O processo de digitalização e a Fase da Multiplicidade da ...



Inovação e movimentos estruturantes na Fase da Multiplicidade da Oferta da TV brasileira

Valério Cruz Brittos - val.bri@.br

Professor no Centro de Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Faculdade de Comunicação (FACOM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Introdução

A

pesar de acelerado nas décadas finais do século XX, o processo de inovação tecnológica, no sistema televisivo, deve continuar intenso, tendo em vista a necessidade de construir modelos que permitam altas taxas de retorno dos investimentos desenvolvidos pelas companhias televisivas e possibilitem a incorporação de novas demandas dos usuários, aumentando o tempo de fruição dos consumidores ante os aparelhos. A tecnologia contemporânea busca elevar a taxa de interatividade entre espectador, televisor e operadora, reunindo conteúdos tradicionais e elementos próprios da internet, na faixa de busca de dados complementares à programação. Por isso, a tendência dos modelos novos de televisão apontam para um quadro de financiamento híbrido, variando entre a sustentação via publicidade e o pagamento direto pelo telespectador. Toda esta evolução vai culminar com a TV digital terrestre, que, no Brasil, pode representar a segunda geração da televisão por assinatura, embora qualquer modelo de digitalização venha a incluir canais de livre recepção.

Mais do que um tópico tecnológico, relativo à conexão entre comunicação eletrônica, satélite, fibra ótica e informática, a alteração midiática contemporânea é uma problemática a ser analisada sob a perspectiva da Economia Política da Comunicação, pois se refere a pontos posicionados quanto à invenção e incorporação de dispositivos tecnológicos em mercados capitalistas, onde seu uso alternativo é mais uma questão de subversão, a ser construída pelos agentes sociais, pressionando atores econômicos e Estado, do que qualquer vocação natural. Além do mais, o lançamento de constantes inovações tecnológicas envolvendo a televisão atesta uma (sabida) desconexão com a demanda, já que atende mais a preceitos industriais de renovação do conjunto de equipamentos profissionais e domésticos, bem como de viabilização de ofertas máximas para consumo doméstico e busca de uso economicamente racional do estoque de produtos culturais (que são destinados à redifusão, na ampla gama de canais pagos), do que a uma efetiva necessidade do consumidor, atestada em pesquisa.

As novas tecnologias televisivas, centradas na televisão digital terrestre e na Web TV, não conduzem a uma superação do atual período histórico do mercado televisivo brasileiro. Esses movimentos articulam-se internamente na Fase da Multiplicidade da Oferta, aberta em 1995, ante a ampliação quantitativa de opções ao receptor, viabilizada, em parte, pela alteração tecnológica (e sua incorporação no chão econômico-social), o que passa pelo aumento da disputa no setor. Paralelamente, identifica-se que essas tecnologias contribuem para que, no mercado televisivo, sejam aceleradas tendências e provocados movimentos estruturantes, com múltiplas estruturas se inter-influenciando. Melhor dizendo, no âmbito do momento histórico atual da televisão no Brasil há deslocamentos, que devem se acentuar no confronto com posicionamentos importantes, como a implantação da TV digital terrestre e a entrada efetiva do capital estrangeiro. Tais ações remetem ao atual quadro de mudança estrutural, onde já vêm sendo contestadas as situações de liderança e aparecendo novos atores.

Mudanças

T

odas as modificações ocorridas até agora abalaram muito a posição da Rede Globo, mas não a afastaram da liderança. Houve foi um recuo de sua audiência histórica, que em 1979 chegava a 63%.[1] Esses números não poderiam ser mantidos num quadro de ampliação de canais ao dispor do telespectador, com conteúdos mais afinados com particularidades de consumo dos diversos grupos sociais. Assim, em 2003, o produto de maior audiência da Globo, a telenovela das 21 horas, Mulheres Apaixonadas, que é considerada um êxito junto ao público, na atual conjuntura, tem uma audiência média de 42%.[2] Estas mudanças integram-se na lógica da Multiplicidade da Oferta. O principal traço deste período de desenvolvimento da TV brasileira é o aumento dos canais (e produtos, em conseqüência) ao dispor do público.[3] Porém, a perda de audiência da TV aberta para a fechada, não se restringe ao Brasil. Trata-se de um fenômeno mundial, que abalou a assistência até das grandes redes norte-americanas, ABC, CBS e NBC, que, entre 1984 e 1997, passaram sua participação na audiência de 69,3% para 36,3%, ao mesmo tempo em que os canais do cabo incluídos nos pacotes básicos elevaram o número de receptores de 7,1% para 34,4%, ou seja, praticamente quadruplicaram.[4]

