Moçambique entrevistas Mozambique

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Cerrados ? Revista do Programa de P?s-Gradua??o em Literatura ? n. 41 ? 2016 ? ?fricas em movimento | 314

MO?AMBIQUE: NOVAS GERA??ES EM DI?LOGO

Sheila Khan Jessica Falconi Kamila Krakowska

Este testemunho ? a transcri??o duma entrevista colectiva com o escultor Gon?alo Mabunda, o poeta Sininho Paco e o prosador e professor de Literatura Luc?lio Manjate que teve lugar em Maputo em 2011.

Nossa equipa viajou a Mo?ambique para realizar trabalho de campo no ?mbito do projeto de investiga??o "Na??o e Narrativa P?s-Colonial", financiado pela Funda??o para a Ci?ncia e Tecnologia (FCT PTDC/AFR/68941/2006) e coordenado pela professora Ana Mafalda Leite. Nosso objectivo foi recolher testemunhos de escritores mo?ambicanos sobre sua vis?o e suas reflex?es em torno da hist?ria atormentada deste pa?s; da identidade nacional e cultural que foi emergindo na pr?- e na p?s-independ?ncia e que continua a ser uma identidade em constru??o; das rela??es de g?nero na contemporaneidade e do engajamento social da elite intelectual e art?stica. Este trabalho deu origem ao livro de entrevistas Na??o e narrativa p?s-colonial: Angola e Mo?ambique ? entrevistas, editado pela professora Ana Mafalda Leite e por n?s e publicado pela Editora Colibri em 2012 e reeditado na tradu??o inglesa pela Editora Peter Lang sob o t?tulo Speaking the postcolonial nation: voices from Angola and Mozambique (2014).

Durante a pesquisa em Mo?ambique tivemos a excelente oportunidade de entrar em di?logo com os representantes da nova gera??o de escritores e artistas que nasceram no per?odo de p?s-independ?ncia. Essa cesura temporal (1975) pareceu-nos crucial para poder perceber melhor o Mo?ambique p?s-colonial em movimento, sua hist?ria, sua identidade e, em particular, a sociedade que se formou nos ?ltimos quarenta anos. Qual a rela??o da gera??o do p?s-independ?ncia com o passado de Mo?ambique? Como eles encaram sua condi??o p?s-colonial? Como entram em di?logo com escritores e artistas consagrados das gera??es precedentes? Como refletem nas suas obras a(s) modernidade(s) africana(s)? Qual a sua vis?o do papel e da posi??o da mulher na sociedade mo?ambicana e, em particular, na sua produ??o cultural? As reflex?es de Gon?alo Mabunda, Paco Sininho e Luc?lio Manjate tra?ar?o alguns dos caminhos do Mo?ambique contempor?neo.

Q: Como ? que a narrativa, seja ela narrativa proseada, ou narrativa po?tica, ou narrativa-conto, ou narrativa-artes pl?sticas, vem narrando a na??o. Antes de come?armos esta conversa, seria interessante se voc?s pudessem fazer uma pequena apresenta??o sobre cada um.

Centro de Investiga??o em Ci?ncias Sociais - Uminho. CEsA/CSG-ULisboa. CEsA - CEsA/CSG-ULisboa.

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Gon?alo Mabunda: o escultor em tr?nsito entre a cidade e o sub?rbio

