Do Rovuma ao Maputo - Antologia de Autores Africanos
Do Rovuma ao Maputo - Antologia de Autores Africanos
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|Poesia Autores Africanos |
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Do Rovuma ao Maputo
Antologia de Autores Africanos
Organizada por
Carlos Pinto Pereira
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Introdução a esta edição
Entre Brasil e os países africanos de língua portuguesa, "apenas um mar nos separa"...e isto é muito pouco nos dias de hoje. O leitor desta RocketEdition TM da eBooksBrasil vai notar, pelos escritos de seus poetas e escritores, que a língua, o coração e a história nos une.
Resultado da correspondência entre amigos, infelizmente este exemplar não pode reproduzir a correspondência entre eles, que se trata de literatura epistolar...e das boas.
Ela, entretanto, está disponível em "Autores Africanos - Do Rovuma ao Maputo" [] coordenado por Carlos Pinto Pereira [Carlos.Pinto-Pereira@cern.ch], obra que mantém em conjunto, entre outros, com Mario Vaz [mario.vaz@sympatico.ca], Joaquim Fale [Joaquim Fale: joaquim@joafal.uem.mz], Vicenzo Barca [Vincenzo Barca: mc8717@mclink.it], Abdul Cadre [abdulcadre@mail.telepac.pt], Eduardo M.L. Paes Mamede [e.p.mamede@mail.telepac.pt], Paulo Lemos: [lemoszp@.br], Margarida: [guidasc@.br].
Ao corresponder-me com ele sobre esta edição, recebi este e-mail que, por si só, vale por uma apresentação, e por isso aqui vai transcrito:
Viva Teotonio
Aqui estou a responder-lhe como prometi ontem.
Como deve imaginar não tenho quaisquer direitos de autor sobre os poemas publicado na WEB e faço-o (fazemo-lo) pois achamos que é uma maneira de os fazer conhecer.
Se o seu objectivo é o mesmo então ficaremos muito gratos que lhe dêem ainda mais possibilidades de se fazerem conhecer.
Um abraço para si também.
Carlos
Sim, leitor, queremos que você os conheça. Por isso, sem mais, a eles.
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ÍNDICE
A - B - C - D - E - F - G - J - K - L - M - N - O - P - R - S - T - V - W - Z
- A -
ABRANCHES, Henrique (Ago)
Ao Bater da Chuva
ALBA, Sebastião(Moz)
A Pomba para o Cheina
ALCÂNTARA, Adriamo (Moz)
A Utopia dos Olhos Escancarados
ALCÂNTARA, Oswaldo (Cpv)
Filho
ANAHORY, Terêncio (Cpv)
Nha Codê
ANDRADE, Costa (Ago)
Contratados
ANTÓNIO, Mário (Ago)
Uma Negra Convertida
Rua da Maianga
ARTUR, J.Armando (Moz)
Arte de Viver
Divagações
AZEVEDO, Lícinio (Moz)
O Comboio de Sal e Açúcar
AZEVEDO, Pedro Corsino (Cpv)
Conquista
Galinha Branca
Terra Longe
- B -
BARBEITOS, Arlindo (Ago)
Em Teus Dentes
Esperança
Mão Frágil
Saudade
Vem Ver
BARBOSA, Jorge (Cpv)
Canção de Embalar
Prelúdio
BARCA, Alberto da (Moz)
Um Cão em Maputo
BUCUANE, Juvena (Moz)
O Húmus do Homem Novo
- C -
CACHAMBA, Simeão (Moz)
Xikalamidade
Xirico
CANCIONEIRO - Vamos Cantar, Crianças
Cantos 1-4
CARDOSO, António (Ago)
Árvore de Frutos
Um dia
CARDOSO, Carlos (Moz)
Cidade 1985
CARVALHO, Ruy Duarte de (Ago)
Chagas de Salitre
Dias Claros
Diogo Cão às Portas do Zaire
Novembrina Solene
Venho de um Sul
CASSAMO, Suleiman (Moz)
Nyeleti, Conto
Amor de Baoba
CHIZIANE, Paulina (Moz)
Balada de Amor ao Vento
COUTO, Fernando (Moz)
Feições Para um Retrato
COUTO, Mia (Moz)
A Adivinha
A Confissão de Nhonhoso
A Multiplicação dos Filhos
Estréia nos Viventes
Cartas dos Primos Ladrões
Governado Pelos Mortos
Mar Me Quer
Nas Águas do Tempo
Venho Aqui Brincar no Português
CRAVEIRINHA, José (Moz)
A Nossa Casa
Aldeia Queimada
Barbearia
A Boca
Cela 1
Depoimento Autobiográfico
Eles Foram Lá
Fábula
Gente a Trouxe-Mouxe
Gula
Outra Beleza
Reza Maria
Sementeira
Terra de Canaã
CRUZ, Viriato (Ago)
Makèzú
Namoro
Serão de Menino
- D -
DÁSKALOS, Alexandre (Ago)
A Sombra das Galeras
Carta
Manhã
No Temporal da Revolução
O Meu Amor
Poesias
Porto
E Agora Só Me Restam
DICK, Stefan Florana
Um Epidécio ao Escritor Maconde
- E -
ESPÍRITO SANTO, Alda (Stp)
Em Torno da Minha Baia
Onde Estão os Homens...
- F -
FALÉ, Joaquim
Filhos da Miséria
FEIJOÓ, Lopito (Ago)
Meditando
FILIMONE, Manuel Meigos (Moz)
Arremessos
FILIPE, Daniel (Cpv)
A Ilha e a Solidão - Morna
FONSECA, Mário (Cpv)
Viagem na Noite Longa
FORTES, Corsino (Cpv)
De Boca a Barlavento
Girassol
Pecado Original
FUCHS, Elisa (coord)
O Macaco e o Cágado
- G -
GEDEÃO, António (Prt)
A Pedra Filosofal
GONÇALVES, Carneiro
A Guerra dos 100 Anos
A Lua do Advogado
GONÇALVES, Zeto Cunha (Ago)
Escorraçados da Morte
Os Ombros Modulam o Vento
GUERRA, Henrique (Ago)
Vem, Cacimbo
GUITA Jr. (Ago)
Por uma Sereia de Treva
Psicoalteração do Rato
No Jardim da Noite com Estrelas
- J -
JACINTO, António - (Ago)
Carta Dum Contratado
Castigo Pró Comboio Malandro
Declaração
Era Uma Vez
Monangamba
Vadiagem
- K -
KHAN, Gulamo (Moz)
Moçambicanto I
KNEPE, Grandal (Moz)
Casa da Justiça
KNOPFLI, Rui (Prt)
Aeroporto
Mangas Verdes com Sal
Matinés do Scala
Miradouro
Naturalidade
A Pedra no Caminho
- L -
LANGA, Hortencio (Moz)
Mabogue ya M'bizwa
Topas-ou-viras
LARA, Alda (Ago)
Noite
Prelúdio
Presença Africana
Regresso
Rumo
LEMOS, Gouvea (Moz)
Canção da Angonia
LOBO, Manuel Sousa (Moz)
Menir Barroco
- M -
MABUNDA, Emído
Moçambique
Vozes do Sangue
MAIMONA, João (Ago)
Arte Poética
As Muralhas da Noite
Memória
Poema para Carlos Drummond de Andrade
MARGARIDO, Maria Manuela (Stp)
Alto Como o Silêncio
Paisagem
Serviçais
Socopé
Vós Que Ocupais a Nossa Terra
MARIANO, Gabriel (Cpv)
Caminho Longe
Única Dádiva
MATUSSE, Hilário M. E.
Candongas
A Viagem do Adalfredo
MAZUZE, Simeão
Calças Molhadas
Picasso
MEIGOS, Filimone (Ago)
Morte
MELO, João (Ago)
Dunas
MENDES, Orlando (Moz)
Exortação
História
Noiva
Para um Fabulário
MENDONÇA, José Luís (Ago)
De Asas Sob a Terra
MESTRE, David (Ago)
África
Espera
O Sol Nasce a Oriente
MOMPLÉ, Líla
Os Olhos da Cobra Verde
Stress
MORAZZO, Yolanda (Cpv)
Barcos
MOSSE, Marcelo (Moz)
Chão de Pátria
MUIANGA, Aldino (Ago)
A Noiva de Kebera
Maria, Minh'amor
MUTEIA, Helder (Moz)
Ai o Mar
Ensaio de Lágrimas
Reflexão
- N -
NETO, Agostinho (Ago)
Antigamente Era
Com os Olhos Secos
Confiança
Lá no Horizonte ou 'Poesia Africana'
O Choro de África
NETO, Eugénia (Prt/Ago)
Poema à Mãe Angolana
NEVES e SOUSA (Ago)
Angolano
Ilha de Moçambique
NGWENYA Malagatana Valente e N. Mutxhini (Moz)
A Coruja
Amor Verde
Double Trouble
Mamã Preocupada
Pensar Alto
- O -
OSÓRIO, Oswaldo (Cpv)
O Cântico do Habitante
Cavalos de Silex
Holanda
Manhã Inflor
- P -
PANGUANA, Marcelo (Moz)
A Lua e a Morte
PINDULA, Mauro
Morte em Dois Actos
PINTO DE ABREU, António (Moz)
Milagre Obstéctrico
PIRES, Virgilio - (Cpv)
Mané Fú
Reminiscência
- R -
ROCHA, Jofre (Ago)
Paisagem do Nordeste
Quando a Manhã Vier
ROMANO, Luis (Cpv)
Símbolo
Vida
RUI, Manuel (Ago)
O Jogo
Museu
- S -
SANTANA, Ana de (Ago)
A Abóbora Menina
Núpcias
Rapariga
SANTOS, Aires de Almeida (Ago)
Mulemba
Meu Amor da Rua Onze
SANTOS, Arnaldo (Ago)
A Vigília do Pescador
SANTOS, Marcelino ou Lilinho Micaia Kalungano (Moz)
Ódio
Sonho de Mãe Negra
SANTOS, Monteiro (Ago)
Tudo Treme
SAUTE, Nelson
A Pátria Dividida
Ignorância
SILVA, M. Correia da (Ago)
Canção do Silêncio
SILVEIRA, Onesimo (Cpv)
As Águas
Quadro
SOUSA, Julião Soares (Gwb)
Cantos de Meu País
SOUSA, Noémia (Moz)
Magaíça
SUKRATO (Cpv)
Não me Lavem o Rosto
- T -
TAVARES, José Luís (Cpv)
Curvo-me
TAVARES, Paula (Ago)
Cerimónia de Passagem
TENREIRO, Francisco José (Stp)
Coração em África
Romance de San Martinho
TOMÉ, António (Moz)
O Coleccionador de Quimeras
Nunca é Tarde
- V -
VARIO, João (Cpv)
Exemplo
Fragmento
VASCONCELOS, Leite (Moz)
Canto do Verbo em Busca da Forma
Declaração
Ladaínha
VENTURA, Reis (Ago)
Baião de Luanda
VELHA, Cândido da (Ago)
As Idades da Pedra
VICTOR, Geraldo Bessa (Ago)
Chove
Não Venhas Mais ao Cais
O Menino Negro Não Entrou na Roda
O Feitiço do Batuque
VIEGAS, Alberto (Ago)
Camaleão
VIEGAS, Jorge (Moz)
Nirvana
VIEIRA, Armério (Cpv)
Isto é Que Fazem de Nós
Mar
VIEIRA, Carlos-Edmilson M. (Gwb)
Sofrimento
VIEIRA da CRUZ, Tomáz (Ago)
Coqueiro
Fruta
N'gola
Quissange - Saudade Negra
Rebita
Romance de Luanda
VIEIRA, Luandino (Ago)
Canção para Luanda
Sons
VILANOVA, João Maria (Ago)
Canção para Joana Maluca
Canção na Morte de Nga-Caxombo
VIMARO, Tomas (Moz)
Lei do Passe
VIRGÍNIO, Teobaldo (Cpv)
Rota Longa
- W -
WHITE, Eduardo (Moz)
O país de Mim
Poemas da Ciência de Voar
- Z -
ZIMBA, Carlos (Moz)
Sorrisos Mutilados
ZITA, Isaac (Moz)
Os Molwenes
Alguns Dados Biográficos
Esta edição
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Ao Bater da Chuva
Autor: Henrique Abranches
(Angola)
A porta fechada é uma obsessão.
As vozes caladas em torno de nós,
as pausas alongadas em silêncios de uma angústia
nova,
são a descontinuidade do tempo interrompido
dentro da casa que arrombaram ontem,
no coração da aldeia do Mazozo.
A chuva cai em bátegas doces, a chuva bate o capim
molhado,
e soa...
A humanidade é fria.
As mulheres já choraram tudo
- A Mãe Gonga comandou o coro.
Esvaem-se agora em surdina muda,
que agudiza o bater da chuva.
Os homens dizem de quando em quando
um nome obstinado.
Chamava-se Infeliz
aquele rapaz
que levaram ontem
do coração da aldeia.
A chuva matraqueia ainda e sempre
na porta fechada como uma obsessão.
Como ela nos lembra o som odiado
que dia após dia
nos sobressalta!
Como ela recorda o som da metralha,
que dia após dia
desce o morro da Calomboloca
e bate naquela porta fechada,
obsecada de protecção!
A gente conhece o som da metralha
quando ela vem no fim do dia.
Quando ela vem, silencia a aldeia,
então, em sobressalto, o povo diz:
- Foram fuzilados...
E ninguém sabe do Infeliz,
aquele rapaz que levaram ontem...
A Pomba Para o Cheina
Autor: Sebastião Alba
Moçambique
Do livro "A noite Dividida", Edições 70, Lisboa 1981
Pontos de vista
entrecruzam as balas
e nós ensaiamos a pomba
desenhando-a encurvando-lhe
o dorso antes do voo
largando-a no prisma puro
dos olhares da multidão
Logo uma estrela fugaz
se lhe cola ao bico
Rodopiará no céu entre colunas
colossais de cogumelos
e sóis que a inflectem
mas bem aninhada no oco
habitáculo de penas
com a chave em nossa mão.
A Utopia dos Olhos Escancarados
Autor: Adriano Alcântara
Nos Cadernos "Diálogo" alguns autores desconhecidos do grande público tiveram a oportunidade de ver trabalhos seus publicados. É o caso de Adriano Alcântara. - Joaquim Falé
Se num momento de loucura
acaso arriscares acima do tédio
e afoito sozinho dobrares
a agreste solidão da esquina dos dias,
poderás então entrever
por entre as brumas do tempo
a imensa multidão e o verde prazer
das tuas mais urgentes utopias.
Se depois com ardor escreveres
- ridícula como o poeta a dizia -
uma simples carta de amor
cuja verdade ofereça fogosa o seu pudor
sinceros significados tão prementes
que a ouro fiquem bordados
no seio nu das palavras inexistentes,
imune farás tombar do muro os pecados
com que este presente impune
procura sarcástico esconder-nos o futuro.
Se porém impossível te for
a sangria das palavras a sério
e ao cansaço sem outra saída
com fúria não conseguires opor
a beleza dum punho bem apertado,
arrepia caminho e não ouses.
Nunca ouses monstro malfadado
dobrar a esquina deste tempo
de cobardias prenhe e silêncios cheio.
Porque só o amor mata a hipocrisia
e reconhece os homens iguais
porque para além deste dia
só de olhos escancarados se sonha a utopia.
Filho
Autor: Oswaldo Alcântara
(Cabo Verde)
Nicolau, menino, entra.
Onde estiveste, Nicolau,
que trazes a arrastar
o teu brinquedo morto?
Nicolau, menino, entra.
Vem dizer-me onde foi que tu estiveste
e a estrela fugiu das tuas mãos.
Tens comigo o teu catre de lona velha.
Deita-te, Nicolau, o fantasma ficou lá longe.
Dorme sem medo.
Porão, roça, medos imediatos,
tudo ficou lá longe.
Quando acordares a jornada será mais longa.
Nicolau, menino,
onde foi que deixaste
o corpo que te conheci?
Deus há-de querer que o sono te venha depressa
no meu catre.
Nha Codê
Autor: Terêncio Anahory
(Cabo Verde)
in "Caminho longe", 1962
Tiraram o lume dos teus olhos
e fizeram braseiro
para aquecer a noite fria;
noite de qualquer dia.
Roubaram o teu riso
e encheram de gargalhadas
de luz e de música
as suas reuniões frustradas.
Da tua pele fizeram tambor
para nos ajuntar no terreiro!
Dondê nha Codê?
Não
não mataram o meu filho
que eu sei que o meu filho não morre.
(Se choro
são saudades de nha Codê...)
Nha Codê vive
na evocação de um mundo distante
no riso e no choro das ervas rasteiras
na solidão dos campos
nas pândegas de marinheiros
na vida que nasce e morre
em cada dia que passa!
... E em mim
essa saudade de nha Codê!
Contratados
Autor:Costa Andrade
(Angola)
(1959)
A hora do sol posto
as rolas traçam
desenhos de feitiços sinuosos
caminhos sob a calma das mulembas
e abraços de segredos e silêncios.
...longe...muito longe
um risco brando
acorda os ecos dos quissanjes
vermelho como o fogo das queimadas
com imagens de mucuisses e luar.
Canções que os velhos cantam
murmurando.
e nos homens cansados de lembrar
a distância vai calando mágoas.
renasce em cada braço
a força de um secreto entendimento.
Uma Negra Convertida
Autor: Mário Antonio
(Angola)
Minha avó negra, de panos escuros,
da cor do carvão...
Minha avó negra de panos escuros
que nunca mais deixou...
Andas de luto,
toda és tristeza...
Heroína de idéias,
rompeste com a velha tradição
dos cazumbis, dos quimbandas...
Não xinguilas, no óbito.
Tuas mãos de dedos encarquilhados,
tuas mãos calosas da enxada,
tuas mãos que preparam mimos da Nossa Terra,
quitabas e quifufutilas - ,
tuas mãos, ora tranquilas,
desfilam as contas gastas de um rosário já velho...
Teus olhos perderam o brilho;
e da tua mocidade
só te ficou a saudade
e um colar de missangas...
Avózinha,
às vezes, ouço vozes que te segredam
saudades da tua velha sanzala,
da cubata onde nasceste,
das algazarras dos óbitos,
das tentadoras mentiras do quimbanda,
dos sonhos de alambamento
que supunhas merecer...
E penso que... se pudesses,
talvez revivesses
as velhas tradições!
Rua da Maianga
Autor: Mário Antonio
Angola
Rua da Maianga
que traz o nome de um qualquer missionário
mas para nós somente
a rua da Maianga
Rua da Maianga às duas horas da tarde
lembrança das minhas idas para a escola
e depois para o liceu
Rua da Maianga dos meus surdos rancores
que sentiste os meus passos alterados
e os ardores da minha mocidade
e a ânsia dos meus choros desabalados!
Rua da Maiaga às seis horas e meia
apito do comboio estremecendo os muros
Rua antiga de pedra incerta
que feriu meus pezitos de criança
e onde depois o alcatrão veio lembrar
velocidades aos carros
e foi luto na minha infância passada!
(Nene foi levado pró hospital
meus olhos encontraram Nene morto
meu companheiro de infância de olhos vivos
seu corpo morto numa pedra fria!)
Rua da Maianga a qualquer hora do dia
as mesmas caras nos muros
(As caras da minha infância
nos muros inacabados!)
as moças nas janelas fingindo costurar
a velha gorda faladeira
e a pequena moeda na mão do menino
e a goiaba chamando dos cestos
à porta das casas!
(Tão parecido comigo esse menino!)
Rua da Maianga a qualquer hora
o liso alcatrão e as suas casas
as eternas moças de muro
Rua da Maianga me lembrando
meu passado inutilmente belo
inutilmente cheio de saudade!
A Arte de Viver
Autor: Armando Artur
Moçambique
Habito no halo
dos meus versos
onde incansavelmente
rimo palavras sem rima
e seco lágrimas sem pranto
é a arte de viver...
como lacrar a vida e o amor
sem cantar?
como vencer o tédio e o temor
sem bailar?
eis a razão
porque sonho sem sono
porque voo sem asas
porque vivo sem vida
no avesso dos versos escondo
o tesouro da minha contrariedade
o mistério da minha enfermidade
e o feitiço da minha eternidade
Divagações
Autor: Armando Artur
Moçambique
Capítulo de "Estrangeiros de Nós Próprios"
Publicado pela AEMO, Associação dos Escritores Moçambicanos, nº 15 da colecção Timbila (outubro de 1996)
Pelo dever
de resistir e caminhar
pelos destroços da nossa utopia,
eis-nos aqui de novo, acocorados,
aqui onde o tempo pára
e as coisas mudam.
E para que o nosso sonho renasça
com a levitação do vento e do grão,
eis-nos aqui de novo,
passivos como os espelhos,
no tear da nossa existência.
Este sempre será
O nosso amanhecer.
E a nossa perseverança
é como a da erva daninha
que lentamente desponta na pedra nua."
O Comboio de Sal e Açúcar
Autor: Licínio de Azevedo
Moçambique
Trechos do livro "O comboio de sal e açúcar", editado em 1997
"- Vocês não podem fazer isto! - diz Omar, com gravidade.
Os soldados espantam-se.
- Eu conheço os regulamentos militares. Vocês estão aqui para defender o comboio e o que ele transporta, não podem tocar na carga - afirma.
- Cuidado, velhote - diz um dos soldados. No próximo combate, a primeira bala é para ti.
Omar não se intimida.
- Eu sou o condutor coordenador destes três comboios. Vocês põem nos vossos relatórios que o vagão foi assaltado mas nós, nos nossos, temos que escrever a verdade, pois respondemos pela carga perante os CFM.
- Não digas que não te avisámos, velhote - fala o soldado que parece liderar os outros e se afasta, levando os companheiros consigo. - Este velho é maluco, quer confusão com a tropa.
- Vamos dar-te chamboco - diz outro soldado, ameaçando Omar com a mão fechada, como se agarrasse um pau.
- Um tiro. Basta um tiro - defende o primeiro.
A tentativa de saque obriga Omar a permanecer no seu furgão, com atenção redobrada aos vagões de carga.
Informados de que vão ficar ali até o dia seguinte, os viajantes instalam-se nos arredores dos comboios, com as suas cozinhas improvisadas, esteiras e mantas que nem todos têm. Surge logo um pequeno mercado de lenha, junto à estação. Muitos "passageiros" percorrem as cantinas, mas não há nada à venda. Elas continuam abertas apenas por formalidade, há muito que não são abastecidas."
.........
"No 1103, com uma atitude agressiva, indiferente aos olhares das pessoas que circulam por ali, o alferes Salomão está parado diante de uma jovem de pouco mais de vinte anos, grande e bonita, vestida com modéstia, mas gente de cidade.
- Não vou - diz a jovem, com firmeza.
- Eu dou-te um tiro - ameaça Salomão.
- Não sou sua mulher. Não vou cozinhar para si - ela grita, aperta os lábios e bate com o pé direito no chão.
As pessoas que estão por perto fingem nada ver ou ouvir e afastam-se, é melhor não se envolver em assuntos de militar com mulher. Mesmo assim, Salomão lhes grita:
- Saiam daqui! O que querem?
Ele agarra a jovem por um braço e começa a arrastá-la para o "ferro" onde está o barco. Ela resiste, determinada a não ceder, mas as suas forças são insuficientes contra os músculos bem treinados e a habilidade do corpo seco do alferes. Ela não pára de gritar.
- Largue-me! Largue-me!
Soldados que assistem à cena sorriem, como se fosse algo tão natural como marido bater em mulher que não obedece.
- Esta gaja tem que levar porrada - comenta um deles.
- O alferes vai dar-lhe porrada é na esteira - diz um outro. - Vai pilar esta gaja!
Salomão arrasta a jovem para junto do "ferro", mas não consegue fazê-la subir. Para isto precisa de mais do que a sua força física e leva a mão ao coldre.
- Quer ajuda, Salomão? - pergunta o tenente Taiar, parando ao seu lado.
Surpreendido, o alferes olha para Taiar sem sacar a pistola nem largar a jovem, que acredita estar, agora, completamente perdida.
- Largue-a! - Taiar ordena, mansamente.
A sua ordem espalha electricidade no ar. Os soldados mais próximos, todos eles da escolta de Salomão, param de sorrir e observam a cena, com manifesta antipatia pelo tenente. Os civis demonstram agora que vêem e ouvem, como se alguém tivesse tocado na corda adormecida da sua coragem.
- Tenente, capitão, ninguém me dá ordens a respeito de mulher - declara Salomão, exaltado. - Ganhei a minha patente a combater. Dez anos! Tenho direito à mulher que quero!
Ao responder ao tenente, no entanto, ele larga o braço da jovem que se afasta uns metros, com dignidade, e fica a assistir ao desfecho do confronto. Taiar permanece calmo, enfrentando em silêncio o olhar ameaçador de Salomão.
- Aqui a conversa é de homem para homem e quem manda no meu comboio sou eu - continua o alferes.
- Não me provoques, Salomão - diz Taiar, sem erguer a voz, seguro de si.
Dois soldados do alferes aproximam-se, querendo intimidar Taiar com as suas AKM. Sem lhes dar atenção, indiferente à expressão de desprezo de Salomão, o tenente segue em direcção ao seu comboio. A jovem segue atrás dele e emparelha com a sua marcha.
- Obrigada por me ter ajudado. O meu nome é Rosa, gostaria de ir para o seu comboio, pois aqui já não me sinto segura. Sou enfermeira, posso...
- Faça o que quiser - diz Taiar, sem se deter, mal olhando para ela.
Ela corre até o "ferro" onde tem a sua bagagem, duas sacolas de tamanho médio e um estojo branco com uma cruz vermelha, pega nela e vai atrás dele, andando com dificuldade devido ao peso. Sem voltar a olhar para ela, Taiar dirige-se ao furgão do 1101, para dormir um pouco.
Rosa percorre a composição e decide-se, sem nenhum motivo especial, por ficar no meio dela, no "ferro" em que está Mariamu.
Um casal que viaja no 1103, testemunha do ocorrido com Rosa, procura também mudar-se para o 1101. Salomão impede-o, como quem pronuncia uma condenação:
- Ninguém muda de comboio durante a viagem. De agora em diante, cada um tem lugar marcado."
Licínio de Azevedo é um cineasta brasileiro radicado em Moçambique.
Conquista
Autor: Pedro Corsino Azevedo
(Cabo Verde)
in "Claridade", n°5, 1947
Trás!...
Explodiu a Verdade,
Agora sou capaz
De tudo
Indiferente e quedo e mudo
Deixarei escangalhar o brinquedo
Que temi na Infância,
Rasgou-se o céu em mil fatias lindas,
Ricos
Fanicos
Que recolhi na mão.
Desilusão!
Cristal, cristal, cristal!
E eu a namorar o mal...
Galinha Branca
Autor: Pedro Corsino Azevedo
(Cabo Verde)
in "Mensagem", Casa dos Estudantes do Império, ano XVI, n°6, julho 1964
Sol de Agosto.
Raios a prumo.
Nem dá gosto
Viver.
Litoral ardente.
Montes nus.
Pó vermelho,
Na valsa doida do vento leste.
Meio-dia.
Nem pinga de água...
O céu plasmando infernos.
A agonia
Da gente pobre
- Pobre de tudo -,
O olhar mudo
Que sufoca gritos
Que não partem.
Mas:
Noite de luar,
Vento amainado.
Depois da ceia,
Brincam crianças
Ao canto da varanda:
Galinha
Branca
Que anda
Por casa
De gente
Catando
Grão
De milho.
E mais:
É mim
É bô
É Carlos
É Valério
É Fêdo.
Somos todos, todos,
Catando
Grão
De milho
Em anos de crise,
E mais...
- Não!...
Canivetinho
Canivetão
Vá
Té
França.
Galinha branca
O espectro da morte
A sorte
De todos.
Olha pra mim!
Assim.
Canivetinho
Canivetão
Vá
Té
França.
- A única esperança...
França lendária
Terra longínqua
De onde os meninos
Costumam vir em cestos
E para onde
Em anos de crise
Num cesto de pau
(Mácabra nau!)
Canivetinho
Canivetão
Coitadinhos
Vão!...
Terra-Longe
Autor: Pedro Corsino Azevedo (1905-1942)
(Cabo Verde)
in Claridade,1947
Aqui, perdido, distante
das realidades que apenas sonhei,
cansado pela febre do mais-além,
suponho
minha mãe a embalar-me,
eu, pequenino, zangado pelo sonho que não vinha.
"Ai, não montes tal cavalinho,
tal cavalinho vai terra-longe,
terra-longe tem gente-gentio,
gente-gentio come gente"
A doce toada
meu sono caía de manso
da boca de minha mãe:
"Cala, cala, meu menino,
terra-longe tem gente gentio
gente-gentio come gente".
Depois vieram os anos,
e, com eles, tantas saudades!...
Hoje, lá no fundo, gritam: vai!
Mas a voz da minha mãe,
a gemer de mansinho
cantigas da minha infância,
aconselha ao filho amado:
"Terra-longe tem gente-gentio,
gente-gentio come gente".
Terra-longe! terra-longe!...
- Oh mãe que me embalaste
- Oh meu querer bipartido!
Em Teus Dentes
Autor: Arlindo Barbeitos
Angola
Em teus dentes
o sol
é diamante de fantasia
a lua
caco-de-garrafa
e
a mentira
verdade vagabunda
errando de cágado
em torno da lagoa dos olhos da noite
na treva aveludada
de tua pele
os dedos curiosos
são estrelas de marfim
à busca
de um dia caprichoso
despontando de miragem
por detrás das corcundas de elefantes adormecidos
(Angola, angolê, angolêma)
Esperança
Autor: Arlindo Barbeitos
Angola
in "Vozes poéticas da lusofonia", Sintra 1999
Por entre as margens da esperança
/e da morte
meteste a tua mão
e
eu vi alongados nas águas
os dedos que me agarram
em lagoa de um sonho
corpo de jacaré
é soturna jangada de palavras
/secas
por entre as margens da esperança
/e da morte
Mão Frágil
Autor: Arlindo Barbeitos
Angola
em mão frágil de amarelo
se quebra o galho de gajajeira
pela tardinha vermelha em flor
sussurrar de vento
não é voz de capim crescendo
é murmúrio impaciente
de gentes
no azul de parte alguma
em mão frágil de amarelo
se quebra o galho da gajajeira
pela tardinha vermelha em flor
(Angola, angolê, angolêma)
Saudade
Autor: Arlindo Barbeitos
Angola, 1940
saudade
é o tempo de pacassas pardas
e macacos sem rabo servindo de administradores
quando o calor ia derretendo o céu
e a chuva se vendia na farmácia
do comerciante de cabelos de fio
saudade
é o tempo de patos bravos
e macacos sem rabo servindo de padres
quando o medo ia gelando a terra
e o pranto se dava de beber aos porcos
do comerciante de cabelos de fio
(Angola, Angolê, Angolêma)
Vem Ver
Autor: Arlindo Barbeitos
Angola
escuras núvens grossas de outros céus vindas
entrançando-se por entre asas de pássaros canibais
e
chuva de feiticeiro
em sopro
de arco-íris dependurada
irmão
vem vem
escuras núvens grossas
temem o sol de nossos olhos todos
pássaros canibais
a garra de nossas mãos todas
e
chuva de feiticeiro
se perde no ar de nossos copos todos
irmão
vem vem
(Angola, Angolê, Angolêma)
Canção de Embalar
Autor: Jorge Barbosa
Cabo Verde
in "Ambiente", 1941
"Dorme Maninho
pra não vir Ti Lobo..."
Maninho
volta-se e dorme
no colchão de saco vazio
sobre a terra batida.
Ao lado no chão dormindo também
o naviozinho de lata
que fez com suas mãos...
Apaga-se a luz.
Maninho acorda depois
por causa da voz falando baixinho
segredando
no meio escuro...
Não fala de mamãe...
Ti Lobo talvez...
Mas nhô Chico Polícia há dias contava:
"Ti Lobo não tem..."
Essa voz nocturna segredando...
O homem branco talvez
que lá vai de vez enquando...
"Dorme Maninho
pra não vir Ti Lobo..."
Volta-se e torna a dormir...
Amanhã cedo vai correr o naviozinho de lata
nas poças da Praia Negra...
Prelúdio
Autor: Jorge Barbosa
Cabo Verde
"Cadernos de um ilhéu", 1956
Quando o descobridor chegou à primeira ilha
nem homens nus
nem mulheres nuas
espreitando
inocentes e medrosos
detrás da vegetação.
Nem setas venenosas vindas no ar
nem gritos de alarme e de guerra
ecoando pelos montes.
Havia somente
as aves de rapina
de garras afiadas
as aves marítimas
de voo largo
as aves canoras
assobiando inéditas melodias.
E a vegetação
cuja sementes vieram presas
nas asas dos pássaros
ao serem arrastadas para cá
pelas fúrias dos temporais.
Quando o descobridor chegou
e saltou da proa do escaler varado na praia
enterrando
o pé direito na areia molhada
e se persignou
receoso ainda e surpreso
pensando n'El-Rei
nessa hora então
nessa hora inicial
começou a cumprir-se
este destino ainda de todos nós.
Um Cão em Maputo
Autor: Alberto da Barca
Trecho do livro "Um cão em Maputo", Editora Escolar, 1990
"Leão apercebeu-se de que ninguém lhe ligava importância. Assim, entrou casa adentro. Não procurou pelas panelas. Procurou sim pelo dono - pelo Langa. Encontrou-o a ressonar, enquanto fazia a sesta. Leão sentou-se quieto olhando faminto para o Langa.