Esta dinâmica de perda de audiência das redes tradicionais não é exclusividade norte-americana, tratando-se de um aspecto contemporâneo globalmente difundido, ainda que com modos e intensidades diferentes. Diversamente de países onde as grandes estações já apresentam números próximos, como os Estados Unidos, no Brasil a grande atingida, em volume de receptores e faturamento, foi a Globo, porque sempre teve a audiência com maior participação dos estratos altos, mesmo público da televisão por assinatura, porém, também porque hoje há maior concorrência e as demais redes abertas têm mantido ou aumentado seus telespectadores.[5] Mas a estrutura da Globo segue infinitamente maior que as demais, como se antevê no Quadro 1. As dificuldades do setor televisivo tendem a crescer com a migração de usuários de TV para a internet, o que pode ser abortado se for conseguida uma opção assimilável em larga escala pelo receptor que una as duas tecnologias, saída que tem sido articulada em ensaios tecnológicos como o que digitaliza a transmissão e recepção televisivas.

|Quadro 1. Principais redes comerciais abertas do Brasil |

|Rede |Nº de geradoras |Nº de municípios* |Presença nos domicílios com TV (%) |Controle |

|Globo |113 |5.447 |99,86 |Roberto Marinho |

|SBT |92 |4.907 |97,18 |Senor Abravanel** |

|Record |62 |2.320 |76,67 |Edir Macedo |

|Bandeirantes |42 |3.340 |87,13 |João Carlos Saad |

|Rede TV! |25 |3.443 |79,71 |Amílcare Dalevo Jr. |

|CNT |18 |240 |36,67 |José Carlos Martinez |

|Total |352 |5.507*** |100**** |– |

* Considera-se a quantidade de unidades locais que podem sintonizar as redes através de transmissões em VHF ou UHF.

** Senor Abravanel é o nome civil de Silvio Santos, que utiliza este cognome artisticamente, desde o início de sua carreira, ainda no rádio.

*** Este número corresponde ao total de municípios brasileiros, sendo todos atingidos pelo sinal de um canal aberto do país.

**** O percentual é praticamente 100%, sendo raros os domicílios com TV, no Brasil, que não recebem a programação de alguma emissora aberta brasileira.

Fontes: GRUPO DE MÍDIA DE SÃO PAULO. Mídia dados 2002. São Paulo, 2002. p. 140-141.

Com a interatividade, a idéia tradicional de programação – enquanto pacote oferecido ao público – fica prejudicada, deslocando-se. O receptor cresce em sua capacidade de programar, capturando atrações a partir de um amplo arquivo disponível (em fluxo, como hoje, na maioria das emissoras, ou para ser baixado sob demanda, como pode ser). Na verdade, desde o advento do videocassete paulatinamente enfraquece-se a experiência coletiva de todos os receptores assistindo a um mesmo programa em um mesmo horário pré-definido. Isto conduz a uma expansiva fragmentação do público, conhecido a partir de critérios de segmentação. Um modelo possível de ser atingindo, dependendo de variáveis econômico-político-culturais diversas, consiste em uma TV de pronta entrega com produtos escolhidos pelo próprio usuário, mas a partir de um cardápio disponibilizado pelo operador, sendo parte do material disponibilizado gratuitamente e parte pago pelo telespectador, misturando financiamento pela publicidade (para vendas mediatas e imediatas) e pelo consumidor final.

Contudo, se programar não é só ordenar produtos para consumo, mas também escolher os programas mais atrativos a serem disponibilizados aos consumidores, a atividade de programação permanece viva, inclusive no pay-per-view.[6] Por outro lado, a noção de interatividade televisiva hoje diferencia-se das experiências anteriores, não só porque hoje o negócio agrega outros agentes, além das companhias de TV paga, mas ainda devido aos investimentos direcionados à atualização digital e bidirecionalidade, ao avanço representado pelo acesso à rede mundial de computadores em alta velocidade e sua combinação com os sistemas tradicionais de televisão por assinatura, a novas interfaces que se projetam, como a relativa à telefonia móvel, e à própria adaptação da idéia de interação, que é redimensionada, e impulsionada, ante a formatação de distribuição comercial que a internet ganhou a partir do final da década de 90. Entretanto, antes de tudo o telespectador deve ser convencido de que vale a pena gastar mais com despesas televisivas, o que até agora não foi conseguido.