Gon?alo: Eu chamo-me Gon?alo Mabunda, sou escultor e pintor, tento escrever um bocadinho, mas basicamente fa?o escultura. Q: O teu espa?o de trabalho e de reflex?o ? a cidade ou tu tentas tamb?m abarcar outros espa?os que est?o em contcato com a cidade? Gon?alo: Meu espa?o de produ??o ? diverso. Hoje trabalho a cidade, mas tamb?m, ao mesmo tempo, inspiram-me as cria??es dos sub?rbios. Porque a?, no meu entender, eu acho que a cidade ? muito mais pl?stica, ? quase uma coisa que ela ? montada. Mas o sub?rbio tem a vida, tem a verdade. Estou feliz porque meus pais n?o vivem na cidade. Ok, eles vivem mas num s?tio mais fora. Quando estou l?, ? interessante como eu vivo com eles, com meus irm?os, num outro s?tio que ?, por exemplo, o sub?rbio. ? importante porque me ajuda a entender as coisas, entender as coisas da parte da cidade, que ? a cidade a parte onde eu vivo, onde eu vivo, e vivo num s?tio muito bonito, posso dizer, vivo perto dos grandes restaurantes, das grandes discotecas. Ao mesmo tempo, quando vou para o outro s?tio, tamb?m vejo aquela outra parte que ? interessante para me p?r a entender as coisas mais ou menos como ? a cidade. Q: O que ? que tu entendes por "aquela outra parte"? Gon?alo: Outra parte, para mim, ? quando falo dos sub?rbios onde os meus pais vivem. ? muito mais diferente de onde eu vivo, aqui, por exemplo. E quando eu vivo aqui, normalmente tudo o que eu fa?o ? tudo muito mais organizado. Mas, no outro lado, tem uma certa organiza??o, mas n?o ? esta a minha, aqui da cidade. As exig?ncias dos meus pais n?o s?o as mesmas que eu tenho aqui, nesta casa. Essa ? a outra parte que eu falo, porque quando estou l?, eu tenho uma maneira de rir, tenho outra maneira de ver as coisas. As pessoas s?o um pouco mais grosseiras contigo. Q: As pessoas s?o mais sinceras? Gon?alo: Mais sinceras, mais grosseiras, mas isso ajuda a entender a rela??o, mas eles mostram mais ou menos aquela parte delas. Quando n?o gosto de uma coisa, ? logo tratamento "Oh!". Mas aqui j? ? um pouco mais diferente. Mas isso ? bom, ? bom para mim, para poder viver as duas partes, por exemplo, em termos da minha cria??o. Eu tenho v?rias vertentes, a cria??o minha tem a ver com onde eu vivo, viver na cidade, de ir visitar os meus pais, mas tamb?m tem aquela parte das minhas viagens que me fazem entender outros povos, outras culturas, estas coisas. Sempre quando eu volto e abro um pouco a mente e eu puxo essas coisas para a minha maneira de interpretar a vida, a minha maneira de opinar. Q: E tu passas essa conflitualidade e tens?o dos espa?os e de todo este material para a tua arte? Gon?alo: Exatamente. Ent?o, essa ? a minha reflex?o, s?o as coisas que acontecem comigo, s?o as coisas que s?o a minha opini?o, s?o, por exemplo, os debates com o Sininho,1 com os m?sicos; eu vivo num mundo art?stico, eu acho que o meu mundo ? art?stico com poetas, com m?sicos, com dan?arinos, por exemplo o Lulu, que ? um amigo nosso. E temos essa parte quando a gente est? sentado, estamos a rir, mas, ao mesmo tempo, estamos a tentar opinar, a tentar criar ?s vezes, sempre na brincadeira. ?

1 Pseud?nimo do jovem poeta mo?ambicano Sininho Paco, aqui entrevistado.

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esta a minha maneira de pensar.