Este, continuou o seu sono pesado e imperturbável, interrompido de quando em quando por soluços e arrotos causados pela muita cerveja que bebera ao almoço. Esvaziou cinco garrafas, e lamentou o facto de o "sócio" só lhe ter arranjado tão pouca quantidade para uma refeição de Domingo, normalmente mais regada com o referido líquido. O sono era profundo. Um sono bêbado. Não deu pela presença do cão. O cão faminto latiu. Com efeito, Langa acordou. Tinha os olhos vermelhos e um ar aborrecido, indisposto, pois não tolera que lhe interrompam o sono em nenhuma circunstância. E neste caso, era um cão! Um cão indesejado desde o primeiro dia. Langa pegou no sapato que descalçara, e com força e velocidade, atingiu o focinho do Leão em cheio. O bicho latiu de dor, e, com o rabo entre as pernas e o focinho descaído, desandou para fora, para o quintal.
Deitou-se à sombra da laranjeira, sofrendo agora mais uma dor - a da sapatada no focinho. Pensou no amigo Silva, e uma lágrima grossa escapou-lhe do olho esquerdo. Assim, chorou de tristeza, de fome e também de raiva. Enquanto isso, Langa murmurava: "o sacana nem deixa um gajo descansar. Como é que eu posso aturá-lo? O raio do cão até dormia na cama com o patrão e agora quer fazer isso comigo!
Comigo isso não pega! Com esta sapatada que o gajo levou no focinho, tenho a certeza de que não me chateia mais!"
Langa voltou a deitar-se. Virou-se para o lado, desapertou as calças e derramou a barriga saliente no leito. Não tardou a recuperar o sono interrompido, bem como o ressonar aos soluços."
ALBERTO DA BARCA nasceu na cidade da Beira no dia 21 de Junho de 1954.
O Húmus do Homem Novo
Autor: Juvenal Bucuane
Trecho do livro "A Raiz e o Canto", AEMO, colecção Início nº 2, 1984
Juvenal BUCUANE nasceu no Xai-Xai a 23 de Outubro de 1951. "A RAIZ E O CANTO" foi o seu primeiro livro publicado, em Dezembro de 1984 pela AEMO, colecção Início No 2.
A Cláudio, meu filho
Não quero que vejas
nem sintas
a dor que me amargura;
Não quero que vejas
nem virtas
as lágrimas do meu pranto.
Deixa que eu chore
as mágoas e as desilusões;
deixa que eu deambule;
deixa que eu pise
a calidez do chão desta terra
e o regue até com o meu suor;
deixa que me toste
sob este sol inóspito
que me dardeja o lombo sempre arqueado...
Este penar
é o resgate da esperança
que em ti alço!
Este penar
é a certeza do amanhã que vislumbro
na tua ainda incipiente idade!
Não quero que vejas
nem sintas
o meu tormento
ele é o húmus do Homem Novo."
Juvenal BUCUANE nasceu no Xai-Xai a 23 de Outubro de 1951.
Xikalamidade
Autor: Simeão Cachamba
in Cadernos "Diálogo" - As Palavras Amadurecem
Se um dia me viste a vagar as ruas da cidade
(qual molweni atribulado na sua vagabundagem)
o corpo constelado de remendos, quase seminu
todavia por todos poros respirando dignidade
hás-de me ver hoje envolto em nova embalagem
caso cruze denovamente a mesma esquina com tu
Não me pergunte o raio por que deixava eu esta
indumentária envelhecer lá bem no fundo do baú
Um pouco de bom-senso e apenas dois dedos de testa
e saberás que ninguém grama de andar com o corpo nu
Se antes de minhas foram alguém que eu desconheço
estas «jeans» coçadas que ao meu corpo se ajustam bem
como se feitas por encomenda, com as medidas que eu meço
é porque em estado natural sempre iguais são os homens
polana/85
XIPAMANINE: mercado onde se vende grande quantidade de
CALAMIDADE: roupas doadas para os países do terceiro mundo, e que neste são comercializadas
MOLWENI: rapaz da rua
Xirico
Autor: Simeão Cachamba
in Cadernos "Diálogo" - As Palavras Amadurecem
domesticadas asas estrebucham
o ancestral sonho sitiado que
a exiguidade geométrica da gaiola calca
enquanto ouvimos rádio na sala de estar
dura um instante infinitesimal a pausa do locutor
e nesse vazio
breve
oportuno
subversivo o pássaro entoa as cores do arco-íris
os sons fluem em cascata através dos arames
e estacam na sala
- vá tu saber se o bicho está triste ou alegre"
XIRICO: pássaro e marca de transístor muito popular
Árvore de Frutos
Autor: Antonio Cardoso
Angola
Cheiras ao caju da minha infância
e tens a cor do barro vermelho molhado
de antigamente;
há sabor a manga a escorrer-te na boca
e dureza de maboque a saltar-te nos seios.
Misturo-te com a terra vermelha
e com as noites
de histórias antigas
ouvidas há muito.
No teu corpo
sons antigos dos batuques ah minha porta,
com que me provocas,
enchem-me o cerebro de fogo incontido.
Amor, és o sonho feito carne
do meu bairro antigo do musseque!
Um Dia
Autor: Antônio Cardoso
Angola
in Poemas de Circunstância, 1961
ao António Jacinto
Um dia eu vou fazer um romance
com as histórias da minha rua
antes de se chamar Silva Porto
e os pretos irem embora.
Vai entrar a lua e meninos sem cor
a Domingas quitata, o sô Floriano do talho
com muita mistura de amor
e muito suor de trabalho.
Vou meter as cabras e os cães vadios da velha Espanhola
os batuques da Cidrália e dos Invejados,
os batalhões do "Treze" e do "Setenta e Quatro",
o bêbado Rebocho, o velho Salambió,
a Joana Maluca da garotada,
cajueiros, cubatas, lixeiras,
capim e piteiras,
e mesmo no fim da história,
quando os homens estão desesperados
e as fardas passam em fila,
acendo um sol de Fevereiro,
semeio algumas esperanças
e parto com o meu veleiro
a dar uma volta ao Mundo!
Cidade 1985
Carlos Cardoso
Maputo, 1985
De manhã quando acordo
em Maputo
o almoço é uma esperança.
Mãe tenho fome
marido tenho bicha
e mil malárias me disputando a vontade.
De manhã quando acordo
em Maputo
o jantar é uma incerteza
o serviço uma militância política
do outro lado do sono incompleto
e o chapa-cem* um regulado impiedoso
no quatro barra oitenta sem contra-argumento.
De manhã quando acordo
em Maputo
o vizinho já candongou o que me roubou
a estomatologia não tem anestesia
a chuva abriu dialecticamente mais um buraco na estrada
e o conselho executivo continua desdentado de iniciativas.
De manhã quando acordo
em Maputo
Porra para a vizinha que estoirou a torneira do rés-do-chão
Porra para o guarda que não ligou a bomba quando veio a água
Porra para as cem gramas de carne apodrecidos
no silêncio desenergetico de Komatipoort
mais as ó eme sed de efes
e o soldado que ainda não ouviu dizer que os passeios
são lugares públicos
e os fulanizados exploradores de outrora
que se preparam para cuspir na tua campa, ó Mataca,
as ordens de um Mouzinho boer.
De manhã quando me percorro
em Maputo
enfio ominosamente o cérebro numa competentíssima paciência
desembainho felinamente mais uma mentira diplomática
e aguardo a lucidez companheira me leia
nas acácias em sangue
nos jacarandas estalando sob a sola epidérmica do povo
que este é ainda o eco estridente do Chai
até que Botha seja farmeiro e Mandela Presidente.
Então,
com a raiva intacta resgatada à dor
danço no coração um xigubo guerreiro
e clandestinamente soletro a utopia invicta.
À noite quando me deito
em Maputo
não preciso de rezar.
Já sou herói.
Chagas de Salitre
Autor: Ruy Duarte de Carvalho
Radicado em Angola
Santarém, Portugal, 1941-
in Chão de Oferta, 1972
Olha-me este país a esboroar-se
em chagas de salitre
e os muros, negros, dos fortes
roidos pelo vegetar
da urina e do suor
a carne virgem mandada
cavar glórias e grandeza
do outro lado do mar.
Olha-me a história de um país perdido:
marés vazantes de gente amordaçada,
a ingénua tolerância aproveitada
em carne. Pergunta ao mar,
que é manso e afaga ainda
a mesma velha costa erosionada.
Olha-me as brutas construções quadradas:
embarcadouros, depósitos de gente.
Olha-me os rios renovados de cadáveres,
os rios turvos de espesso deslizar
dos braços e das mãos do meu país.
Olha-me as igrejas restauradas
sobre ruínas de propalada fé:
paredes brancas de um urgente brio
escondendo ferros de educar gentio.
Olha-me a noite herdada, nestes olhos
de um povo condenado a amassar-te o pão.
Olha-me amor, atenta podes ver
uma história de pedra a construir-se
sobre uma história morta a esboroar-se
em chagas de salitre.
Eu Tenho os Dias Claros
Autor: Ruy Duarte de Carvalho
Radicado em Angola
Santarém, Portugal, 1941-
in Chão de Oferta, 1972
para o António
Eu tenho os dias claros
de sucessivas luas de Setembro
e a noite que me impõe sinalizar
as direcções cruzadas das mensagens verticais.
Eu estou parado no meio do terreiro
pastado dos meus passos e da minha gente,
ando a ganhar noções de translação
e a medir, pra meu governo, a cor do sol.
Eu entardeço, sobretudo, pouco atento ao vento
que não devo perturbar na sua rota alheia.
Permito, quando muito, que me sinta o cheiro
e deixo-o desfazer, furtivamente, molhos já secos de memória fêmea.
Eu finjo que não sei de elásticas tensões da claridade
e a cada passo meu faço estalar
membranas frias que a tarde debruou em rente azul.
Entendes, companheiro,
eu estou aqui sentado e nu
a procurar não ir além da bárbara carícia
de um olhar sem tacto
e que nem uma lágrima machuque
a capa muito fina da lembrança
que tenho para dar-te.
Diogo Cão às Portas do Zaire
Autor: Ruy Duarte de Carvalho
Radicado em Angola desde 1963
Santarém, Portugal, 1941-
in Chão de Oferta, 1972
Deste lado da história
o rio morre aqui.
Do mar sabemos nós e aos capitães
a fama da conquista.
Faço-me ao Sul
porque pertenço ao Norte
e a costa só me serve p'ra cumprir
tarefas de abandono.
Meu fim é circular, ir mais além.
Por isso eu sei de estrelas
direcções
e nada sei de fruto
que se projecta e espera.
Cumpro tarefas, sim, porque viajo.
Assim nasci
sabendo o que me aguarda após a descoberta.
Fronteiras
só conheço as do meu lar
e sei amá-lo, só,
noutras distâncias.
De Deus, empreendi que mora aqui no mar,
porque sou eu
quem lhe constrói a face.
Ao Rei e a Vós
apenas dou noticias do rumo horizontal.
Pois que sabeis da vertical sagueza?
Novembrina Solene
Autor: Ruy Duarte de Carvalho
Radicado em Angola desde 1963
Santarém, Portugal, 1941-
in Chão de Oferta, 1972
Seu Zuzé, as tuas vacas como estão?
Longe daqui
subimos os morros
Fomos procurar
a água que resta
do ano que passa.
Senhora Luna
a farinha?
Está secar
Tarda a chuva seca o milho
A lavra não vai medrar.
Chimutengue, meu vizinho
então por cá?
Pois que vim te visitar
te avisar
que o meu gado vai passar
aqui por perto
Tarda a chuva e é preciso
procurar
o que lhe dar de comer
o que lhe dar de beber
O capim está ficar negro
está na hora de mudar.
Imigrante Silva, a tua mulher?
Está mal.
Que é do leite pra lhe dar
a carne pra lhe engordar?
E os filhos?
Estão magrinhos
doentados
vão ficar igual com o pai
Que é da escola pra lhes dar
sapatos pra lhes calçar
oficio pra lhe ensinar?
Dunduma amigo
companheiro Chipa
Zeca, Ernesto, Calembera.
olhai pelo gado.
Protegei os pastos.
Olhai pela vida das fêmeas
e pela saúde dos machos.
Venho de um Sul
Autor: Ruy Duarte de Carvalho
Radicado em Angola desde 1963
Santarém, Portugal, 1941-
in Chão de Oferta, 1972
Vim do leste
dimensionar a noite
em gestos largos
que inventei no sul
pastoreando mulolas e anharas
claras
como coxas recordadas em Maio.
Venho de um sul
medido claramente
em transparência de água fresca de amanhã.
De um tempo circular
liberto de estações.
De uma nação de corpos transumantes
confundidos
na cor da crosta acúlea
de um negro chão elaborado em brasa.
Nyeleti
Autor: Suleiman Cassamo
in "Amor de Baoba" (crónicas), Edição da Ndjira, 1998
Introdução:
"Que da leitura destes contos
vos fique um leve,
levissimo sabor a terra.
O sabor da nossa terra."
" Lamentava, afinal, o rapaz que, porque o amor negado envenena, morreu de amor.
Também as rãs acolhiam as noites com rezas, em cacofonia, ressoando na membrana das lagoas. Nas lagoas crescia o peixe-preto, esse peixe que conserva a dignidade do seu bigode, mesmo com o sal e o piripiri esperando de lado, no espeto, diante da brasa.
Nas machambas, a macaroca nascia filas de dentes e deitava cabelo loiro; as abóboras jaziam, gordas e doiradas, a lembrar grandes pepitas de ouro; a mandioca rasgava a terra, a mesma terra que dava forca aos seus músculos.
Partiram para longe as rolas, para o fundo da mata, para as figueiras.
Chocariam os ovos, voltariam no amadurecer das espigas.
E os dias iam, traziam as noites e vinham, cada um o recomeço do anterior.
Mas ao nascer-morrer igual dos dias, há o acontecer de massinguita: Malatana reapareceu.
Bebia-se sumo de melancia. Chegou como só chegam os fantasmas, de madrugada, palito, dois pirilampos no lugar dos olhos e a barba grande de Jesus Cristo.
Longe do mundo, junto dos bichos, do xuaxualhar das chanfutas, do rumorejar dos regatos, construiu uma cabana.
Errara por terras e terras, bisbilhotava-se, havia cruzado o rio Maputo, tinha visto Xivimbatlelo, chegara a Mamanga, lá onde o mundo acaba e recomeça. De volta, Malatana trouxe nos bolsos rotos o feitiço que viraria o coração da Nyeleti."
Amor de Baoba
Autor: Suleiman Cassamo
in "Amor de Baoba" (crónicas), Edição da Ndjira, 1998
página 24:
Mas, diz ainda Eco, a televisão também estupidifica. Será, ó Eco, que isso se confirma no episódio com que fecho este texto?
Naquela noite fatídica, entrei de rompante na sala e anunciei:
- A avó morreu!
Nem deram pela minha presença. Presos ao ecrã, pareciam elefantes embalsamados. Pulei em frente, derrubei o maldito aparelho com um golpe de karaté, e, ainda marcialmente, pulei para cima do baú, e proclamei como que em teatro:
- A a-vó mo-rre-u!!!
Só então começaram, a pouco e pouco, a regressar. Sabe-se lá se da Europa, se das Américas.
Balada do Amor ao Vento
Autor: Paulina Chiziane
do livro "Balada de Amor ao Vento"
Capítulo 1
"- Sarnau, hoje é o dia de arranjar namorado. Em vez de estar ali a chocalhar, ponha-te à vista, ginga, rebola, para as moscas perseguirem as tuas curvas, menina.
Olha, eu já arranjei um namorado, e que janota, amiga!
- Os meus parabéns, então.
- E tu o que esperas? Aposto que estavas a olhar para esse ranhoso filho do Rungo. Como se chama? Ah, é o Mwando. Pois digo-te menina, estás a perder tempo, aquele está a estudar para padre.
Fiquei furiosa. A Eni fora ao encontro dos meus pensamentos e ferira-me a forma como se referira àquele jovem tão distinto. Coloquei as mãos nas ancas e vomitei todo um palavreado provocador, na intenção de aborrecer a adversaria, enquanto esta, de olhar trocista, limitava-se apenas a murmurar:
- Wê, Sarnau, não vale a pena tanta fanfarra. Hoje é dia de festa e não estou para guerrinhas. Tenho um vestido novo que não me apetece machucar.
A malta incitava-nos para a luta, mas ao ver que o espectáculo estava perdido pois a Eni não se desfazia, todos se viraram contra mim. Todo o bando me rodeou e trocou.
- Mas vocês ainda não viram? A Sarnau é pau de carapau. Nem curva no peito, nem curva no rabo, é estaca de eucalipto. Mulher é que não, wâ, wâ, wâ!
Fiquei zangada. Finalmente os marotos deixaram-me em paz e pude à vontade contemplar o meu ídolo e preparar planos de abordagem. Aquele Mwando interessava-me, sim senhor."
..........................
Capítulo 11, página 73:
"- Kenguelekezeee!...
Braços negros erguem-se no ar, mergulhando os dedos enfileirados no prateado leitoso que embacia o céu, partindo do coração da Lua.
- Kenguelekeze!... Eis aqui o herdeiro da coroa!
O menino negro - negro não, de prata sim, porque a Lua cheia pintava o rosto angélico, cobrindo-o com o seu manto de prata - cumpria o ritual da lua nova que se realizava na lua cheia por tratar- se do filho herdeiro.
- Kenguelekeze! Eis aqui uma vida nova! Majestosa Lua: recebe esta criatura, esta gota de água que veio ao mundo para ser feliz. Dá-lhe a bênção. Poupa-a das diarreias, doenças nervosas, ataques, quando nasceres, quando encheres e quando morreres, kenguelekezeee!...
O menino nu tremia de frio, suspenso nos braços erguidos das madrinhas. Fechou os olhos, esfregou-os, esperneou, e lançou um jacto de urina molhando a cabeça de uma delas, soltando gritos de protesto.
Com o menino erguido no ar, as madrinhas dançavam à volta da fogueira sagrada. A seguir administraram fumos e drogas purificantes para afugentar feitiços e maus-olhados. Prepararam-lhe vacinas e amuletos, colares de pele de leão para ter a coragem e a audácia do rei da selva.
Paulina Chiziane nasceu a 4 de Junho 1955 em Manjacaze, província de Gaza, tendo crescido nos subúrbios de Maputo, onde estudou. Iniciou a sua actividade literária em 1984, com contos publicados na imprensa moçambicana. "Balada de Amor ao Vento" foi o seu primeiro livro, colecção Karingana No 12 da AEMO.
Feições Para um Retrato
Autor: Fernando Couto
trecho do livro "Feições Para um Retrato, 1971
"Na agreste paisagem de dunas
expira a vastidão da savana.
No areal se sepulta o choro do mar
em seu clamor e seu soluço
e a fúria do vento largo
veste de saliva os arbustos sobreviventes.
Mangal de raizes nuas
doí-me o desespero dos teus dedos
ainda longos e cravados à terra.
Na orla do tempo, as aves marinhas
contemplam os despojos com olhos tranquilos
e nos conturbamo-nos à vista
dos despojos e do jeito dos pássaros.
Aqui, só nos vemos
a delgada fímbria do encontro
da morte e da vida
e conturbamo-nos.
E, amando-nos,
avivamos o traço esguio e sinuoso
dessa fímbria de encontro de morte e da vida".
A Adivinha
Autor: Mia Couto
Tudo é um jogo, brincriável. Há o bomem, isso é facto. Custa é haver o humano. A vida descostura, o homem passa a linha, a corrigir os panos do tempo. Mimirosa, a menina, nada sabia desses acertos. Acreditava ser tudo simples como o molhado e água, poeira e chão. E assim, tudo em tamanho não aparado: os senhores em infância, as coisas sem consequência.
Seus país se preocupavam. Passava a idade e Mimirosa demorava a aprender o regime da realidade. Que há deveres, e as contas do ter e do haver. E o ser é apenas o que resta. Noves fora, novos de fora.
Quem estragava esse madurecimento da miúda era sua avó, Ermelinda. A senhora se convertera em parceira de infância, ancorada em irresponsabilidade. Em meia palavra: era companhia de se evitar. Os pais de Mimirosa assim julgavam. A menina devia era evitar os risos, disciplinar arrebatamentos. A escola, em primeiro lugar. A avó, sabia-se, desprezava a escola. Que se aprende mais é fora dela, no calor da família, em redondezas de carinho. Mimirosa estava, por isso, proibida de frequentar a companhia de Ermelinda. Não queriam nem que fosse vista junto, perto do caminho da avó. A menina era conduzida, de mão acompanhada, até às imediações escolares, onde já não poderia desviar a direcção. Imaginava-se. Porque ela, mal se soltava das vistas, se internava no atalhozito que dava na casa da avó. Ali gazetava dos deveres, entretida nos nenhuns afazeres da velha senhora. Conforme os olhos distraídos da velha ela ajudava, rectificando um aqui no além ela. Até que, inevitável, chegava o jogo da adivinhação.
- Qual é um rio que não tem senão uma margem?
- Isso é coisa que não pode, avó! E do outro lado fica o quê?
- Pense, se ensine. Já sabe que o prémio que há-de haver...
Prémio que haveria era só o serem as duas, ali, no escondido. A velha deixava o mistério durar, pairada, parada. A pergunta labirintava na cabeça de Mimirosa. Podia um rio assim? Ou já se viu a estrada correr sem o amparo de duas ambas bermas?
- Mas há o prémio de verdade?
- Se você‚ adivinhar esse mistério, o mundo vai ficar tão admirado que até o tempo há-de parar.
- Jure, avozinha?, berlindavam-se os olhos dela.
E voltavam às lides, sem obrigação de nada. O jardim da casa parecia obra de inventar. Uma só arbustozinho nele cabia.
- Vês a sombra? Essa sombra é pequena. Mas existe uma sombra que é da terra toda inteira.
Voltada a casa, a menina era inquirida pelos pais, perguntas sem mistério, coisas de calcular o futuro: quando fores grande já escolheste o que vais ser? Simplesmente, ela não sabia querer ser grande. E, assim, sua ausência na resposta.
- Ela vai ser doutora hospitalar, vaticinava a mãe.
- Ou dessas que faz as contas e faz crescer dinheiro, preferia o pai.
- Tudo serás filha, mas não queremos que sejas como nós.
A menina se admirava: aqueles não gostavam de si mesmos? Por que razão eles queriam que ela lhes fosse diferente? Só a avó gostava de ser como era, cuidadosamente desarrumadinha. Como deviam ser infelizes, aqueles dois, seus pais.
Até que, urna tarde, veio o alvoroço. A velha Ermelinda se sentira mal, o peito dela se amarrotara. Mimirosa, nesses dias, deixou a escola. Mas não a deixaram entrar na velha casinha. A senhora não reconhecia ninguém, ela se convertera em fundo escuro. Nenhuma luz a trazia à superfície de si mesma. E, assim, somaram-se os dias. Mimirosa, obrigada e vigiada, voltou escola. A sombra do morcego se desenha no tecto? Pois o pensamento da neta n o saía do mesmo assunto: saudade de sua avó.
Um dia, enquanto seu olhar fingia percorrer o caderninho, a menina suspulou da carteira e se flechou porta afora. Escapou da escola e correu pelos campos. Ninguém a viu penetrar na penumbra da casa, ninguém suspeitava que se anichara, ofegante, na cabeceira da moribunda avó.
- Avó, sei a adivinha!
No rosto da senhora nenhum sinal, nem uma ruga se alterou. Parecia que Ermelinda já cruzara aquele risco feito na água, fronteira entre a vida e a morte.
- Lembra a adivinha, vó? Aquela do rio de um lado só?
E os olhos da menina se atabalhoaram de água, sentida sozinha no grande mundo. A mão dela ainda arriscou tocar no braço da avó. Mas teve medo. E se cborou! O caderninho órfão, em suas mãos, sofria a catarata das lágrimas. Até que os braços do pai a puxaram. Primeiro ela cedeu. Mas depois esgueirou-se, por um instante, e depositou o caderninho escolar no leito da água. Estava aberto numa figurinha do oceano, mais suas criaturas profundas. E a voz da menina tombada com um derradeiro lenço:
- É o mar, avó. Esse cujo rio; é o mar.
Já se retiravam daquele luto, todos mais Mimirosa quando os dedos da avó tactearam o ar e, cegos, chegaram até no caderno. Depois, acariciaram o azul da imagem. E caderno começou a pingar, como se o papel não mais contivesse aquela água.
A Confissão de Nhonhoso
Autor: Mia Couto
do livro "A Varanda do Frangipani
Sétimo capítulo - A confissão de Nhonhoso
"- Que estas a fazer, caraça de tu!
- Não está ver? Estou cortar essa árvore.
- Para com isso, Nhonhoso da merda, essa árvore é minha.
- Sua? Suca mulungo, não me chateia.
Nunca tínhamos falado assim. Domingos Mourão, o nosso Xidimingo, se levantou e, aos tropeços, se atirou contra mim. Os dois brigamos, convergindo violências. O branco me solavanqueou, parecia transtornado em juízo de bicho. Mas a luta logo se desgraçou, desvitaminados o pé e o soco. Só os nossos respiros se farfalhavam nos peitos cansados. Os dois nos sacudimos, desafeitos.
- Você sempre quer mandar em mim. Sabe uma coisa: colonialismo já fechou!
- Não quero mandar em ninguém...
- Como não quer? Eu nos brancos não confio. Branco é como camaleão, nunca desenrola todo o rabo.
- E vocês, pretos, vocês falam mal dos brancos mas a única coisa que querem é ser como eles...
- Os brancos são como o piri-piri: a gente sabe que comeu porque fica a arder a garganta.
- A diferença entre mim e você é que, a mim, ficam cabelos no pente enquanto a você ficam pentes no cabelo.
- Cala, Xidimingo. Você é um arrota-peidos.
O velho branco riu-se sozinho. Depois, se ocupou em ajeitar o corpo. Lhe doía a garganta como um torcicolo em pescoço de girafa. Ficou um tempo imóvel, olhos semicerrados. Parecia desmaiado.
- Você está respirar, Mourão?
- Ouve Nhonhoso: quer apanhar mais outra vez?
- Você é que apanhou maningue, seu velho branco...
- Deixa-me descansar um pouco e já lhe despacho uma boa murraça.
- Para me dar um murro você precisa descansar um século...
Nos olhamos sérios. De repente, ambos desatamos a rir. Batemos as mãos, chapamos as palmas, em acordo. Aquilo havia sido briga de disputar gafanhoto, bicho sem fruto nem carne. Então, lhe disse:
- é pá, Xidimingo, estou-lhe a agradecer bastante.
- Porquê?
- Charra! Eu quase ia morrer sem bater um branco."
A Multiplicação dos Filhos
Autor: Mia Couto
do livro "A Varanda do Frangipani
Certa vez, Mulando sentiu vontade de ver os seus filhos. Como fossem muitos, decidiu dedicar todo o tempo que lhe restava em paternais visitas. Queria saber das outras vidas de sua vida.
Como se, em final da existência, ele avaliasse a única eternidade que nos é certa: continuarmo-nos em nossos filhos.
Começou pelo mais velho. O filho varão se admirou da visita. Alguma suspeita o fez ficar de coração atrás: porquê tão tardia visita? Mas ele esmerou em simpatia.
Festejaram esse milagre de haver pai e filho, como flor que morre na imortalidade da semente. Beberam, comeram, entornaram as primeiras gotas no chão dos antepassados. O pai se hospedou por uns dias. Foi um tempo de transbordar a alma.
Na despedida, o filho mais velho disse que havia uns tantos irmãos espalhados pelos lugares. E o pai seguiu a prestar visitas a seus outros descendentes. Aqui e além foi encontrando mais uns. Que revelaram outros. E outros apontaram mais outros. Até que Mulando descobriu que eram muitos,bem para além dos muitos que ele imaginava.
Já cansado de tanta visitação, Mulando sentou-se a contemplar as linhas da palma da mão. Lhe pareceu ver que elas tinham mudado de desenho. Mulando se orgulhava de ter as linhas da mão em inacabado estado, sempre fugidias. Mas agora uma nova vaidade se sobrepunha: o ser tanto pai. Riu-se de suas façanhas. Já visitara mais de duas dúzias e ainda havia mais prole. Chegaria ao ponto de não ter tempo de terminar sua peregrinação? Contou as linhas das mãos e lembrou o desafio do seu tio materno perante as estrelas: contar, contar, contar até chegar a um ponto em que já não há número. E ele desistia como o dedo do tio desmaiando perante as tantas estrelas.
Um longo braço da preguiça amoleceu a sua vontade de prosseguir. Havia um bar e ele passou por lá, passou por um copo, uma garrafa, uma neblina. A seu lado, uma mulher de ninguém escutou a sua missão. A moça, estranhamente, lhe perguntou:
- Esses todos seus filhos: sabe o que é?
- Gostava de saber.
- É que, no fundo, todos, neste mundo, são nossos filhos.
- Você também?
E Mulando riu-se, cabeça tombada para trás, repetindo com ante-sabidas intenções:
- Você também é minha filha?
A prostituta sorriu-se, triste, faz conta estreasse o sentimento de ter um pai. Mulando olhou para as mãos, a ganhar fôlego e estendeu as pernas:
- Então, minha filha, sente-se aqui no meu colo.
Ela demorou a ajeitar-se no vivo assento. Ele cruzou os braços sobre ela, em subtil prisão. E lhe segredou que ela, por momentos, fizesse de conta que era outra. Uma mulher sem pecado, isenta de maus olhados. A prostituta o afastou com firmeza. Escapou do colo de Mulando e se encrispou toda, até quase perder a voz:
- Crime é um pai não cuidar dos filhos.
- Isso é verdade. Isso é um crime sem perdão.
Ele dava o assunto na bandeja, sem demais. Mulher que não queria o seu colo deixava de existir. Além disso, o clima não estava para disputas. Mulando lançou o jornal para se resguardar da luz e encerrou-se para balanço.
A manhã se adiantara, calor adentro, quando Mulando despertou. O bar estava deserto, da prostituta nem sobrara o perfume. Em redor, as formas ainda se acertavam, o nublado era um céu dentro da cabeça dele. E naquele esbotar de contornos ele sentiu alguém se postar diante.
Se as vistas eram sombras, os sons pareciam bem mais nítidos. E a voz do outro lhe chegou, em bom recorte:
- Venho lhe matar!
Nem lhe veio discernimento para a devida resposta. Tentou focar o rosto do outro e notou que ele a si se semelhava. Um mais filho? Daquela idade?
- Meu filho: eu vou seguindo, daqui vou para mais adiante.
- Não sou seu filho!
- Não é? Mas você me parece. Então você é o quê?
- Sou seu pai.
E ditas as três palavrinhas desfechou uma matraca sobre o outro. Uma, duas, quatro chambocadas. As suficientes, mortais. Mulando já não usava o pescoço. Insustentável, a cabeça lhe descaíra para trás, olhos escancarados perante o sol. Pela primeira vez, as linhas da mão de Mulando se moldaram em desenho fixo.
O outro fez regressar a matraca em sua bolsa e falou nos seguintes termos para o chão:
- Sou seu pai e você nunca me veio visitar.
Dizem assim: o funeral de Mulando nunca se viu tristeza mais repleta. Nesse momento, o homem cumpria, de uma só vez, a promessa de visitar toda a sua descendência. Estavam lá os filhos todos,visitando-o na sua última mudança de residência. Em sua nova maneira de ver, Mulando acrediou presenciar no cemitério a inteira humanidade.
Estréia nos Viventes
Autor: Mia Couto
Segundo Capítulo do livro "A Varanda do Frangipani
"Este homem que estou ocupando é um tal Izidine Naita, inspector da Policia. Sua profissão é avizinhada aos cães: fareja culpas onde cai sangue. Estou num canto de sua alma, espreito-lhe com cuidado para não atrapalhar os dentros dele. Porque este Izidine, agora, sou eu. Vou com ele, vou nele, vou ele. Falo com quem ele fala. Desejo quem ele deseja. Sonho quem ele sonha.
Neste momento, por exemplo, estou viajando num helicóptero, em missão enviada pela Nação. Meu hospedeiro anda esgravatando verdades sobre quem matou Vasto Excelencio, um mulato que foi responsável pelo asilo de velhos de São Nicolau. Izidine iria percorrer labirintos e embaraços. Com ele eu emigrava no penumbroso território de vultos, enganos e mentiras.
Espreito das nuvens, por cima das vertigens. Lá em baixo, faceando o mar se vê a velha fortaleza colonial. É lá que fica o asilo, é lá que estou enterrado. Tem graça que eu tenha saído directamente das profundezas para as nuvens. Olho da janela. A Fortaleza de São Nicolau é uma pequenita mancha que cabe num pedacito de mundo. Minha campa, essa nem se distingue. Vista do alto, a fortaleza é, antes, uma fraqueleza. Se notam os escombros como costelas descaindo sobre o barranco, frente à praia rochosa. Esse mesmo monumento que os colonos queriam eternizar em belezas estava agora definhando. Minhas madeirinhas, aquelas que eu ajeitara, agoniavam podres, sem remédio contra o tempo e a maresia."
"Cartas dos Primos Ladrões"
Autor: Mia Couto
Excertos da crónica "Imaginadâncias" no jornal "Domingo"
....
