ter um corpo, um jeito, um nome?

Tenho os três. E sou?

Tenho de mudar quando crescer?

Usar outro nome, corpo e jeito?

Ou a gente só principia a ser quando cresce?

É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?

Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?

Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R.

Que vou ser quando crescer?

Sou obrigado a? Posso escolher?

Não dá para entender. Não vou ser.

Vou crescer assim mesmo.

Sem ser Esquecer.

Versos de Deus

I

Ao sentir nos pássaros

tanta liberdade

e aéreo poder,

imagina um pássaro

superior a todos

e tão invisível

que seu vôo deixe

sensação de sonho.

Com leveza e graça

o homem pensa Deus.

II

No mais alto ramo

Deus está pousado

com uma garra apenas

e fita o mundo.

Do mais alto ramo

desfere vôo

e sai por aí

bicando as coisas,

indiferente às coisas

bicadas,

encantadas.

III

Bica-me Deus

de manso nos olhos,

antes referência

que repreensão.

Alisa o bico

no local. E dói.

Ao sumir crocita:

"Hoje te perdôo."

O que Deus perdoa,

só o sabe Deus.

IV

Deus rumina

que fazer, acaso.

Mais um terremoto?

De que proporções?

Uma nova guerra?

De quantas nações?

Que margem ceder

ao capricho do homem?

Vai nascer um artista?

Nascerão idiotas?

Surgirão robôs?

V

Ao findar o tempo

tudo se acomoda

à sua vontade.

Já não há projeto

de outro Deus ou vários.

Laços entrançados,

gemidos, crepúsculo

sempre continuado.

O homem arrependo-me

da criação de Deus,

mas agora é tarde.

(in A Paixão Medida)

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