O video-on-demand (VOD, vídeo por demanda) – um serviço interativo em alto grau, no qual filmes digitalizados, agrupados a partir de informações como título, gênero, intérprete, diretor e sinopse, são colocados à escolha do cliente, que, ao decidir, determina o horário específico que quer receber a atração – é o principal apelo de venda da TV interativa,[7] começando esta a definir-se como provedora de multiserviços, relativos à eleição de cenas e à eliminação de trechos, ao lado de acesso à internet, comércio pela televisão (t-commerce), cupons eletrônicos e ampliação de informações. Nos Estados Unidos, onde o cabeamento ronda o limite, os serviços interativos são a trilha para o aumento de receita, já no Brasil, onde a distribuição de canais a pagamento é incipiente, trata-se de uma estratégia alternativa de desenvolvimento, visando o máximo faturamento junto a uma base inicialmente inferior de assinantes, em condições de pagar. Globalmente, a atual perspectiva de lucratividade dos projetos interativos está mobilizando empresas de telecomunicações, informática e conteúdo.[8]

Investimentos

A

o redor do televisor articulam-se na atualidade quatro traços de serviços interativos: redução ao mínimo das hipóteses de intervenção; abertura a soluções estruturalmente simples, como correio eletrônico, dados sobre programas de TV e jogos; oferecimento facultativo de aplicações mais complexas (relativas a comércio); e (só para casos específicos) recursos organizativos que requerem maior empenho e responsabilidade, a exemplo de home banking (operações bancárias domésticas) e telelearning (educação à distância).[9] A interatividade também é o cerne do gravador digital de imagens, equipamento semelhante ao videocassete convencional, que possibilita pular comerciais e suspender a programação para, após, continuar assistindo ao programa a partir do momento interrompido; ou gravar tudo o que for exibido sobre uma determinada temática, eliminando ou não os comerciais. Nos EUA, a uma média de US$ 499,00 o aparelho e US$ 9,95 a mensalidade, oferecem este serviço a Replaytv, ligada à Time Warner, e a Tivo, associada à America Online (AOL), CBS e Disney.[10]

Em termos de interatividade, as soluções tendem a reunir internet e televisão. Isso pode desembocar na televisão digital, onde a TV tradicional pode reunir elementos típicos da rede mundial de computadores. Pode implicar ainda na transmissão de contéudos típicos da televisão via internet, a chamada Web TV. Isso pode materializar-se de diversas formas, começando pela disponibilização de programas específicos e do fluxo de programação de emissoras convencionais (que também podem ser sintonizadas sem o recurso de computadores), o que implica num grau de interatividade e inovação baixos. Um modelo mais avançado é o desenvolvimento de canais de televisão específicos para a internet, isso sem falar em grandes grupos cinematográficos que podem oferecer pequenos trechos de suas produções. O negócio televisão na internet já vem mobilizando grandes grupos globais de comunicação, como a CNN e a Microsoft. No Brasil, o principal canal brasileiro exclusivo de televisão para a internet é a All TV, que oferece uma programação informal, variada, jovem e em grande parte apresentada ao vivo, com alguns apresentadores advindos de experiências televisivas anteriores, como Rosana Hermann, Cuca Lazzarotto e Tânia Rodrigues.[11]

A multiplicação de canais, geradora da fragmentação do público e de menores bases de telespectadores, causa também aumento do número de horas transmitidas por cada emissora e da demanda pelos produtos audiovisuais, ao intensificar a disputa. Isso leva a uma inflação de custos no audiovisual, que pode ser acrescida considerando que a aleatoriedade de realização dos produtos culturais pode aumentar, havendo dificuldade em encontrar formatos de programas adequados às alterações televisuais, em especial as particularidades da televisão digital. Nada mais conseqüente que a produção televisiva e a programação, construídas visando a máxima audiência, ou a maior cota do mercado, levem em consideração variáveis jurídicas, sociais e culturais, além de econômicas, apoiadas crescentemente em sondagens de opinião, já que evoluem historicamente, ocorrendo, inclusive, picos de exposição de um determinado gênero, como atualmente ocorre com os reality shows. Também a globalização influi, não se limitando aos capitais e chegando aos produtos e programações.