Luc?lio Manjate: o escritor da gera??o O?sis

Luc?lio: Luc?lio Manjate, escritor, ensa?sta e docente universit?rio. Q: Quem ? o Luc?lio que se espelha nos contos e no romance? Luc?lio: Eu acho que h? uma m?xima que diz que os escritores s?o seres solit?rios por natureza. Eu acho que sou escritor exatamente por isso, porque sinto que preciso de me reencontrar, eu preciso de saber quem sou. Ali?s, saber quem sou ? uma pergunta que eu fa?o-me constantemente. Quer dizer, eu tenho o culto, eu cultivo a busca da minha personalidade. Ent?o, acho que por via disso acabei dando num escritor. ? verdade que n?o busco s? a minha personalidade, mas vou buscando a personalidade de todos quanto sinto que pertencem ao mesmo espa?o que o meu, portanto falo de uma na??o, deste pa?s. O Luc?lio que se projeta nas obras ? um Luc?lio que procura, atrav?s das mem?rias, as mem?rias que ele tem da inf?ncia, da inf?ncia dos outros, projetar alguns sonhos: s?o os meus sonhos da minha gera??o, e talvez at? os sonhos das gera??es anteriores, que acabaram sendo sonhos frustrados. A verdade ? que o facto de tentar projetar meus sonhos n?o significa que vou escrever coisas paradis?acas. Mas acredito que ? por isso mesmo que eu escrevo a tens?o, escrevo o caos. A primeira obra n?o acredito que seja muito disso. Eu acho que a primeira obra manifesta alguma necessidade de ouvir todas as outras vozes que eu ouvi. Eu acho que as primeiras obras t?m disso, muitas das vezes s?o proje??es daquilo que a gente leu, das nossas primeiras experi?ncias. Mas o passado e o futuro sempre estiveram ali comigo, a busca de uma esperan?a, a busca de uma na??o melhor, de um espa?o melhor. Na segunda obra, estas quest?es s?o mesmo tratadas de uma forma mais sagaz, talvez, porque h? toda uma atmosfera de crises, de valores materiais, morais, espirituais que eu tento discutir. H? um caos total, n?o ?? Mas esse caos est? exatamente para projetar algo. Eu acho que as utopias s?o produtoras das distopias que n?s podemos ter ? nossa volta. E eu acho que ? esta tens?o que me move de uma forma de desabafo de dizer que considero-me, pessoalmente, fora da literatura, considero-me uma pessoa muito introspectiva, e a literatura permite-me libertar, como diria a Paulina Chiziane, todos os cavalos selvagens que precisam de ser libertados, e eu acho que tento fazer isso a partir da literatura. Q: Queria perguntar-te, qual ? o tempo da tua mem?ria? Luc?lio: Olha, o tempo da minha mem?ria, por incr?vel que pare?a, o tempo da minha mem?ria acaba sendo os tempos de todas as outras mem?rias que eu fui tendo, que eu fui vivendo. Vamos l?, eu diria assim, eu cultivo o passado, a hist?ria nesta perspectiva, a hist?ria colonial, por exemplo. Eu recordo-me que na minha primeira obra, Manifesto,2 havia dois textos, Memorial I e Memorial II, onde eu vou buscar o passado colonial, por exemplo, em que a mo?a branca, a filha do administrador ou do fazendeiro, n?o se podia envolver com o criado negro, o filho do criado. Eu apresentei isso da perspectiva, e se eles se envolvessem? Eu vou buscar esta mem?ria para tentar projetar as coisas que acho necess?rias. Os meus sonhos neste caso. Ent?o, o tempo da mem?ria n?o ? uma mem?ria tanto pessoal minha, mas ? uma mem?ria hist?rica, ? uma mem?ria hist?rica de tudo aquilo que eu fui lendo, de tudo aquilo que eu fui vivendo. Q: Porque tu ?s de uma gera??o que nasceu depois de 1970. Esta experi?ncia desta sociedade que viveu a guerra civil, a morte de Samora Machel, a entrada para uma era