Primo rural - Como está meu irmão, isto é, meu primo? Eu estou mal aqui na aldeia Julius Nyerere, as coisas tornaram-se muito difíceis para os ladrões de gado. Sabe o que faz a população? Pega no ladrão, mete num saco e afoga-lhe no rio Limpopo! Estamos cheios de medo, primo. Até já escrevemos para a Alice Mabote, essa senhora que Liga para os Direitos Humanos...
Primo urbano - é pá, isso está feio por ai. Eu lhe dou um conselho, caro primo: venha para a cidade. Nós, os ladrões urbanos, estamos numa boa. Ai, no campo, eles afogam o ladrão que roubou o boi. Aqui afogam é o boi. Vocês, pobres criminosos, andam com medo da população. Aqui, em Maputo, é o contrario. Que venha, caro primo! Aqui eu o enquadrarei.
...
Primo urbano - Lhe digo e redigo meu primo-irmão: junte-se aos bons, isto é, aos maus. Aqui está bem acompanhado-filhos de gente grande e alguns próprios grandões. Se for preso sai logo no dia seguinte. Se demorar a sair agora até há bons advogados que aparecem logo a defender-nos. Não é que tudo seja bom. Por exemplo, a concorrência com ladrões de fora. Isso não está correcto, até já falamos às autoridades policiais. Começam a aparecer criminosos nigerianos, tanzanianos, malawianos, sul-africanos. é pá! Então onde está a protecção do empresariado nacional? Então isto é assim - nigerianos da droga já tem lojas e empreendimentos em Maputo. Dão licença sem nos contactarem a nós?
Primo rural - Já tomei decisão - vou para Maputo, juntar-me a si.
Primo urbano - Optimo. Cá lhe espero. Só lhe dou um conselho - evite vir de chapa. É a única coisa que um ladrão pode temer nesta bela cidade moderna! Rouba uma boa viatura e venha."
CHAPA: transportes semi-colectivos de Maputo. Entrar enquanto houver lugar, se não houver lugar, empurra.
Governado Pelos Mortos
(fala com um descamponês)
Autor: Mia Couto
in Revista Lua Nova, nº 4, p. 20
"... - Os mortos perderam acesso a Deus. Porque eles mesmo se tornaram deuses. E têm medo de admitir isso. Querem voltar a ser vivos. Só para poderem pedir a alguém.
- E estes campos, tradicionalmente vossos, foram-vos retirados?
- Foram. Nós só ficamos com o descampado.
- E agora ?
- Agora somos descamponeses.
- E bichos, ainda há aqui bichos ?
- Agora, aqui, só há inorganismos. Só mais lá, no mato, é que ainda abundam.
- Nós ainda ontem vimos flamingos...
- Esses se inflamam no crespúculo: são os inflamingos.
- E outras aves da região. Pode falar delas ?
- Antes de haver deserto, a avestruz pousava em árvore, voava de galho em flor. Se chamava de arvorestruz. Agora, há nomes que eu acho que estão desencostados...
- Caso do beija-flor. É um nome que deveria ser consertado. A flor é que levaria o título de beija-pássaros.
..."
Mar Me Quer
Autor: Mia Couto
Trechos do livro "Mar Me Quer", edição da Ndjira
páginas 37-38:
Seus olhos subiram do chão até se fixarem no rosto dele. Foi quando ela gritou, tapando os olhos. Os restantes se aproximaram de meu pai e um rumor se espalhou como nuvem fria.
- Os olhos dele!
Sim, os olhos de Agualberto não eram os mesmos. Ninguém conseguia olhar meu pai de frente. Porque aqueles olhos dele estavam da mesma cor do mar: azuis, de transparência marinha. Sua humanidade estava lavada a modos de peixe. Ele ficara muitíssimo demasiado tempo debaixo do mar. E se espalhou um murmúrio de que Agualberto tinha os olhos de tubarão, tal iguais aos grandes e dentilhados bichos.
A partir desse dia meu pai se adentrou em si mesmo, toda a hora sentado na praia contemplando o horizonte. Passavam gentes vindas de longe para espreitar de longe o preto de olhos da cor do mar.
Quarto capítulo, páginas 43-44
O dia começa sempre de mentira. Porque o sol só finge nascer. Aquela manhã acordou com vontade de esquentar e eu me decidi passear pela praia. Foi quando encontrei Luarmina mergulhada numa poça de água. Estava vestida e as roupas colavam-se no corpo. Aproximei e lhe perguntei a razão daqueles banhos. Ela respondeu que queria aquecer as pernas..
- A água está quentinha ?
- Não recebo quentura da água. Quem me aquece são caracóis.
E explicou: havia uns certos caracóis que lhe lambiam as pernas, pastando nessas gorduras dela. Os bichos desqualificavam viscosas salivas sobre a vizinha e eu só pensava: mal empregadas as minhas próprias babas, com o devido respeito. E salvo seja.
- Dá licença eu entrar ?
- Entrar onde ?
- Nessa água onde a senhora está ser banhada.
Entrei, fui-me achegando perto da vizinha. Me entornei na toalha da água e fechei os olhos igual como ela. Minhas mãos fingiram ser caracóis, lesmas babadoiras lavrando nas coxas de Luarmina. Para meu espanto, a mulata não me repeliu. Meus dedos prosseguiram, cumprindo seu dever, pescando entre roupa e corpo. Espreitei pela esquina dos olhos: a gorda Luarmina estava flutuando, embenvencida, parecia um navio repousando em desenho de criança.
De repente, porém, ela soltou um grito. Emendei minha malandrice, mãos atrás das costas.
- Susto, Dona! O que foi ?
Luarmina apontou qualquer coisa sobre as águas. Eram peixes mortos boiando.
Nas Águas do Tempo
Autor: Mia Couto
in Estórias Abensonhadas
Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza. O barquito cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco desabandonado.
- Mas vocês vão aonde?
Era a afliçã de minha mãe. O velho sorria. Os dentes, nele, eram um artigo indefinido. Vovô era dos que se calam por saber e conversam mesmo sem nada falarem.
- Voltamos antes de um agorinha, respondia.
Nem eu sabia o que ele perseguia. Peixe nã era. Porque a rede ficava amolecendo o assento. Garantido era que, chegada a incerta hora, o dia já crepusculando, ele me segurava a mã e me puxava para a margem. A maneira como me apertava era a de um cego desbengalado. No entanto, era ele quem me conduzia, um passo à frente de mim. Eu me admirava da sua magreza direita, todo ele musculíneo. O avô era um homem em flagrante infância, sempre arrebatado pela novidade de viver.
Entrávamos no barquinho, nossos pés pareciam bater na barriga de um tambor. A canoa solavanqueava, ensonada. Antes de partir, o velho se debruçava sobre um dos lados e recolhia uma aguinha com sua mã em concha, E eu lhe imitava.
- Sempre em favor da água, nunca esqueça!
Era sua advertência. Tirar água no sentido contrário ao da corrente pode trazer desgraça. Nã se pode contrariar os espíritos que fluem.
Depois viajávamos até ao grande lago onde nosso pequeno rio desaguava. Aquele era o lugar das interditas criaturas. Tudo o que ali se exibia, afinal, se inventava de existir. Pois, naquele lugar se perdia a fronteira entre água e terra. Aquelas inquietas calmarias, sobre as águas nenufarfalhudas, nós éramos os únicos que preponderávamos. Nosso barquito ficava ali, quieto, sonecando no suave embalo. O avô, calado, espiava as longínquas margens.
Tudo em volta mergulhava em cacimbações, sombras feitas da própria luz, fosse ali a manhã eternamente ensonada. Ficávamos assim, como em reza, tã quietos que parecia-mos perfeitos.
De repente, meu avô se erguia no concho. Com o balanço quase o barco nos deitava fora. O velho, excitado, acenava. Tirava seu pano vermelho e agitava-o com decisã. A quem acenava ele? Talvez era a ninguém. Nunca, nem por pinte, vislumbrei por ali alma deste ou de outro mundo. Mas o avô acenava seu pano.
- Você nã vê lá, na margem? por trás do cacimbo?
Eu nã via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos.
- Nã é lá. É lááá. Nã vê o pano branco, a dançar-se?
Para mim havia era a completa neblina e os receáveis aléns, onde o horizonte se perde.
Meu velho, depois, perdia a miragem e se recolhia, encolhido no seu silêncio. E regressávamos, viajando sem companhia de palavra.
Em casa, minha mãe nos recebia com azedura. E muito me proibia, nos próximos futuros. Nã queria que fôssemos para o lago, temia as ameaças que ali moravam. Primeiro, se zangava com o avô, desconfiando dos seus nã-propósitos. Mas depois, já amolecida pela nossa chegada, ela ensaiava a brincadeira:
- Ao menos vissem o namwetxo moha! Ainda ganhávamos vantagem de uma boa sorte...
O namwetxo moha era o fantasma que surgia à noite, feito só de metades: um olho, uma perna, um braço. Nós éramos miúdos e saíamos, aventurosos, procurando o moha. Mas nunca nos foi visto tal monstro. Meu avô nos apoucava. Dizia ele que, ainda em juventude, se tinha entrevisto com o tal semifulano. Invençã dele, avisava minha mãe. Mas a nós, miudagens, nem nos passava desejo de duvidar.
Certa vez, no lago proibido, eu e vovô aguardávamos o habitual surgimento dos ditos panos. Estávamos na margem onde os verdes se encaniçam, aflautinados. Dizem: o primeiro homem nasceu de uma dessas canas. O primeiro homem? Para mim nã podia haver homem mais antigo que meu avô. Acontece que, dessa vez, me apeteceu espreitar os pântanos. Queria subir à margem, colocar pé em terra nã-firme.
- Nunca! Nunca faça isso!
O ar dele era de maiores gravidades. Eu jamais assistira a um semblante tã bravio em meu velho. Desculpei-me: que estava descendo do barco mas era só um pedacito de tempo. Mas ele ripostou:
- Neste lugar não há pedacitos. Todo o tempo, a partir daqui, são eternidades.
Eu tinha um pé meio-fora do barco, procurando o fundo lodoso da margem. Decidi me equilibrar, busquei chã para assentar o pé. Sucedeu-me entã que não encontrei nenhum fundo, minha perna descia engolida pelo abismo. O velho acorreu-me e me puxou. Mas a força que me sugava era maior que o nosso esforço. Com a agitaçã, o barco virou e fomos dar com as costas posteriores na água. Ficámos assim, lutando dentro do lago, agarrados às abas da canoa. De repente, meu avô retirou o seu pano do barco e começou a agitá-lo sobre a cabeça.
- Cumprimenta também, você!
Olhei a margem e não vi ninguém. Mas obedeci ao avô, acenando sem convicções. Então, deu-se o espantável: subitamente, deixámos de ser puxados para o fundo. O remoinho que nos abismava se desfez em imediata calmaria. Voltámos ao barco e respirámos os alívios gerais. Em silêncio, dividimos o trabalho do regresso. Ao amarrar o barco, o velho me pediu:
- Não conte nada o que se passou. Nem a ninguém, ouviu?
Nessa noite, ele me explicou suas escondidas razões. Meus ouvidos se arregalavam para lhe decifrar a voz rouca. Nem tudo entendi. No mais ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado pelos panos.
- Me entende?
Menti que sim. Na tarde seguinte, o avô me levou uma vez mais ao lago. Chegados à beira do poente ele ficou a espreitar. Mas o tempo passou em desabitual demora. O avô se inquietava, erguido na proa do barco, palma da mão apurando as vistas. Do outro lado, havia menos que ninguém. Desta vez, bem o avô não via mais que a enevoada solidão dos pântanos. De súbito, ele interrompeu o nada:
- Fique aqui!
E saltou para a margem, me roubando o peito no susto. O avô pisava os interditos territórios? Sim, frente ao meu espanto, ele seguia em passo sabido. A canoa ficou balançando, em desequilibrismo com meu peso ímpar. Presenciei o velho a alonjar-se com a discrição de uma nuvem. Até que, entre a neblina, ele se declinou em sonho, na margem da miragem. Fiquei ali, com muito espanto, tremendo de um frio arrepioso. Me recordo de ver uma garça de enorme brancura atravessar o céu. Parecia uma seta trespassando os flancos da tarde, fazendo sangrar todo o firmamento. Foi então que deparei na margem, do outro lado do mundo, o pano branco. Pela primeira vez, eu coincidia com meu avô na visão do pano. Enquanto ainda me duvidava foi surgindo, mesmo ao lado da aparição, o aceno do pano vermelho do meu avô. Fiquei indeciso, barafundido. Então, lentamente, tirei a camisa e agitei-a nos ares. E vi: o vermelho do pano dele se branqueando, em desmaio de cor. Meus olhos se neblinaram até que se poentaram as visões.
Enquanto remava um demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o tempo são irmãs gémeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora a conduzir meu filho, lhe ensinando vislumbrar os brancos panos da outra margem.
Venho Aqui Brincar no Português
Autor: Mia Couto
in Estórias Abensonhadas
11/04/1997
"Venho brincar aqui no Português....a língua nossa,
essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós,
moçambicanos, ficarmos mais Moçambique"
- Mia Couto
Perguntas à Língua Portuguesa
Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.
A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o vôo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem, é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como a escrita e o mundo mutuamente se desobedecem.
Meu anjo da guarda, felizmente, nunca me guardou.
Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica.
Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulburbio.
No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.
Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:
Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?
No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?
A diferença entre um às no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?
O mato desconhecido é que é o anonimato?
O pequeno viaduto é um abreviaduto?
Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente?
Quem vive numa encruzilhada é um encruzilheu?
Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
Tristeza do boi vem dele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?
O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?
Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?
Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?
Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
Mulher desdentada pode usar fio dental?
A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"?
Um tufão pequeno: um tufinho?
O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
Em águas doces alguém se pode salpicar?
Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?
Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocamos essoutro português - o nosso português - na travessia dos matos, fizemos que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.
Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.
A Nossa Casa
Autor: José Craveirinha
Moçambique
in "Maria", Caminho, 1998
Ambição
minha e da Maria
foi termos uma casa nossa
onde nos contarmos os cabelos brancos.
Sonho realizado.
Casa definitiva já temos.
Lote 42.
Talhão 71883.
Fachada pintada a cal.
Classica arquitectura rectangular.
Uma via asfaltada com um único sentido.
Tudo sito no derradeiro bairrismo
que é morar no bairro de Lhanguene.
Pelo menos envelhecer já não é problema.
O resto na altura mais propícia
surgirá por si.
Parece que está por pouco.
Na lista onde eu consto
É injusto que tarde
estarmos juntos.
Aldeia Queimada
Autor: José Craveirinha
Moçambique
in "Babalaze das Hienas", Maputo 1997
Mas
nas noites
desparasitadas de estrelas
é que as hienas actuam.
É
de cinzas
o vestígio das palhotas.
Barbearia
Autor: José Craveirinha
Moçambique
in "Babalaze das Hienas", Maputo 1997
Na barbearia às escuras
Júlio Chaúque foi barbeado
quando voltava da machamba de milho.
Os que viram
dizem que Júlio foi escanhoado
até às carótidas do colarinho
em requintes de gilete
dos facões de mato.
Os barbeiros do Chaúque
deixaram em toalhas de folhas secas
congruentes nódoas roxas.
A Boca
Autor: José Craveirinha
Moçambique
in "Babalaze das Hienas", Maputo 1997
Jucunda boca
deslabiada a ferozes
júbilos de lâmina
afiada.
Alva dentadura
antónima do riso
às escâncaras desde a cilada.
Exotismo de povo flagelado
esse atroz formato
da fala.
Um Homem Nunca Chora
Autor: José Craveirinha
Moçambique
Do livro "Cela 1", poemas escritos aquando da sua passagem pelas masmorras da PIDE em Moçambique
Acreditava naquela história
do homem que nunca chora.
Eu julgava-me um homem.
Na adolescência
meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.
Agora tremo.
E agora choro.
Como um homem treme.
Como chora um homem!
Aforismo
Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.
Estávamos iguais
com duas diferenças:
Não era interrogada
e por descuido podiam pisa-la.
Mas aos dois intencionalmente
podiam por-nos de rastos
mas não podiam
ajoelhar-nos.
(1968)
Pena
Zangado
acreditas no insulto
e chamas-me negro.
Mas não me chames negro.
Assim não te odeio.
Porque se me chamas negro
encolho os meus elásticos ombros
e com pena de ti sorrio.
Depoimento Autobiográfico
Janeiro de 1977
José João Craveirinha nasceu em 28 de Maio 1922 em Maputo.
Iniciou a sua carreira como jornalista no "O Brado Africano", e colaborou/trabalhou com diversos orgãos de informação em Moçambique.
Teve um papel importante na vida da Associação Africana a partir dos anos 50.
Grande parte da sua poesia ainda se mantém dispersa na imprensa, não tendo sido incluída nos livros que publicou até à data. Outra parte permanece inédita.
Esteve preso pela Pide, de 1965 a 1969, na celebre Cela 1 com Malangatana e Rui Nogar, entre outros.
Tem muitas obras publicadas, sendo considerado um dos grandes poetas de Africa e da Língua Portuguesa. - Joaquim Falé
"Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me Sontinho, diminutivo de Sonto. Pela parte da minha mãe, claro. Por parte do meu pai fiquei José.
Aonde? Na Av. do Zichacha entre o Alto Maé e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres.
Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato. A seguir fui nascendo à medida das circunstâncias impostas pelos outros. Quando o meu pai foi de vez, tive outro pai: o seu irmão. E a partir de cada nascimento eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique.
A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe negra.
Nasci ainda mais uma vez no jornal "O Brado Africano". No mesmo em que também nasceram Rui de Noronha e Noemia de Sousa. Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso.
Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por causa da minha mãe só resignação.
Uma luta incessante comigo próprio. Autodidacta.
Minha grande aventura: ser pai. Depois eu casado. Mas casado quando quis. E como quis.
Escrever poemas, o meu refúgio, o meu país também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse país, muitas vezes altas horas da noite."
Eles Foram Lá
Neste dia 25 de Setembro, dia das FADM e comemoração do inicio da luta armada contra o regime colonial português, nada mais "adequado" que um excerto do livro "Babalaze das Hienas", recentemente lançado em Maputo e da autoria de José Craveirinha.
Uma edição da AEMO com o apoio do Instituto Camões.
Este "incómodo" livro de Craveirinha lembra algo de que já não se fala muito em Moçambique, os horrores cometidos durante a guerra civil que devastou o país.
Joaquim Falé
página 19:
Vovó
amanhã não precisa
ir ao hospital.
Ontem eles foram lá
deram maningue tiros
partiram tudo, tudo
mataram doentes
mutilaram o senhor enfermeiro
e violaram a senhora parteira.
Outros doentes privilegiados
foram carregar na cabeça
farinha açucar e arroz
da cooperativa
...
Foram."
página 50:
TORRESMOS À MACHIMBOMBO QUEIMADO
À partida o machimbombo parecia
um ónibus lotado de gente
em viagem.
Lá para o quilómetro 20 a oeste da Gorongosa
chaparia e respectivo tejadilho ficaram
fuliginoso similar de frigideira
fritando várias doses de torresmos
derivantes fósseis de passageiros
interrompidos antes da terminal.
Sobra este prosaico odor da sintomática
machimbombesca fotocópia de esquife.
O impaciente estardalhaço dos tiros
ainda por cima esfrangalhou o original."
Fábula
"Menino gordo comprou um balão
e assoprou
assoprou com força o balão amarelo.
Menino gordo assoprou
assoprou
assoprou
o balão inchou
inchou
e rebentou!
Meninos magros apanharam os restos
e fizeram balõezinhos."
Gente a Trouxe-Mouxe
No livro "Babalaze das Hienas", de José Craveirinha, página 11:
Gente a trouxe-mouxe da má sorte
calcorreia a pátria asilando-se onde
não cheira a bafo
de bazucadas.
Gente que gastronomiza
desapetitosos bifes de cascas
guisados de raízes ao natural
e sobremesas de capim seco.
Gente dessedentando martírios
nos charcos se chover.
...
ou a pé descalço dançando.
A castiça folia.
Das minas.
página 28
CARREIRA DE GAZA
Escusado fazer pontaria.
Chusmas de rajadas acertam sempre.
Povo armado de maternitude e velhice
esgota a lotação das carreiras de Gaza
rumo à saudade de onde saiu.
Objectivo estratégico de maternitude
machibombo da carreira de Gaza
atingido em cheio calcinou.
A mãe que dava o peito ao bebé de três meses
foi removida assim mesmo.
Gula
Autor: José Craveirinha
In "Babalaze das Hienas", AEM, Maputo, 1997
Uivam
as suas maldições
as insidiosas hienas
própria sanha.
Rituais
de tão escabrosa gulodice
que até nos esfomeados
aldeões da tragédia
a gula das quizumbas
se baba nas beiças
das catanas,
dos machados.
Outra Beleza
Autor: José Craveirinha
In "Babalaze das Hienas", AEM, Maputo, 1997
Uns exibem insólitos perfis
de outra beleza
maquilhada
no mato.
ou
do viés
ou de frente
perfeitos modelos de caveira
desfilam sem nariz.
Reza, Maria
Autor: José Craveirinha
1ª versão
Suam no trabalho as curvadas bestas
e não são bestas
são homens, Maria!
Corre-se a pontapés os cães na fome dos ossos
e não são cães
são seres humanos, Maria!
Feras matam velhos, mulheres e crianças
e não são feras, são homens
e os velhos, as mulheres e as crianças
são os nossos pais
nossas irmãs e nossos filhos, Maria!
Crias morrem á míngua de pão
vermes na rua estendem a mão a caridade
e nem crias nem vermes são
mas aleijados meninos sem casa, Maria!
Do ódio e da guerra dos homens
das mães e das filhas violadas
das crianças mortas de anemia
e de todos os que apodrecem nos calabouços
cresce no mundo o girassol da esperança
Ah! Maria
põe as mãos e reza.
Pelos homens todos
e negros de toda a parte
põe as mãos
e reza, Maria!
Sementeira
Autor: José Craveirinha
1ª versão, 1955
"Cresce a semente
lentamente
debaixo da terra escura.
Cresce a semente
enquanto a vida se curva no chicomo
e o grande sol de Africa
vem amadurecer tudo
com o seu calor enorme de revelação.
Cresce a semente
que a povoação plantou curvada
e a estrada passa ao lado
macadamizada quente e comprida
e a semente germina
lentamente no matope
imperceptível
como um caju em maturação.
E a vida curva as suas milhentas mãos
geme e chora na sina
de plantar nosso suor branco
enquanto a estrada passa ao lado
aberta e poeirenta até Gaza e mais além
camionizada e comprida.
Depois
de tanga e capulana a vida espera
espiando no céu os agoiros que vão
rebentar sobre as campinas de Africa
a povoação toda junta no eucalipto grande
nos corações a mamba da ansiedade.
Oh! Dia de colheita vai começar
na terra ardente do algodão!"
Terra de Canaã
Autor: José Craveirinha
10.8.1982
Não, piloto Israelita.
Inútil procurares nos incêndios de Beirute
e nos inocentes corpos mutilados pelos estilhaços ardentes
as belas palavras do Cântico dos Cânticos.
E voa mais baixo.
Desce velozmente mais baixo no teu caça-bombardeiro.
Voa mais baixo. Desce ainda mais baixo piloto hebreu.
Desce até Eichman. Voa até ao fundo dos ascos.
Acelera até os motores e as bombas de fósforo
contigo oscularem sofregamente o chão sagrado.
Foi para este holocausto que sobreviveste
ao teu genocídio nos tempos da Nazilandia?
Achas que é esta a tua ambicionada Terra de Canaã?
Tu achas que assim ganhas a paz na Terra Prometida?"
Makezú
Autor: Viriato da Cruz
Angola
Poemas, 1961
- "Kuakiè!!!... Makèzú, Makèzú..."
...................................................
O pregão da avó Ximinha
É mesmo como os seus panos,
Já não tem a cor berrante
Que tinha nos outros anos.
Avó Xima está velhinha,
Mas de manhã, manhazinha,
Pede licença ao reumâtico
E num passo nada prático
Rasga estradinhas na areia...
Lá vai para um cajueiro
Que se levanta altaneiro
No cruzeiro dos caminhos
Das gentes que vão pà Baixa.
Nem criados, nem pedreiros
Nem alegres lavadeiras
Dessa nova geração
Das "venidas de alcatrão"
Ouvem o fraco pregão
Da velhinha quitandeira.
- "Kuakiè... Makèzú... Makèzú..."
- "Antão, véia, hoje nada?"
- "Nada, mano Filisberto...
Hoje os tempo tá mudado..."
- "Mas tá passá gente perto...
Como é aqui tás fazendo isso?"
- "Não sabe?! Todo esse povo
Pegó um costume novo
Qui diz qué civrização:
Come só pão com chouriço
Ou toma café com pão...
E diz ainda pru cima
(Hum... mbundo kène muxima...)
Qui o nosso bom makèzú
É pra veios como tu".
- "Eles não sabe o que diz...
Pru qué qui vivi filiz
E tem cem ano eu e tu?"
- "É pruquê nossas raiz
Tem força do makèzu!..."
Namoro
Autor: Viriato da Cruz
Angola
Poemas, 1961
Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
e com letra bonita eu disse ela tinha
um sorrir luminoso tão quente e gaiato
como o sol de Novembro brincando
de artista nas acácias floridas
espalhando diamantes na fímbria do mar
e dando calor ao sumo das mangas
Sua pele macia - era sumaúma...
Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas
sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo
tão rijo e tão doce - como o maboque...
Seus seios, laranjas - laranjas do Loje
seus dentes... - marfim...
Mandei-lhe essa carta
e ela disse que não.
Mandei-lhe um cartão
que o amigo Maninho tipografou:
"Por ti sofre o meu coração"
Num canto - SIM, noutro canto - NÃO
E ela o canto do NÃO dobrou
Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete
pedindo, rogando de joelhos no chão
pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigenia,
me desse a ventura do seu namoro...
E ela disse que não.
Levei á Avo Chica, quimbanda de fama
a areia da marca que o seu pé deixou
para que fizesse um feitiço forte e seguro
que nela nascesse um amor como o meu...
E o feitiço falhou.
Esperei-a de tarde, á porta da fabrica,
ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,
paguei-lhe doces na calcada da Missão,
ficamos num banco do largo da Estátua,
afaguei-lhe as mãos...
falei-lhe de amor... e ela disse que não.
Andei barbudo, sujo e descalço,
como um mona-ngamba.
Procuraram por mim
"-Não viu...(ai, não viu...?) não viu Benjamim?"
E perdido me deram no morro da Samba.
Para me distrair
levaram-me ao baile do Sô Januario
mas ela lá estava num canto a rir
contando o meu caso
as mocas mais lindas do Bairro Operário.
Tocaram uma rumba - dancei com ela
e num passo maluco voamos na sala
qual uma estrela riscando o céu!
E a malta gritou: "Aí Benjamim !"
Olhei-a nos olhos - sorriu para mim
pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim.
Serão Menino
Autor: Viriato da Cruz
Angola
Na noite morna, escura de breu,
enquanto na vasta sanzala do ceu,
de volta das estrelas, quais fogareus,
os anjos escutam parábolas de santos...
na noite de breu,
ao quente da voz
de suas avós,
meninos se encantam
de contos bantus...
"Era uma vez uma corça
dona de cabra sem macho...
......................................
...Matreiro, o cágado lento
tuc...tuc...foi entrando
para o conselho animal...
("não tarde que ele chegou!")
Abriu a boca e falou -
deu a sentença final:
"-não tenham medo da força!
Se o leão o alheio retém
-luta ao Mal! Vitória ao Bem!
tire-se ao leão - dê-se à corça."
Mas quando lá fora
o vento irado nas frestas chora
e ramos xuxualha de altas mulembas
e portas bambas batem em massembas
os meninos se apertam de olhos abertos:
- Eué
- É cazumbi...
E a gente grande -
bem perto dali
feijão descascando para o quitende -
a gente grande com gosto ri...
Com gosto ri, porque ela diz
que o cazumbi males só faz
a quem não tem amor, aos mais
seres busca, em negra noite,
essa outra voz de cazumbi
essa outra voz - Felicidade...
A Sombra das Galera
Autor: Alexandre Dáskalos
Angola
Poesia, 1961
Ah! Angola, Angola, os teus filhos escravos
nas galeras correram as rotas do Mundo.
Sangrentos os pés, por pedregosos trilhos
vinham do sertão, lá do sertão, lá bem do fundo
vergados ao peso das cargas enormes...
Chegavam às praias de areias argênteas
que se dão ao Sol ao abraço do mar...
... Que longa noite se perde na distância!
As cargas enormes
os corpos disformes.
Na praia, a febre, a sede, a morte, a ânsia
de ali descansar
Ah! As galeras! As galeras!
Espreitam o teu sono tão pesado
prostrado do torpor em que mal te arqueias.
Depois, apenas pestanejam as estrelas,
o suplício de arrastar dessas correias.
Escravo! Escravo!
O mar irado, a morte, a fome,
A vida... a terra... o lar... tudo distante.
De tão distante, tudo tão presente, presente
como na floresta à noite, ao longe, o brilho
duma fogueira acesa, ardendo no teu corpo
que de tão sentido, já não sente.
A América é bem teu filho
arrancado à força do teu ventre.
Depois outros destinos dos homens, outros rumos...
Angola vais na sede da conquista.
Hoje no entrechoque das civilizações antigas
essa figura primitiva se levanta
simples e altiva.
O seu cãntico vem de longe e canta
ausências tristes de gerações passadas e cativas.
E onde vão seus rumos? Onde vão seus passos?
Ah! Vem, vem numa força hercúlea
gritar para os espaços
como os dardos do Sol ao Sol da vida
no vigor que em ti próprio reverberas:
- Não sou cativo!
A minha alma é livre, é livre
enfim!
Liberto, liberto, vivo...
Mais... porque esperas?
Ah! Mata, mata no teu sangue
o presságio da sombra das galeras!
Carta
Autor: Alexandre Dáskalos
Angola
Nova Lisboa, Angola, 1924 - Guarda, Portugal, 1961
Jesus Cristo Jesus Cristo
Jesus Cristo, meu irmão
Sou fio dos pais da terra
Tenho corpo p'ra sofrer
Boca para gritar
E comer o que comer
Os meus pés que vão
No chão
Minhas mãos são de trabalho
Em coisas que eu não sei
E não tenho nem apalpo
Trabalho que fica feito
Para o branco me dizer
"Obra de preto sem jeito"
E minha cubata ficou
Aberta à chuva e ao vento
Vivo ali tão nu e pobre
Magrinho como o pirão
Meus fios saltam na rua
Joga o rapa sai ladrão
Preto ladrão sem imposto
Leva porrada nas mãos
Vai na rusga trabalhar
Se é da terra vai para o mar
Larga a lavra deixa os bois
Morre os bois... e depois?
Se é caçador de palanca
Se é caçador de leão
Isso não faz mal nenhum
Lança as redes no mar
Não sai leão sai atum...
Jesus Cristo Jesus Cristo
Jesus Cristo meu irmão
Sou fio dos pais da terra
Um pouco de coração
De coração e perdão
Jesus Cristo meu irmão.
Manhã
Autor: Alexandre Dáskalos
Angola
Poesia, 1961
Erguida do fundo das águas plácidas
dum lago surge Mulher.
Limos na pasta dos cabelos
escondem o mistério dos olhos
olhando a curva do seu ventre.
Flutuando
entre sombras e reflexos
duma luz longínqua,
a forma dos braços
ganha o mais e mais fundo das águas.
Os seios erguidos
apontam ao longe
a aurora que vem.
Em volta,
musgos, líquens, algas,
em fosforescências arbóreas
de constelações que lembram
os recessos da vida.
Em plantas aquáticas, marítimas,
chegam-lhe da floresta
lutas de homens, desesperos e cansaços,
feras e povos divididos, misturados
confundidos
para a sua criação.
E tudo esquecido ou ignorado,
só no lago
o corpo erguido,
jovem,
abrindo nas sombras o seu perfil que nasce
o seu perfil de Mãe
dos Homens do futuro.
Maria
Autor: Alexandre Dáskalos
Angola
Do Tempo suspenso, 1998
No temporal da revolução
os baús de enxovais
preciosos
das raparigas casadoiras
naufragaram.
Ainda hoje me consolo
com as leituras de Marx.
E, no entanto,
perdi meu enxoval.
MARIA
Autor: Alexandre Dáskalos
Angola
(Nova Lisba, Angola, 1924-Guarda, Portugal 1962)
O meu amor está triste
e enche-me de cuidados.
Onde está a almofada dos bilros?
Já provaste os dendêns com açucar?
Não reduzas a valsa a um cheese-burguer
num pub desconhecido!
Ele disse-me - não canses os olhos nos bilros.
O meu amor está triste e enche-me de cuidados.
Poesias
Autor: Alexandre Dáskalos
Angola
Poesias, 1961
Quando eu morrer
não me dêem rosas
mas ventos.
Quero as ânsias do mar
quero beber a espuma branca
duma onda a quebrar e vogar.
Ah, a rosa dos ventos
a correrem na ponta dos meus dedos
a correrem, a correrem sem parar.
Onda sobre onda infinita como o mar
como o mar inquieto
num jeito
de nunca mais parar.
Por isso eu quero o mar.
Morrer, ficar quieto,
não.
Oh, sentir sempre no peito
o tumulto do mundo
da vida e de mim.
E eu e o mundo.
E a vida. Oh mar,
o meu coração
fica para ti.