Isto denota a importância crescente dos conteúdos, onde o processo inovativo é infinitamente inferior ao dos materiais de produção e recepção. É para o controle dos conteúdos, carteiras de direitos de exibição e exclusividades que cada vez mais se transfere a concorrência, com destaque para os programas destruidores das audiências concorrentes, que são “os pacotes de películas e blockbusters estadunidenses, onde se generalizam os contratos de out deal (exclusividade a médio prazo sobre a produção de uma grande produtora) e os direitos de retransmissão das ligas de esportes de massas”.[12] Há sempre dificuldade em captar o telespectador, tendo em vista a incerteza de realização dos produtos culturais. Captada, a atenção do público é repassada ao mercado publicitário. Apesar disso, a compra de espaço publicitário, por agentes e anunciantes, envolve, em grande parte, presunção, pois a audiência medida não necessariamente vai se repetir, assim como não se pode atestar se o telespectador efetivamente destina sua atenção ao comercial, ou será positivamente afetado por ele.

Para enfrentar essa problemática, são necessários maiores investimentos, por parte das empresas de mídia, onde, em países pobres – em que, além de tudo, os juros são elevadíssimos, tornando-se uma via de capitalização perigosa – o capital estrangeiro acaba exercendo um papel primordial. Neste quadro, os recursos internacionais (mais abundantes e descomprometidos com as culturas locais, no que pouco se diferem do capital nacional, já que o internacionalismo é característica histórica do capitalismo e o lucro é a principal meta) tornam-se o caminho mais fácil de capitalização, num planeta crescentemente re-regulamentado, privatizado e liberalizado, em favor do consumismo e seus arautos. Esse processo, no entanto, não se efetua sem máculas às composições político-sociais:

Então, quais são os principais componentes da ideologia corporativa global? Seu elemento central é a idéia de que o mercado distribui os bens com eficácia e proporciona os meios para organizar a vida econômica (e talvez toda a vida humana). Existe uma forte tendência na ideologia corporativa a identificar “liberdade” com a mera ausência de controle sobre o mundo dos negócios (por exemplo, a liberdade econômica, de mercado), com o que a liberdade política passa a segunda categoria. Em defesa desta prioridade do sistema se acrescenta que a liberdade econômica é algo básico e merece todas as atenções porque, com o tempo, permitirá ou inclusive dará lugar a que se imponha a liberdade política. Isto é algo nunca provado e algo cínico, no sentido de que ajuda a racionalizar o apoio a regimes que são bons servidores dos negócios, mas que esmagam a liberdade política como parte do processo de criar um “clima favorável para as inversões” como sucedeu com Pinochet no Chile, Marcos nas Filipinas e Suharto na Indonésia.[13]

No Brasil, o capital estrangeiro na mídia é permitido desde o final de dezembro de 2002, com a promulgação da Lei 10.610,[14] que regulamenta emenda constitucional do mesmo ano. A presença estrangeira é possível em até 30% do capital social e votante de empresas jornalísticas e de radiodifusão, porém, os negócios não foram fechados imediatamente, como era previsto. Tem dificultado a parceria com os grupos internacionais a situação de dificuldade orçamentária que vêm passando a maioria das companhias midiáticas. Todavia, a alteração, ainda não concluída, na estrutura produtiva do mercado televisão, com ampliação da oferta, inovação tecnológica e re-regulamentação, que permite o ingresso de novos agentes, e determina a alteração nas estratégias de concorrência, não muda a estrutura de mercado, que segue como oligopólio, embora não tão concentrado e com barreiras mais frágeis. Esta fragilidade, no âmbito da formação histórico-social capitalista, tende a ser aproveitada por outras empresas privadas, não obstante possa ser a alavanca para experiências alternativas.