2 MANJATE, Luc?lio. Manifesto. Maputo: TM-Net, 2006.

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capitalista, isso marcou-te e ? tua gera??o? Luc?lio: ? minha gera??o, eu acredito que marcou profundamente. A mim pessoalmente, eu acho que n?o senti isso assim na pele. Se eu escrevo, se eu escrevesse sobre esse per?odo p?s-independ?ncia, ser? mesmo fazendo a resson?ncia das outras vozes, porque eu pessoalmente n?o tive assim muitas experi?ncias, eu acho que a minha idade n?o me permitiu sentir isso tudo de perto. Agora, eu tenho uma gera??o de amigos escritores e n?o s? deles, porque o que ? que acontece, nessa gera??o de ap?s a independ?ncia, muitas das vezes n?s temos amigos que tinham os seus sonhos depois da independ?ncia do pa?s, de um pa?s nice, em que estamos todos a caminhar. Mas tamb?m a tend?ncia do poder, a tend?ncia do estado nessa altura era de moldar um ?nico pensamento, uma ?nica ideologia, uma forma de ver o futuro. E isso acabou frustrando muitos jovens; eu tenho amigos que acabaram envolvendo-se nas drogas, para mais, pessoas que cresc?amos juntos, e n?s acredit?vamos em alguma coisa. Eu acredito que acabou por frustrar muitos jovens! E tenho amigos que acabaram na droga. N?s crescemos juntos e eu conseguia ver as proje??es, n?s acredit?vamos em alguma coisa. Mas h? aquele desencontro entre aquilo que ? o sonho do Estado, digamos assim, e aquilo que s?o sonhos individuais. Eu acho que isso de alguma forma acabou criando um curto-circuito, um conflito a?, que essas pessoas acabaram frustradas e acabaram por ficar paradas no tempo. E hoje cruzo-me com elas. No caso dos escritores, o que acontece ? que h? jovens escritores, falo completamente de uma gera??o de escritores chamada O?sis. O Memorial I faz abordagem da gera??o O?sis. Foi uma gera??o acarinhada pela Associa??o dos Escritores Mo?ambicanos, eram jovens e havia uns muito mais velhos, no caso da gera??o Charrua.3 A ideia era trabalharmos juntos para ver se ser?amos escritores, e somos. Mas o que acontece ? que boa parte dessa gera??o acabou n?o vendo suas obras publicadas. Exatamente por causa deste aspeto que eu tentava referir, que ? uma gera??o que acaba sendo rebelde, digamos assim. Esta hist?ria da independ?ncia, depois da independ?ncia temos a guerra civil, a chamada guerra civil. A guerra da independ?ncia e depois a guerra de 16 anos, parece que ? mais correto. H? um trauma. H? um trauma e esta gera??o, de uma forma geral, vai beber ? gera??o de 1970, de 1975. E na literatura este grupo dos jovens que por causa do pendor, da f?ria, da carga emotiva que eles trazem, que ? subversiva, que ? contra o Estado, quer dizer, eu acho que o sistema n?o conseguiu acomodar esses jovens, trat?los de outra forma. H? muitos jovens que viram suas obras n?o publicadas, h? muitos jovens escritores que ficaram frustrados exatamente porque seus livros n?o foram aceitos. Exatamente pela forma como eles trataram certas quest?es. S?o quest?es que revelam, de facto, uma gera??o traumatizada, uma gera??o preocupada, e que por isso mesmo tenta dizer, das mais diversas formas poss?veis, aquilo que sente, aquilo que pensa. Eu dou dois exemplos desta gera??o, deste tipo de pensamento de escritores. S?o poetas, sobretudo. Falo do Celso Manguana, Celso Manguana que escreveu P?tria que me pariu.4 A partir deste t?tulo, n?s j? conseguimos perceber que h? qualquer coisa. E, depois nessa gera??o O?sis, em termos po?ticos, ? um dos mais promissores, Ruy Ligeiro. Ruy Ligeiro que escreveu o poema, ali?s o livro, O pa?s do medo.5 Ent?o s?o dois exemplos, pod?amos citar ainda o Jorge Matine. Acho que s?o tr?s exemplos que d?o para sentir o pulsar dessa gera??o de 1970-1975 que vive a independ?ncia e projeta e vai sentindo as proje??es dos sonhos que os mais velhos, da gera??o charrueira e tal, mas que come?am a projetar seus sonhos e encontram as barreiras do sistema e n?o

3 Charrua: revista liter?ria criada com o apoio da Associa??o dos Escritores Mo?ambicanos em 1984, que deu nome ao grupo de escritores e artistas envolvidos na sua edi??o, chamada Gera??o Charrua. 4 MANGUANA, Celso. P?tria que me pariu. Maputo: Originais do Autor, 2006. 5 LIGEIRO, Ruy. O pa?s do medo. Maputo: Aemo, 2003.

