Fotógrafos não são normais #1

?Created in the cloud with Saaspose.Words. ógrafos n?o s?o normais #1 Joachim Phoenix e Gwyneth Paltrow, no filme “Amantes”, de James Gray.Nesta semana, encontrei mais um personagem-fotógrafo no cinema, no filme Amantes, de James Gray, com Isabella Rossellini, Gwyneth Paltrow e Joachim Phoenix (é o filme que ele foi divulgar no David Latterman, barbudo e quase catat?nico). ? a história de um jovem com tendências suicidas, dividido entre uma boa mo?a e a mulher que ama, entre os negócios da família, o ócio e a fotografia. ? bom, vale a pena ver.A fotografia é só um detalhe no filme, mas lembrei de uma pergunta que fiz recentemente ao Fernando de Tacca (que tem pesquisado obras do cinema e da literatura atravessadas pela fotografia): Por que os fotógrafos dos filmes e dos livros s?o sempre complexos, enigmáticos, introspectivos, perturbados? Exemplos: o?paranóico Martin de A Prova, o?atormentado Aleksander de Antes da Chuva, o aventureiro Russell de Sob Fogo Cerrado, o arrogante Thomas de Blow-up (personagem que, apesar de todos os fracassos morais e afetivos, levou muita gente a querer ser fotógrafo).Ao que parece, a fotografia é um ingrediente que ajuda a dar profundidade aos personagens. Faz algum sentido: é uma atividade solitária, fonte de experiências (fotógrafo sempre tem histórias pra contar), que sempre se dá no embate entre a puls?o das emo??es e a responsabilidade da comunica??o.Mas?a quest?o?que mais me intriga: por que fotógrafos s?o incompetentes – no mínimo, complicadíssimos – para os relacionamentos amorosos. Quem souber, responda!Quem quiser ver o texto de Fernando de Tacca, está publicado na revista eletr?nica Studium, sob o título “ HYPERLINK "" \t "_blank" Fotografia e Cinema: Intertextualidades“. Em breve, ele deve publicar uma nova pesquisa sobre Fotografia e Literatura, que já foi mostrado no último Intercom.Quanto aos filmes, vários deles nunca foram lan?ados em DVD. Garimpando, dá pra achar em VHS, ou no submundo das redes.E a fotografia de José Oiticica Filho (1906-1964)? José Oiticica Filho, O Tunel, 1951O pavoroso incêndio que destruiu parte expressiva do Acervo de Obras de Hélio Oiticica no último sábado, dia 17 de outubro, seguramente entrará para a história como mais um descaso no tratamento, preserva??o e guarda da arte brasileira. Já conhecemos esta história e sabemos como as autoridades em geral, os familiares e a mídia tratam o assunto.Mas, curiosamente, em nada que eu li e vi sobre o assunto, há referências à obra de José Oiticica Filho, que mais do que o pai de Hélio Oiticica tem seu lugar garantido na história das artes visuais, particularmente na fotografia, onde atuou com propriedade. Ele é um dos artistas que conseguiu, ao lado de Geraldo de Barros e outros expoentes da fotografia modernista brasileira, na década de 1950, tirar a fotografia do realismo atávico e/ou do pictorialismo tardio que ainda grassava nas fileiras do fotoclubismo brasileiro.José Oiticica Filho, filho de um anarquista e pai de um dos mais importantes artistas brasileiro de todos os tempos, conseguiu trazer para a fotografia brasileira um frescor ainda hoje revolucionário. Foi professor, matemático e entomologista no Museu Nacional. Nesta atividade via no microscópio coisas que o maravilhavam e forma essas imagens visualizadas é que desencadearam a necessidade de aprender fotografia.Essa necessidade o levou ao Foto-Club Brasileiro onde aprendeu a magia do quarto escuro. Paulo Herkenhoff, na apresenta??o do catálogo da exposi??o realizada pela Funarte (José Oiticica Filho – a ruptura da fotografia nos anos 50) em 1983, afirma que “há quatro fotógrafos em José Oiticica Filho: o utilitário, o fotoclubista, o abstrato e o construtivo”. Só isso já o torna um caso raro de atua??o múltipla na linguagem fotográfica. Sua evolu??o em dire??o ao abstrato é impressionante e seu trabalho o transformou no fotógrafo brasileiro com maior número de participa??es em exposi??es internacionais.Quero saber como fica sua obra diante do fatídico incêndio que destruiu centenas de trabalhos de seu filho Helio Oiticica – os parangolés, bólides e bilaterais, entre outras pe?as de inestimável valor para a arte brasileira contempor?nea. Na