País de múltiplas contradições, o Brasil é sempre um mercado potencial para a expansão de novas mídias e tecnologias comunicacionais, numa moldura delineada pelo consumo preferencial por parte do cume da pirâmide e prossegue com o esforço máximo dos setores populares para acompanharem o processo de atualização e consumo. Trata-se o Brasil do sétimo maior mercado do mundo, quanto a investimento publicitário em televisão, volume que corresponde a US$ 2,334 milhões e 58,7% de toda a publicidade do país, um percentual muito elevado, em comparação com países com maior índice de leitura, onde a mídia impressa tem maior participação, como Estados Unidos e Alemanha, onde a TV absorve 36,9% e 24,4% dos recursos, respectivamente. O crescimento do DVD (digital video disc), em três anos específicos, é significativo da capacidade do mercado brasileiro, apesar das insustentáveis discrepâncias entre as classes sociais. O Quadro 2 mostra que a venda de DVDs, em 2002, ultrapassou a de videocassetes, enquanto a de televisores a cores mantém-se estabilizada nos últimos anos, passado as altas vendagens, no bojo do êxito do Plano Real.

|Quadro 2: Vendas de aparelhos domésticos de audiovisual (mil) |

|Ano |Televisor Preto e Branco |Televisor a Cores |Videocassete |DVD |

|1997 |N. D. |7.836 |2.449 |N. D. |

|1998 |N. D. |5.836 |1.992 |N. D. |

|1999 |N. D. |4.047 |1.168 |23 |

|2000 |N. D. |5.289 |1.205 |194 |

|2001 |N. D. |4.717 |963 |589 |

|2002 |N. D. |4.835 |772.236* |1.074 |

N. D. corresponde a não disponível.

* Número estimado a partir de projeção dos dados do primeiro quadrimestre de 2002.

Fonte: GRUPO DE MÍDIA DE SÃO PAULO. Mídia dados 2002. São Paulo, 2002. p. 140; UNIVERSO ONLINE. Menu interativo – estatísticas: Vendas de DVD em 2002 ultrapassam 5 milhões de discos. Disponível em: . Acesso em: 18 abr. 2003. UNIVERSO ONLINE. Menu interativo – estatísticas: Vendas de DVD vídeo e player

continuam em crescimento. Disponível em: . Acesso em: 18 abr. 2003.

Digitalização

A

inda está indefinida a opção brasileira quanto à televisão digital,[15] sendo que, hoje, dois caminhos apresentam-se ao país. Um é o tradicional e corresponde à adoção de um dos três padrões em funcionamento no mundo, o japonês (Integrated Services Digital Broadcasting – ISDB), o norte-americano (Advanced Television Systems Committee, ATSC) ou o europeu (Digital Video Broadcasting, DVB). A segunda alternativa é construir um padrão próprio de TV digital, que é via mais progressista e arrojada, na medida em que pode representar a independência tecnológica brasileira, além de acarretar a entrada de divisas (se o país conseguir negociar o seu projeto internacionalmente) e a possibilidade de construção de um arranjo mais coadunado com as necessidades do país. Esta opção só foi levantada oficialmente no Governo Luiz Inácio Lula da Silva, pelo ministro das Comunicações, Miro Teixeira. A idéia é que o Brasil conte, no desenho de um padrão diferenciado das três modulações controladas pelos países centrais, com a parceria da China e da Argentina.

Sob a justificativa de desenvolver um sistema que se adapte às características do Brasil, China e Argentina, um projeto de cooperação, para o desenvolvimento de um padrão próprio de televisão digital foi apresentado ao presidente argentino, Eduardo Duhalde, pelo ministro brasileiro de Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral.[16] Esta decisão é tecnológica, mas se insere no bojo da dinâmica econômico-política, passando pela posição do país de importador de tecnologia e equipamento e pelo mercado interno para colocação da produção. Na verdade, um padrão envolvendo esses três países cria uma massa crítica enorme, viabilizando a produção em escala de equipamentos televisuais para emissoras e usuários domésticos. Há entraves, tanto de grandes grupos produtores internacionais, que querem faturar sobre a venda de produtos e royalties para o Brasil (e outros países influenciados pela posição brasileira), quanto de empresas nacionais, as quais pressionam para uma saída rápida, que permita o início da produção rapidamente, o que não inclui pesquisa de um novo padrão.