Para ter a ilusão
de nunca mais parar.
Porto
Autor: Alexandre Dáskalos
Angola
Poesais, 1961
Havia nos olhos postos o sentido
de não vencerem distâncias.
Calados, mudos, de lábios colados no silêncio
os braços cruzados como quem deseja
mas de braços cruzados.
Os navios chegavam ao porto e partiam.
Os carregadores falavam da gente do mar.
A gente do mar dos que ficam em terra.
As mercadorias seguiam.
Os ventos, dispersos na alma do tempo,
traziam as novas das terras longínquas.
Segredavam-se em noites e dias
a todos os homens
em todos os mares
e em todos os portos
num destino comum.
Os navios chegavam ao porto
e partiam...
E Agora Só Me Restam
Autor: Maria Alexandre Dáskalos
Angola
in "Vozes poéticas da lusofonia", Sintra, 1999
e agora só me restam
os poetas gregos.
O silêncio diz - esquece.
E o espinho da rosa enterrado no peito
é meu.
Os deuses não assistiram a isto.
Em Torno da Minha Baía
Autor: Alda do Espírito Santo
S. Tomé e Príncipe
1963
Aqui, na areia,
Sentada à beira do cais da minha baía
do cais simbólico, dos fardos,
das malas e da chuva
caindo em torrente
sobre o cais desmantelado,
caindo em ruinas
eu queria ver à volta de mim,
nesta hora morna do entardecer
no mormaço tropical
desta terra de África
à beira do cais a desfazer-se em ruinas,
abrigados por um toldo movediço
uma legião de cabecinhas pequenas,
à roda de mim,
num voo magistral em torno do mundo
desenhando na areia
a senda de todos os destinos
pintando na grande tela da vida
uma história bela
para os homens de todas as terras
ciciando em coro, canções melodiosas
numa toada universal
num cortejo gigante de humana poesia
na mais bela de todas as lições
HUMANIDADE.
Onde Estão os Homens Caçados Neste Vento de Loucura
Autor: Alda do Espírito Santo
S. Tomé e Príncipe
1958
O sangue caindo em gotas na terra
homens morrendo no mato
e o sangue caindo, caindo...
Fernão Dias para sempre na história
da Ilha Verde, rubra de sangue,
dos homens tombados
na arena imensa do cais.
Aí o cais, o sangue, os homens,
os grilhões, os golpes das pancadas
a soarem, a soarem, a soarem
caindo no silêncio das vidas tombadas
dos gritos, dos uivos de dor
dos homens que não são homens,
na mão dos verdugos sem nome.
Zé Mulato, na história do cais
baleando homens no silêncio
do tombar dos corpos.
Aí, Zé Mulato, Zé Mulato.
As vítimas clamam vingança
O mar, o mar de Fernão Dias
engolindo vidas humanas
está rubro de sangue.
- Nós estamos de pé -
Nossos olhos se viram para ti.
Nossas vidas enterradas
nos campos da morte,
os homens do cinco de Fevereiro
os homens caídos na estufa da morte
clamando piedade
gritando p'la vida,
mortos sem ar e sem água
levantam-se todos
da vala comum
e de pé no coro de justiça
clamam vingança...
... Os corpos tombados no mato,
as casas, as casas dos homens
destruídas na voragem
do fogo incendiário,
as vias queimadas,
erguem o coro insólito de justiça
clamando vingança.
E vós todos carrascos
e vós todos algozes
sentados nos bancos dos réus:
- Que fizeste do meu povo?...
- Que respondeis?
- Onde está o meu povo?...
E eu respondo no silêncio
das vozes erguidas
clamando justiça...
Um a um, todos em fila...
Para vós, carrascos,
o perdão não tem nome.
A justiça vai soar,
E o sangue das vidas caídas
nos matos da morte
ensopando a terra
num silêncio de arrepios
vai fecundar a terra,
clamando justiça.
É a chamada da humanidade
cantando a esperança
num mundo sem peias
onde a liberdade
é a pátria dos homens...
Meditando
Autor: Lopito Feijoó
Angola
- engoli dum espinheiro um grande raminho -
&
da tese concebida ao prefácio por escrever
teço toc toc enquanto toco levemente o provir
d'outra gestão
daí a cor do sangue escasso caro irmão protestante
que tão bem partes os passeios que passeio
assim que passo passo a passo me ditando!
Arremessos
Autor: Filimone Meigos
no livro "Poema & Kalash in love"
"A despeito de questiúnculas, e a despropósito das overdoses do born in, sempre e sempre o futuro, nossa fúria cosmopolita mas agora falemos de ortodoxias.
De facto, mais do que a vermelha e a clássica são estes bolsares viscerais, mangungu d'ontem maningue chatos. Para os ruminantes, barrete e folhoso são o vai-vem obvio- implícito, basta o ruminar e bolsar sobre.
Exaustos de exaurir cifrões, estão os dias que nos transportam es-cru-GULOSA-mente (m) (por via erudita). No ponto a mesma musica: os fúnebres encontros para chorarmos um entre comuns: os irmãos foram-se de largada.
É verdade que o que somos tem sempre segmentos do que fomos.. Será verdade, também, que o xibalo e a palhota sirvam para nos nacionalizarem, só porque se u$a?
Ou seremos nos, há caso, mero cidadãos do ocaso?
Mas por criar, sobram-nos os mesmos filhos que vamos sendo dos nossos pais.
É verdade irrefutável que, se a história está a ser mal escrita, a minha geração dar-se-á ao desplante de reescreve-la, me ti cu lo sa mente(m)! "
Manuel Meigos Filimone nasceu na Beira a 4 de Marco de 1960.
Foi professor secundário, secretario de governador, jornalista e oficial das Forcas Armadas de Moçambique. É editor cultural do semanário Savana. Membro activo da AEMO, tem colaboração espalhada por vários orgãos de informação.
"Poema & Kalash in Love" é o seu primeiro publicado, colecção timbila No 14 da Associação dos Escritores Mocambicanos em 1995.
Morna
Autor: Daniel Filipe
Cabo Verde
A Ilha e a Solidão
E já saudade a vela, além.
Serena, a música esvoaça
na tarde calma, plúmbea, baça,
onde a tristeza se contém.
os pares deslizam embrulhados
de sonhos em dobras inefáveis.
(Ó deuses lúbricos, ousáveis
erguer, então, na tarde morta
a eterna ronda de pecados
que ia bater de porta em porta!)
E ao ritmo túmido do canto
na solidão rubra da messe,
deixo correr o sal e o pranto
- subtil e magoado encanto
que o rosto núbil me envelhece.
Viagem na Noite Longa
Autor: Mário Fonseca
Praia, Ilha de Santiago, Cabo Verde, 1939
Selô,1962
Na noite longa
minha alma
chora sua fome de séculos
Meus olhos crescem
e choram famintos de eternidade
até serem duas estrelas
brilhantes
no céu imenso.
E o infinito se detém em mim
Na noite longa
uma remotíssima nostalgia
afunda minha alma
E eu choro marítimas lágrimas
Enquanto meu desejo heróico
de engolir os céus
se alarga
e é já céu
Tenho então
a sensação esparsamente longa
de vogar no absoluto.
De Boca a Barlavento
Autor: Corsino Fortes
Mindelo, S.Vicente, Cabo Verde, 1933
Pão & fonema, 1974
I
Esta
a minha mão de milho & marulho
Este
o sol a gema E não
o esboroar do osso na bigorna
E embora
O deserto abocanhe a minha carne de homem
E caranguejos devorem
esta mão de semear
Há sempre
Pela artéria do meu sangue que g
o
t
e
j
a
De comarca em comarca
A árvore E o arbusto
Que arrastam
As vogais e os ditongos
para dentro das violas
II
Poeta! todo o poema:
geometria de sangue & fonema
Escuto Escuta
Um pilão fala
árvores de fruto
ao meio do dia
E tambores
erguem
na colina
Um coração de terra batida
E lon longe
Do marulho á viola fria
Reconheço o bemol
Da mão domestica
Que solfeja
Mar & monção mar & matrimónio
Pão pedra palmo de terra
Pão & património
Girassol
Autor: Corsino Fortes
in "Claridade", n°9, 1960
Girassol
Rasga a tua indecisão
E liberta-te.
Vem colar
O teu destino
Ao suspiro
Deste hirto jasmim
Que foge ao vento
Como
Pensamento perdido.
Aderido
Aos teus flancos
Singram navios.
Navios sem mares
Sem rumos
De velas rotas.
Amanheceu!
Orça o teu leme
E entra em mim
Antes que o Sol
Te desoriente
Girassol!
Pecado Original
Autor: Corsino Fortes
Cabo Verde
in "Claridade", 1960
Passo pelos dias
E deixo-os negros
Mais negros
Do que a noute brumosa.
Olho para as coisas
E torno-as velhas
Tão velhas
A cair de carunchos.
Só charcos imundos
Atestam no solo
As pegadas do meu pisar
E fica sempre rubro vermelho
Todo o rio por onde me lavo.
E não poder fugir
Não poder fugir nunca
A este destino
De dinamitar rochas
Dentro do peito...
A Pedra Filosofal
Autor: António Gedeão
" Eles nã sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpetuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
para-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos duma criança."
Escorraçados da Morte
Autor: Zeto Cunha Gonçalvez
Angola
in "Vozes poéticas da lusofonia", Sintra 1999
Escorraçados da morte
soletram
a nómada caligrafia dos pássaros.
Soletram - e soletram:
alfabeto de passos, um linguajar de setas
envenenadas petras.
Da Lua viemos, nascemos - obrigado,
Paizinho. Escorraçados da morte
a terra nos levará à água?
Sem mapas nem sentido
do regresso - nosso è o fogo
passo a passo em rições guardado.
E as matas - para ainda sobreviver.
Escorraçados da morte
soletram
a nómada caligrafia dos pássaros.
Soletram - e soletram:
alfabeto de passos, um linguajar
de setas
envenenadas pedras.
Os Ombros Modulam o Vento
Autor: Zeto Cunha Gonçalvez
Angola
in "Vozes poéticas da lusofonia", Sintra 1999
Entristece
a tua tristeza - e canta
(os ombros modulam o vento
modulam a noite
a soberana voz
dos horizontes)
entristece
a tua tristeza - e canta
Vem, Cacimbo
Autor:
Poetas angolanos, 1962
Estende teus dedos anelados sobre a minha carapinha
derrama a tua inconsciente tranquilidade
sobre a minha angústia submergida.
Vem, cacimbo
eu quero ver os cafeeiros ao peso dos bagos vermelhos
endireita os troncos vencidos dos bambus
coroa os cumes altos das serras do Bailundo
limpa a visão empoeirada dos comboios que descem para Benguela
nimba poeticamente os horizontes dos camionistas de Angola.
Vem, cacimbo
debruça-te cuidadosamente sobre as plantas da madrugada,
destrói a angústia resignada das gentes da minha terra
abre-lhes os horizontes dos cantos de esperança.
Vem, cacimbo
Derrama a tua inquieta saciedade sobre a minha natureza
a esta hora empoeirada com o barulho das esquinas
com o cheiro a óleo sujo dos automóveis
e com a visão daquele nosso amigo
cujo ordenado são quinze escudos diários
irremediavelmente caido sobre a grama do jardim
O cacimbo
eu quero percorrer teus campos sossegados
orquestrados pela alegria do beija-flor.
VI. Por Uma Sereia de Treva
Autor: Francisco Xavier Guita Júnior (Guita Jr.)
no livro "O agora e o depois das coisas (1990-1992)", de Guita Jr., edição da AEMO, colecção Início, No. 7. Publicado em 1997, página16:
sem segredos melhor que nós
ninguém sabe a morte a dois
e como heróis subterrâneos que somos
procuramos a vida por entre as trevas
navegamos algas ao amanhecer
para encontrar um irmão pelas mãos
empresta-me a tua máscara quero saborear
esta melodia ter nos olhos a cor
e antes que o dilúvio se propague
nademos nas profundezas do asco
talvez surja uma sereia de treva
onde possamos pousar o coração
que em fragmentos se dissolve no iodo
da atmosfera que transportamos às costas
sem segredo melhor que nós
ninguém por entre a fresta da porta
da noite apalpa este enigma:
prestar contas ao silêncio dos olhos
e conter a náusea por um instante
ultrapassando o passado hóspede da masmorra
da presente folia ardente transeunte
Francisco Xavier Guita Júnior (Guita Jr.) nasceu em Inhambane a 14 de Março de 1964. Professor de Português, membro fundador e coordenador do XIPHEFO, caderno literário que surgiu em 1987 em Inhambane, onde foram publicados os primeiros poemas de Guita Jr.
VIII. Psicoalteração do Rato
Autor: Guita Jr.
Do livro "O agora e o depois das coisas 1990-1992", página 18
rói o rato a roupa
na corda ao fim da rua
e arrota
num ror de razão o rato
rouba arroz ao porto do povo
e roto troca o troco
por trigo trancando-se atrás
do rasto raro e fica rico o rato
e por um triz não é trazido
de rastos pela rua a trote
mas chega ao trono e trás!
Rato sem roldana trás!... catrapuz!
Sem ruga roga a quem ri
rato rói rato até à raiz
mais radical a ratazana tradicional
num golpe de rins reluz ao raiar
de um enorme sol de luz
e ao farejar o rumorejar do país
corre pr'o Rand
pela ração sem retalhos
e quando regressa rola ruela
à risca e acende o rastilho
e não se rala por quem se roa
o rato resignado recolhe a rede
e rema rompendo as rugas
do mar sem rumo
e aí sem renitência reina
sem rusga nem ratoeira
e não se rala o rato roedor
rói até rédea
rato recto faz do rito revolução
XIV. No Jardim da Noite Com Estrelas de Verão
Autor: Guita Jr.
Do livro "O agora e o depois das coisas 1990-1992", página 26
para a Carla
agora órfão ou castrado
perdoadas estão as naus de da Gama
e contemplo só estrelas e flores onde tragava
a humilhação e o chicote do patrão?
vasculho as ruas da cidade
na procura do subterfúgio a nu
é inevitável o retorno
haverá fantasmas em meu redor
há micaias em meu corpo
que deflagram como minas
cansadas dos silêncios
quando sonho alegrias
acendo uma vela no peito
sobre o castiçal do coração
e volto a desaguar na escuridão
e apalpo e amarfanho a agonia
no dorso da noite
porém não tenho armas
para falar de amor
é esta a loucura da minha intenção
Carta Dum Contratado
Autor: António Jacinto
Luanda, 1924-
Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Uma carta que dissesse
Deste anseio
De te ver
Deste receio
De te perder
Deste mais que bem querer que sinto
Deste mal indefinido que me persegue
Desta saudade a que vivo todo entregue...
Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Uma carta de confidências íntimas,
Uma carta de lembranças de ti,
De ti
Dos teus lábios vermelhos como tacula
Dos teus cabelos negros como diloa
Dos teus olhos doces como macongue
Dos teus seios duros como maboque
Do teu andar de onça
E dos teus carinhos
Que maiores não encontrei por ai...
Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Que recordasse nossos dias na capopa
Nossas noites perdidas no capim
Que recordasse a sombra que nos caia dos jambos
O luar que se coava das palmeiras sem fim
Que recordasse a loucura
Da nossa paixão
E a amargura da nossa separação...
Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Que a não lesses sem suspirar
Que a escondesses de papai Bombo
Que a sonegasses a mamãe Kiesa
Que a relesses sem a frieza
Do esquecimento
Uma carta que em todo o Kilombo
Outra a ela não tivesse merecimento...
Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Uma carta que ta levasse o vento que passa
Uma carta que os cajus e cafeeiros
Que as hienas e palancas que os jacarés e bagres
Pudessem entender
Para que se o vento a perdesse no caminho
Os bichos e plantas
Compadecidos de nosso pungente sofrer
De canto em canto
De lamento em lamento
De farfalhar em farfalhar
Te levassem puras e quentes
As palavras ardentes
As palavras magoadas da minha carta
Que eu queria escrever-te amor
Eu queria escrever-te uma carta...
Mas, ah, meu amor, eu não sei compreender
Por que é, por que é, por que é, meu bem
Que tu não sabes ler
E eu - Oh! Desespero! - não sei escrever também!
Castigo Pró Comboio Malandro
Autor: António Jacinto
Luanda, 1924-
Poemas, 1961
Esse comboio malandro
passa
passa sempre com a forca dele
ué ué ué
hii hii hii
te-quem-tem te-que-tem te-quem-tem
o comboio malandro
passa
Nas janelas muita gente
ai bo viaje
adeujo homéé
n'ganas bonitas
quitandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda pra vender
hii hii hii
aquele vagon de grades tem bois
múu múu múu
tem outro
igual como este de bois
leva gente,
muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste como os bois
gente que vai no contrato
Tem bois que morre no viaje
mas o preto não morre
canta como é criança
"Mulonde iá késsua uádibalé
uádibalé uádibale...'"
esse comboio malandro
sòzinho na estrada de ferro
passa
passa
sem respeito
uéué ué
com muito fumo na trás
hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
Castigo Pró Comboio Malandro
Autor> António Jacinto
Luanda, 1924
Este poema do António Jacinto tem uma versão mais longa, musicada e divulgada por Fausto:
Esse comboio malandro
passa
passa sempre com a forca dele
[...]
passa
passa
sem respeito
uéué ué
com muito fumo na trás
hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
Comboio malandro
O fogo que sai no corpo dele
Vai no capim e queima
Vai nas casas dos pretos e queima
Esse comboio malandro
Já queimou o meu milho
Se na lavra do milho tem pacacas
Eu faço armadilhas no chão,
Se na lavra tem kiombos
Eu tiro a espingarda de kimbundo
E mato neles
Mas se vai lá fogo do malandro
- Deixa!-
UÉ ué ué
Te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
Só fica fumo,
Muito fumo mesmo.
Mas espera só
Quando esse comboio malandro descarrilar
E os brancos chamar os pretos p´ra empurrar
Eu vou
Mas não empurro
- Nem com chicote -
Finjo só que faço forca
Aka!
Comboio malandro
Você vai var só o castigo
Vai dormir mesmo no meio do caminho.
Declaração
Autor: António Jacinto
Luanda 28/9/1924
1953
As aves, como voam livremente
num voar de desafio!
Eu te escrevo, meu amor,
num escrever de libertação.
Tantas, tantas coisas comigo
adentro do coração
que só escrevendo as liberto
destas grades sem limitação.
Que não se frustre o sentimento
de o guardar em segredo
como liones, correm as águas do rio!
corram límpidos amores sem medo.
Ei-lo que to apresento
puro e simples - o amor
que vive e cresce ao momento
em que fecunda cada flor.
O meu escrever-te é
realização de cada instante
germine a semente, e rompa o fruto
da Mãe-Terra fertilizante.
Era Uma Vez...
Autor: António Jacinto
Luanda, 1924-
Poemas, 1961
Vovo Bartolomé, ao sol que se coava da mulembeira
por sobre a entrada da casa de chapa,
enlanguescido em carcomida cadeira
vivia
- relembrando-a -
a história de Teresa mulata
Teresa Mulata!
essa mulata Teresa
tirada lá do sobrado
por um preto d'Ambaca
bem vestido,
bem falante,
escrevendo que nem nos livros!
Teresa Mulata - a
lumbramento de muito moço -
pegada por um pobre d'Ambaca
fez passar muitas conversas
andou na boca de donos e donas...
Quê da mulata Teresa?
A história da Teresa mulata...
Hum...
Vovo Bartolomé enlanguescido em carcomida cadeira adormeceu
o sol coando das mulembeiras veio brincar com as moscas nos lábios
ressequidos que sorriem
Chiu! Vovo tá dormindo!
O moço d'Ambaca sonhando...
Monangamba
Autor: António Jacinto
Luanda, 1924-
Poemas, 1961
Naquela roca grande não tem chuva
é o suor do meu rosto que rega as plantações;
Naquela roca grande tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue feitas seiva.
O café vai ser torrado
pisado, torturado,
vai ficar negro, negro da cor do contratado.
Negro da cor do contratado!
Perguntem as aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:
Quem se levanta cedo? quem vai a tonga?
Quem traz pela estrada longa
a tipoia ou o cacho de dendém?
Quem capina e em paga recebe desdem
fuba podre, peixe podre,
panos ruins, cinquenta angolares
"porrada se refilares"?
Quem?
Quem faz o milho crescer
e os laranjais florescer
- Quem?
Quem dá dinheiro para o patrão comprar
maquinas, carros, senhoras
e cabeças de pretos para os motores?
Quem faz o branco prosperar,
ter barriga grande - ter dinheiro?
- Quem?
E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
- "Monangambééé..."
Ah! Deixem-me ao menos subir ás palmeiras
Deixem-me beber maruvo, maruvo
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras
- "Monangambéée...'"
Vadiagem
Autor: António Jacinto
Luanda, 1924-
Poemas, 1961
Naquela hora já noite
quando o vento nos traz mistérios a desvendar
musseque em fora fui passear as loucuras
com os rapazes das ilhas:
Uma viola a tocar
o Chico a cantar
(que bem que canta o Chico!)
e a noite quebrada na luz das nossas vozes
Vieram também, vieram também
cheirando a flor de mato
- cheiro gravido de terra fértil -
as moças das ilhas
sangue moço aquecendo
a Bebiana, a Teresa, a Carminda, a Maria.
Uma viola a tocar
o Chico a cantar
a vida aquecida com o sol esquecido
a noite é caminho
caminho, caminho, tudo caminho serenamente negro
sangue fervendo
cheiro bom a flor de mato
a Maria a dançar
(que bem que dança remexendo as ancas!)
E eu a querer, a querer a Maria
e ela sem se dar
Vozes dolentes no ar
a esconder os punhos cerrados
alegria nas cordas da viola
alegria nas cordas da garganta
e os anseios libertados
das cordas de nos amordaçar
Lua morna a cantar com a gente
as estrelas se namorando sem romantismo
na praia da Boavista
o mar ronronante a nos incitar
Todos cantando certezas
a Maria a bailar se aproximando
sangue a pulsar
sangue a pulsar
mocidade correndo
a vida
peito com peito
beijos e beijos
as vozes cada vez mais bebadas de liberdade
a Maria se chegando
a Maria se entregando
Uma viola a tocar
e a noite quebrada na luz do nosso amor...
Moçambicanto 1
Autor:Gulamo Khan
Gulamo Khan nasceu em Maputo a 11 de Maio de 1952.
Foi primeiro, locutor na Rádio Clube de Moçambique e, mais tarde, jornalista.
Era adido de Imprensa na Presidência da República, quando morreu a 19 de Outubro de 1986, no acidente de aviação que vitimou também Samora Machel, em Mbuzini, na África do Sul.
O livro "Mocambicanto" é uma recolha dos seus textos, elaborada após a sua morte, por Albino Magaia, Calane da Silva, José Craveirinha e Julio Navarro. Uma edição da AEMO, colecção "timbila", no. 8.
"céleres as águas
zambezeiam pela memória
das almadias do silêncio
nem o zumbido da cigarra
me entontece
nem o troar do tambor
me ensurdece
as vozes que são
sulcos das nossas esperanças
Oh pátria
Moçambiquero-te
neste alumbramento
e amar-te
devo-o à carne e ao nervo
deglutidos em revolta.
Da enxada e do martelo
é o verso escrito na palma
da tua mão punho fechado
que nas alavancas das horas
faz refulgir o aço
analfabetamente parido
Cavador maldito
pronto a decepar o tronco
deste imbondeiro tão paria
carcomido pelas talecuas
sugadoras do seu sangue
es o veneno da nhoca cuspideira
queimando as migalhas bélicas
postadas de cócoras no caminho
dos simples
assim altivo ergues o teu nome
num pais ainda
de nadas e famélicos
desbravando os crápulas bem como os satanhocos.
Sei da Pátria
o nome erguido
a estrela tatuada
no corpo do Indico
uma timbila
canção guerreira"
Casa da Justiça
Autor: Grandal Nkepe
in "Casa da Justiça", Edição do Autor, 1994
Página 48:
" Corri para a cozinha à procura da Mariana e pedi-lhe para cozinhar depressa. Os grandes pensam que os pequenos não sofrem e que eu não tenho coração só porque ontem fui buscar os óculos para ler os correios, vim a correr e deixei-os cair no chão, parti- os. Por outro lado, não ando sempre a correr. Assim, escrevi numa folha - Vou-me enforcar, e enforquei-me, mas como nunca mais morria, escondi-me com a corda ao pescoço em cima da copa do cajueiro da aldeia e daí podia ver Mariana correr para a esquerda e para a direita, para a frente e para trás, aparecer e desaparecer, chorava e chamava:
- Bruno Capanema! Bru...no! uno! Bruno Ca...pa...nema!...
Sempre pensei que Mariana é como Nossa Senhora, é boa e gosta de mim. Henriqueta, pelo contrário, é má e dizia:
- Aquele pateta inventou mais uma das suas!
- Basílio, pelo seu lado, não chorava, porque sabia que eu estava na copa do cajueiro com a minha corda esticada de sisal.
Comecei a ter medo de voltar para baixo sem me enforcar."
pagina 126:
"Excelência, a minha cabeça não é uma batata! Sou um gajo de sorte. Deixe-me apertar-lhe a mão; deixe-me viver à tripa forra para levar uma vida mais folgada, a correr o país de lés a lés, embrulhado nas mulheres com palavreado, um oficio em que posso dar à língua e que nada tem que ver com ratos nem canoas.
Eu sou um tipo afortunado, um presunto no rio.
O meu primeiro passo para ganhar a vida era ao frio, à poeira, ao barulho; tinha de partir de manha sem tomar chá, para receber uma lição de pesado fardo! Não me ralo nada. Estive vinte anos na guerra; não voltam, esses vinte anos, nem que assobie por eles, como não se pode fazer crescer as árvores; tem-se de esperar que Deus todo poderoso as faca crescer.
Eu sou um autentico homem da sociedade; ninguém é capaz de me conhecer, mas estou armado em palhaço, é o que estou a dizer. Acabei dois dias a rir. Essa é boa! O resto talvez seja o mais importante.
- Mete-me esse malandro no calabouço! - dizia o chefe, por mais que eu o tratasse por senhor chefe."
Aeroporto
Autor: Rui Knopfli
in "O monhé das cobras"
Página 56
É o fatídico mês de Março, estou
no piso superior a contemplar o vazio.
Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon
e olha-me, obliquamente, nos olhos:
Não voltas mais? Digo-lhe só que não.
Não voltarei, mas ficarei sempre,
algures em pequenos sinais ilegíveis,
a salvo de todas as futurologias indiscretas,
preservado apenas na exclusividade da memória
privada. Não quero lembrar-me de nada,
só me importa esquecer e esquecer
o impossível de esquecer. Nunca
se esquece, tudo se lembra ocultamente.
Desmantela-se a estátua do Almirante,
peça a peça, o quilómetro cem durando
orgulhoso no cimo da palmeira esquiva.
Desmembrado, o Almirante dorme no museu,
o sono do bronze na morte obscura das estátuas
inúteis. Desmantelado, eu sobreviverei
apenas no precário registo das palavras.
Mangas Verdes
Autor: Rui Knopfli, 1972
"Mangas verdes com sal
Mangas verdes com sal
sabor longiquo, sabor acre
da infância a canivete repartida
no largo semicírculo da amizade.
Sabor lento, alegria reconstituída
no instante desprevenido,
na maré-baixa,
no minuto da suprema humilhação.
Sabor insinuante que retorna devagar
ao palato amargo,
à boca ardida,
à crista do tempo,
ao meio da vida."
Matinés do Scala
Rui Knopfli
in "O monhé das cobras", edição da Caminho, 1997, página 43
Obrigatoriamente aos sábados à tarde.
O episódio da série, os desenhos animados
e a coboiada. Ao intervalo, a surtida
ao Hazis para comprar scones e laranjada.
Devolvida a senha de entrada, recomeçava
o espectáculo. Na fila Z, rente
à pantalha, gesticulante, o Piricas
regia a partitura. Hopalong Cassidy
jogava à porrada, sem que o sacana
do chapéu de aba larga lhe caísse,
alguma vez, da pinha. Empinando,
enfunadas as crinas ondulantes, palominos
amestrados completavam o circo. Mas,
neste embuste, o único herói autêntico
era, no comando das operações, o Piricas.
Miradouro
Autor: Rui Knopfli
in "O monhé das cobras", edição da Caminho, 1997, páginas 45-6
Entre a rampa e o caracol da barreira,
o picadeiro ideal para o exibicionismo
laurentino, ao fim da tarde, passeio raso,
sobranceiro à baía e à Catembe.
Enquanto a malta ia e vinha, até ser Marrocos.
Pavoneavam-se as meninas e nós,
idem, flexionando peito e músculo,
miradas discretas em redor. Rotina
diária, sempre cumprida sem atropelos.
Mesmo com a ruidosa chegada do Cagalhim,
a cavalo na sua desconjuntada carrinha Ford,
a tossir e a resfolegar, cansada das correrias
da véspera. Presumido herói, o Cagalhim
era só o bobo daquela festa. Caçador furtivo
e nocturno, sua maior aventura -
rezava a lenda - fora a de ter enfrentado,
sob o holofote, um cocone que, falhado o tiro,
o terá colhido, arrancando-lhe da cara os óculos.
De borco, espezinhado, dizem que o Cagalhim,
faca em punho, o teria capado. Pior ainda,
que vexado, o boi-cavalo, envergando os óculos
do caçarreta, até hoje percorre os matos
em busca dos testículos perdidos. Entretanto,
no Miradouro, para gáudio do pessoal,
o Cagalhim exibe, com alarido, os que não tem.
Naturalidade
Autor: Rui Knopfli
in "O País dos Outros", 1959
"Naturalidade
Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
europeias
e europeu me chamam.
Não sei se o que escrevo tem a raiz de algum
pensamento europeu.
É provável... Não. É certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Indico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.
Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com longos rios langues e sinuosos,
uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando."
Pedra no Caminho
Autor: Rui Knopfli
no livro Reino Submarino, 1962
" A pedra no caminho"
"Toma essa pedra em tua mão,
toma esse poliedro imperfeito,
duro e poeirento. Aperta em
tua mão esse objecto frio,
redondo aqui, acolá acerado.
redondo aqui, acolá acerado.
Segura com força esse granito
bruto. Uma pedra, uma arma
em tua mão. Uma coisa inócua,
todavia poderosa, tensa,
em sua coesão molecular,
em suas linhas irregulares.
Ao meio-dia em ponto, na avenida
ensolarada, tu és um homem
um pouco diferente. Ao meio-dia
na avenida tu és um homem
segurando uma pedra. Segurando-a
com amor e raiva."
"Mabogue ya M'bizwa"
Autor: Hortencio Langa
Capítulo I no livro "Magoda"
Hortencio Langa nasceu a 23 de Marco em Manjacaze. Viveu a sua infância e parte da adolescência no Chibuto, onde começou a interessar-se pelas artes, principalmente pela musica e pintura. É pela via da arte musical que se inicia na criação literária sob forma de composição poética para canção, tanto em língua portuguesa como em língua tsonga. Tem artigos publicados sobre temas culturais em suplementos literários. "Magoda", escrito em 1986, é o seu primeiro livro. Edição da Associação dos Escritores Mocambicanos, colecção Karingana, No. 15.
"Conta-se que, naquele tempo, o rei Mabogue para se prevenir da conspiração dos chefes das tribos vizinhas, ele próprio se disfarçou e, incógnito, penetrou no "ninho das víboras", pode assim dizer-se, pois os N'Gongwe eram uma tribo aguerrida e de terrível ferocidade. Barbudos, grossos como touros, alimentavam-se de carne e leite azedo, assim o exigia a sua natureza. Adoravam os deuses das águas, os seus feiticeiros eram consagrados no fundo dos rios onde permaneciam longo tempo dedicando-se ao estudo dos mistérios da vida e da morte. De lá, só saiam depois de prolongados rituais à beira das águas. Ao fim de longos dias e longas noites de danças e preces, emergiam numa noite de luar como monstros de matope, imundos e grotescos. Quando o lodo escorria dos seus corpos reluziam então as escamas, corais e corpúsculos aquáticos encrustados na sua pele exalando um cheiro a peixe.
Mas Mabogue ya M'bizwa também possuía o segredo da magia dos deuses da floresta sagrada onde os reis seus antepassados, em peregrinações, iam buscar coragem apondo as suas armas em riste na boca de perigosos felinos e eram vacinados por autenticas cobras mamba para alcançarem o poder da invulnerabilidade."
Topas-ou-Viras
Date: Sun, 27 Apr 1997 15:02:13 gmt+0200 From: Joaquim Falé
Autor: Hortencio Langa
in "Magoda", capítulo V, páginas 30-31
"O espírito farrista e brincalhão dos seus novos amigos depressa se revelou, quando certo dia um mecânico conhecido por Juca Mulato caiu de borco ao sair do banco onde estava sentado e para sua grande surpresa, já no chão, viu-se com os atacadores das botas atados um no outro. No bar, a gargalhada foi geral, expandindo-se à esplanada onde os miúdos que jogavam "matraquilhos" sacudiam-se em risos convulsivos.
A raiva com que ficou Juca Mulato, podia medir-se pela maneira como se desembaraçou das botas, descalçando-as, para se precipitar sobre os miúdos. Mas imaginar o que teria acontecido se uma camioneta não tivesse estacionado entre ele e os miúdos em debandada, tolhendo- lhe o passo, guinando numa travagem brusca para evitar um atropelamento fatal... é difícil senão mesmo impossível.