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conseguem manifestar-se. Hoje conseguiram furar isso; mas a gente l? e percebe que gera??o ? essa. Q: Desculpa interromper. Esses tr?s livros que referiste s?o esses que, lamentavelmente, n?o foram publicados ou foram publicados? Luc?lio: Estes foram publicados, mas ? apenas uma ?nfima parte de todas as vozes que existiam na AEMO ? espera de uma publica??o. Podemos ainda pegar em Chagas Levene que saiu agora, h? dois-quatro anos, que escreveu Tatuagens de estrelas.6 Tamb?m faz parte do O?sis. Em termos po?ticos, estas quatro obras, quando a gente l?, percebe que gera??o ? esta. Eu pessoalmente encontrei esta gera??o quando j? estavam a dissolver-se, quando o grupo estava a dissolver-se, foi um grupo acarinhado. Eu chego a AEMO7 em 1996. Ent?o, eu n?o vivi de perto a dor que meus companheiros viveram, ent?o, tudo aquilo que eu tento projetar ? a partir das vozes deles, s? deles e das outras vozes n?o po?ticas, digamos assim.

Paco: "Meu mote foi sempre transmitir a dor daqueles que n?o gritavam na altura"

Paco: Acho que o Luc?lio fez uma abordagem muito contundente, muito realista daquilo que ? Mo?ambique. Eu, Paco Sininho, como Ronga, nascido em 1977, privilegiado que era nessa altura, nasci num meio rodeado de amigos e fui embebedando-me com essas vozes que caminhavam dentro de mim. E, a certo ponto, eu ia me questionando, no meio em que eu me inseria questionava certas diferen?as com que eu me debatia na altura, e os esp?ritos que viviam dentro de mim tamb?m n?o me deixavam quieto, obviamente. E desde tenra idade comecei a fazer uns rabiscos, e a minha irm? Lucr?cia Paco, que ? uma atriz de teatro, incentivava-me nesses rabiscos. Devo confessar que n?o aceito pacificamente esse t?tulo de poeta, escritor, porque nunca foi o meu mote. O meu mote foi sempre transmitir a dor daqueles que n?o gritavam na altura. E a cada passo que eu sentia que dava, ia vivenciando o sentimento dos meus vizinhos que n?o tinham p?o, mas eu tinha p?o, ou que n?o tinham sapatilhas, mas eu tinha sapatilhas. Ent?o, comecei a questionar essas pequenas diferen?as j? desde sempre. Eu queria transpor essa pequena diferen?a j? com 10-11 anos para o papel. E assim fui crescendo, absorvendo nesse ambiente de diferen?as, questionando-me porqu? a raz?o dessas diferen?as. At? que em 2006, por influ?ncia da minha mana Lucr?cia e da minha namorada, tamb?m participei desse concurso com o Luc?lio e tive a men??o honorosa. Mas mesmo assim n?o queria reconhecer em mim esse t?tulo de poeta, escritor. Nunca foi essa raz?o, nunca foi essa a coisa que me movia. Eu sentia que os esp?ritos dentro de mim queriam cada vez mais gritar, queriam cada vez mais escrever e transcrever aquilo que eu sentia no meu meio. E sentia tamb?m que cada vez mais as pessoas iam estando em contacto com aquilo que eu escrevia, sentiam-se identificadas com minhas palavras, com meus textos. E isso ia-me dando uma satisfa??o enorme, sempre o que me fazia escrever era mesmo isso, o de querer transmitir a felicidade e a dor dos outros; e ao ter essa aclama??o, isso p?s-me a querer voar cada vez mais. At? que os ventos me conduziram a alguns festivais internacionais, o primeiro foi em It?lia, passei pelo Concurso Internacional de Poesia It?lia, e l? aquilo foi bomb?stico, muito bomb?stico. Voltei a Mo?ambique, novamente sou convidado a participar de um concurso

6 LEVENE, Chagas. Tatuagens de estrelas. Maputo: Ndijra, 2007. 7 Associa??o dos Escritores Mo?ambicanos.

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internacional de poesia onde tive um destaque, uma premia??o. Fui aos Estados Unidos, fui a Paris, fui ? B?lgica. Ent?o, essa atmosfera toda levou-me cada vez mais a querer interagir com o meu meio.