As modulações comportam as modalidades Standard Definition Television (SDTV), High Definition Television (HDTV) e Serviços e recursos complementares. O SDTV é um serviço com áudio e vídeo digitais no formato 4:3 e resolução de 525 e 625 linhas (presentes no analógico), que permite a transmissão simultânea pela mesma emissora de até quatro programas, bem como outras funcionalidades complementares. Já o HDTV constitui-se num serviço com áudio e vídeo digitais no formato 16:9 e resolução superior a 700 linhas, transmitindo uma única programação, mas com grande riqueza de detalhes visuais, sem excluir outras funções. Por sua vez, os Serviços e recursos complementares são áudio adicional (original e dublagens), legenda suplementar (em idiomas diferentes), vídeo acrescentado (cenas em ângulos diversos), ajuda para deficientes físicos (linguagens de sinais ou texto), hipermídia (ampliação de conteúdos), informativo (transmissão de dados meteorológicos, financeiros, etc.) e gravação de programas (através de carga remota).

As transmissões digitalizadas regulares devem começar cerca de dois anos após a decisão governamental, a partir daí abrindo-se um período de cerca de 10 anos de transição, quando as emissoras continuarão com o canal analógico (que depois será entregue) e terão outro digital (pagando pelo uso da freqüência).[17] O fim da transmissão analógica pode superar (muito) esses 10 anos inicialmente previstos, pois o funcionamento único da televisão digital no Brasil deverá ocorrer quando 90% da população tiver condições de receber seu sinal, por meio de um receptor próprio ou de um conversor (o set top box,[18] a ser acoplado externamente ao televisor), cujos preços devem cair conforme aumentar a demanda. Os testes realizados no país – coordenados pela Sociedade Brasileira de Engenharia de Televisão e Telecomunicações (SET) e pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), com participação da Universidade Mackenzie e por delegação da Anatel – recomendaram a adoção do padrão japonês, preferido dos radiodifusores, por permitir a recepção móvel.

Neste tabuleiro, as operadoras televisivas exercem um papel essencial, não só pela força que detém como compradoras dos equipamentos e de efetivas implantadoras do modelo, conduzindo os referenciais simbólicos aos receptores, mas pela dimensão política que detêm e exercem junto a organismos públicos e privados. É o caso de uma inovação que influencia a vida de praticamente todos os brasileiros, podendo, inclusive, ser a alavanca para a inclusão digital do conjunto social e de democratização desta mídia, tradicionalmente tão fechada não só na propriedade, mas na determinação do que publicizar. A TV digital deve ser concebida de forma que estimule a produção terceirizada, alternativa e local, para assim incentivar a desconcentração do mercado produtor, o surgimento de novos realizadores, a diversidade cultural e o posicionamento das identidades locais e não-hegemônicas, num cenário de multiculturalismo e exploração de classe. Para isso, deve haver obrigatoriedade de exibição de um determinado número de horas produzidas externamente à emissora e seus controladores.[19]

Como a TV digital pode mudar até mesmo o conceito de televisão, por seu grau de inovação, em especial quanto a conteúdo, possibilidade de pagamento parcial e relação com o consumidor, o processo que visa sua implantação já começa a repercutir no mercado, ainda que por adiantamento. Há uma relação das processualidades globais de um meio, incluindo estratégias internas e regulamentação, com a constituição e desenvolvimento de outro. É o que se está denominando movimento estruturante, que consiste na dinâmica desenvolvida por uma mídia, em regra hegemônica, como a televisão, de influenciar a estruturação de outras, a partir de seus macroprocessos. Prova dos movimentos estruturantes provocados pela introdução de uma tecnologia – formatada como inovação tecnológica, ou seja, regulamentada e pré-definida entre os envolvidos, Estado, capitais e usuários – está nas dinâmicas direcionadas à passagem da TV analógica para a digital, que, embora em gestação, já apresentou resultados na televisão paga, em processo de digitalização, e outros mercados culturais.

A televisão digital terrestre pode representar o deslanche da transmissão de conteúdos audiovisuais pagos pelo telespectador, já que a TV a pagamento convencional, até agora, revelou-se um estrondoso fracasso no Brasil. Instalada no país desde 1988, a indústria de televisão paga atingiu um total de 3,6 milhões de assinantes em junho de 2002, mesmo número de dezembro de 2001, com previsão de alcançar 10,1 milhões em 2003 e 16,5 milhões em 2005,[20] números praticamente impossíveis de serem alcançados, pelo decurso da história desta indústria. Essa estagnação é extremamente preocupante, pois mostra que o sistema ainda não se mostrou viável no país, já que não atingiu um patamar mínimo que viabilize seu funcionamento a médio prazo. Pelo contrário, neste momento estão sendo lançadas novas operações, chegando (principalmente) o cabo a novos municípios, o que seria razão para o aumento dos assinantes. Os principais motivos para o fracasso do empreendimento são a falta de conteúdos exclusivos populares nacionais, um diferencial sentido num país habituado a altos índices de nacionalização da TV aberta, e os elevados preços das mensalidades.