realidade, suas últimas exposi??es realizadas no Brasil e no exterior, n?o só recuperaram parte desse precioso acervo, como também documentaram em catálogos e livros. Diante das características destas obras, isso possibilita e viabiliza refazer e remontar algumas pe?as. Mas e os negativos, positivos e outras matrizes de José Oiticica Filho? Será que também se perdeu, parcial ou totalmente neste incêndio? Estas sim jamais poder?o ser vistas novamente.Digo isso porque esse material ainda n?o foi pesquisado, exibido e publicado o suficiente para estarmos de certo modo tranqüilos. Afinal de contas, uma matriz fotográfica, negativa ou positiva, n?o pode ser refeita com as mesmas singularidades do original.. A última exposi??o que vimos no Centro Municipal de Arte Helio Oiticica, na cidade do Rio de Janeiro – José Oiticica Filho Fotografia e Inven??o – foi realizada em setembro de 2007,? e exibiu uma cole??o de 158 fotografias, 20 pinturas e 20 vitrines. Uma maravilhosa retrospectiva que esclarecia o processo de cria??o do artista, seu percurso e seus procedimentos, e que chegava à recep??o desavisada como uma bomba estética esclarecedora sobre a obra de um gigante da história da fotografia brasileira.José Oiticica Filho, Recria??o 29-64, sem dataSem falar em seus textos publicados na década de 1950 em muitas revistas brasileiras entre elas destacamos: Fotografia – Arte, Ciência e Técnica, do Rio de Janeiro; Boletim do Foto Cine Clube Bandeirantes, de S?o Paulo; Jornal do Brasil, do Rio de janeiro; e até mesmo na revista como Flores do Brasil, que publicava seus textos sobre como fotografar flores com luz artificial, luz natural, etc. Sua cole??o de textos forma uma importante bibliografia sobre fotografia brasileira em seus aspectos técnicos e estéticos, que nunca foram organizados e publicados em forma de livro. Como pesquisador preocupado com a propaga??o do conhecimento sobre? fotografia e tudo que envolve o tema, gostaria de saber em que estado se encontra este material após o incêndio.Vemos a resson?ncia na mídia mundial sobre o estrago provocado na obra de Helio Oiticica, mas quase nada encontramos sobre a obra de José Oiticica Filho. Essa é a raz?o desse texto que busca ampliar a discuss?o, bem como trazer a público, informa??es que n?o est?o circulando entre aqueles que est?o preocupados com a memória da arte brasileira – seja moderna, seja contempor?nea.José Oiticica Filho é um dos primeiros artistas a dessacralizar a matriz fotográfica, ou seja, a profanar o espa?o do fazer fotográfico com interven??es em diferentes etapas do processo de trabalho. Para ele o que realmente importava era retirar da fotografia seu aspecto documental e figurativo, e sintonizá-la com as estéticas contempor?neas à sua época. Foi talvez o primeiro fotógrafo brasileiro que teve seu trabalho, vigoroso e instigante, em plena sintonia com a vanguarda que se praticava naquele momento em que buscava integrar todas as manifesta??es artísticas num projeto cultural geral para o país.Quanto de Photoshop? Foto de Klavs Bo Christensen rejeitada pelo concurso e imagem originalO assunto n?o é novo, nosso blog é que chegou atrasado…Há alguns meses, ?o HYPERLINK "" \t "_blank" Olha Vê trouxe a notícia sobre esta ?imagem de Klavs Bo Christensen, que foi banida do concurso dinamarquês Picture of the year, por “excesso de Photoshop”. ? uma quest?o bastante complicada, considerando que a manipula??o n?o se refere a uma montagem, no sentido de acrescentar ou retirar elementos da cena, mas sim ao suposto abuso de filtros e corre??es.Decidi retomar o tema porque me deparei com as regras do concurso que justificaram a exclus?o. Entre outras coisas, diz o seguinte:As fotos enviadas ao? Picture of the year devem ser uma representa??o confiável daquilo que ocorreu em frente à c?mera durante a exposi??o. Pode-se processar (post-process) as imagens eletronicamente desde que de acordo com as boas práticas. Pode-se cortar, queimar (burning), clarear (dodging), converter em preto e branco bem como normalizar a exposi??o ou corrigir as cores, mas preservando a express?o original da imagem. O júri e o comitê da exposi??o reservam o direito de ver o arquivo original RAW, “raw tape”, negativos e/ou cromos. Em caso de dúvida, o fotógrafo pode ser banido da competi??o.Pra come?ar, alguém explica o que s?o “boas práticas”? Será algo parecido com os bons costumes?? certo que houve manipula??o, manipula??o intencional, planejada, mas algumas quest?es devem ser colocadas:– Considerando que a corre??o da imagem é prática recorrente no fotojornalismo, como estabelecer o limite a partir do qual esse procedimento se torna inconveniente ou antiético?