Modernidade da tradi??o na sociedade e na arte mo?ambicana

Q: Qual ? a vossa rela??o com a chamada cultura tradicional? Paco: Sim. As minhas palavras que eu usei, sobre os esp?ritos. Eu tenho uma viv?ncia, eu tenho uma liga??o muito pr?xima com isso. Eu sinto que eles me movem, eles me inquietam, eles me constituem. ? isso que me faz transbordar. H? quem diga muitas das vezes, quando estou a recitar, que eu estou possesso. Eu sinto a dor das minhas palavras, sinto a dor das minhas palavras como se estivesse a fornic?-las. Eu sinto que eles me v?o consultando mesmo em sonhos, v?o-me segredando. Eu venho de uma fam?lia que vive muito dentro destes costumes ronga e, de certa forma, transcrevo um pouco esse lado espiritual para o meu texto. E isso acho foi o que mais inquietou em It?lia, nos Estados Unidos, ? o que mais inquieta essas sociedades, que eu vivencio as palavras em gestos, lacrimejando. Eles sentem esse fervor que h? ali. Transbordo o meu lado espiritual, africano. Luc?lio: Eu tamb?m por acaso tenho. Ali?s, faz parte das minhas buscas tamb?m. Viver as minhas mem?rias, as mem?rias dos outros significa tamb?m pegar esse lado das nossas tradi??es, usos e costumes, como disse o Paco. E eu cultivo isso, eu cultivo isso, mas eu cultivo isso para projetar outras coisas. Porque acho que h? um culto desse universo das tradi??es, que para mim j? foi. Cultivar por cultivar esse universo das tradi??es para dizer que n?s somos mo?ambicanos, para mim, ? extempor?neo. Eu acho que n?s temos de cultivar isso para dizer outras coisas. N?o para fazer uma fotografia e dizer "Estes somos n?s", eu acho que por a? n?o vale a pena. Mas para dizer, por exemplo, "Olha, n?s agora somos assim. Estamos nesta aldeia global, neste projeto da suposta aldeia global. Estamos assim, mas ? preciso que a gente v? resgatando algumas coisas". Cultivar por a?, ir para a tradi??o para isso, sim. Eu acho que ? um movimento de recuo que n?s n?o podemos escapar. Entre aspas porque dizia h? pouco tempo que o Jo?o Paulo Borges Coelho j? escapa um pouco do universo que temos abordado, da tem?tica, por exemplo, de uma Paulina Chiziane. N?o creio, tamb?m, que a Paulina Chiziane cultiva por cultivar. Quer dizer, h? um regresso cr?tico neste universo que ? preciso fazer que, para mim, eu acho que ? o mais importante. Eu daria um exemplo de um escritor que faz isso muito bem, quer dizer, este cultivo. Quem pode nos oferecer uma fotografia das nossas tradi??es, por exemplo, seria o Marcelo Panguana. Paco: O que eu acho ? que vivendo nesta ilha globalizada ? importante tentar manter a nossa identidade. Ent?o, acho que ? esse projetar da nossa africanidade. Q: Ent?o, voc?s est?o a respeitar e cultivar o sentido da continuidade hist?rica olhando para um momento de progresso, de avan?o, mas sem esquecer o passado. Gon?alo: Exatamente. Mas eu posso contar da minha experi?ncia. Eu sou de uma fam?lia que tem esse passado. Por exemplo, o meu nome ? Gon?alo Mabunda, mas eu tenho um nome tradicional, que ? Manamun. Todos os meus irm?os t?m um nome tradicional, mesmo que n?o se usa no BI. Por exemplo, n?s temos uma cerim?nia, se tu me chamas Gon?alo na cerim?nia, n?o funciona. Tens de me chamar o meu nome tradicional. Q: O que significa? Gon?alo: Manamun? "Que tipo de filho ?s?". Mas a hist?ria ? uma hist?ria interessante