Considerações finais

M

onzoncillo resume o novo modelo de televisão à “passagem de uma lógica da oferta a uma lógica da demanda”, podendo os receptores montarem sua própria “dieta audiovisual”, debilitando a programação como “atividade estratégica” dos radiodifusores; nítida tendência ao pagamento pelo consumo, incrementando fortemente o gasto per cápita em televisão; transição do sistema de fluxo para o editorial, da comunicação ponto-massa a uma montada no esquema ponto-ponto; e “maior interatividade homem-máquina”.[21] Essa avaliação, no entanto, deve ser matizada, considerando-se que o redimensionamento do papel da demanda, na construção mesma dos bens simbólicos, dá-se em função do processo de produção e que a própria flexibilidade do consumo não elimina de toda a programação, que é deslocada para que o telespectador interaja, personalizando seu consumo, a partir do que é fornecido pelos programadores. Esses traços acompanham a Fase da Multiplicidade da Oferta desde seu início, tratando-se de graduações, na medida em que tais características tendem a acentuar-se.

Desenvolvendo-se esta análise no âmbito da Economia Política da Comunicação, deve-se considerar que a sociedade capitalista – e os mercados comunicacionais, por decorrência – não é estática, mas, como todo processo histórico, é marcada por um conjunto de fases de desenvolvimento, sendo a atual relacionada mais diretamente com fenômenos globalizados e globalizantes, onde se enquadra a inovação tecnológica. As dificuldades de implantação dessas inovações, no território brasileiro, são agravadas pelo baixo poder de consumo da população. Este fator tem impedido o desenvolvimento no país da televisão por assinatura e é um dado que não pode ser desconsiderado nos atuais movimentos que visam a definição do modelo e do calendário para implantação da TV digital. No entanto, apesar de toda a escassez de recursos, a população brasileira tende a assimilar a inovação e esforçar-se para efetuar a migração para patamares mais elevados dos processos tecnológicos, como tem ocorrido com relação ao DVD, fator que pode ser aproveitado na digitalização da televisão.

Mas isso não basta. Qualquer pretensão universalizante da tecnologia comunicacional, envolvendo inclusão digital, acesso democrático à midiatização televisiva, controle público da propriedade e descontração dos setores culturais, passa pela ação do Estado. Só com uma sociedade civil forte, pressionando ações regulamentadoras sintonizadas com projetos democratizantes, será possível abrir qualquer brecha em relação à situação hegemônica, já que a tecnologia, por si, não é capaz de alterar a correlação de forças em sociedades marcadas por desigualdades estruturais. Agora, com o Governo Lula, identifica-se indícios de uma mudança na concepção do papel regulamentador estatal, notadamente na área das telecomunicações, o que fica muito nítido pela ação do atual ministro das Comunicações, que propõe um padrão próprio de televisão digital para o Brasil, a ser desenvolvido conjuntamente com a China e a Argentina. O êxito dessa dinâmica pode conduzir a um movimento estruturante que, no horizonte, permita até o reposicionamento da função do cidadão ante as indústrias de cultura

Referências

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[1] BOLAÑO, César. Mercado brasileiro de televisão. 2. ed. rev. e aum. Aracaju: UFS, 2000. Mimeografado. p. 51.

[2] INSTITUTO BRASILEIRO DE OPINIÃO PÚBLICA E ESTATÍSTICA. Audiência de TV: Top 5. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2003. Dado relativo à última semana de março de 2003.

[3] BRITTOS, Valério. Os 50 anos da TV brasileira e a fase da multiplicidade da oferta. Observatório-revista do Obercom, Lisboa, n. 1, p. 47-59, maio 2000. p. 47.

[4] IOPOLLO, Domenico; PILATI, Antonio. Il supermercato delle immagini: scenari della televisione europea nell’epoca digitale. Milano: Sperling & Kupfer, 1999. p. 103.