– Há uma diferen?a significativa entre as corre??es as que fazemos hoje no Photoshop e as que fazíamos no laboratório (e que, aliás, levam os mesmos nomes: burning, dodging…)?– Existe um comportamento seja do filme ou do CCD que possamos chamar de “natural”? Em outras palavras, n?o s?o eles inevitavelmente programados pelo fabricante para responder ao estímulo da luz segundo uma programa??o?– Se o problema é a “pós-produ??o”, como julgar as imagens feitas com as novas c?meras digitais que trazem cada vez mais efeitos semelhantes aos do Photoshop como recursos “pré-programados”?? claro que essas perguntas s?o retóricas, porque já insinuam uma resposta.Só pra comparar, a Associated Press diz em sua? HYPERLINK "" \t "_blank" Carta de Novos Valores e Princípios:As fotografias da AP devem sempre dizer a verdade. Nós n?o alteramos ou manipulamos o conteúdo de uma fotografia em nenhuma hipótese (…).Pequenos ajustes em Photoshop s?o aceitáveis. Isso inclui cortes, dodging e burning, convers?o em escala de cinzas, normaliza??o de tons e ajustes de cores que devem se limitar ao mínimo necessário a uma clara e acurada reprodu??o (semelhante ao burning e dodging geralmente utilizados no processamento de imagens em laboratório) e que restauram a autêntica natureza da fotografia.Foto de Mannie Garcia agenciada pela AP, e o cartaz de Shepard FaireyAliás, é nesta Carta de Princípios que a AP se baseou para questionar as imagens feitas pelo artista Shepard Fairey, na campanha de Barak Obama, como vimos nesses dias no? HYPERLINK "" \t "_self" blog do Clício.Mas aqui está novamente o nó: qual é essa “autêntica natureza da fotografia”? ? a natureza em si, tipo o movimento do sol, a for?a da gravidade, o moranguinho silvestre que nasce la longe? Ou é algo forjado pela tradi??o da própria fotografia? Se for, ent?o, n?o é uma natureza em estado puro, é uma constru??o cultural, passível de adapta??o, de atualiza??o, de releitura ao longo da história. O que seria, por exemplo, “restituir a autêntica natureza da moda”, ?“a autêntica natureza da língua portuguesa”…?No final das contas, trata-se de “respeitar a tradi??o documental” que, é certo, tem um grande valor. Mas, se for esse o caso, seria melhor assumir em vez de fazer malabarismos conceituais.Tenho a impress?o de haver certo saudosismo de uma pureza que nunca existiu, de uma espécie de Jardim do Eden do qual fomos expulsos pelo pecado que cometemos. O século XIX acreditou ter descoberto a Escrita do Sol, da Luz ou o “Lápis da Natureza”. E, às vezes, podemos achar que essas primeiras fotografias eram o paraíso, mas n?o, já eram o próprio fruto do conhecimento.? um assunto velho e que ainda vai longe. Mas temos que reconhecer: deve ser mais fácil fazer uma “fotografia confiável” do que redigir regras para concursos e cartas de princípios para agências.Dois foto-filmes raros de Chris Marker Nesses dias, tive acesso a cópias de dois filmes raros de Chris Marker, Lembran?as de um futuro (Souvenirs d’um avenir, 2001), sobre o trabalho da fotografa Denise Bellon, e Se eu tivesse quatro dromedários (Si j’avais quatre dromadaires, 1966), um diálogo fictício em torno de imagens documentais que mostram as transforma??es do mundo. Ambos discutem fotografia e s?o feitos a partir de fotografias, por isso, foto-filmes. Compartilho alguns pequenos fragmentos desses e outros trabalhos.Pra quem já conhece Marker, pode valer mais a pena ir direto aos vídeos.Pra quem n?o conhece, uma breve apresenta??o. Ele é um fotógrafo, cineasta e artista multimídia francês, diretor do clássico La Jetée (algo como A Plataforma, 1962), filme de fic??o também todo feito com imagens estáticas (com exce??o de uma breve passagem em movimento). O filme conta a história de um prisioneiro que vive num planeta devastado pela 3? Guerra