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porque tive tr?s irm?s e a minha m?e queria ter um filho homem e todos eles morreram antes. E eu fui o primeiro filho homem e, depois, eles deram-me esse nome de Manamun: "Que tipo de filho ??". Que era um filho que eles pensavam que talvez podia morrer. E nesse tempo os meus av?s deram-me este nome. Por exemplo, aqui na tradi??o eu tenho uma mulher, a mulher ? a minha irm? mais velha, que ? Maria, e que ela tamb?m tem um nome Musamusana, que ? um nome tradicional dela. Que ela e eu temos uma combina??o que eu e ela somos marido e mulher. Entendes? Por qu?? Porque os dois nomes s?o dados a duas pessoas que eram marido e mulher. Mant?m essa tradi??o, que ? uma tradi??o aqui, uma coisa que ? nossa. Ok, uma coisa que, de certo, que n?o sigo muito, mas ? a minha vida; quando chega a hora de fazer uma cerim?nia tenho de estar presente, tenho de identificar-me com esse nome tradicional. Luc?lio: Eu acho interessante a coloca??o do Gon?alo Mabunda porque ele est? a reclamar, de facto, "n?s precisamos das nossas tradi??es". Mas eu tamb?m tenho um epis?dio, que tamb?m faz-nos pensar que a tradi??o no fundo n?o existe. N?s inventamos. Eu dou um exemplo. Eu concordo, mas s? quero dar um exemplo para, talvez, equilibrar a balan?a. ? assim, na ?rvore geneal?gica da minha m?e, da fam?lia da minha m?e, a minha m?e tem dois irm?os. Eles s?o os ?ltimos a conservar os atribu?dos nomes tradicionais. Mas o que acontece? ? que a hist?ria do nome tradicional da minha m?e n?o ? das melhores. Quer dizer, porque se sup?e que a gente d? o nome tradicional ? crian?a, por exemplo, pode ser um nome de um av?, ou um tetrav?. A gente tem este nome porque acredita que tal como o antepassado era inteligente, era brilhante, era bom, sei l?, esta crian?a vai herdar estas caracter?sticas. Mas h? antepassados e antepassados. Ent?o ? minha m?e foi atribu?do um nome, mas ela n?o teve uma boa experi?ncia. Ent?o, o que ela fez? Ela disse: "Aos meus filhos eu n?o dou nenhum nome tradicional". Ela tem uma experi?ncia. Ou seja, eu e minhas irm?s abrimos uma nova tradi??o: "N?o h? nomes tradicionais". E as minhas irm?s decidiram que tamb?m n?o d?o. Quer dizer, as nossas experi?ncias v?o mantendo algumas coisas, algumas das tradi??es, e as outras coisas que v?o ficando. Eu n?o nego, n?o contradigo. H?, de facto, nomes tradicionais, conhe?o muita gente que tem. Queriam atribuir-me um nome, mas ela negou. Sentou conosco e disse: "Olha, a minha hist?ria ? esta. Se voc?s querem atribuir os nomes tradicionais...". Obviamente que eu podia atribuir e n?o passar pela mesma hist?ria. Mas estamos a abrir um outro ciclo. Paco: Acho que esse processo de atribui??o n?o parte de n?s. Quando uma crian?a nasce, vamos ? curandeira, a uma consulta, est?o l? as conchas e a curandeira ? que encarna no tal bisav? e ele diz: "Esta crian?a ser? de nome tal e tal". No meu caso, dos meus 12 irm?os, eu fui uma crian?a que gerou um grande conflito. Quer do lado paterno, quer do lado materno. Ent?o, decidiram pacificamente, l? na guerra dos esp?ritos, que eu devia ficar sem nome. Ent?o, muitas vezes isso tamb?m acontece. Gon?alo: ? interessante o que o Sininho diz. Porque ? assim: se eu vou ao curandeiro, eu tenho um protetor que sempre encarna no curandeiro. Ele encarna e diz: "Eu ? que cuido de ti. Voc? ? o meu xar?".8 Ele sempre disse que quando temos cerim?nia, ele diz que n?o, "ningu?m vai-te mexer". E quando tu est?s numa situa??o dif?cil e de repente sais dessa situa??o, dizes: "N?o, mas ele n?o existe". Porque o curandeiro vai-te transmitir muitas coisas que acontecem contigo e diz que queremos fazer isto e estamos protegidos.

8 Xar?: palavra de origem amer?ndia usada no sul de Mo?ambique e no Estado da Bahia no Brasil para denominar a homon?mia e a liga??o que se cria entre dois indiv?duos que partilham o mesmo nome. Para mais detalhes sobre o tema, veja-se o artigo de Jo?o de Pina-Cabral (2010) "Xar?: Namesakes in Southern Mozambique and Bahia (Brazil)". Ethnos: Journal of Antropology, 1469-588X, v. 75, Issue 3, p. 323345.