[5] Em 1994, a audiência geral da Globo era de 63%; em 1997, de 53%. A maior queda foi entre 10 horas e meia-noite: baixou de 57% para 44%, de 1995 a 1997. No período 1994-1997, o SBT manteve-se com uma audiência total de 18%; a Bandeirantes, em 5%; a Manchete (hoje Rede TV!) aumentou de 2% para 5%; a Record, de 2% para 5%; e “outros” (TV paga, videocassete e videogame), de 10% para 15%. A perda de audiência provocou a diminuição da participação da Globo no mercado publicitário televisivo, mas num ritmo menor: de 37,6% (1993) para 33,3% (1997). Suas afiliadas também tiveram uma participação decrescente, partindo de 41,6%, em 1993, para 39,5%, em 1997. Enquanto isso, as demais emissoras cresceram sua participação de 20,8% (1993) para 27,2% (1997). Os dados são do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), da TV Globo e do Projeto Inter-Meios, citados por POSSEBON, Samuel. El Niño na audiência. Telaviva, São Paulo, n. 68, p. 1-5, abr. 1998. Disponível em: . Acesso em: 20 maio 2000.

[6] O pay-per-view (PPV, pagar para ver) é um sistema de oferta de conteúdo audiovisual por produto específico, com o assinante pagando por escolha, como filme, esporte, evento ou temporada de um determinado acontecimento (um torneio esportivo, por exemplo). Para adquirir essas atrações em separado, o assinante deve previamente já ser assinante de um dos pacotes disponibilizados pela operadora.

[7] Mais difundido, inclusive no Brasil, é o near-video-on-demand (NVOD, vídeo próximo por demanda), uma técnica de programação de menor caráter interativo, que se utiliza de vários canais para distribuir um mesmo filme, cada um em um horário diferente, mas aproximado, de forma que uma quantidade limitada de produtos sempre está começando, em curtos intervalos de tempo.

[8] Nos EUA, entre as principais companhias envolvidas, estão Time Warner, Insight Communications e Charter.

[9] IOPOLLO, Domenico; PILATI, Antonio, op. cit., p. 32.

[10] DÁVILA, Sérgio. ReplayTV deve enterrar velha TV comercial. Folha de S. Paulo, 10 set. 2000.

[11] ALLTV. Apresentadores. Disponível em: . Acesso em: 26 abr. 2003.

[12] BUSTAMANTE, Enrique. La televisión económica: financiación, estrategias y mercados. Gedisa: Madri, 1999. p. 167-168.

[13] HERMAN, Edward S.; MCCHESNEY, Robert W. El auge de los medios globales. In: _____. Los medios globales: los nuevos misioneros del capitalismo corporativo. Madrid: Cátedra, 1999. p. 25-67. p. 60.

[14] SANÇÃO de Fernando Henrique foi sem vetos. Gazeta Mercantil, São Paulo, 26 dez. 2002.

[15] Diferente da transmissão analógica, feita por ondas eletromagnéticas, a televisão digital envolve um código binário, sendo som e imagem transformados em séries que combinam os dígitos de 0 e 1, linguagem igual a dos computadores. O sinal da TV digital não apresenta falhas, ou chega bem ou não chega, ao contrário do analógico, que pode apresentar os chamados fantasmas e chuviscos. A maioria da programação hoje já é produzida e armazenada em tecnologia digital, mas permanecem analógicas a transmissão e a recepção.

[16] BRASIL propõe TV digital própria. Folha de S. Paulo, 21 fev. 2003.

[17] AGÊNCIA NACIONAL DE TELECOMUNICAÇÕES. Televisão do futuro está em demonstração pública até amanhã no Barrashopping. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2000.

[18] São minicomputadores que, acoplados aos televisores, decifram os sinais digitais, de forma que possam ser captados com qualidade e em toda sua potencialidade de multiserviços pelos receptores convencionais.

[19] Neste âmago, devem ser estipulados percentuais para produtos locais e de origem nos movimentos sociais (a legislação deve prever também o custeio dessas produções).

[20] AGÊNCIA NACIONAL DE TELECOMUNICAÇÕES. TV por assinatura: balanço do 1° semestre de 2002. Disponível em: . Acesso em: 16 abr. 2003.

[21] MONZONCILLO, José María Álvarez. Soporte y nuevos servicios: en busca del middleware de automatización perfecto. In: BUSTAMANTE, Enrique; MONZONCILLO, José María Álvarez (Eds). Presente y futuro de la television digital. Madrid: Edipo, 1999. p. 33-44. p. 35.

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