mundial. Requisitado para experiências de viagem no tempo, ele retorna ao momento de um trauma de inf?ncia e à mulher cujo rosto é a única imagem que o reconforta. ? imperdível.Esse filme foi lan?ado no Brasil em DVD, junto com outra obra importante, Sans Soleil (Sem Sol, 1983).A maior parte de sua obra n?o está disponível nem mesmo na Fran?a. Felizmente, existe uma rede de aficcionados que compartilha informa??es e, eventualmente, os próprios filmes. Assim eu fui formando uma cole??o.Recentemente, o produtor cultural Rafael Sampaio, ex-aluno nosso da Faap, procurou o Marker e prop?s uma mostra de seus filmes, que aconteceu no Centro Cultural Banco do Brasil no meio deste ano. Em princípio, ele recusou. Disse que seria algo t?o improdutivo quanto juntar pessoas numa sala para ficar lendo todos livros de um escritor. Mas acabou aceitando mostrar alguns trabalhos. Como poucas pessoas sabiam do que se tratava, creio que o público foi menor do que a mostra merecia. Mas foi uma conquista. O catálogo n?o é rico em imagens mas traz uma compila??o de artigos, informa??es biográficas e uma descri??o bastante completa de seus trabalhos, algo que n?o se encontra facilmente em lugar nenhum do mundo. Ainda é possível comprá-lo no CCBB por R$ 5,00.Até amanh? (25/10), temos no MIS-SP a exposi??o Staring Back (algo como, Olhando fixamente de volta, 2007), um trabalho que realizou a partir de fotografias de diferentes épocas e lugares.Marker é uma figura enigmática. Raramente dá entrevistas, n?o se deixa fotografar, n?o se conhece muito de sua biografia, mas inventam-se muitas lendas. Como diz o cineasta e amigo Alain Resnais, há hipóteses de que se trate de um extraterrestre. Dizem também que ele já foi visto em lugares muitos distantes ao mesmo tempo. ? bem verdade que ele viajou por quase todo o planeta, e viu de perto quase todos os conflitos do século XX. Consagrado como fotógrafo e cineasta entre um público politizado, lan?ou trabalhos em vídeo nos anos 80, um CD-Rom (Immemory, 1997) e instala??es multimídia nos anos 90 e, agora, com quase 90 anos de idade, anda com vários projetos pela internet. Recentemente, criou junto com artistas e ativistas da internet uma experiência no Second Life, uma ilha chamada Ouvroir (algo como Acervo, 2008) onde reproduz uma recente retrospectiva feita na Sui?a. Sabe-se que, num dado momento, foi possível conversar com ele próprio, através de seu avatar, mas nunca tive esse privilégio. Para?ilustrar, gravei uma navega??o que fiz esse ano.Marker tem uma habilidade excepcional de percorrer imagens de arquivos, dele ou de terceiros, e construir a partir delas amarra??es surpreendentes, muitas vezes permeadas por elementos ficcionais. Faz história como um colecionador, como recomendaria Benjamin. Vamos aos dois filmes:Souvenir d’um avenir (Lembran?as de um futuro, 2001)Homenagem e reflex?o dedicada à obra da fotógrafa francesa Denise Bellon, que conviveu com os artistas das vanguardas européias, trabalhou na Alliance Photo junto a fotógrafos como Robert Capa, David Seymour e Pierre Boucher , e permaneceu atuante na Fran?a ocupada pelos nazistas. Navegando pelas imagens, Marker demonstra como a 2? Guerra já se fazia pressentir na atmosfera captada por sua c?mera, num tempo de suposta calmaria do pós 1? Guerra. Esse filme esteve na Mostra do CCBB, e s?o deles as legendas que mostro.Si j’avais quatre dromadaires (Se eu tivesse quatro dromedários, 1966)Conversa ficcional entre um fotógrafo e dois amigos, sobre imagens tomadas em diferentes partes do mundo. Enquanto pensa a fotografia através desses personagens, Marker constrói um documentário que discute diferen?as entre culturas, as transforma??es trazidas pelo progresso, e as utopias revolucionárias, alguns de seus temas mais recorrentes. Este filme n?o esteve na mostra e só consegui uma cópia dele esta semana. Quem quiser vê-lo inteiro, está disponível no site HYPERLINK "" Tofu, sem legendas. A tradu??o deste fragmento é minha, sujeita a erros, e com um fragmento de conversa que n?o consegui entender. O estranho título do filme é o final do poema Dromadaires, de Guillaume Apollinaire, que foi musicado pelo compositor Francis Poulenc.Avec ses quatre dromadaires (Com seus quatro domedários)Don Pedro