Juca, ainda sufocado pela sede de vingança, dirigiu-se resfolegando à mesa de "matraquilhos" e introduziu as bolas ainda por jogar baliza adentro, sob o olhar de protesto dos miúdos que ofegavam a salvo, protegidos pela distância."
Noite
Autora: Alda Lara
Angola
Noites africanas langorosas,
esbatidas em luares...,
perdidas em mistérios...
Ha cantos de tunguruluas pelos ares!...
Noites africanas endoidadas,
onde o barulhento frenesi das batucadas,
poe tremores nas folhas dos cajueiros...
Noites africanas tenebrosas...,
povoadas de fantasmas e de medos,
povoadas das histórias de feiticeiros
que as amas-secas pretas,
contavam aos meninos brancos...
E os meninos brancos cresceram,
e esqueceram
as histórias...
Por isso as noites são tristes...
endoidadas, tenebrosas langorosas,
mas tristes...como o rosto gretado,
e sulcado de rugas, das velhas pretas...,
como o olhar cansado dos colonos,
como a solidao das terras enormes
mas desabitadas...
é que os meninos brancos...
esqueceram as histórias,
com que as amas-secas pretas
os adormeciam,
nas longas noites africanas...
Os meninos brancos...esqueceram!...
Prelúdio
Autor: Alda Lara
Angola
Pela estrada desce a noite...
Mãe-Negra, desce com ela...
Nem buganvilias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guisos,
nas suas mãos apertadas.
Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.
Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro...
Tem voz de noite, descendo,
de mansinho, pela estrada...
Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?...
Que é feito desses meninos
que ela ajudou a criar?...
Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?...
Mãe-Negra não sabe nada...
Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo
Mãe-Negra!
Os teus meninos cresceram,
e esqueceram as histórias
que customavas contar...
Muitos partiram p'ra longe,
quem sabe se hão-de voltar!...
So tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaço,
bem quieta, bem calada.
é tua a voz deste vento,
desta saudade descendo,
de mansinho pela estrada...
Presença Africana
Autora: Alda Lara
Benguela, Angola
E apesar de tudo,
ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sagrou.
Mãe-Africa!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou,
a Irmã-Mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto...
A dos coqueiros,
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendem
nascendo dos abraços das palmeiras...
A do sol bom, mordendo
o chão das Ingombotas...
A das acácias rubras,
salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...
Sim!, ainda sou a mesma.
A do amor transbordando
pelos carregadores do cais
suados e confusos,
pelos bairros imundos e dormentes
(Rua 11!...Rua 11!...)
pelos meninos
de barriga inchada e olhos fundos...
Sem dores nem alegrias,
de tronco nu e musculoso,
a raça escreve a prumo,
a força destes dias...
E eu revendo ainda, e sempre, nela,
aquela
longa história onconsequente...
Minha terra...
Minha, eternamente...
Terra das acácias, dos dongos,
dos colios baloiçando, mansamente...
Terra!
Ainda sou a mesma.
Ainda sou a que num canto novo
pura e livre,
me levanto,
ao aceno do teu povo!
Regresso
Autora: Alda Lara
Angolana
Esta poesia foi escrita em 1948, quando a autora viveu alguns anos em Coimbra e Lisboa, onde se formou em medicina. Voltou, na verdade, e faleceu em 1962, em Cambambe, ANGOLA.
Quando eu voltar,
que se alongue sobre o mar,
o meu canto ao Creador!
Porque me deu, vida e amor,
para voltar...
Voltar...
Ver de novo baloicar
a fronde magestosa das palmeiras
que as derradeiras horas do dia,
circundam de magia...
Regressar...
Poder de novo respirar,
(oh!...minha terra!...)
aquele odor escaldante
que o humus vivificante
do teu solo encerra!
Embriagar
uma vez mais o olhar,
numa alegria selvagem,
com o tom da tua paisagem,
que o sol,
a dardejar calor,
transforma num inferno de cor...
Não mais o pregão das varinas,
nem o ar monotono, igual,
do casario plano...
Hei-de ver outra vez as casuarinas
a debruar o oceano...
Não mais o agitar fremente
de uma cidade em convulsão...
não mais esta visão,
nem o crepitar mordente
destes ruidos...
os meus sentidos
anseiam pela paz das noites tropicais
em que o ar parece mudo,
e o silêncio envolve tudo
Sede...Tenho sede dos crepusculos africanos,
todos os dias iguais, e sempre belos,
de tons quasi irreais...
Saudade...Tenho saudade
do horizonte sem barreiras...,
das calemas traiçoeiras,
das cheias alucinadas...
Saudade das batucadas
que eu nunca via
mas pressentia
em cada hora,
soando pelos longes, noites fora!...
Sim! Eu hei-de voltar,
tenho de voltar,
não ha nada que mo impeca.
Com que prazer
hei-de esquecer
toda esta luta insana...
que em frente estah a terra angolana,
a prometer o mundo
a quem regressa...
Ah! quando eu voltar...
Hão-de as acacias rubras,
a sangrar
numa verbena sem fim,
florir so para mim!...
E o sol esplendoroso e quente,
o sol ardente,
ha-de gritar na apoteose do poente,
o meu prazer sem lei...
A minha alegria enorme de poder
enfim dizer:
Voltei!...
Rumo
Autor: Alda Lara
Angolana
é tempo companheiro!
Caminhemos...
Longe, a Terra chama por nos,
e ninguem resiste á voz
da Terra...
Nela,
o mesmo sol ardente nos queimou
a mesma lua triste nos acariciou,
e se tu es negro,
e eu sou branca,
a mesma Terra nos gerou!
Vamos companheiro!
é tempo...
Que o meu coração
se abra á magoa das tuas maguas
e em prazer dos teus prazeres
irmão:
que as minhas mãos brancas
se estendam
para estreitar com amor
as tuas longas mãos negras...
E o meu suor,
quando rasgarmos os trilhos
de um mundo melhor.
Vamos!
que outro aceno nos inflama...
Ouves?
é a Terra que nos chama...
E é tempo companheiro!
Caminhemos...
Canção da Angonia
Autor: Gouvea Lemos
Gouvea Lemos nasceu em Lamego, Portugal. Foi para Moçambique em 1949 aos 25 anos de idade. Inicialmente começou a trabalhar na área contábil da Textafrica na Soalpo e começou ainda de lá a escrever as suas primeiras linhas como correspondente, da região do Chimoio, para o Diário de Moçambique da Beira, o jornal dos Padres. Depois passou por vários jornais de Moçambique, tendo como um dos grandes feitos ser um dos fundadores do jornal semanal Tribuna, um dos marcos do jornalismo independente de Moçambique colónia. Nos últimos anos de Moçambique foi o Director de Redacção do Noticias da Beira. José Craveirinha, Rui Knopfli, Fernando Couto (pai de Mia Couto) e muitos outros, juntos com G.L. viveram grandes momentos históricos do jornalismo moçambicano.
Em 1972, já cansado da ditadura colonial e das pressões de orgãos como os da PIDE e da censura, resolveu migrar para o Brasil. Já com problemas cardíacos e com a aflição de ter que deixar a sua Pátria adoptada, veio a falecer, três meses após a sua chegada ao Brasil, no Rio de Janeiro. Sei que G.L. nasceu em Portugal mas sei como ele sentia-se Moçambicano e como sofreu pelas injustiças dos tempos da ditadura colonialista. Sei bem disso pois como filho convivi com muitas das suas aflições. José Paulo G. Lemos
Visto a camisa lavada
e vou para o contrato.
Quem de nos,
quem de nos ira voltar?
Vinte e quatro luas,
sem ver as mulheres,
sem ver a minha terra,
sem ver o meu boi.
Quem de nos,
Quem de nos ira morrer?
Visto a camisa lavada
e vou para o contrato,
trabalhar lá longe.
Vou para além da montanha,
para lá do mato,
onde some o rio.
Quem de nos,
Quem de nos ira voltar?
Quem de nos,
Quem de nos ira morrer?
Veste a camisa lavada,
e hora de ir ao contrato.
Entra, irmão, no vagão,
vamos andar noite e dia.
Quem de nos.
Quem de nos ira voltar?
Quem de nos,
quem de nos ira morrer?
Quem de nos,
Quem de nos ira voltar
e ver as mulheres,
e ver nossas terras
e ver nossos bois?
Quem de nos ira morrer?
Quem de nos?
Quem de nos?
Menir Barroco
Autor: Manuel Sousa Lobo
Moçambique
brilham trutas na brasa um corpo na pira
arde ao ritmo de pés vísceras
de uma virgem rodando
Avoé Terra!
ânfora escorre mel
mãos azeite vão olear ombros
no capim cerveja derramaram espuma
Avoé Mandiceu!
raça grega aroma de ramisco
ostras e olhos de anho em bandejas de prata
o bode berra quer fugir da faca
Avoé Baco!
incendiou-se o colmo de um telhado
a velha já não tece cavalos desfazem
nuvens lábios sobram cinzas
Avoé Gudrun!
olhar para oriente chegaram de Damasco
vinhos muito leves frutos muito secos
Walada omíada princesa era ruiva e escrevia
Avoé Profeta!
rosado mármore açafrão café
engrenagem que chia bustos capitéis
o verbo a honra a espada roldanas degraus
Avoé Cruz!
10 caravelas indo 100 brâmanes de cócoras
1000 índios sem orelhas
10000 negros em fila
Avoé Esfera!
deitada uiva a rainha o morto sai
de um espelho Queluz tem labirintos castanholas
o infante traz coelhos para a sala do trono
Avoé Vazio!
Arte Poética
Autor: João Maimona
Angola
1979
Que erosão
no choque genésico das marés
de encontro às pedras habitadas.
Cai areia na areia.
Assim o gasto da palavra
limando os duros conformismos
libertando as verdades mais remotas
tão necessárias ao fruir dos gestos.
As Muralhas da Noite
Autor: João Maimona
Angola
A mão ia para as costas da madrugada
As mulheres estendiam as janelas da alegria
nos ouvidos onde não se apagavam as alegrias.
Entre os dentes do mar acendiam-se braços.
Os dias namoravam sob a barca do espelho.
Havia uma chuva de barcos enquanto o dia tossia.
E da chuva de barcos chegavam colchões,
camas, cadeiras, manadas de estradas perdidas
onde cantavam soldados de capacetes
por pintar no coração da meia-noite.
Eram os barcos que guardavam as muralhas
da noite que a mão ouvia nas costas
da madrugada entre os dentes do mar.
Memória
Autor: João Maimona
Angola
Baloiçando nos escombros de teu itinerário
saberás que os gados constroem estradas.
E quando a mão dezlizar pela margem
das cicatrizes que se afundam na noite
saberás que a tua mão viaja para a
colina dos dias sem escombros
e saberás que no berço da noite jaz a luz
drogada e ouvida pela cruz sobre quem viajaste.
Poema para Carlos Drummond de Andrade
Autor: João Maimona
Angola
É útil redizer as coisas
as coisas que tu não viste
no caminho das coisas
no meio do teu caminho.
Fechaste os teus dois olhos
ao bouquet das palavras
que estava a arder na ponta do caminho
o caminho que esplende os teus dois olhos.
Anuviaste a linguagem de teus olhos
diante da gramática da esperança
escrita com as manchas de teus pés descalços
ao percorrer o caminho das coisas.
Fechaste os teus dois olhos
aos ombros do corpo do caminho
e apenas viste uma pedra
no meio do caminho.
No caminho doloroso das coisas.
Alto Como o Silêncio
Autor: Maria Manuela Margarido
Ilha do Príncipe 1925-
Alto Como o Silêncio,1957
A ilha te fala
de rosas bravias
com pétalas
de abandono e medo.
No fundo da sombra
bebendo por conchas
de vermelha espuma
que mundos de gentes
por entre cortinas
espessas de dor.
Oh, a tarde clara
deste fim de Inverno!
Só com horas azuis
no fundo do casulo,
e agora a ilha,
a linha bravia das rosas
e a grande baba negra
e mortal das cobras.
Paisagem
Autor: Maria Manuela Margarido
S. Tomé e Príncipe
in "Poetas de S. Tomé e Príncipe"
Entardecer... capim nas costas
do negro reluzente
a caminho do terreiro.
Papagaios cinzentos
explodem na crista das palmeiras
e entrecruzam-se no sonho da minha infância,
na porcelana azulada das ostras.
Alto sonho, alto
como o coqueiro na borda do mar
com os seus frutos dourados e duros
como pedras oclusas
oscilando no ventre do tornado,
sulcando o céu com o seu penacho
doido.
No céu perpassa a angústia austera
da revolta
com suas garras suas ânsias suas certezas.
E uma figura de linhas agrestes
se apodera do tempo e da palavra.
Serviçais
Autor: Maria Manuela Margarido
S. Tomé e Príncipe
in "Poetas de S. Tomé e Príncipe", 1963
O aroma dos mamoeiros
desde a grota.
Os moleques sonham cazumbis
nas lajes do secador.
Lenta, a narrativa
dos serviçais sentados
no limiar da esperança
é palanca negra a derrubar
paliçadas e fronteiras,
palanca a devorar a distância,
a regressar a Angola,
aos muxitos do Sul;
é chuva grossa
empapando os campos de Cabo Verde
a germinar o milho da certeza.
Trazem na pele tatuada
a hierarquia das relíquias
alimentando-se de um sangue
desprezado
que elege os magistrados
da morte.
Amanhã os clamores da resta
acordarão as longas avenidas
de braços viris
e a terra do Sul
será de novo funda e fresca
e será de novo sabe
a terra seca de Cabo Verde,
livres enfim os homens
e a terra dos homens.
Socopé
Autor: Maria Manuela Margarido
S. Tomé e Príncipe
in "Poetas de S. Tomé e Príncipe", 1963
Os verdes longos da minha ilha
são agora a sombra do ocâ,
névoa da vida,
nos dorsos dobrados sob a carga
(copra, café ou cacau - tanto faz).
Ouço os passos no ritmo
calculado do socopé,
os pés-raizes-da-terra
enquanto a voz do coro
insiste na sua queixa
(queixa ou protesto - tanto faz).
Monótona se arrasta
até explodir
na alta ânsia de liberdade.
Vós Que Ocupais a Nossa Terra
Autor: Maria Manuela Margarido
S. Tomé e Príncipe
in "Poetas de S. Tomé e Príncipe", 1963
É preciso não perder
de vista as crianças que brincam:
a cobra preta passeia fardada
à porta das nossas casas.
Derrubam as árvores fruta-pão
para que passemos fome
e vigiam as estradas
receando a fuga do cacau.
A tragédia já a conhecemos:
a cubata incendiada,
o telhado de andala flamejando
e o cheiro do fumo misturando-se
ao cheiro do andu
e ao cheiro da morte.
Nós nos conhecemos e sabemos,
tomamos chá do gabão,
arrancamos a casca do cajueiro.
E vós, apenas desbotadas
máscaras do homem,
apenas esvaziados fantasmas do homem?
Vós que ocupais a nossa terra?
Caminho Longe
Autor: Gabriel Marianp
Cabo Verbe
in "12 poemas de circunstância", 1965
Caminho
caminho longe
ladeira de São Tomé
Não devia ter sangue
Não devia, mas tem.
Parados os olhos se esfumam
no fumo da chaminé.
Devia sorrir de outro modo
o Cristo que vai de pé.
E as bocas reservam fechadas
a dor para mais além
Antigas vozes pressagas
no mastro que vai e vem.
Caminho
caminho longe
ladeira de São Tomé
Devia ser de regresso
devia ser e não é.
Única Dádiva
Autor: Gabriel Mariano
Cabo Verbe
in "12 Poemas de Circunstância", Praia, Minerva, 1965
Os engajadores levaram
a nossa única dádiva
e já ninguém devolve
o que nos foi roubado.
Longa è a ladeira que a fome alonga.
Enquanto eu vivo
as perguntas duram
E eu vivo da fome
interrogativamente.
Longa è a ladeira que a fome alonga.
Como podem ladrões
rondar meus olhos
se amor só
meus olhos tem?
Longa è a ladeira que a fome alonga
terralonginquamente.
Morte
Autor: Filimone Meigos
Angola
in coluna "é verdade...", jornal Savana
Morte, essa unidade tridimensional do Universo Cósmico
(24 horas antes do enterro da minha irmã)
Imagino-te amanhã
a olhares-me
morta
e a pores a malta toda a viajar contigo
nas três dimensões vitais.
É verdade
a vida são três dias: ontem, hoje e amanhã.
II
Onde morre um preto há sempre um feitiço a quem arranjar dono,
tal é o mito
UKEMELIDAS
- No dia do enterro -
Não tenho que imaginar nada
aqui estas sensível ao ser
desta ausência suprema
tua presente inexistência.
Numa dimensão religiosa
"da terra vieste e à terra retornaste".
Mas
como imaginar-te, tu minha irmã querida
a seres comida por esses vermes sub-terraneos
só por causa dum paraíso?
Tempo espaço
não sei se me refaço.
No teu olhar mais uma pazada de dor.
No meu coração
qual acto, urna de contrição.
III
(choro de minha mãe)
Sentada ao lado de S. Pedro estas
minha filha ao lado dos que já cá não estão
pai nosso que estais no céu
desgraça a minha nesta terra
que se fendeu
e recebeu minha Dina.
Já não tenho duvidas
fender é sempre receber
buraco dá, buraco leva
tal é o destino de todos eles
(isto é, todos nos)
Sobre os mortos
OS MORTOS TAMBÉM AMAM
ACASALAM-SE À TERRA
E FAZEM-SE LENDA
PARA QUE NOVAS GERAÇÕES
SE AMEM MAIS E MELHOR...
NO ENTANTO
CUSTA-ME PRESENCIAR ENTERROS
TAL É A AVERSÃO QUE OS EVITO
EMBORA OS HAJA INEVITÁVEIS.
O PONTO É QUE
ENTRE A PIOR IMAGEM DA TUA VIDA
E ESTA DO TEU ENCAIXILHO
PREFIRO A VIVA REMADORA CONTRA A MARÉ
QUE ERAS.
Dunas
Autor: João Melo
Angola
in "Vozes poéticas da lusofonia", Sintra 1999
Dunas brancas dunas
onde
altivo
brilha o sol;
tuas nádegas
Dunas firmes dunas
onde
célere
pulsa o sangue;
Dunas doces dunas
onde
trémulo
sucumbo ardendo;
tuas nádegas
suaves frescas e belas
Exortação
Autor: Orlando Mendes
no seu livro "Adeus de Gutucumbui", edição da Académica Lda, colecção O SOM E O SENTIDO,p. 25
"Jovem, se tens exercícios de literatura
escritos há mais de um mês, destrói-os.
Rasga-os ou queima-os de preferência
(consta ser universalmente mais ortodoxo)
e se a chama te chamuscar unhas e pele
e as sujar a cinza, não queixes a dor
e lava-te. Destrói-os. Guarda-os todavia
fiéis na memória, palavra por palavra,
para que possas transmiti-los a um amigo
quando depois do venal acto de amor
forem também vender a irresistível suspeita
da tua voz trémula e dos teus outros actos.
Mas não deixes de escrever. Peço-te que não."
História
Autor: Orlando MendesBR>Moçambique
Diz a História que descendo
De celtas, mouros e visigodos.
Descendo e deles herdei todos
Os caracteres fundamentais
E talvez herdasse alguns mais
Da mestiçagem de outras raças
Que fizeram guerras, combatendo
Conquistaram e perderam praças.
Diz a História e não tenho
Do contrario uma prova séria
Em testamento que a revele.
E admito pois que o tamanho,
O rosto, o sangue, a cor da pele,
A fria razão e o instinto,
Adquiri em séculos de Ibéria
Para ser o que penso e sinto
O que mostro e o que oculto,
Excitável carne e uma voz
Memória de um país adulto
Que se não cala por não trair-me
No idioma de meus avós,
Para ser a mão direita firme
Que enche de palavras o papel,
Perpétuo aprendiz que sou eu
De velho oficio sem licença.
Admito. E as datas festejo
E retomo lutas que não venço
E amo nas horas do desejo
Com o mesmo requinte que deu
Origem de mim à Criação
E bebo o vinho e como o pão
Da minha sede e da minha fome.
Admito. E por isso, deponho.
Contudo, nada herdei que dome
A grandeza nova que transmito,
Não apenas sede, fome e sonho
De vinho, de pão ou de infinito,
Desejo, posse e fecundidade
Coragem forjada no segredo
Medo que se chore ou se brade
Guerra de amigo ou de inimigo,
Não própriamente o enredo
Mas esta seiva elementar
De África nos versos que digo
E os homens a saibam cantar.
Noiva
Autor: Orlando Mendes
in "Adeus de Gutucumbui" p. 33
Eu te daria frescas flores de laranjeira
para uma grinalda na carapinha desfrisada.
Eu te daria um colar de missangas coloridas
para uma cruz de outra carne a fogo marcada
sobre o seio esquerdo ao rasgar da virgindade.
Eu te daria um trevo de quatro folhas verdes
para que te nascesse o primeiro filho varão.
Eu te daria se não fosses a noiva de todos
fazendo bandeira com uma capulana garrida
às nove da noite naquela rua de areia
suburbana. Uma rosa encarnada se desfolha
na fonte do teu corpo em cada lua nova como
se fosses a virgem noiva a quem eu daria
flores de laranjeira, um colar e um trevo
que te darei talvez para usares quando não
puderes ser noiva de todos fazendo bandeira
às nove horas da noite naquela rua de areia."
Para um Fabulário
Fazei as medições convencionais
Por esbatido que seja o horizonte
Declarai que existe uma fronteira
Onde a dor já não possa calar-se
Guardai incontaminada a esperança
Pelo desespero de um e outro lado
Apagai na vossa terra bem amada
Os vestígios de passos paralelos
Deixai envelhecer nos rostos viris
As rugas impregnadas de silêncio
Escutai a noite que o vento possui
Com a sedução das palavras matinais
Escolhei um dia claro e fecundo
De flores abertas, amor consumado
E contai a todas as crianças, contai
Que se fundou o país das maravilhas."
De Asas Sob a Terra
Autor: José Luís Mendonça
Angola
Ergue-te cidade
malar vigília
de pássaros
estrangulados
cheiras a crepúsculos e
água, cidade
onde o vinho abre o sexo
ao gume dos astros
ó tambor de sangue
espuma de um
tempo e metal à proa
que mãos
te alijam o som
de asa sob a terra.
África
Autor: David Mestre
Angola
1972
é neste silêncio neste assalto do vento a
navegar a floresta neste sol neste amor
neste vegetal cobrir-me de verde e ser
catana cerce a executar o ânimo
afagar as mulheres no regresso da lavra
fazer das mãos a festa sonora do sexo
na cultivação do milho
é neste grito rente ao corpo frágil das
folhas que mais em ti me venço e
moro nas grandes batalhas da vida
no extenso vale das nossas angústias
no duelo cíclico das nossas intenções
Espera
Autor: David Mestre
Angola
in "Crónica do ghetto", 1973
existo acento de palavra, carapinha
recordação áspera de monandengue,
mapa de conversas na visitação da lua,
grávida luena sentada no verso da fome.
aqui esqueço África, permaneço
rente ao tiroteio dialecto das mulheres
negras, pasmadas na superfície do medo
que bate oblíquo no quimbo quebrado.
num gabinete da Europa, dois geógrafos
vão assinalar a estranha posição
dum poeta cruzado na esperança morosa
das palavras africanas aguardarem acento.
O Sol Nasce a Oriente
(de um quadro de Malangatana
Autor: David Mestre
Loures, Portugal, 1948
Vive em Angola desde os oito meses de idade
Povo, de ti canto o movimento
teu nome, canção feita de fronteiras
lua nova, javite ou lança
tua hora, quissange em trança
Do longo longe do tempo
arde minha flecha, meu lamento
minha bandeira de outro vento
aurora urdida nos lábios de Zumbi
De ti guardo o gesto
as conversas leves das árvores
a fala sabia das aves
o dialecto novo do silêncio
e as pedras, as palavras do medo
os olhos falantes da mata
quando a onça posta a sua arte
nos fita, guardada em sua mágoa.
De ti amo a denuncia felina
das tuas mãos quebradas ao presente
a dança prometida do sol
nascer um dia a Oriente
Os Olhos da Cobra Verde
Autor: Lila Momplé
in "Os olhos da cobra verde", colecção Karingana Nº 18 da AEMO, 1997
página 23
"Mulher e Cobra fitam-se longamente, sem a menor animosidade ou receio.
A mulher, já velha em anos e sofrimento, não obstante a postura derreada do corpo, conserva no rosto a rara luminosidade de quem uma longa vida não conseguiu extinguir a inocência e a capacidade de encantamento próprios da infância. A Cobra reconhece-lhe essa íntima mansidão visto que também ela é uma cobra mansa, isenta de veneno e de malícia. Por isso a observa com os seus olhinhos redondos, brilhantes e verdes, como duas esmeraldas incrustradas no corpo delgado e curto, de um verde mais claro."
Barcos
Autor: Yolanda Morazzo
Mindelo, Ilha de S.Vicente, Cabo Verde, 16/12/1928
"Nha terra é quel piquinino
É São Vicente é que di meu"
Nas praias
Da minha infância
Morrem barcos
Desmantelados.
Fantasmas
De pescadores
Contrabandistas
Desaparecidos
Em qualquer vaga
Nem eu sei onde.
E eu sou a mesma
Tenho dez anos
Brinco na areia
Empunho os remos...
Canto e sorrio...
A embarcação:
Para o mar!
É para o mar!...
E o pobre barco
O barco triste
Cansado e frio
Não se moveu...
Chão de Pátria
Autor: Marcelo Mosse
in revista "XIPHEFO", Dezembro 1994
"Cale-se a vergonha dos balazios
leva-se o verbo ao escárnio
e nos
aos escombros
Eis-me perante o rancor
que emerge da merda
das etiquetas oficiais;
os pseudo discursos expendidos
com nojo a tiracolo.
Olho com fixidez.
Vasculho num traço
flutuante:
as garras do tédio novamente charmosas
e o labor perene das micaias
nas franjas da alma."
A Noiva de Kebera
Autor: Aldino Muianga
in "A noiva de Kebera", edição do autor e Editora Escolar, 1992
Página 13
Com a habilidade nascida da experiência, Sanga-Kebera virou o ambiente frio e fúnebre que ameaçava viciar aquela noite de serão. Narrou um arrepiante nkaringana que ouvira nos remotos tempos do avô Sa-Kebera, com mortos e vivos a confraternizar em fantásticas orgias, bebendo e vertendo cabaças de sangue sobre as cabeças uns dos outros. É tal o dramatismo e o entusiasmo que põe na narração que as imagens dos personagens parecem suspender-se na atmosfera da palhota como seres reais e concretos.
A própria tia Taba-Mayeba não conseguiu suster um calafrio que lhe sacudiu o corpo inteiro.
Maria, Minh'Amor
Autor: Aldino Muianga
do conto Maria, Minh'Amor, p. 67
Aldino MUIANGA nasceu a 1 de Maio de 1950 em Maputo. Cresceu e viveu nos arrabaldes alagadiços desta cidade, tendo-se deixado contagiar e marcar pela vida agreste dos bairros pobres suburbanos. XITALA-MATI é a sua estreia em livro. Uma edição da AEMO, colecção INÍCIO número 7 de 1987
«Eu disse há-de matar este home um dia. Juro cinco chaga. Maria com ele está a brincar comigo. Eu já sabe, ele é amante de Maria e entra aqui em casa já. Este família não é bom família. Tudos dia costuma ir levar Maria na letaria, eu não pode companhar Maria por caso dele. Família sabe eu quer casar Maria, mas porqué deixa esta gajo entrar aqui? Deixa cabar festa, você vai saber qué nhé filho de Mutchatchane».
E apalpa o inseparável canivete de mola metido no bolso traseiro das calças.
Pelo canto do olho, papá Fopence apercebe-se da brusca mudança de atitude do seu acompanhante. Não lhe dá importância e retorna à conversa com os da casa.
Há um grupo de pessoas que se aglomera à porta. A mesma matrona que ali os introduzira adianta-se e, ordeiramente, distribui lugares pelas cadeiras e esteiras previamente preparadas para o efeito.
Maria não está lá.
«Oh Maria, onde você estás? Juro que você estás lá fora esperar conversar com aquela tua amigo. Então porqué não vens? Maria, faz favor não faz poco de mim, senão eu mata vocês dois e depois morre também.»
Faustino vai correspondendo distraidamente aos cumprimentos. Está ausente, vaga nas nuvens montado em tenebrosos planos.
- Este é pai de Maria. Este é avô de Maria. Este é...
As pessoas vão-se sucedendo nos cumprimentos. Uns entram, outros saem, todos mirando-o, curiosos, e invejando Maria pela aparente boa escolha que fizera.
Faustino está à beira de um desmaio. De queixo caído, varado de surpresa ouve a matrona apresentar-lhe:
- Este é Jacobe, irmão de Maria.
Faustino não crê no que ouve. À sua frente, empertigado e exibindo no rosto um sorriso de triunfo, «aquela gajo com olho de cão» estende-lhe a mão com confiança.
E envolvem-se num abraço quente que dissipa para sempre a cortina de ciúme que Faustino erguera e deixam-se sacudir por uma gargalhada convulsiva que é o presságio de uma amizade sólida e duradoira.
Ai, o Mar
"As palavras que desenhei na areia
O mar as levou em lembrança
Os meus segredos de criança
O mar os contou à sereia.
As conchas do mar também ficaram
Com os meus segredos do anoitecer
Tudo o que os meus avós me sussurraram
Ainda estava por tecer.
Os estilhaços da minha infância
Ficaram emulsionados na forca da água
Os versos feitos em minhas mágoas
Também ficaram em turbulência.
O mar levou o meu amor
A filha do gra-marinheiro
Pois ela partiu primeiro
Sem escutar o meu clamor."
Ensaio de Lágrimas
Autor: Hélder Muteia
in "Verdades e Mitos", colecção Timbila Nº 6 da AEMO, p. 85
Se as nossas lágrimas
apagassem o ódio que nos cerca
e apagassem também o fogo que nos mata
mãe
eu pediria as lágrimas de todos
sangrando as pupilas.
Mas temo, mãe
que nos afoguemos um dia
dentro das nossas lágrimas."
Reflexão
Autor: Hélder Muteia
Helder Muteia nasceu em Quelimane, Setembro de 1960, e "Verdade dos Mitos" foi o seu primeiro livro publicado. Pela AEMO, colecção TIMBILA nº 6. O autor foi secretario-geral da AEMO e é deputado na Assembléia da República.
"E se fosse apenas
a dor matemática do chicote
sorria
e olhava-te nos olhos
e cuspia-te na cara
só!
E se fosse apenas
a dor física da inércia das lágrimas
bem, ai talvez fingisse
chorar a mulher amada
e cuspia-te somente à cara!
Mas de que nos adianta agora
discutir a matemática e a física?"
Antigamente Era
Autor: Agostinho Neto
Angola
1951
Antigamente era o eu-proscrito
Antigamente era a pele escura-noite do mundo
Antigamente era o canto rindo lamentos
Antigamente era o espírito simples e bom
Outrora tudo era tristeza
Antigamente era tudo sonho de criança
A pele o espírito o canto o choro
eram como a papaia refrescante
para aquele viajante
cujo nome vem nos livros para meninos
Mas dei um passo
ergui os olhos e soltei um grito
que foi ecoar nas mais distantes terras do mundo
Harlem
Pekim
Barcelona
Paris
Nas florestas escondidas do Novo Mundo
E a pele
o espírito
o canto
o choro
brilham como gumes prateados
Crescem
belos e irresistíveis
como o mais belo sol do mais belo dia da Vida.
Com os Olhos Secos
Adutor: Agostinho Neto
Angola
Com os olhos secos
- estrelas de brilho inevitável
através do corpo através do espírito
sobre os corpos inanimes dos mortos
sobre a solidão das vontades inertes
nós voltamos
Nós estamos regressando África
e todo o mundo estará presente
no super-batuque festivo
sob as sombras do Maiombe
no carnaval grandioso
pelo Bailundo pela Lunda
Com os olhos secos
contra este medo da nossa África
que herdámos dos massacres e mentiras
Nós voltamos África
estrelas de brilho irresistível
com a palavra escrita nos olhos secos
- LIBERDADE.
Confiança
Autor: Agostinho Neto
Angola
O oceano separou-me de mim
enquanto me fui esquecendo nos séculos
e eis-me presente
reunindo em mim o espaço
condensando o tempo
Na minha história
existe o paradoxo do homem disperso
Enquanto o sorriso brilhava
no canto de dor
e as mãos construiam mundos maravilhosos
John foi linchado
o irmão chicoteado nas costas nuas
a mulher amordaçada
e o filho continou ignorante
E do drama intenso
duma vida imensa e útil
resultou certeza
As minhas mãos colocaram pedras
nos alicerces do mundo
mereço o meu pedaço de pão.
Lá no Horizonte
Autor: Agostinho Neto
Angola
Poemas, 1961
Lá no horizonte
o fogo
e as silhuetas escuras dos imbondeiros
de braços erguidos
No ar o cheiro verde das palmeiras queimadas
Poesia africana
Na estrada
a fila de carregadores bailundos
gemendo sob o peso da crueira
No quarto
a mulatinha dos olhos meigos
retocando o rosto com rouge e pó de arroz
A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas
Na cama
o homem insone pensando
em comprar garfos e facas para comer à mesa
No céu o reflexo
do fogo
e as silhuetas dos negros batucando
de braços erguidos
No ar a melodia quente das marimbas
Poesia africana
E na estrada os carregadores
no quarto a mulatinha
na cama o homem insone
Os braseiros consumindo
consumindo
a terra quente dos horizontes em fogo.