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Paco: Mas acho que ? um pouco isso que a Paulina Chiziane traz com a literatura dela. Essas duas viv?ncias entre mundos, entre o mundo espiritual e o nosso mundo atual, globalizado. Q: Voc?s identificam-se com esta linha que a Paulina Chiziane tem proposto ao longo dos seus romances? Luc?lio: Eu diria que sim. Eu, como tinha dito, eu acho que a hist?ria ? que vai definindo como a gente olha nosso destino, nosso percurso. Porque, eu pessoalmente, acredito nos meus antepassados. Eu gosto de saber sobre meus bisav?s e tal. E eu acredito at? que eles falam comigo, eu comunico-me com eles. Se me perguntarem como, eu n?o saberei explicar, s? sinto. Acho que foi a Madre Teresa de Calcut? que tamb?m dizia que a f? n?o se explica, ou ela existe, ou ela n?o existe. E eu acho que o que eu sinto ningu?m me ensinou. Ent?o, eu gosto de ir ? tradi??o, mas para dizer outras coisas. Eu vou dar um exemplo de um autor, talvez para sintetizar a forma como eu olho para isto. Um autor que eu acho que tamb?m vale a pena ter em conta ? o Mid? das Dores, Dom Mid? das Dores, que escreveu A B?blia dos pretos. ? um romance que j? esgotou. A B?blia dos pretos est? em oposi??o naturalmente com a B?blia dos brancos. Ele vai escrever a hist?ria de Jesus na perspectiva africana, mas, se por um lado ele chama-nos aten??o para cultivar essa mesma tradi??o, por outro lado ele diz assim: "Mas este culto n?o pode ser acr?tico. Tem de ser racional". Ora, quando ele diz "racional" est? a levantar a quest?o da raz?o, da objetividade, do pensamento l?gico. Porque eu acho que ?s vezes as quest?es das tradi??es acabam obscurecendo aquilo que seria a nossa vis?o das coisas. Eu prefiro colocar essa quest?o da tradi??o e da modernidade, das religi?es tradicionais, das religi?es modernas nesta perspectiva da oposi??o como coloca o Mid?; e para dizer, de facto, que n?o pode ser um culto acr?tico, porque isso acaba esvaziando aquilo que seria a progress?o que n?s teremos. ? nesta perspectiva. N?o pode ser um regresso. Por isso, eu digo: "Olha, basta que eu acredite nisto". Se eu acredito, tudo o resto que possam ser cultos, costumes, por exemplo, ir ao campo, ir ?s ?guas sagradas, eu sinceramento digo: temos de ter medida. Porque eu acredito, ent?o, o resto eu vou fazer. Eu tenho um amigo que conta uma hist?ria assim. Est? para casar, enamora-se pela mo?a e chega aos pais. Ok, essa mo?a ? vossa filha e tal, como ? de costume. E pronto. Sa?ram os dois e foram embora. O pai da mo?a: "Oh, n?o ? assim. Tu tens de voltar, que ? para fazer o lobolo, aquelas coisas tradicionais. Vai-te acontecer isso e aquilo". E o Z?: "N?o. N?o quero". E foi. Eu acho que as experi?ncias v?o ser diferentes naturalmente. Paco: Acho que n?s concordamos. Como tu dizes, para entender o presente temos de ir buscar alguma ideia no futuro. E isso n?o quer dizer que algu?m segue cegamente. N?s temos usos e costumes, temos uma esteira. N?o devemos seguir cegamente este processo.

A mem?ria e o esquecimento no processo da constru??o da na??o mo?ambicana

Q: Eu tenho uma provoca??o. Voc?s alguma vez foram categorizados ou estigmatizados por n?o terem a mem?ria social, por cultivarem o esquecimento social? Alguma vez numa intera??o sentiram que a vossa gera??o ? a gera??o do esquecimento social? Luc?lio: Eu pessoalmente n?o. Mas este ? um ponto de vista com o qual eu concordo. Quer dizer, eu tenho a impress?o, de facto, que a nossa gera??o j? se disse que ? uma

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