O Choro de África
Autor: Agostinho Neto
Angola
Poemas, 1961
O choro durante séculos
nos seus olhos traidores pela servidão dos homens
no desejo alimentado entre ambições de lufadas românticas
nos batuques choro de Africa
nos sorrisos choro de Africa
nos sarcasmos no trabalho choro de Africa
Sempre o choro mesmo na vossa alegria imortal
meu irmão Nguxi e amigo Mussunda
no circulo das violências
mesmo na magia poderosa da terra
e da vida jorrante das fontes e de toda a parte e de todas as almas
e das hemorragias dos ritmos das feridas de Africa
e mesmo na morte do sangue ao contacto com o chão
mesmo no florir aromatizado da floresta
mesmo na folha
no fruto
na agilidade da zebra
na secura do deserto
na harmonia das correntes ou no sossego dos lagos
mesmo na beleza do trabalho construtivo dos homens
o choro de séculos
inventado na servidão
em histórias de dramas negros almas brancas preguiças
e espíritos infantis de Africa
as mentiras choros verdadeiros nas suas bocas
o choro de séculos
onde a verdade violentada se estiola no circulo de ferro
da desonesta forca
sacrificadora dos corpos cadaverizados
inimiga da vida
fechada em estreitos cérebros de maquinas de contar
na violência
na violência
na violência
O choro de Africa é um sintoma
Nós temos em nossas mãos outras vidas e alegrias
desmentidas nos lamentos falsos de suas bocas - por nós!
E amor
e os olhos secos.
Poema à Mãe Angolana
Autora: Eugénia Neto
Portugal/Angola
Avança Mãe Angolana
E dá o melhor de ti própria
Nesta luta de vida ou de morte
Avança pelos rios perigosos
Pelos pântanos lodosos
Pela savanas sem fim.
Avança pelo incomensurável horror da guerra
Entre a chuva de bombas que ilumina a terra
Mas avança porque é necessário.
Avança com teus bracos feitos asas
Abertas sobre o solo pátrio
Para proteger os teus filhos.
Não te detenhas nos gemidos do vento
Não prendas a forma das flores
Sublima o amor neste momento.
Avança Mãe Angolana
Que a tua coragem fará vacilar os soldados
Os soldados que já foram meninos
Os soldados
A que o fascismo tolheu a vontade
E que caminham sobre os cadáveres das crianças
Com risos sarcásticos de vingança...
Avança Mãe Angolana
Na terra ensopada de sangue
Dor e lágrimas
Causadas pela guerra.
Que ela florescerá
Sustentada pelo teu querer
E terás para os teus filhos
O sol aberto nas pétalas
E a serenidade dos heróis
Depois de ganha a batalha.
Angolano
Autor : Neves e Sousa
Pintor e Poeta Angolano
Ser angolano é meu fado, é meu castigo
Branco eu sou e pois já não consigo
mudar jamais de cor ou condição...
Mas, será que tem cor o coração?
Ser africano não é questao de cor
é sentimento, vocação, talvez amor.
não é questao nem mesmo de bandeiras
de lingua, de costumes ou maneiras...
A questao é de dentro, é sentimento
e nas parecencas de outras terras
longe das disputas e das guerras
encontro na distância esquecimento!
Ilha de Moçambique
Autor: Neves e Sousa
Angola
Ilha de oiro e angustia
Feita de sol e de prata
Marfim talhado em reliquias
Cobre batido do vento
Num moinho de saudades.
Fortaleza escancarada
A memórias esquecidas...
Senhora do Baluarte velando
As brancas velas do Canal.
Sermões de S. Francisco Xavier
Guardados nas rochas de coral.
Riquexos vagueando ão sol
Brancas praias sonolentas
Enfeitadas de saris e cofios
Brancos, pretos, encarnados
E rostos cor da verdade
De viver num monumento
De prata, de oiro e de cobre
Cobre batido do vento...
Portico dos sonhos, momento
de indias descobertas e vencidas
Monumento, monumento,
De memórias esquecidas...
Alem-portas de marfim
Paredes meias com a História
Dentro da fama e memória
Para que nela sempre fique
A Ilha de Moçambique.
A Coruja
Autor: Malangatana Valente Ngwenya
in "Vinte e quatro poemas", Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lisboa, 1996
Malangatana Valente NGWENYA nasceu a 6 de Junho de 1936 em Matalana, Moçambique. Produziu uma vasta obra no campo da pintura e é hoje um dos mais notáveis artistas africanos.
Representado em inúmeros museus e colecções particulares em todo o mundo, Malangatana, artista multifacetado, que canta, dança, faz poemas, teatro, cerâmica e escultura, é grande animador sócio-cultural e vê erguer-se presentemente o sonho de construção do Centro Cultural na sua aldeia natal..
Página 35
A coruja agoira-me
e diz-me que nunca chegarei
além onde o desejo me leva
e assim evapora-se o sonho;
O tambor foi tocado
na noite densa do feitiço
enquanto Kokwana* Muhlonga
apitava o Kulungwana** mortal;
Na noite sem estrelas
dois gatos pretos iluminaram
a cabana da Kokwana Hehlise
que morreu depois dos gatos terem miado.
Eu lutando comigo só
é impossível vencer as ondas
que feiticeiramente me esboçam
as corujas, gatos e tambores."
* kokwana = avó **kulungwana = ulular
Amor Verde
Autor: Malangatana Valente Ngwenya
in "Malangatana - Vinte e quatro poemas", ISPA Instituto Superior de Psicologia Aplicada - CRL, Lisboa, 1996
Porque o amor não é sempre verde
que bom quando verde é
nem quero que mudes de cor
oh amor verde, verde, verde
ele é tão bom, bom, bom
Na cama quando passei a primeira noite
senti-me feliz quando corria dentro dela
a lágrima que nos fez amigos infinitos
porque dela veio quem nos chama: Papá e Mamã
o nosso primeiro filho, tão lindo, lindo."
Double Trouble
Autor: Mutxhini Ngwenya
Chimoio, 09.06.97
Quiz vestir esta lua,
Meu fato mais bonito,
Engomado e arejado,
Flor vermelha na lapela,
Guitarra acesa na mão,
Minha arma de trova.
Quiz brindar as estrelas,
Fazer oferendas á lua,
Dançar uma valsa,
Beber teus pomos,
Enxugar minha jornada,
Arrasar a praça,
Teu abraço me vestindo.
Quiz minha parra de barro,
Quebrá-la e branquear minha alma,
Lavá-la na enxurrada de beijos,
Saltar, e, atirar para ontem,
Rosas ressequidas de espera,
Lançar sementes estrelas.
Quiz tantas, tantas vezes
Fazer poema fresco,
Dizer ás gaivotas e ao vento
Que em suas asas levassem,
Notícias flores ao mundo,
Mas,
Minha alma parra,
Não sabe ainda
A cor de tua alegria..."
Mutxhini Ngwenya Chimoio, 09.06.97
A Mamã Preocupada
Autor: Malangatana Valente Ngwenya
in "Vinte e quatro poemas", edição do ISPA, Portugal, p. 24
Nos teus braços eu fiquei
quando me nasceste muito preocupada
quem estava aflita
naquela altura perigosa
com o receio de que Deus me vai levar?
Tudo em silêncio olhava
para ver se o parto corria bem
tudo lavava as mãos
para poder receber quem vinha dos Cés
e toda a mulher quieta e aflita
Mas quando afastei-me
do lugar em que me guardaste durante longo tempo
dei logo o primeiro respiro
tu gritaste logo de alegria
o primeiro beijo foi o da Avó
Que levou-me logo para o lugar
que me guardaram e é secreto
tudo foi proibido a entrar no meu quarto
porque tudo cheirava mal
e eu todo fresco, fresco
respirava finalmente dentro das minhas fraldas
Mas a Avó que se supunha doida
estava sempre ao meu lado
ver-me e rever-me sempre
porque as moscas vinham ter comigo
e os mosquitos inquietavam-me
Deus que revia-me também
era o amigo da minha Avó velhinha
Malangatana Valente NGWENYA nasceu a 6 de Junho de 1936 em Matalana, Moçambique. Produziu uma vasta obra no campo da pintura e é hoje um dos mais notáveis artistas africanos.
Representado em inúmeros museus e colecções particulares em todo o mundo, Malangatana, artista multifacetado, que canta, dança, faz poemas, teatro, cerâmica e escultura, é grande animador sócio-cultural e vê erguer-se presentemente o sonho de construção do Centro Cultural na sua aldeia natal.
Pensar-Alto
Autor: Malangatana Valente Ngwenya
in catálogo da exposição retrospectiva e antológica de Malangatana que teve lugar na Sociedade Nacional de Belas Artes, Portugal, em 1986
Sim
às marrabentas
às danças rituais
que nas madrugadas
criam o frenesi
quando os tambores e as flautas entram a fanfarrar
fanfarrando até o vermelho da madrugada fazer o solo sangrar
em contraste com o verdurar das canções dos pássaros
sobre o já verduzido manto das mangueiras
dos cajueiros prenhes
para em Dezembro seus rebentos
dançarem como mulheres sensualíssimas
em cada ramo do cajual da minha terra
mas, sim ao orgasmo
das mafurreiras
repletas de chiricos
das rolas ciosas pela simbiose que só a natureza sabe oferecer
mas sim
ao som estridente do kulunguana
das donzelas no zig-zague dos ritos
quando as gazelas tão belas
não suportam mais quarenta graus à sombra dos canhueiros em flor
enquanto as oleiras da aldeia, desta grande aldeia Moçambique
amassam o barro dos rios
para o pote feito ser o depositário
de todo o íntimo desse Povo que se não cala disputando
ecoosamente com os tambores do meu ontem antigo."
Nome de Pão
Autor: Oswaldo Osório
Cabo Verde
O Cântico do Habitante
ouso nosso pão e posso
ouso nosso pão e posso
ainda molecular a ideia
para dedos de haver esperança
ouso pensar
coragem e amar
e tanta coisa que é pão.
Cavalos de Silex
Autor: Oswaldo Osório
Cabo Verde
O Cântico do Habitante
1971
ainda estávamos em guerra quando fomos a lua
e tínhamos fome e feridas nos olhos de cegar
agarrávamos o futuro com a luz do laser
e as flores gelavam aqui donde partíamos com carbúnculos nos braços
pássaros de pio futuro por onde andávamos
deixámos a terra grávida de salamandras esventradas
ganhávamos o pão nosso cada dia com medidas de suor
e um inverno de vómito estarrecia sob as raizes
as galáxias mediam-se por braçadas de legumes ou milho ou arroz
que no-las distanciavam e as estrelas fugiam perseguidas
por cavalos de sílex
o sonho criava lodo cada manha
as palavras mal nasciam apodreciam em limo
nesta situação-limite os seios o sexo o sémen
convenceram os homens nas suas fábricas
de cavalos de sílex
tarde
peitos punhos pulsos resolvemos ousar nosso pão
Holanda
Autor: Oswaldo Osório
Cabo Verde
Holanda companheiros
chegámos
chegámos com barcos guildas nos olhos e desejo de vencer
chegámos intermináveis e actuais às docas
betão aço cargueiros e braços precisados
chegámos numa dimensão nova
(ah as roças de S.Tomé serviçal meu irmão)
e pusemos todo o nosso esforço
lubrificámos máquinas
alimentámos caldeiras
navegámos por oceanos de fogo e fiordes de gelo
mas foi nos mares da terra nova
no tempo em que de Boston a América mandava seus barcos baleeiros
para nos contratar
que ganhámos o bronze da nossa pele
The Best Sailors of the World
sob bandeiras estrangeiras brigámos guerras que não eram nossas
para agora amarmos ao ritmo de torno novo
e múltiplas bocas ao nos verem dizem
Let them get by
chegámos às docas companheiros
nas docas com barcos guildas nos olhos e nossa terra nos nossos sonhos
chegámos intermináveis para o match
e pusemos todo o nosso esforço na luta
pusemos esperança na nossa força de trabalho
e quando nos vêem chegar dizem
Let them get by
aqui ou ali passaremos sempre porque chegámos companheiros
a esperança transformada em actos nos nossos punhos
a seca o sol o sal o mar a morna a morte a luta o luto
ao nos verem passar dizem que ultrapassaremos os sonhos
e o match é em nossa terra que vai terminar
Manhã Inflor
Autor: Oswaldo Osório
S. Vicente, Cabo Verde, 1937
1971
as héveas murcharam
desertas de folhas
desertas de flores
propositadamente
nem só o sangue mas também a seiva
nem só a criança mas também a pétala
nem só o homem mas também a planta
nem só a carne mas também a lenha
propositadamente
tudo o hamadricida flagelou
a beleza da flor
a inocência da criança
a certeza dos campos
o aconchego duma sombra
mas nos covis a vida continuou
e o apelo a luta redobrou
as héveas murcharam
e com as héveas
a manhã inflor
a terra nua
mas ainda a vida
nos covis continua
A Lua e a Morte
Autor: Marcelo Panguana
in "As Vozes que Falam de Verdade", conto "A Lua e a Morte"
" - Não.
A mulher ficou espetada à sua frente ostentando aquela atitude exacta e decidida. Isto não pode continuar assim, acrescentou. O homem observou-a e rapidamente concluiu que aquelas palavras tinham amadurecido anteriormente, e ali, naquele confronto a dois, surgiam decididamente tempestuosas. Como a forca do vento na mudança das estações.
Um pouco depois estalaram-se os nervos. O corpo retesou-se e depois se fez o gesto. Não foi com pouca violência que a vassoura atirada deitou abaixo um bonito quadro que retratava um conhecido tema tradicional. Samo, assim se chamava o homem, estava atónito. Dobrado sobre si mesmo à entrada da porta que dava acesso a sala comum, percorria o olhar um pouco por toda a parte, ainda incapaz de adoptar uma atitude apaziguante. A meia distância do espaço que o separava da Lindiwe, a mulher, os fragmentos de duas chávenas de fabrico chinês e uma porcelana de barro.
O barulho provocado pela queda do quadro acentuara o choro da Isa, a filha mais nova, às voltas com umas dores de estômago que faziam questão de ser irremoviveis, apesar da propalada eficiência dos médicos e dos medicamentos ingeridos. O tempo passava e a criança ia minguando a olhos vistos. O Beto e a Flavia, filhos mais velhos, aproximaram-se e a expectativa infantil ficou depois a envolver a conversa cada vez mais acesa entre marido e mulher."
Milagre Obstrético
Autor: Antonio Pinto de Abreu
Moçambique
in "Antologia da nova poesia moçambicana"
As lampadas da cidade
fundiram-se todas
e numa das esquinas
da grande aldeia de cimento
um latão urbanizado
pariu um pirilampo...
Glória ao novo ser
que nasceu ao anoitecer.
O jornal não deu a grande noticia
- os fotografos tinham as maquinas
aguardando o plano superior.
Contudo
no velho latão urbanizado
o pirilampo brinca e chora
(como alguns meninos)
luzindo com o satírico brilho
da esvaziada lata de sardinhas
da "ração de combate".
Mané Fú
Autor: Virgilio Pires
Praia, Cabo Verde, 1935
Louco que povoou a minha infância
Que contava histórias maravilhosas
Histórias de Branca Flor
De bruxas e de princesas
Mané Fú Mané de Deus
Que tinha o corpo todo preto
Mas as palmas das mãos brancas
Porque as sextas-feiras subia aos céus
E ia banhar os anjos
Mané Fú Mané de Deus
Outras histórias me empolgam hoje
Histórias de crianças famintas
(Lembro-me do filho da Violante
Que comia a cal das paredes)
Histórias de velhos abandonados
(Como aquele que morreu a chorar
No Pavilhão de Alienados
E não era doido)
Histórias de prostitutas
(Ah! humilhadas amigas)
Histórias tristes nunca divulgadas
Reminiscência
Autor: Virgilio Pires
Praia, Cabo Verde, 1935
Quem não se lembra dos bailes da bola preta?
ritmos brasileiros fox mazurcas
E a morna a sublimar paixões
Ao longe na Achada o roncar cadenciado
Dos tambores da Tabanca
No campo de futebol ali pertinho
O Vitória sucumbia perante um Trovadores
Em que o Chabali era o rei
O mundo em guerra
E na terra amaldiçoada
Sem canhões sem Hitler
O povo morria de olhos voltados para o céu
Num gesto clamor secular
Que o hábito tornou ritual
Chuva! Fome! Chuva! Fome!
Quem não se lembra dos bailes da bola preta?
A sala decorada com bolas pretas
Os ritmos brasileiros a transportar os pares
Para o "Rio de Janeiro cidade maravilhosa"
Mazurcas com passos rigorosamente medidos
E a morna morna no violino crioulo do Djédji
Há muitos anos
Os nazis perderam a guerra
A Tabanca desapareceu
Anatematizada como vergonhosa reminescência africana
O Chabali morreu
Surgiram outras guerras
Outros tiranos outros ídolos outros ritmos
E na terra amaldiçoada
O ano passado hoje e sempre
O povo continua com os olhos voltados para o céu
Num gesto ritual
Clamor súplice para outros homens e para Deus
Chuva! Chuva! Chuva!
Paisagem do Nordeste
Autor: Jofre Rocha
Cachimane, Angola, 1941-
Tempo de cicio, 1973
rio estátua
braço sem carne
chuva no mar
em terra seca
sol na paisagem
terra em desgraça
fome nos lábios
fome nos olhos
ossadas brancas
urubus em volta
terra em brasa
ar calcinado
plantas com fome
homens com fome
fome nos olhos
no ar morte
Quando a Manhã Vier
Autor: Jofre Rocha
Cachimane, Angola, 1941-
Quando a manhã vier
com um sol maduro
ofertando beijos
aos órfãos da ternura
quando a manhã vier
em apoteose de luz
a semear no vento
risos de alegria
quando a manhã vier
definitivamente
em alvorecer roseo
de paz e tranquilidade
de mãos nas mãos
saberemos chegado o nosso dia.
Símbolo
Autor: Luis Romano
Ilha de Santo Antao, Cabo Verde, 1922
Clima, 1963
O formato daquele berço foi um símbolo
O menino em miragens impossíveis
dormia sonhando com navios de papel
enquanto eu contemplava
a cismar,
o conjunto daquela harmonia
sumindo-se na linha do mar.
Navio-berço de menino crioulo
navio-guia que ficou sem ir
"navio idêntico ao navio da nossa derrota parada".
Vida
Autor: Luis Romano
Ilha de Santo Antao, Cabo Verde, 1922
Clima, 1963
A crioula que meus olhos beijaram a medo
perdeu-se na confusão de um porto francês
Ela sorria continuamente, erguendo no seu riso uma canção extraordinária.
Não foi um romance de amor
nem mesmo um pequeno segredo entre ambos.
Somente, quando Ela falava ao pé de mim, eu sentia:
um aprazível devaneio
pela maravilha escultural duma Mulher Perfeita.
Depois,
a Vida separando Nós-Dois
a confusão, os ruidos, os braços agitando-se
e o vapor levando para outros mares,
outros portos,
a graça, o mistério, o perfume e os cantares
da crioula que meus olhos beijaram a medo
no tombadilho daquele vapor francês.
O Jogo
Autor: Manuel Rui
Nova Lisboa, Angola, 1941-
A Onda, 1973
Que jogo é este
o de saber nos pés
só a espuma
de imensas madrugadas.
Que jogo é este
o de chorar os destroços
de um navio/que chegou a navegar
ou as asas de uma gaivota
apodrecida/que voou
Sem me chorar
Que jogo é este
o de esperar
um rebentar da onda
sem me estender
sem me estender pelos teus túneis.
Museu
Autor: Manuel Rui
Nova Lisboa, Angola, 1941-
A Onda, 1973
De meus antepassados não recordo
mas invento em cada pedra colocada
em praças por seus braços noutros braços
onde pombas poisam e turistas fazem
souvenirs de sol e manuelinos
E pátrias não conheço
Assisto aos exercícios outonais
da morte sem idade do cremar
olhos na distância por noivas adiadas
e mãos correndo terços de velhas esperando
a morte simplesmente
E deuses não conheço
Não fui navegador
embora me quisessem em vários continentes
em que sempre estive e disse nunca
para que naufragasse minha história com o peso
das grilhetas amarrado aos oceanos
E epitáfios não conheço
O que ergueram meus braços
não está em Africa
a minha musica
não está em Africa
a minha estatuária
não está em Africa
idem para o meu marfim
as minhas lanças
os meus diamantes
o meu ouro
idem
idem
A Abóbora Menina
Autor: Ana de Santana
Angola
Benguela, 1983
Tão gentil de distante, tão macia aos olhos
vacuda gordinha,
de segredos bem escondidos
estende-se a distância
procurando ser terra
quem sabe possa
acontecer o milagre
folhinhas verdes
flor amarela
ventre redondo
depois é só esperar
nela desaguam todos os rapazes.
Núpcias
Autor: Ana de Santana
Angola
Penetro
esse colchão de cristal
e
um lençol de mar
me envolve
tecendo o meu vestido raro,
espuma e sal.
Interrompo estas núpcias com o coral,
vem-me o mavioso murmurar
das palmeiras pela brisa,
será que não aprovam?
Rapariga
Autor: Ana de Santana
Angola
Sabores, Odores & Sonho, 1985
Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarraram-me já ás costas, a tábua Eylekessa
Filha de Tembo
organizo o milho
Trago nas pernas as pulseiras pesadas
Dos dias que passaram...
Sou do clã do boi -
Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono profundo do deserto
a falta de limite...
Da mistura do boi e da árvore
a efervescência
o desejo
a intranquilidade
a proximidade
do mar
Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada
concedeu-me
o favor das suas tetas úberes.
A Mulemba Secou
Autor: Aires de Almeida Santos
Angola
A mulemba secou.
No barro da rua,
Pisadas, por toda a gente,
Ficaram as folhas
Secas, amareladas
A estalar sob os pes de quem passava.
Depois o vento as levou...
Como as folhas da mulemba
Foram-se os sonhos gaiatos
Dos miudos do meu bairro.
(De dia,
Espalhavam visgo nos ramos
E apanhavam catituis,
Viuvas, siripipis
Que o Chiquito da Mulemba
Ia vender no Palacio
Numa gaiola de bimba.
De noite,
Faziam roda, sentados,
A ouvir, de olhos esbugalhados
A velha Jaja a contar
Histórias de arrepiar
Do feiticeiro Catimba.)
Mas a mulemba secou
E com ela,
Secou tambem a alegria
Da miudagem do bairro;
O Macuto da Ximinha
Que cantava todo o dia
já não canta.
O Ze Camilo, coitado,
Passa o dia deitado
A pensar em muitas coisas.
E o velhote Camalundo,
Quando passa por ali,
já ninguem o arrelia,
já mais ninguem lhe assobia,
já faz a vida em sossego.
Como o meu bairro mudou,
Como o meu bairro esta triste
Porque a mulemba secou...
So o velho Camalundo
Sorri ao passar por la!...
Meu Amor da Rua Onze
Autor : Aires de Almeida Santos
Angola (Benguela)
Tantas juras nos trocamos,
Tantas promessas fizemos,
Tantos beijos roubamos,
Tantos abracos nos demos.
Meu amor da Rua Onze,
Meu amor da Rua Onze,
já não quero
Mais mentir.
Meu amor da Rua Onze,
Meu amor da Rua Onze,
já não quero
Mais fingir.
Era tao grande e tao belo
Nosso romance de amor
Que ainda sinto o calor
Das juras que nos trocamos.
Era tao bela, tao doce
Nossa maneira de amar
Que ainda pairam no ar
As promessas que fizemos.
Nossa maneira de amar
era tao doida, tao louca
Qúinda me queimam a boca
Os beijos que nos roubamos.
Tanta loucura e doidice
Tinha o nosso amor desfeito
Que ainda sinto no peito
Os abracos que nos demos.
E agora
Tudo acabo.
Terminou
Nosso romance.
Quando te vejo passar
Com o teu andar
Senhoril,
Sinto nascer
E crescer
Uma saudade infinita
Do teu corpo gentil
De escultura
Cor de bronze,
Meu amor da Rua Onze.
A Vigília do Pescador
Autor: Arnaldo Santos
Angola
Na praia o vulto do pescador
é mais denso que a noite...
E enquanto espera
A sua ansia solidifica em concha
E sonoriza os ventos livres do mar.
E enquanto espera
A sua ansia descobre
os passos da mare na praia
e o sono do borco das canoas.
é manha
e o pescador
ainda espera
e enquanto o mar
não lhe devolve o seu corpo de sonhos
Num lencol branco de escamas
Um torpor de baixa-mar
Denumcia algas nos seus ombros.
Ódio
Autor: Marcelino dos Santos
Marcelino dos Santos, com apelido de Lilinho Micaia Kalungano, nasceu a 20.5.1929 no Lumbo - Nampula.
Membro fundador da Frelimo, é um dos seus mais populares dirigentes. Os seus trabalhos literários foram traduzidos em russo, checo, holandês e italiano.
O texto reproduzido foi publicado na Gazeta de Artes e Letras, revista Tempo No 915.
" Foi assim
que tudo aconteceu
senti uma dor aguda
e o cão não ladrou
o xirico não cantou
a lua não estava
a lua não estava
Foi ali
na estrada Ilha-Monapo
era 14 de Marco
Uma enorme gargalhada
e tudo foi silêncio
sem cor
Cerrei os dentes
O peito inchou
duro
Uma lágrima desce
lenta
pesada
Uma só
Anita caiu
morreu
Mamã onde está a minha arma"
16.3.1988 - xirico = pássaro
Sonho de Mãe Negra
Autor: Kalungano (Pseudonimo de Marcelino dos Santos)
Moçambique
Mãe negra
Embala o seu filho
E na sua cabeça negra
Coberta de cabelos negros
Ela guarda sonhos maravilhosos
Mãe negra
Embala o seu filho
E esquece
Que o milho já a terra secou
Que o amendoim ontem acabou
Ela sonha mundos maravilhosos
Onde o seu filho iria à escola
À escola onde estudam os homens
Mãe negra
Embala o seu filho
E esquece
Os seus irmãos construindo vilas e cidades
Cimentando-as com o seu sangue
Ela sonha mundos maravilhosos
Onde o seu filho correria na estrada
Na estrada onde passam os homens
Mãe negra
Embala o seu filho
E escutando
A voz que vem de longe
Trazida pelos ventos
Ela sonha mundos maravilhosos
Mundos maravilhosos
Onde o seu filho poderá viver.
Tudo Treme
Autor: Monteiro dos Santos
Cutato, Angola, 1947
Mar ie mil, 1974
tudo treme
neste poiso de espanto breve.
apresso a palavra e digo país:
e o teu corpo se despenha vertical
aqui entre as cordas desta febre.
digo espaço e as águas demoram.
de que me servem dedos
no contorno estéril da mão?
A Pátria Dividida
Autor: Nelson Saúte
in "A pátria Dividida", VEGA,Portugal, Colecção A Palavra Africana, 1993
ao Rui Knopfli e ao Eugénio Lisboa
Os mortos tombam no poema.
Nada os ampara. Nem a luz
acanhada do candeeiro
quando escrevo na obscuridade
ao pulsar da mão emboscada
na metáfora que me conduz.
Na incerta madrugada
diviso os rostos mutilados
que vigiam os meus gestos
e narram sonhos degolados.
O algoz estilhaçou o coração
frágil da criança aos gritos
nas imagens do apocalipse na televisão.
Na ignomínia noticiada pelos jornais
esta consentida memória dos mortos
para sempre insepultos
porque não existe vala comum
para os gritos da mulher
rasgada à baioneta
numa manhã inocente.
Não se enterram os sonhos
dos mutilados em perfil
no chão ultrajado
desta pátria dividida."
A Ignorância do Poeta
Autor:Nelson Saute
in "A Pátria Dividida", Vega, Lisboa, 1993
Pagina 17:
O poeta contempla o mar
no agoniado tédio da tarde.
Caminha ao som de seus passos
ombros recurvos mãos nos bolsos
perseguindo a sua sombra.
O cão que lhe roça a solidão
não tolhe o verso escrito da memória.
Os namorados não o fitam.
De esguelha admira a inocência
dos gestos amorosos.
À sombra de jacarandás
percorre o trajecto
sobre as folhas silenciadas.
O poeta ignora mas a direcção
leva-o ao coração dos homens."
Canção do Silêncio
Autor: M. Correia da Silva
in " Cantares de Angola "
Ouvindo o silêncio das coisas remotas,
Distingo legendas que os outros não
lêem...
Vislumbro paisagens confusas, remotas,
- Silhuetas de imagens que muitos não
vêem!...
Desvendo os mistérios da selva distante,
Aonde costuma rugir o leão...
- Arroios cantando, num som murmurante,
Anharas perdidas p'ra além do sertão...
Capim verdejante nas húmidas chanas,
Lençol de esmeralda que o sol vai
corando...
Matizes da selva, luar das savanas,
Mabecos fugindo, pacacas pastando...
silêncio das noites sombrias, caladas,
Segredos da selva, murmúrios da aragem...
-Holongos ligeiros, fugindo, em manadas,
Regatos correndo por entre a folhagem...
Latidos de hienas em torno dos quimbos,
já dentro da noite, se a fome as aperta;
Quimbundas alegres, sachando os arimbos
Depois que o som cavo do goma as desperta
Chingufos ao longe - rufar permanente -
Chamando ao batuque de intensa folgança...
E os pretos, gingando pra trás e pra
frente,
Agitam as ancas na febre da dança!...
E a lua, do alto - qual "hóstia boiante" -
Envolve o cenário num manto sidério...
- Canção do silêncio da selva distante,
Bem poucos entendem teu som de mistério!
As Águas
Autor: Onesimo Silveira
Mindelo, São Vicente, Cabo Verde, 1935
in Hora Grande, 1962
A chuva regressou pela boca da noite
Da sua grande caminhada
Qual virgem prostituída
Lançou-se desesperada
Nos braços famintos
Das árvores ressequidas!
(Nos braços famintos das árvores
Que eram os braços famintos dos homens...)
Derramou-se sobre as chagas da terra
E pingou das frestas
Do chapéu roto dos desalmados casebres das ilhas
E escorreu do dorso descarnado dos montes!
Desceu pela noite a serenar
A louca, a vagabunda, a pérfida estrela do céu
Ate que ao olhar brando e calmo da manha
Num aceno farto de promessas
Ressurgiu a terra sarada
Ressumando a fartura e a vida!
Nos braços das árvores...
Nos braços dos homens...
Quadro
Autor: Onesimo Silveira
Mindelo, Ilha de S. Vicente, Cabo Verde, 10/2/1935
in Hora Grande, 1962
Lá vem nho Cacai da ourela do mar
Acenando a sua desilusão
De todos os continentes!
Ele traz o peito afogado em maresias
E os olhos cansados da distância das horas...
Lá vem nho Cacai
Com a boca amarga de sal
A boiar o seu corpo morto
Na calmaria da tarde!
Nho Cacai vem alimentar os seus filhos
Com histórias de sereias...
Com histórias das farturas das Américas...
Os seus filhos acreditam nas Américas
E sabem dormir com fome...
Cantos de Meu País
Autor: Julião Soares Sousa
Guiné-Bissau
in Um Novo Amanhecer, 1996
Canto as mãos que foram escravas
nas galés
corpos acorrentados a chicote
nas américas
Canto cantos tristes
do meu País
cansado de esperar
a chuva que tarde a chegar
Canto a Pátria moribunda
que abandonou a luta
calou seus gritos
mas não domou suas esperanças
Canto as horas amargas
de silêncio profundo
cantos que vêm da raiz
de outro mundo
estes grilhões que ainda detêm
a marcha do meu País
Magaíça
Autor: Noémia de Sousa
Moçambique
in M. de Andrade e Francisco J. Tenreiro: Poesia negra de expressão portuguesa, Lisboa, 1953, Ed. dos Autores
A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda
engoliu o mamparra,
entontecido todo pela algazarra
incompreensível dos brancos da estação
e pelo resfolegar trepidante dos comboios
Tragou seus olhos redondos de pasmo,
seu coração apertado na angústia do desconhecido,
sua trouxa de farrapos
carregando a ânsia enorme, tecida
de sonhos insatisfeitos do mamparra.
E um dia,
o comboio voltou, arfando, arfando...
oh nhanisse, voltou.
e com ele, magaíça,
de sobretudo, cachecol e meia listrada
e um ser deslocado
embrulhado em ridículo.
Ás costas - ah onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça?
trazes as malas cheias do falso brilho
do resto da falsa civilização do compound do Rand.
E na mão,
magaíça atordoado acendeu o candeeiro,
à cata das ilusões perdidas,
da mocidade e da saúde que ficaram soterradas
lá nas minas do Jone...
A mocidade e a saúde,
as ilusões perdidas
que brilharão como astros no decote de qualquer lady
nas noites deslumbrantes de qualquer City.
Não Me Lavem o Rosto
Autor: Sukrato
Boavista, Cabo Verde, 1951
Não me lavem os olhos!
Não; já disse não!
Deixai-me ver,
sentir, viver tudo em mim
mas não me lavem os olhos!
Deixai-me crer por mim
aceitar a realidade
mas não me barrem a caminhada
não me lavem os olhos!
Deixai-me sofrer realidade
ao sonhar fraternidade
mas... por favor...
não me lavem os olhos!
Curvo-me ao Obstinado Peso das Raízes
Autor: José Luís Tavares
Cabo Verde
Curvo-me ao obstinado peso das raízes.
Mais alto se erguem os morosos frutos
da inquietude. Por todo o meu corpo
animais em deserção, bélicos murmúrios,
impendentes murmúrios, desdenhada fortuna.
Não sei de barcos, não sei de pontes,
para outro tão melodioso território.
Afeiçoados ficaram os olhos ao sonhado
verde dos campos. Derrotados sob o
adivinhado zelo do sol por quantos dias
a ilha estremece ao temor da sede
e da ruína.
Deram-lhe navegadores nome de santo,
quando à vista das angras lágrimas
e gritos se confundiram. E na hora terreal,
feito o sinal da cruz, divisa de quem
por tão longes terras os mandara navegar,
um destino de penumbra ali se traçou.
E ficámos náufragos, irmãos dos chibos,
pela ocidental terra que o dia já desnuda.
Pelos sinos da matriz avisando da inexorável
aproximação dos corsários (um tempo
de rapina subjaz ainda na memória desses
anos) eu vos saúdo, velho cadamosto,
diogo gomes, antónio da noli; eu vos saúdo
desde esses picos de sede de onde a noite
mais veloz se confunde com os desfraldados
estandartes da alegria.
Cerimónia de Passagem
Autor: Paula Tavares
Angola
Luanda, 1985
"a zebra feriu-se na pedra
a pedra produziu lume"
a rapariga provou o sangue
o sangue deu fruto
a mulher semeou o campo
o campo amadureceu o vinho
o homem bebeu o vinho
o vinho cresceu o canto
o velho começou o círculo
o círculo fechou o princípio
"a zebra feriu-se na pedra
a pedra produziu lume"
Coração em África
Autor: Francisco José Tenreiro
São Tomé
1967
Caminhos trilhados na Europa
de coração em África
Saudades longas de palmeiras vermelhas verdes amarelas
tons fortes da paleta cubista
que o sol sensual pintou na paisagem;
saudade sentida de coração em África
ao atravessar estes campos de trigo sem bocas
das ruas sem alegrias com casas cariadas
pela metralha míope da Europa e da América
da Europa trilhada por mim Negro de coração em África.
De coração em África na simples leitura dominical
dos periódicos cantando na voz ainda escaldante da tinta
e com as dedadas de miséria dos ardinas das cities boulevards e baixas da Europa
trilhada por mim Negro e por ti ardina
cantando dizia eu em sua voz de letras as melancolias do orçamento que não equilibra
do Benfica venceu o Sporting ou não.
Ou antes ou talvez seja que desta vez vai haver guerra
para que nasçam flores roxas de paz
com fitas de veludo e caixões de pinho:
Oh as longas páginas do jornal do mundo
são folhas enegrecidas de macabro blue
com mourarias de facas e guernicas de toureiros.
Em três linhas (sentidas saudades de África) -
Mac Gee cidadão da América e da democracia
Mac Gee cidadão negro e da negritude
Mac Gee cidadão Negro da América e do Mundo Negro
Mac Gee fulminado pelo coração endurecido feito cadeira eléctrica
(do cadáver queimado de Mac Gee do seu coração em África e sempre vivo
floriram flores vermelhas flores vermelhas flores vermelhas
e também azuis e também verdes e também amarelas
na gama policroma da verdade do Negro
da inocência de Mac Gee) - três
linhas no jornal como um falso cartão de pêsames.
Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas de Guillen
de coração em África com a impetuosidade viril de I too am America
de coração em África com as árvores renascidas em todas estações nos belos
poemas de Diop
de coração em África nos rios antigos que o Negro conheceu e no mistério do
Chaka-Senghor
de coração em África contigo amigo Joaquim quando em versos incendiários
cantaste a África distante do Congo da minha saudade do Congo de coração em
África,
de coração em África ao meio dia do dia de coração em África
com o Sol sentado nas delícias do zénite
reduzindo a pontos as sombras dos Negros
amodorrando no próprio calor da reverberação os mosquitos da nocturna
picadela.
De coração em África em noites de vigília escutando o olho mágico do rádio
e a rouquidão sentimento das inarmonias de Armstrong.
De coração em África em todas as poesias gregárias ou escolares que zombam
e zumbem sob as folhas de couve da indiferença
mas que tem a beleza das rodas de crianças com papagaios garridos
e jogos de galinha branca vai até Franca
que cantam as volutas dos seios e das coxas das negras e mulatas
de olhos rubros como carvões verdes acesos.
De coração em África trilho estas ruas nevoentas da cidade
de África no coração e um ritmo de be bop be nos lábios
enquanto que à minha volta se sussurra olha o preto (que bom) olha
um negro (óptimo), olha um mulato (tanto faz)
olha um moreno (ridículo)
e procuro no horizonte cerrado da beira-mar
cheiro de maresias distantes e areias distantes
com silhuetas de coqueiros conversando baixinho a brisa da tarde.
De coração em África na mão deste Negro enrodilhado e sujo de beira-cais
vendendo cautelas com a incisão do caminho da cubata perdida na carapinha
alvinitente;
de coração em África com as mãos e os pés trambolhos disformes
e deformados como os quadros de Portinari dos estivadores do mar
e dos meninos ranhosos viciados pelas olheiras fundas das fomes de Pomar
vou cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa a própria cor da pele
dos homens brancos amarelos negros ou as riscas
e o coração entristece à beira-mar da Europa
da Europa por mim trilhada de coração em África;
e chora fino na arritmia de um relojo cuja corda vai estalar
soluça a indignação que fez os homens escravos dos homens
mulheres escravas de homens crianças escravas de homens negros escravos dos homens
e também aqueles de que ninguém fala e eu Negro não esqueço
como os pueblos e os xavantes os esquimós os ainos eu sei lá
que são tantos e todos escravos entre si.
Chora coração meu estala coração meu enternece-te meu coração
de uma só vez (oh orgão feminino do homem)
de uma só vez para que possa pensar contigo em Africa
na esperança de que para o ano vem a monção torrencial
que alagará os campos ressequidos pela amargura da metralha
e adubados pela cal dos ossos de Taszlitzki
na esperança de que o Sol há-de prenhar as espigas de trigo para os meninos viciados
e levará milho as cabanas destelhadas do último rincão da Terra
distribuirá o pão o vinho e o azeite pelos alíseos;
na esperança de que as entranhas hiantes de um menino antípoda
haja sempre uma túlipa de leite ou uma vaca de queijo que lhe mitigue a sede da existência.
Deixa-me coração louco
deixa-me acreditar no grito de esperança lançado pela paleta viva de Rivera
e pelos oceanos de ciclones frescos das odes de Neruda;
deixa-me acreditar que do desespero másculo de Picasso sairão pombas
que como nuvens voarão os céus do mundo de coração em Africa.
Romance de Sam Marinha
Autor: Francisco José Tenreiro
São Tomé
Ilha de nome santo, 1942
Sam Marinha
a que menina foi no norte
chegou naquele navio à ilha.
Risadas brancas
e goles de champagne!
A hora do espalmadoiro
os moços do comércio
passaram de gravatas garridas.
O monhé chegou na porta
e limpou o suor
ao lenço de seda que importou do Japão!
Ai!
Aquela que chegou na ilha
como uma risada branca
está fechando a carinha à terra.
Braços pendentemente tristes
só os olhinhos
estão pulando para lá da fortaleza
querendo ver a Europa!...
À hora do espalmadoiro
os moços do comércio
passaram de gravatas garridas.
O monhé chegou na porta
e limpou o suor
ao lenço de seda que importou do Japão!
Ai!
Aquela que chegou na ilha
como uma risada branca
está fechando a carinha à terra.
Braços pendentemente tristes
só os olhinhos
estão pulando para lá da fortaleza
querendo ver a Europa!...
Coleccionador de Quimeras
Autor: António Tomé
Quando as minhas angústias
começam a morder-me
ponho-lhes a trela
saio a rua a passeá-las
e deixo-as ladrar
ao tédio transeunte.
Depois ponho-lhes asas
e deixo-as voar
como pássaros
em busca de primaveras
imprevisíveis.
Nunca é Tarde
Quando no cais só fica ancorada
A indiferença e já não resta nada
Senão as ilusões a que te agarras.
Ouve a voz inefável das guitarras
Tingindo de paixão a madrugada
No fim duma viagem povoada
Do canto indecifrável das cigarras.
Saberás então que há sempre um começo
No profano rio em que a vida arde,
E é nessa maré viva que estremeço.
Mas, ainda que saibas que nunca é tarde,
não tardes, que sem ti eu anoiteço,
E não peças jamais ao rio que aguarde."
Exemplo Geral
Autor:João Vario (conhecido também como T.T.Tiofe)
S. Vicente, Cabo Verde 1937
Exemplo Geral, 1966
(Fragmento)
Há muito passado no estar aqui com o tempo,
Fim e reconhecimento, e não sofrendo nada mais do que o tempo concede,
Fim de novo e reconhecimento de novo
E tudo é crime, ou crime sempre, crime ou crime,
Criminosissimamente crime,
Quando arriscamos a intensidade, comemorando.
Aumento e festa, ou cilício, e tempo de cair e tempo de seguir,
Tempo de mal cair e tempo de mal seguir,
Oh amamos tanto, amamos tanto estar aqui com o tempo
E sabendo que há nisso pouco passado.
Porque maiores que os desígnios da vida
São os desígnios da medida e, divididos
Em dois por eles, com eles indo, se por eles
Ganhamos o tempo, pedimos a forma mais fácil
De indagar que vamos morrer e, um dia, se
O tempo for deles e, a memória, de outros,
Havemos de ser úteis como mortos há muito,
Sem que a causa, o delírio, a designação,
O julgamento nossa medida abandonem,
Dividida em duas por elas, e ganhando constância.
Depois, depois faremos ou fará o tempo, por sua vez,
Aquele blasfemissimo comentário,
E então consta que amámos.
Fragmento
Autor: João Vario
S. Vicente, Cabo Verde, 1937
Exemplo Relativo, 1968
E então subimos aquele grande rio
e as portas do Rodão, chamadas. Era em abril
dois dias depois da neve
e da cidade dos nevões, na serra.
E olhamos para os penhascos da beira-rio,
as oliveiras, o chisto, a cevada
as ervas de termo, e as colinas.
E, junto da via férrea, os homens do país
miravam-nos como se fôssemos nós
e não eles os mortos desta terra,
homens do medo e do tempo da discórdia
que trazem para o cimo das estradas
a malícia que vai apodrecendo
seus pés neste mundo e em terras de outrem.
Que fazeis do mundo e da sua chama imponderável, o homens,
perdidos que estais, hoje como ontem,
entre a casa e o limiar?
E evocamos, mais uma vez, esse provérbio sessouto.
E, na verdade, porque regressaremos,
após tantos anos, a este tema?
Será que a morte nos ensinou
a olhar para o homem com pavoroso êxtase?
Canto do Verbo em Busca da Forma
Autor: Teodomiro Alberto Azevedo Leite de Vasconcelos
Moçambique
Teodomiro Alberto Azevedo LEITE DE VASCONCELOS nasceu a 4 de Agosto de 1944. Faleceu no dia 29 de Janeiro de 1997, vítima de prolongada doença. Alguns dias antes de falecer disse: "gostaria de ter publicado o meu livro". Com o título "Resumos, Insumos e dores emergentes", o mesmo foi lançado pela AEMO (colecção Timbila No 16) em agosto de 1997, numa cerimónia que juntou muitos amigos.
Eu presido a todos os enganos
os do céu os da terra há tantos anos
que nem o tempo os lembra Antes do mar
fui voo Antes do sal fui mar
e sede antes da água fresca Antes do verso
eu fui a poesia Eu sou antes de Deus e do universo
Estando antes eu nunca fui ontem
e sendo a tudo preso nunca fui refém
nem de mim mesmo porque a minha fome
não tem distância horizonte não tem nome
Sempre que me contam sou inumerável
sempre que me caçam sou invulnerável
Eu nunca estou no pé e nunca estou no passo
a minha dimensão é outra sou o compasso
cósmico a que palpitam todas as galáxias
e a que se geram flores nos ramos das acácias
Não fui planeado nem projecto Não sou vontade
Nas letras de prisão lêem-me liberdade
não a minha a tua a deles ou a de todos
Eu sou a liberdade do desejo Do desejo dos lodos
e das aves dos rios dos homens e mulheres
de todo o espaço de todas as coisas de todos os seres
Por isso eu presido a todos os enganos
os do céu os da terra há tantos anos
que nem o tempo os lembra Sou a razão
de todas as derrotas o coração
da mágoa as mãos do desespero
Eu sempre estou e permaneço e espero
desde o cáos e canto o refazer do desejo
na sua liberdade como lábios no beijo
Em mim tudo recomeça
grão a grão ponto a ponto peça a peça
mão a mão sol a sol segundo a segundo
porque comigo recomeça o mundo
até que tudo seja o que não vejo
até que o mundo seja o do desejo"
Declaração
Autor: Leite de Vasconcelos
Moçambique
in "Irmão do Universo, AEMO/93, p. 101
Eu, abaixo assinado, embalsamador de profissão,
declaro por minha honra
que deste corpo extraí o que pulsava
e fazia cumprir suas funções
quando funcionava.
Mais declaro que nele não encontrei
outro elemento além dos ditos e descritos
nos comuns manuais de anatomia.
Ausentes dele qualquer abstracção,
sintomas de tristeza, desagrado,
sinais de medo ou discordância
em relação à hora da paragem.
Por minha fé ainda certifico
a apropriada condição estéril
do que remanesceu e expeço via aérea
com garantia firme
de ser reconhecido por quem o conheceu
quando o corpo era inteiro e se reconhecia."
Ladaínha
Autor: Leite de Vasconcelos
in "Irmão do Universo", colecção Timbila no 12 da AEMO, 1993
Leite de Vasconcelos nasceu em 1944 e é predominantemente jornalista. Tem trabalhos dispersos em jornais, revistas e antologias. "Irmão do Universo" foi o seu primeiro livro.
extraído d' O Ciclo da cidade, p. 36
XXV
Pela noite pela rua
passamos gatos e cães
somos as lendas raivosas
do sangue das nossas mães
Pela noite pela rua
somos cavernas e vento
temos a boca cansada
do asfalto e do cimento
Pela noite pela rua
somos navalhas abertas
já fomos estátuas mas
tivemos canções e festas
Pela noite pela rua
vendemos a mocidade
somos canções esquecidas
parasitas da saudade
Pela noite pela rua
de braço em braço tocado
tecemos o nosso tempo
levamos a morte ao lado
Pela noite pela rua
já nem somos o pecado
perdoou-nos o silêncio
deste seio amarrotado."
Baião de Luanda
Autor: Reis Ventura
Angola
Tão velhinha e tao linda, e tão presa
nos mistérios das ondas do mar,
é Luanda uma flor, uma beleza
com perfume e encantos sem par.
De S. Paulo à Marginal
- Vem ver , meu amor! -
Luanda ao sol-por,
Como é sem favor, divinal!
Raparigas do Bungo e da Samba,
do Cruzeiro e da Se, do Balão,
na Paris, Polo Norte ou Mutamba,
são a nossa maior tentação.
Nesta terra onde eu nasci
eu quero casar
e ter o meu lar
e rir e chorar
só por ti.
Pelos bailes selectos da Alta,
nos batuques tão ricos de cor,
é Luanda que dança e que salta,
numa festa de vida e amor.
Bungo, Samba e Sambizanga
ou Portas do Mar
- Tudo isto é Luanda,
cidade e quitanda
ao luar...
Tão velhinha e tão bela e fagueira,
debruçada nas ondas do mar,
É Luanda sagaz, feiticeira.
Quem cá chega, cá quer ficar!
As Idades da Pedra - I
Autor: Cândido da Velha
Angola
in As Idades de Pedra, 1969
É do mar que vêm estas vozes
silabando a linguagem das marés,
gravando na areia estranhas grafias
onde, quem sabe ver, desvenda o rumo
no sobressalto das ondas.
Este permanente arfar marinho
desperta a ressonância de oculto escuro
de obscuros templos submersos onde o coração,
descompassadamente, se perturba
na iminência do segredo revelado.
Cheiros de primeira pâtria,
nesta urgência de sal em nossos membros,
atrai as pegadas para a líquida planura
pela saudade de verde glauco
que estira o corpo na fronteira do mar.
Reminiscência da primeira voz,
neste marulhar à concha dos ouvidos,
desperta nossa cólera e angústia
de malograda fuga e de nos vermos,
na babugem das águas, de olhos vítreos,
adormecidos peixes sobre a areia.
Idades da Pedra - II
Autor: Cândido da Velha
Angola
in As Idades de Pedra, 1969
As pálidas luas das tuas mãos negras,
os olhos da paisagem insular,
teu corpo conspirando com a noite,
(beijo africano de húmidas pressões),
toda a claridade da hora aprofundada
no ventre generoso e farto.
A viagem regressiva aos ancestrais:
O reencontro para lá da linha quebrada,
oculta no tempo; justificação
de sermos outra vez humanos, simples,
tudo nas pálidas palmas das mãos
quando, materna, apresentaste o peito
à concha do ouvido para que ouvisse
o rumor da noite longinqua
e permitiste ao sono que viesse, amável,
na grande verdade a nosso respeito.
e em toda aquela aurora sem mentira
arborizando o corpo quebrantado
ansiávamos o dia para celebrarmos
o cacimbo matinal em nosso olhar
no fresco odor da casa de madeira.
Dia de Chuva no Mato
Autor: Geraldo Bessa Vitor
Angola
"Chove,
E a trovoada
é um batuque incessante,
uma estranha batucada.
Os raios sao setas de fogo
que mesteriosamente, em tom de guerra,
espiritos do mal lancam da Altura
para incendiar a Terra.
O vento
Ora violento, ora brando,
o vento é o cazumbi dos cazumbis
-o deus do mar, do ria e da floresta-
que vai cantando e dancando,
em tragicómica festa,
o seu coro de mil vozes,
os seus bailados febris.
As nuvens negras sao virgens tontas,
quais almas do outro mundo,
errando como sonambulas
pelo ceu negro e profundo...
E a chuva, constante e forte,
é o pranto (parece eterno)
dos deuses negros que a Morte
sacrificou no Inferno.
Não Venhas Mais ao Cais
Autor: Geraldo Bessa Victor
Angola
não venhas mais ao cais, menina negra.
Que esperas tu ainda?
já sabes a tua sina:
o branco que partiu não volta mais!
E tu, olhando o cais,
menina negra linda,
ves o teu lindo sonho que já finda...
Cantaram o feitiço do teu corpo,
nessa noite sensual em que tiveste
por lencol nupcial uma folha de palma;
cantaram o feitiço do teu corpo,
mas não sabias nem soubeste
que o branco tem feitiço na alma.
Habituada ao balouco da canoa
nas margens do rio Dande,
e depois embalada pelo amor,
sonhaste viajar num enorme vapor
que navega no mar grande
e vai para Lisboa!
Ouve, menina negra: mato não é cidade,
oceano não é rio, dongo não é navio
e o sonho que sonhaste não é sonho, é saudade...
não venhas mais ao cais,
que o branco não volta mais!
O Menino Negro Não Entrou na Roda
Autor : Geraldo Bessa Victor
Angola
O menino negro não entrou na roda
das crianças brancas - as crianças brancas
que brincavam todas numa roda viva
de canções festivas , gargalhadas francas...
menino negro não entrou na roda.
E chegou o vento junto das crianças
- e bailou com elas e cantou com elas
as canções e danças das suaves brisas,
as canções e danças das brutais procelas.
O menino negro não entrou na roda.
Pássaros, em bando, voaram chilreando
sobre as cabecinhas lindas dos meninos
e pousaram todos em redor. Por fim,
bailaram seus vôos, cantando seus hinos...
O menino negro não entrou na roda.
"Venha cá, pretinho, venha cá brincar"
- disse um dos meninos com seu ar feliz.
A mamã, zelosa, logo fez reparo;
o menino branco já não quiz, não quiz...
o menino negro não entrou na roda.
O menino negro não entrou na roda
das crianças brancas. Desolado, absorto,
ficou só, parado com olhar cego,
ficou só, calado com voz de morto.
O Feitiço do Batuque
Autor : Geraldo Bessa Victor
Angola
Sinto o som do batuque nos meus ossos,
o ritmo do batuque no meu sangue.
é a voz da marimba e do quissange,
que vibra e plange dentro de minhàlma,
- e meus sonhos, já mortos, já destrocos,
ressuscitam, povoando a noite calma.
Tenho na minha voz ardente o grito
desses gritos febris das batucadas,
nas noites em que o fogo das queimadas
parece caminhar para o infinito...
E meus versos sao feitos desse canto,
que o vento vai cantando, em riso e pranto,
quanto o batuque avanca desflorando
o silêncio de virgens madrugadas.
Músicos negros, colossos,
e negras bailarinas, sensuais,
tocam e dancam, cantando,
agitando meus impetos carnais.
O batuque ressoa-se nos ossos,
seu ritmo louco no meu sangue vibra,
vibra-me nas entranhas, fibra a fibra,
sinto em mim o batuque penetrando
- e já sou possuido de magia!
A batucada tem feitiço eterno.
O batuque de dor e de alegria,
que sinto no meu ser, dentro de mim,
nunca mais tera fim,
nem mesmo alem do Ceu e alem do Inferno!
Capítulo 15. O Camaleão
Autor: Alberto Viegas
Angola
in " O que nos dizem certos animais" (contos e fábulas)
Alberto Viegas nasceu em Kharau, distrito de Cuamba, província do Niassa, a 10 de Junho de 1927. É professor sendo este o seu primeiro livro publicado. Edição da Associação Moçambicana de Escritores, colecção " a palavra ao lado", n. 2
" O desgraçado tinha-se enganado de todo. Afinal, as cinzas não estavam frias como ele pensava e escondiam perigosa e traiçoeiramente um fogo vivo...
Ficou com as mãos, os pés e todo o corpo gravemente queimados. A sua sorte foi passarem por ali, naquele mesmo instante, uns viandantes que, acorrendo em seu socorro, o tiraram do fogo e o levaram a um , onde ficou internado durante muito tempo, recebendo tratamento que o salvou da morte, ficando apenas com dois dedos em cada mão e em cada pé.
Uma vez curado, o camaleão decidiu firmemente nunca dar um único passo sem se ter certificado da ausência de fogo e doutros perigos. E... vai cumprindo até hoje:- Uma vez, queimei-me!... Uma vez, queimei-me!- diz o camaleão de cada vez que levanta e poisa a mão ou pé nalgum sítio, no seu passo vacilante."
Nirvana
Autor: Jorge Viegas
Moçambique
in "Vozes Poéticas da Lusofonia", Sintra 1999
Ser como uma arvore na paisagem,
Existir, existir sem sofrimento.
Buscar na placidez o alimento,
Tornar menos pesada a minha imagem.
Estar, mas num estar que é viagem.
Iluminar o sol, esporear o vento,
deixar adormecer o pensamento,
Não haver marcas da minha passagem.
Esboroar-me na terra humilde e fria
Sem o suor negro da melancolia
A orlar-me a testa, a inundar-me os nervos.
Poeta que não sou, vida que não tive
Permiti que o sono que em mim vive
Se torne o mais humilde dos meus servos.
Isto é Que Fazem de Nós
Autor: Armenio Vieira
Ilha de Santiago, Cabo Verde, 29/1/1941
Isto!
E perguntam-nos:
- sois homens?
Respondemos:
- animais de capoeira.
Dizem-nos:
- bom dia.
Pensamos:
lá fora...
Isto é que fazem de nós
quando nos inquirem:
- estais vivos?
E em nós
as galinhas respondem:
- dormimos.
Poema
Autor: Arménio Vieira
Praia, Santiago, Cabo Verde 1941-
1962
Mar! Mar!
Mar! Mar!
Quem sentiu mar?
Não o mar azul
de caravelas ao largo
e marinheiros valentes
Não o mar de todos os ruídos
de ondas
que estalam na praia
Não o mar salgado
dos pássaros marinhos
de conchas
areias
e algas do mar
Mar!
Raiva-angústia
de revolta contida
Mar!
Siléncio-espuma
de lábios sangrados
e dentes partidos
Mar!
do não-repartido
e do sonho afrontado
Mar!
Quem sentiu mar?
Sofrimentos
Autor> Carlos-Edmilson M. Vieira
Guinéu-Bissau
in "Um Cabaz de Amores", Éd. Nouvelles du Sud, Ivry-sur-Seine, 1998
A dor que em mim mora
não é o mal no meu corpo
carne destinada à terra húmida
última guardiã do sofrimento
pois esse já fiz oferenda
ao mais Homem de todos os Homens
mumificado pela injustiça humana
que estrangula o nosso ser
a dor que em mim mora
é a que vi em Bissau
é a que viveram na travessia para Dakar
é a que viveram na travessia para Cabo Verde
é a que vejo no corpo dos outros
MESMO
Coqueiro
Autor: Tomaz Vieira da Cruz
Angola
Ali, na rua do Carmo
um coqueiro ficou abandonado
quando destruiram a casa velha
a que deu sombra.
E onde um par enamorado
teve sonhos de Amor,
nesse pedaco de Luanda antiga
agora modernizada.
E o coqueiro ligado ah terra,
tombado na direcção
da Rua da Pedreira,
como filho nos maternos bracos
ali ficou.
Talvez para saudar alguem
que muito sofreu e amou...
Mas tudo acaba e o tempo
tudo anda a destruir,
- porque tudo é passageiro,
quando se vive a mentir.
Oh pincelada verde na cidade,
ruina e gotica coluna
de marmore verde...
Morre, coqueiro morre,
Antes que os homens, tao maus,
cometam a crueldade
de te expulsar e matar.
Morre de pura saudade...
E perdoa, mas sofre como um homem,
coqueiro das verdes palmas,
porque tudo, afinal, na vida, é triste
quando se matam almas...
Fruta
Autor: Tomaz Vieira da Cruz
Angol
Quitanda de fruta verde,
da-me um gomo de laranja
para matar a sede.
Ou, então, será melhor
dar-me um veneno qualquer
porque eu ando perturbado
e o meu sonho anda queimado
por uns olhos de mulher!
- Minha senhora, laranja,
limao, fresquinho, caju,
ananas ou abacate!...
E a quintandeira passou,
saudavel, viva, graciosa,
com uma flor desfolhada
no seu sorriso escarlate.
E no ar um som de musica ficou
e um perfume de fruta
que não matou minha sede
Oh agri-doce quitanda
da fruta verde!...
N'gola - Flor de Bronze
Autor : Tomaz Vieira da Cruz
Angola
Filha de branco que morreu na guerra
e de uma preta linda do Libolo,
o teu olhar ate de noite encerra
todo o luar das lendas do Catolo!
Oh flor estranha! já não tem consolo
a tua magoa, a tua dor na terra!
Oh flor estranha do febril Capolo
neta dum soba que perdeu a guerra!
Estatua ardente em bronzeadas chamas
que tentação e perdição derramas
por sobre a história negra, quase finda!
Neta dum soba que acabou chorando,
filha de branco que morreu lutando
e duma preta tristemente linda!
Quissange - Saudade Negra
Autor: Tomaz Vieira da Cruz
Angola
não sei, por estas noites tropicais,
o que me encanta...
Se é o luar que canta
ou a floresta aos ais.
não sei, não sei, aqui neste sertão
de música dolorosa
qual é a voz que chora
e chega ao coração...
Qual o som que aflora
dos lábios da noite misteriosa!
Sei apenas, e isso é que importa,
que a tua voz, dolente e quase morta,
já mal a escuto, por andar ausente,
já mal escuto a tua voz dolente...
Dolente, a tua voz "luena",
lá do distante Moxico,
que disponho e crucifico
nesta amargura morena...
Que é o destino selvagem
duma canção em que tange,
por entre a floresta virgem
o meu saudoso "Quissange".
Quissange, fatalidade
deste meu triste destino...
Quissange, negra saudade
do teu olhar diamantino.
Quissange, lira gentia,
cantando o sol e o luar,
e chorando a nostalgia
do sertão, por sobre o mar.
Indo mares fora, mares bravos,
em noite primaveril
acompanhando os escravos
que morreram no Brasil.
não sei, não sei,
neste verão infinito,
a razão de tanto grito...
-Se és tu, oh morte, morrei!
Mas deixa a vida que tange,
exaltando as amarguras,
e as mais tristes desventuras
do meu amado Quissange!
Rebita
Autor: Tomaz Vieira da Cruz
Angola
Mulata da minha alma
batuque dos meus sentidos,
meus nervos encandecidos
vibram por ti, sem ter calma.
Por isso vou ah rebita,
quase triste e indeciso,
a queimar minha desdita
nas chamas do teu sorriso.
E, triste, assim, vou dancar,
vou dancar e vou beber
o vinho do teu olhar,
que me faz entontecer.
Ouvindo, longe, tocar
o quissange do gentio,
que vive, alem no palmar,
onde corre o verde rio!
E depois adormecer
na tua esteira de prata,
onde quero, enfim, morrer,
oh minha linda mulata.
..........................................
Mulata da minha alma,
batuque dos meus sentidos...
Por isso vou ah rebita,
quase triste e indeciso,
a queimar minha desdita
nas chamas do teu sorriso.
Romance de Luanda
Autor: Tomas Vieira da Cruz (1900/1960)
radicado em Angola desde 1924
in Tatuagem - Poesia d'Africa, 1942
Coqueiros esguios - leques ao vento
abanando a Ilha.
Um dongo flutua
na baia.
E ela, a negra maravilha
condecorada com reflexos de prata
com que o céu a está beijando,
com que o céu a está vestindo,
- adormeceu sonhando
placidamente sorrindo.
Nas águas verdes da baia calma,
caem pétalas vermelhas
de uma linda flor de ónix!
E o timoneiro, um preto atleta,
jovem pescador
e um brutal Cupido,
- é o Deus do Amor
em bronze reproduzido!
Nas águas verdes da baia calma,
caem pétalas de sangue,
duma flor já desfolhada...
Um dongo flutua
na baia.
Vai rompendo a madrugada!
Canção Para Luanda
Autor: Luandino Vieira
Angola
A pergunta no ar
no mar
na boca de todos nos:
- Luanda onde esta?
silêncio nas ruas
silêncio nas bocas
silêncio nos olhos
- Xé
mana Rosa peixeira
responde?
-Mano
não pode responder
tem de vender
correr a cidade
se quer comer!
"Ola almoco, ola almocoeee
matona calapau
ji ferrera ji ferrereee"
- E voce
mana Maria quintandeira
vendendo maboques
os seios-maboque
gritando, saltando
os pes percorrendo
caminhos vermelhos
de todos os dias?
"maboque, m'boquinha boa
doce docinha"
- Mano
não pode responder
o tempo é pequeno
para vender!
Zefa mulata
o corpo vendido
baton nos labios
os brincos de lata
sorri
abrindo o seu corpo
- seu corpo cubata!
Seu corpo vendido
viajado
de noite e de dia.
- Luanda onde esta?
Mana Zefa mulata
o corpo cubata
os brincos de lata
vai-se deitar
com quem lhe pagar
- precisa comer!
- Mano dos jornais
Luanda onde esta?
As casa antigas
o barro vermelho
as nossas cantigas
tractor derrubou?
Meninos das ruas
cacambulas
quigosas
brincadeiras minhas e tuas
asfalto matou?
- Manos
Rosa peixeira
quitandeira Maria
voce tambem
Zefa mulata
dos brincos de lata
- Luanda onde esta?
Sorrindo
as quindas no chão
laranjas e peixe
maboque docinho
a esperanca nos olhos
a certeza nas mãos
mana Rosa peixeira
quitandeira Maria
Zefa mulata
- os panos pintados
garridos, caidos
mostraram o coração:
- Luanda esta aqui!
Sons
Autor: Luandino Vieira
Angola
1963
A guitarra
é som antepassado.
Partiram-se as cordas
esticadas pela vida.
Chorei fado.
Que importa hoje
se o recuso:
o ngoma é o som adivinhado!
Cançao para Joana Maluca
Autor: Joao Maria Vilanova
Angola
Para eles
eras unicamente a suja
a piolhosa
colhendo beatas
á porta do Nacional
E lestos
enquanto o sol brincava
no ombro alcantilado
das encostas
seus rafeiros te lancavam
de dentro dos quintais.
Joana
eles sabiam tua mao
e a temiam
(tua mao espinho-de-piteira
tua mao ngana-acusadora-mesmo
ah! kikata kikata muene)
ate quando
estendida tua mao
pedia.
Na escudela da noite entre cassuneiras e muxixis uma pobre escura flor adormecia...
Canção na morte de nga-Caxombo
Autor: Joao Maria Vilanova
Angola
Olho nga-Caxombo ali
na esteira
deitado morto
a todo comprimento
Vejo-o caminhar sem descanso
do Amboim ao Seles
do Seles ao quipeio
outra vez ao Seles
rotas sem rota mato longe
quem que sabia?
Tipoia o ombro pesava que pesava
duramente Zua
e voz de Kalandu
voz serena do sertao
ele a escutava
atraves do fogo
atraves da agua
o geito sem raizes
de amar o coração das coisas.
Olho-o pela vez ultima
na luz rasante desse dez de Julho
a barba ah monangamba
cavada sua negra face
morto
deitado morto
a todo o comprimento.
15 - Lei do Passe
Autor: Tomas Vimaro
Moçambique
in "Terra do Alambique", V Capítulo
Tomas Vieira Mario, de seu verdadeiro nome, nasceu em Inhambane a 6/5/1959. É jornalista e tem publicações dispersas por jornais moçambicanos e portugueses. Fez parte do movimento CHARRUA e "Terra no Alambique" é o seu primeiro livro, o qual foi escrito entre 1979 e 1984.
"...
- Ai tem pequeno problema - atrapalhou-se a outra. - É que não tem mesmo tampa... Mas minha senhora deve ter em sua casa panelas do mesmo tamanho, para a questão da tampa - apressou-se a considerar, a Ancia outra vez de mãos nas ancas, no seu espanto.
- Mas... como não tem tampa?!
- Minha senhora... é que não deu tempo... para apanhar as tampas, na fabrica. São coisas que a gente tira lá mesmo na hora do despego, naquela pressa toda, por causa dos vigilâncias populares, está a ver, não? Então acontece que no mesmo dia que apanhei estas panelas, o chefe da secção, na atrapalhice das pressas, tinha chegado primeiro e ficado com as tampas, para mais tarde lá voltar buscar então as panelas. A sorte, minha senhora, é que eu cheguei lá a tempo e então carreguei logo as panelas... - divertida com a história, ela mesmo dizia isto rindo as gargalhadas, e a Ancia aproveitou para rir também, admirada. - Minha senhora, o que é que pensa?! Se os chefes até são os primeiros no roubo! - E, gelatinosa, o corpo lhe dançava, na gargalhada. - Então, dessa maneira, as tampas quem roubou o chefe!..."
Rota Longa
Autor: Teobaldo Virgínio
Cabo Verde
in "Viagem Para Lá da Fronteira", 1973, Lisboa, Publicações da Casa de Cabo Verde
Irei na rota branca
da rosa de espuma
na hora madrugada
promissora da brisa.
Rota longa rota longa
Irei com a pétala ressequida
da tórrida paisagem
para além das distâncias secas.
Rota longa rota longa
Rota longa de espuma
vou irei espalhar minhas pétalas ressequidas
na hora madrugada
das correntes desatadas.
Rota longa rota longa
Vou irei sem detença
para além das distâncias secas
em busca do abraço ancorado
na outra margem da curva líquida.
Rota longa rota longa
Vou irei na hora alta desta vigília
e a manhã clara acontecerá.
Rota longa rota longa
Vou irei contra todas as cadeias protestantes do meu rumo
em cada protesto que embarco
na ondulação que se desatraca.
O País em Mim
Autor: Eduardo White
Moçambique
Do livro "O País de Mim", Eduardo White colecção Timbila no 10, edição AEMO 1989
O peso da vida!
Gostava de senti-lo à tua maneira
e ouvi-la crescer dentro de mim,
em carne viva,
não queria somente
rasgar-te a ferida,
não queria apenas esta vocação paciente
do lavrador,
mas, também, a da terra
e que é a tua
2.
Assume o amor como um oficio
onde tens que te esmerar,
repete-o até a perfeição,
repete-o quantas vezes for preciso
até dentro dele tudo durar
e ter sentido
Deixa nele crescer o sol
até tarde,
deixa-o ser a asa da imaginação,
a casa da concórdia,
só nunca deixes que sobre
para não ser memória.
Poemas da Ciência de Voar
Autor: Eduardo White
Moçambique
do livro: "Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave", Caminho, Lisboa, 1992
Página 17
"Uma mão relampeja na casa da escrita.
Faísca
Troveja.
Procura um claro instante para a aparição.
Pode-se ve-la correr pelo dorso do papel,
deitada do seu lado ou do seu modo rastejante,
pode-se ve-la provando o ruminante delírio das palavras,
a sua rasante arrumação,
e leva vozes aquela mão em cada delicada passagem,
rítmica, latejante
ou um nervo animal que faz lembrar
a textura pedestre do papel.
Mas a mão voa, explosiva,
e não cai nem agoniza no espaço vibrante onde se comunica.
Voar é um fervoroso recolhimento.
E no que é quase a medida elementar do esquecimento
a escrita navega
num estuário de silêncio.
Escrever é uma droga antiga,
uma bebedeira que queima com lentidão
a cabeça,
traz as luzes desde as vísceras,
o sangue a ferver nas vias tubulantes,
traz a natureza estimulante das paisagens
que temos dentro."
Página 28
"Ocorre-me agora
a pupila minúscula de uma criança.
A sua engenharia
desde o corpo na guerreira pequenez
ao dedo provador da boca.
Ocorre-me esta criança
este monge da franqueza em seu templo de inocência.
Amo-a. Vivo-a.
Voar é poder amar uma criança.
Sonhar-lhe o peso no colo, as mãos acariciantes
sobre a palma da alma.
Voar é tardar a boca
na rosa do rosto de uma criança.
Pronunciar-lhe a ternura,
a seda fresca e pura
da sua infância.
Voar é adormecer o homem
na mão sonhadora
de uma criança."
Sorrisos Mutilados
Autor: Carlos Zimba
Moçambique
na revista "XIPHEFO", Dezembro 1994
"No meu país
a (in)competência doentia
mutila-nos o sorriso
e nós teimosamente
arranjamos muletas e sorrimos
deitados à sombra da esperancà
esculpida pela nossa paciência
Coragem, gente
pois galopa celere o instante
em que sorriremos sem muletas!"
Os Molwenes
Autor: Isaac Zita
Moçambique
no livro "Os Molwenes"
Com a mão estendida e bem aberta, a cega está sentada no chão de cimento e move sem descanso as pálpebras desprovidas de pestanas, pondo a descoberto, deliberadamente, as cicatrizes vermelhas que figuram no lugar dos olhos.
Um homem idoso pára à frente dela, olha para as horríveis orbitas e mete uma mão no bolso de onde extrai uma moeda de prata.
A seguir, fica alguns instantes a contemplá-la, indeciso, talvez pensando na alegria que com os seis bolos comprados com aquela moeda, poderia proporcionar aos netos quando chegasse a casa.
Uma voz interior segreda-lhe que deve dar a moeda de prata porque é uma boa acção e lá no Céu, Deus-Todo-Poderoso, além de aumentar os seus dias de vida, irá perdoar todos os pecados que cometeu, até mesmo aqueles que já tinha esquecido; outra voz, entretanto, diz-lhe que o melhor será comprar os bolos e fazer essa surpresa aos netos, que por essas e por outras, cada vez o adorarão mais.
Por fim, evitando olhar para os olhos da cega, estende a mão e entrega-lhe uma moeda que ela, sofregamente, se apressa a guardar na capulana rota e suja, com uma rapidez inesperada numa invisual.
Fascinado, o homem de idade permanece de mão estendida e agora vazia, comovendo-se quando a ouve balbuciar um doce "Obrigado", ecoando como o som cristalino da água a deslizar num regato celestial.
Quando o homem se refaz do encantamento, já a cega estende de novo a mão e diz um novo - "Bom dia", continuando sempre a bater com as pálpebras sem pestanejar.
O homem idoso recomeça a caminhar, pressentindo uma lágrima de emoção a querer soltar-se dos olhos e a voz de Deus-Todo-Poderoso a confirmar que os seus pecados já tinham sido absolvidos e prometendo, se ele continuasse a ser assim bonzinho, enviar mais cedo ou mais tarde, uma pomba direita ao seu coração.
...
...
...
- Avô - consegui interromper eu, finalmente - Porque é que Deus é sempre branco e Satanás, sempre negro? É assim que o padreca ensina...
O avô mostrou-se pela primeira vez perturbado e limitou-se talvez por isso, a olhar alternadamente para a pele negra que cobria os nossos rostos e mãos. Depois, levantando-se ruidosamente, apenas disse:
Já vai alta a noite. Vamos dormir, meu filho...
Morte em Dois Actos
Autor: Mauro Pindula
in Jornal Savana, 6/06/1997, Página Juvenil
"Estacionou o carro junto à calçada. Saltou e com dois passos ágeis entrou no edifício do jornal "NOTÍCIAS". Dirigiu-se ao sector de publicidade e preencheu o formulário que encontrou no balcão. Era um texto necrológico. Humedeceu os lábios e disse:
- É para dois dias.
- Traz a foto? - perguntou o balconista. Era grisalho e baixinho. O homem que queria anunciar mexeu na sacola preta de couro e tirou de lá uma foto nítida. Arrastou a foto pelo balcão e o grisalho recebeu-a. Não pôde deixar de abrir os olhos: era a foto do próprio homem.
Entrou silenciosamente e inspirou o cheiro a sândalo. Era reconfortante. Atirou a sacola preta de couro para o chão da sala. Foi buscar café à máquina, sentou-se no sofá e ligou a televisão. Deixou o café a meio e trocou-o por um uísque.
Entretanto soou o telefone. Levantou o auscultador e ouviu uma voz rouca e feminina. Já sabia que não precisaria de cerimónias:
- Jantas comigo?
- Não sei...
A voz do outro lado calou-se.
- Sinto-me algo desestruturado, sabes..."
Stress
Autor: Lilia Momplé
in "Lua Nova", nº 3, abril/junho 1997, órgão da AEMO, p. 7
A amante do major-general crava os olhos no homem que está sentado na varanda do 2o andar mesmo em frente e sibila, indignada: "bêbado".
Consegue vê-lo perfeitamente, recostado na cadeira de napa meio encardida, Xirico na mesinha ao lado, copo de cerveja na mão. "Bêbado", repete ela, sem desviar os olhos do homem "toda a tarde vai beber". E, com estas palavras, procura escamotear de si própria o motivo real da sua indignação.
O homem vai beberricando a cerveja com uma sofreguidão mal contida, a atenção centrada no copo e no Xirico. Por um instante, a amante do major-general supõe que ele dá pela sua presença mas logo se apercebe que, como sempre, aquele olhar resvalante a exclui do seu campo de visão, inteiramente preenchido pelo Xirico e pelo copo de cerveja.
É domingo, e como acontece todos os domingos a esta hora, a amante do major-general vem até à varanda que dá para a rua. Almoçou sózinha, na enorme sala comum que poderia ser alegre e arejada, dadas as suas dimensões, a cor branca das paredes e a ampla porta envidraçada que comunica com a varanda. É, pórem, um local sombrio, tal a profusão de mobiliário de precioso e escuríssimo jambire, alcatifas, bibelots de metal, maples de veludo e pesados cortinados. Até mesmo a poeira parece circular na sala agitadamente, ansiosa por se libertar de tamanha ostentação.
Autor: Simeão Mazuze
in "Calças Molhadas", p. 30
Uma voz rouca e baixa convidou-o a entrar. Empurrando a porta assomou para o interior da cela e abarcou a imagem de um homem deitado sobre um catre de ferro sem colchão coberto com retalhos de cartão, restos duma embalagem de acondicionamento de chá, "Five Roses Tea", lia-se num dos cantos a mercadoria que transportara.
Surpreso por não ver o amigo apesar de ainda em paralelo se encontrar outra cama nas mesmas condições, timidamente balbuciou.
- Boas tardes, senhor... Não é aqui a cela do senhor Mussava?
- Você bateu para perguntar isso? Donde vem você? Não é deste pavilhão concerteza, senão saberia que o Mussava se não está na cela dele o No. 0990, está na cela 0303 a conversar com os amigos dele.
- Obrigado senhor, só queria saber onde encontrá-lo. Não queria incomodar.
- Já disse... desapareça. - redarguiu.
- Já viram isto! Um gajo está a descansar nesta merda fedorenta, a curtir uma de "jell" e aparece um estupor de preso para incomodar e ainda diz que não queria incomodar!
O Tomás boquiaberto retirou a cabeça e respirando fundo fechou a porta. Relanceando o olhar em volta, notou por cima daquela porta estava pintado o No. 090 a vermelho. Tinha-se enganado.
Picasso
Autor: Simeão Mazuze (Salimo Mahomed)
in "Calças molhadas", 1996, edição do autor, o qual é mais conhecido como cantor
Página 8
"- Picasso fez o teu retrato, tal como estás agora no camião, meu amigo!
- O meu retrato? Perguntou Roberto.
- O quê? Não oiço nada. Tenho os ouvidos tapados.
- O teu retrato - repetiu. - Parecidíssimo,... exacto como uma foto. É o retrato do nosso camião.
Três homens que ocupam o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo. Um tem cinco pernas, o outro três cabeças. Tu,... tu tens a voz, mas não tens a boca, e eu não tenho senão a cabeça falta-me o corpo. Uma cabeça que avança no espaço e de cima de um camião.
Quando vi pela primeira vez este quadro, a coisa passava-se em Portugal, gostei muito, mas não compreendi o que ele queria representar. E só agora começo a perceber.
Era o quadro do nosso camião... fielmente pintado. Não lhe escapou um único pormenor. Pinta como se fotografasse. Só coisas reais. É um génio."
O Macaco e o Cágado
Do livro "Contos Macuas", 1992, Associação dos Amigos da Ilha de Moçambique - coordenação de Elisa Fuchs -ilustrações de Malangatana
"O macaco e o cágado fizeram-se amigos. Certo dia, o macaco disse:
- Amigo, vem a minha casa.
O cágado respondeu:
- Está bem.
O cágado saiu e foi a casa do seu amigo. Quando lá chegou, o macaco matou um galo, fez echima, pô-la na mesa e disse:
- Amigo, vamos lá comer a echima.
- Ah, o meu amigo pôs a echima na mesa sabendo que eu não consigo subir? - pensou o cágado. Tentou subir, tentou, mas não conseguiu comer a echima! Por fim resolveu ir para casa, mas antes pediu ao macaco:
- Amigo, dá-me as minhas ferramentas para me ir embora. Quando estava para sair, perguntou ao macaco:
- Quando é que vais a minha casa?
- Hei-de ir na próxima semana - disse o macaco.
- Está bem - respondeu o cágado.
Na semana seguinte, o macaco foi a casa do amigo. Quando lá chegou, mataram um galo, fizeram echima. O cágado deitou fora a água das panelas e disse para o amigo:
- Não há água, mas podes lavar as mãos no poço. Tem cuidado para não as pores no chão quando voltares.
O macaco foi ao poço com a sua mulher. Lavou as mãos e começou a andar só com duas patas. O cágado tinha queimado todo o capim à volta da casa e havia muita cinza. Quase ao chegar, o macaco não aguentou mais e pôs as mãos no chão ficando com elas todas sujas.
Teve que voltar ao poço para as lavar de novo. Fez isto tantas vezes que acabou por desistir. Foi com a sua mulher despedir-se e pedir as suas ferramentas. A partir daí o macaco e o cágado nunca mais voltaram a ser amigos."
echima - farinha de milho cozida
A Guerra dos Cem Anos
Autor: Carneiro Gonçalves, in "Contos Moçambicanos", 1990, Global,Brasil/Livraria Universal, Maputo
"- Ouve - disse a criança.
O adulto soergueu-se, apoiado no mesmo braço.
- Ser mulher e ter um amante é mau?
Para ganhar tempo o homem sentou-se, remexeu na areia.
- Depende.
- Mas pode não ser mau?
- Pode não ser mau.
- Bem - disse a criança - refiro-me ao caso de a mulher não ter marido
Olharam-se bem nos olhos.
- Depende - repetiu o adulto.
- Depende de que??
- De muitas coisas.
- Assim como - insistiu a criança.
- Talvez não entendas.
- Vai à merda.
E logo a seguir: - Desculpa. Pergunto para saber, percebes? Isto não tem nada a ver com a minha mãe. Eu é que quero saber.
...
- Sim, gosta muito dos dois - disse o homem.
- Mas de qual gosta mais?
- Gosta-se sempre mais dos filhos.
- De certeza?
- Não tenho duvidas.
- Bem, - voltou a criança, e foi então que rompeu a chorar. - Parece- me que tens razão. És um tipo simpático, vamos ficar amigos. Tenho dez escudos, vais beber uma laranjada comigo.
- Calha bem - disse o adulto - Estou cheio de sede."
António CARNEIRO GONCALVES apresentava-se assim: "Tenho trinta e um anos, vi a luz do dia em Braga, mas nasci em Tête. Faço questão de conhecer o Zambeze. Com os contos que tenho poderia pelo menos publicar 2 livros. Lá virá o dia. Ensaiei 1 romance que reescrevi várias vezes. Ontem ia mesmo na primeira pagina..."
Não alcançaria o Zambeze, não voltaria ao romance nem assistiu ao lançamento do seu livro "Contos e Lendas", publicado a seguir à sua morte em 1974, com 33 anos. Morreu num acidente de viação, quando viajava para o Zambeze.
A Lua do Advogado
Autor: António Carneiro Gonçalves
in "Contos e Lendas",p. 29-30, Instituto Nacional do Livro e do Disco, 1980
Eu conhecia Noémia há muito tempo. Vi-a pela primeira vez à saída da igreja e comecei logo a gostar dela, assim a modos de paixão, com força, como costumam os homens gostar das mulheres. Mais uma saída, encontrei-a depois no futebol de quinta-feira, outro domingo, engasguei-me ao princípio, ela disse que sim, que eu devia ser franco como um rochedo. Depois comparou-me ainda a um rio (isto mais tarde), que eu tinha a impetuosidade dos rios. Só costumávamos dar beijos à noitinha. No quintal havia uma árvore e uma gazela. A gazela olhava os nossos abraços, roçava-se nas nossas pernas. Uma vez ela até confundiu o roçar da gazela com uma caricia minha e disse "isso não... isso não". Ri como um perdido. Depois veio aquela coisa difícil, aquele momento chato de que nenhum homem gosta. Lá falei aos pais dela, que sim senhor, que eu era honesto e bom rapaz, ela esperava-me cá fora, no quintal. Abraçamo-nos. O resto, os senhores sabem como é, horas a fio, seguidinhas, ela "tenho mais uma renda, a nossa mesinha de cabeceira, a festa, a boda", eu ouvia- a alegre, respondia, disse-lhe muitas vezes que a felicidade de um homem está no verdadeiro amor. Faltava um mes para o casamento. Ah! carago, posso dizer sem mentir que me comoviam os trapos que ela comprava todos os dias e me mostrava sempre. Uma vez, à tardinha, àquela hora em que nos costumávamos dar beijos, eu fui franco como o rochedo e impetuoso como o rio. A lua já tinha nascido, a tal talhada de que falava o advogado. Eu disse-lhe não sei quantas coisas, mordi-lhe os ouvidos (devagarinho, já se vê...), fiz-lhe aquela festa que costumava fazer a gazela. Recordo, lembro-me bem, que ela não disse "isso não... isso não" como tinha acontecido da outra vez. Ela disse apenas "aqui não".
Eu estava aturdido, eu gostava dela a valer. Era sábado. Nos sábados, quando calhava, Noemia ia jantar a casa duma amiga, a Luisa, rapariga que eu conheço bem. Merda para as amigas. Ela disse "aqui não".
Autor: Hilário Manuel Eugénio Matusse
jornalista e escritor nascido a 22 de Junho de 1956 em Maputo
in "Ecos da RDA", Organização Nacional de Jornalistas, capítulo "Candongas e Açambarcamentos na RDA", p. 44
"Estes foram no momento imediatamente anterior às eleições, protagonistas de um fenómeno de açambarcamento nunca visto por ali, segundo se comenta. Formando enormes bichas nos maiores estabelecimentos comerciais, eles adquiriam tudo o que é caro e raro, produtos que habitualmente ninguém olhava para eles. São os casos de televisores a cores e vídeos, electrodomésticos dos mais variados tipos e até de carácter supérfluo, alcatifas, mobílias e também produtos alimentares. E tudo isso era comprado em grandes quantidades.
Pelo que se pode depreender das informações que então correram, há duas razões para este fenómeno: para os géneros alimentícios o problema está ligado a rumores de que o Governo vai retirar proximamente, após as eleições, os subsídios aos preços desses produtos. No que se refere aos móveis e a outros artigos valiosos, trata-se de se precaver da união monetária e suas consequências, pois adquirindo esses artigos todos guarda-se o dinheiro, de forma a reinvesti-lo em momentos mais adequados e quando as coisas já estiverem claras..."
A Viagem de Adalfredo
Autor: Mapfuxa-tô-tala
in "Oásis" - Jovens pela literatura - nº 1, p. 9 - publicação regional propriedade da AEMO e financiada pela Cooperação Francesa
Toda a vez que chega o Verão, como desta vez, o quarto do madala Adalfredo costuma não aguentar muito calor.
O sol do meio-dia, além de se derreter no zinco que protege a mesinha de cabeceira, penetra também por um enorme vazio, deixado por um zinco que sempre faltou. Adalfredo Faz de Tudo, de seu nome completo, chegara a ter o dinheiro para comprar aquele zinco, mas porque quisera apressar a inauguração da casa, optara em comprar bebidas no candongueiro.
Agora a casa sofre de dores de coluna, e parece-se com ele quando encurvado com a bengala.
É por causa desse sol do meio-dia, que Adalfredo estende-se horas e horas na sombra da bananeira. O calor aperta o passo, a sombra abandona-lhe, mas Adalfredo não sente a careca a transpirar. Como que há-de sentir? Os olhos roubaram a mente e foram ficar lá, no infinito.
Cansado de ficar distante, a sua vista mergulhou-o na escuridão. E a mente começou a levá-lo para viajar na boleia dos tempos em que a sua careca ainda curtia na juventude. Lembra da Maria Das Dores, a única mulher que já adorou de verdade, aqueles rapoios de fazer inveja, aquelas tetas ainda verdes que saltavam a corda, bastava Das Dores andar depressa. Lembra do dia do lobolo que ficou com dívida de duas capulanas de chita. Lembra de tudo, desde o dia que viu Das Dores passar pela esquina do Muchina, onde ele vendia dobrada. Mas, Maria Das Dores perdeu-se no tempo. Perdeu-se na noite em que Macuácua, aquele stapor, com braçadeira castanha-amarela e nariz impinado, arrombou a sua porta e indicou-o aos milícias:
- Ele é desempregado!
Viagem em Bicicleta em Moçambique
Autor: Emídio Mabunda
Moçambique
in "Viagem em Bicicleta em Moçambique", p. 9
Do local onde estava, a localidade mais próxima era Inchope e situava-se a cerca de 180 km, mais adiante, havia duas grandes elevações (subidas), nas quais tive dúvidas em as ultrapassar. Para tal tive que pedir uma ajuda divina fazendo uma oração, retomei a caminhada.
Quase a atingir a metade da primeira subida senti nas costelas algo de estranho, soprava um vento quente que me empurrava deixando assim de pedalar, a bicicleta ia sempre subindo. Galgados estes dois monstros o vento que fazia sentir sobre mim parou, assim continuei pedalando todo espantado pelo milagre feito por Deus, cheguei a Inchope onde hospedei na Administração.
Vozes do Sangue
"Eu sou José Zefanias Machava. Tenho 14 anos e sou natural de Massinga, província de Inhambane. O meu pai era um miliciano que os bandidos mataram quando chegaram a minha casa. Depois de matarem o meu pai me exigiram para mostrar os amigos dele. Eu disse que não sabia quem eram nem onde estavam. Então eles cortaram-me um dedo para eu falar. Tornaram-me a perguntar dos amigos do meu pai e eu repeti a dizer que não sabia. Acabaram-me quatro dedos e eu a dizer que não sabia. Ai zangaram mesmo e cortaram-me uma orelha.
Deixaram-me assim mesmo a sangrar e foram embora. Consegui curar com remédios tradicionais, mas esperei um ano até ficar bom. Depois de acabar esse ano, no ano a seguir fui raptado pelos bandidos. Treinei lá na base, aprendi a desmontar arma e a montar. Agora a minha missão era andar a procura de água e de lenha. Um dia desses mandaram- me procurar a agura. Eu aproveitei, abandonei a lata e fugi. Não sabia onde ia, só andava de qualquer maneira. Assim mesmo cheguei num quartel e apresentei aos soldados. Era em Sinhavuro. Quando me pegaram começaram a perguntar de onde eu vinha. Eu disse que estava a fugir dos bandidos. Logo aqueles soldados disseram para eu ir mostrar onde era. Fui lá com a tropa. Encontramos só uma pessoa, que mataram. Então os soldados levaram aquelas coisas da base e eu fui levado para Inhambane. Investigaram-me, investigaram-me até enviarem- me aqui para o Centro de Lhanguene. Vivo bem aqui. Já estou a estudar na 2ª classe."
O livro "Vozes do Sangue" reúne depoimentos de crianças que foram vitimas de atrocidades da guerra em Moçambique. Recolha e tratamento de texto de Eduardo White e Helder Muteia. Edição Tempografica, financiamento da ASDI, Autoridade Sueca para o Desenvolvimento Internacional, e UNICEF, Fundo das Nações Unidas para a Infância.
Vamos Cantar, Crianças
in "Vamos Cantar, Crianças" - Cancioneiro - Vol.1, Edição do Inst. Nacional do Livro e do Disco, Maputo, 1981
1. A dança do jacaré, Ilha de Moçambique
"Eu, Maria, fui lavar os pés
lá no rio onde mora o jacaré
Paro e vejo: quem vem dançar?
É mamã que traz o Tomé p'ra tocar
Toca, toca bem, primo Tomé
Quero ver como dança o jacaré
Ah! o bicho a água engoliu
deu a volta, saltou e logo tossiu
Ei! Já chega meu primo Tomé
Acabei de lavar agora o meu pé"
2. A árvore que eu vi chorar, Ilha de Moçambique
"Queres mesmo saber quem eu vi chorar?
Foi ali, ao pé do jardim
Eu vi uma árvore tão triste
Porque chorava tanto
chorava assim,
sem mais fim
Só não sei quem a fez chorar
Como a vi posso recordar
Tinha um largo tronco, folhas verdes
e uma sombra grande
uma sombra assim
sem mais fim"
3. O passarinho e os outros animais - (Cabo Delgado)
"O elefante
o elefante passeia o passarinho
que lhe tira todos os bichinhos
A palapala
a palapala passeia o passarinho
que lhe tira todos os bichinhos
O crocodilo
o crocodilo passeia o passarinho
que lhe tira todos os bichinhos
O passarinho
o passarinho voa bem baixinho
come muito e volta para o seu ninho"
4. Maria Alegria - (Tête)
"Ouçam o que eu vou contar
ouçam o meu cantar
Saia todo o dia a levar o gado para pastar
via também Maria que logo cedo ia machambar
Enquanto o boi mugia eu via Maria com atenção
e só queria Maria Alegria morando em meu coração
Mais uma vez o galo cantou bem cedo p'ra me acordar
mas eu não vi Maria que com João fora se casar
Não vou chorar
sim vou cantar
Não vou chorar
sim vou cantar"
Um Epidécio ao Escritor Maconde
Autor: Stefan Florana Dick
texto escrito após o assassínio de Grandal Nkepe numa das barracas de Maputo
in revista Lua Nova, nº 4, p. 18
"Se não estou em erro, fui um dos mais corajosos que te disse cara-a- cara:
- Nkepe, não consegui ler CASA DE JUSTIÇA, e mesmo que venha a fazer esforço a mais, não hei-de o conseguir ler. Este livro é uma merda que não devias publicar agora. Merecia a gaveta por cinco a dez anos, e só depois de lido, relido, treslido, tetralido, pentalido, por ti próprio, é que podias ter a ousadia de o mandar publicar.
E tu, cheio de copos na cabeça, mandaste-me à fava e:
- Caguei para ti, Stefan. Tens inveja de mim, porque consegui singrar ao lado desses filhos da mãe que se acham donos de literatura. E tu com a mania de que és amigo desses cágados, vens a mando deles denegrir a minha escrita. Lixem-se. Quem quer leia, quem não quer, que não leia. E ficas a saber: o meu livro é um sucesso.
...
Morreste. E lá no subsolo ou no céu, descansas em paz. Já não tens maçada de aturar professores chatos que te faziam vida negra na Universidade; os alunos que se riam do teu ar boémio nas escolas onde eras professor part-time; os outros escritores que achavam que a tua literatura era de dó menor. Morreste. Os vivos, quer queiram, quer não, hão-de ler os teus livros, como tu próprio tinhas essa certeza, e serão obrigados a admirar-te pela coragem que tiveste em publicar aquilo que te ia na alma e no pensamento."
Filhos da Miséria
Autor: Joaquim Falé
Moçambique
Pedaços de fundo vagabundo buscando no lixo um mundo perdido fugindo de tudo sábios esquecidos nunca arrependidos
Vinde ó ilustres da miséria a nossa hora está chegando recompensa merecida estamos num canto fechados vingando o passado somos o lixo por este ou aquele motivo
Levantemo-nos Irmãos! Derrotemos a Razão vão-se desviar de nos vão escutar bem alto a nossa voz rosto aberto de encontro aos mascarados somos flores do Inferno crescemos num deserto açoitados pelo vento noite e dia enfeitiçados pela morte desejados somos cinzas somos restos despojos amordaçados corremos mesmo parados não fujimos quando somos olhados
Esquecidos pela esperança vagueamos na escuridão almas desertas abraços de solidão entre as pedras adormecemos companheiros na ilusão somos pássaros da noite artistas com vida de cão
Não temos capas de vergonha não disfarçamos o medo sentimos o desespero não trocamos de lugar não nos podem dominar já mortos nos hão-de lembrar enquanto vivos vão-nos evitar
Está-nos reservado o fel sabemos porque pagamos o preço da liberdade fugindo do tempo não temos idade amantes sedentos conquistamos cidades
Brincamos como crianças num jardim de terceira idade fingimos ser apenas uma flor no paraíso vingamo-nos da memória bolsas vazias perdidas no Infinito
Vestimo-nos no escuro de amor e desespero saímos noite adentro buscando alimento
[pic]
Dados Biográficos
Sebastião ALBA
Pseudónimo de Dinis Albano Carneiro Goncalves, nasceu em Braga, Portugal, a 11.03.1940. Radicado em Moçambique a partir de 1950, voltou a Portugal em 1984. Professor e jornalista, publicou Poesias em 1965, o qual viria a retirar da sua biografia, O Ritmo do Presságio em 1974 e A Noite Dividida em 1982.
João ARMANDO ARTUR
Nasceu na Zambézia, a 28 de Dez. 1962. "Estrangeiros de Nós Próprios" é o seu terceiro livro publicado. Os anteriores: "Espelho dos Dias" (1986) e "O Hábito das Manhas" (1990).
Carlos CARDOSO
Nasceu a 10.08.1951 na Beira, Moçambique. Jornalista e analista político, Prêmio de jornalismo investigador em 1987. Publicou Direito ao Assunto em 1985. Continua activo como jornalista.
Mia COUTO
Pseudónimo de Antonio Emilio Leite Couto, nascido a 5.07.1955 na cidade da Beira, Moçambique. Foi jornalista com funções de chefia no diário "noticias" e Agência de Informação de Moçambique, é actualmente biólogo e um dos escritores moçambicanos mais conhecidos no exterior, com livros traduzidos em diversas linguas.
José CRAVEIRINHA
José João Craveirinha nasceu a 28.05.1922 em Maputo. Jornalista com o pseudónimo Mario Vieira, escritor, atleta e cronista, entre outras actividades. Foi preso pela PIDE/DGS de 1965 a 1969 por fazer parte da Frelimo. Colabodor de jornais e revistas de diversos países, tem numerosas obras publicadas e recebeu alguns prêmios literários.
Rafael KNEPE
Rafael André Luis Grandal Nkepe nasceu a 10 de Maio de 1958 em Muidumbe, Nangololo, província de Cabo Delgado. Depois de uma adolescência bastante vagabunda, teve que sobreviver. Com diversas participações na imprensa escrita moçambicana, "Casa da Justiça" foi o seu primeiro livro, editado em 1994.
Rui KNOPFLI
Rui Manuel Correia Knopfli nasceu a 10.08.1932 e fez os seus estudos na Africa do Sul.Poeta, jornalista, crítico literário e de cinema, foi um dos elementos mais activos da então Lourenco Marques. Deixou Moçambique em 1975. É de nacionalidade portuguesa com alma assumidamente africana. Tem colaboração dispersa por varios jornais e revistas e publicou alguns livros. Desempenhou (é possivel que ainda assim seja) funções na Embaixada Portuguesa em Londres.
Orlando MENDES
Orlando Marques de Almeida Mendes nasceu na Ilha de Moçambique a 4.08.1916. Licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade de Coimbra, da qual foi assistente, e altura em que se estreou na literatura. Poeta, romancista e dramaturgo com numerosas obras publicadas, colaborou em várias revistas e jornais moçambicanos e portugueses.
Malangatana NGWENYA
Malangatana Valente NGWENYA nasceu a 6 de Junho de 1936 em Matalana, Moçambique. Produziu uma vasta obra no campo da pintura e é hoje um dos mais notáveis artistas africanos. Representado em inúmeros museus e colecções particulares em todo o mundo, Malangatana, artista multifacetado, que canta, dança, faz poemas, teatro, cerâmica e escultura, é grande animador sócio-cultural e vê erguer-se presentemente o sonho de construção do Centro Cultural na sua aldeia natal.
Isaac ZITA
Isaac Mario Manuel Zita nasceu em Maputo a 2.02.1961. Professor durante 2 anos, freqüentava o curso de Professores de Português para as 7ª, 8ª e 9ª classe quando morreu, a 17.07.1983, com apenas 22 anos. Publicou Os Molwenes.
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setembro de 1999
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