d’Alfaroubeira (D. Pedro de Alfarroubeira)Courut le monde et l’admira (Correu o mundo e o admirou)Il fit ce que je voudrais faire (Fez o que eu gostaria de fazer)Si j’avais quatre dromadaires (Se eu tivesse quatro dromedários)Bonus: Lettre de Siberie (Carta da Siberia, 1957)Para finalizar, deixo um trecho deste filme que, apesar de muito discutido, é quase impossível de encontrar. Ao que parece, Marker n?o permite mais sua exibi??o. Consegui comprar um DVD defeituoso (faltam 3 minutos) e supostamente autorizado, num disputadíssimo leil?o no e-Bay.Nesse trecho, Marker faz um exercício que sugere a fragilidade das pretens?es documentais da imagem: uma mesma tomada repetida três vezes, pode servir para legitimar discursos muito distintos e mesmo contraditórios.A filmografia completa de Chris Marker pode ser vista no HYPERLINK "" \t "_blank" IMDB. Quase completa, porque ele segue produzindo.Eu discuti alguns de seus trabalhos num artigo chamado Memórias fixadas, sentidos itinerantes publicado em 2008 na Revista Facom, da Faap, e parcialmente reproduzido no catálogo do CCBB. Pode ser acessado numa HYPERLINK "" vers?o on line.A fotografia e o diagnóstico do espírito O caderno Mais da Folha de S. Paulo trouxe neste domingo um belo artigo de Moacyr Scliar, “A cara do mal” , sobre o médico Cesare Lombroso, professor da Universidade de Turim cujo centenário de morte foi comemorado agora em outubro. ?Lombroso dedicou sua vida à hipótese de que certos aspectos do comportamento criminoso s?o congênitos. Ou seja, em alguma medida, bandido nasce bandido.O texto está disponível apenas para assinantes do UOL na edi??o on-line da Folha: HYPERLINK "" Lombroso, publicado em seu livro O homem criminal, de 1876.Apesar das ótimas referências que traz, Scliar n?o menciona um aspecto que nos interessa. Lombroso, como bom positivista, acreditava que nenhuma verdade escapava ao olhar atento e munido de métodos rigorosos, mesmo aquelas que dizem respeito ao espírito humano. Esse olhar e esse método seriam garantidos por uma tecnologia de ponta do século XIX: a fotografia.? na compara??o entre milhares de fotos de criminosos e n?o criminosos que ele tentará encontrar a fisionomia típica do criminoso, conforme o tipo específico de desvio que manifestasse: o ladr?o, o homicida, o estuprador, mas também, o anarquista, o homossexual. Ou seja, bandido nasce bandido e tem cara de bandido.Imaginem só que maravilha seria a possibilidade de uma atua??o “profilática” da polícia: você poderia ser preso por ter uma sobrancelha, um nariz, talvez uma orelha, digamos, com formas delinqüentes. Se você n?o fez nada de errado, ainda bem, seu rosto prova que poderia muito bem ter feito! Na prática, n?o era isso exatamente que Lombroso defendia mas, como lembra Scliar, ele n?o deixou de inspirar teorias que foram usadas para justificar as persegui??es naziistas, que visavam uma espécie de assepsia social dessa mesma ordem.Homossexual passivo, c. 1900. Atribuído a Lombroso.O rigor metodológico de Lombroso resulta em registros bastante padronizados que, suponho, tenham sido importantes para definir o que é hoje nossa “foto de identidade”. Mas isso pode n?o tê-lo impedido de confundir a natureza do ser-humano com uma?teatralidade?que é inerente ao corpo, sobretudo ao corpo exposto à c?mera. Neste último exemplo, n?o se trata de revelar nada, mas de fazer a imagem coincidir for?osamente com um juízo já formado.Lombroso n?o foi o primeiro nem o último a usar a imagem para identificar patologias e comportamentos.?Mas, hoje, a ciência já superou a linguagem mimética da fotografia e tem métodos muito mais sutis para identificar os padr?es que definem nosso comportamento, como o mapeamento genético e as análises bioquímicas. E assim, vez ou outra, ela continua tentando entender o que “causa” o comportamento do criminoso, do subversivo, do esquizofrênico, do homossexual, quem sabe, em busca de uma cura…Quem se interessar por saber mais sobre o uso da fotografia por Lombroso e outros cientistas, temos algumas boas fontes em português:“A fotografia e seus fantasmas”, ensaio que integra O ato fotográfico, de Philippe Dubois (Papirus, 1996).“Entre a Arte, a Ciência e o Delírio : a fotografia médica francesa na Segunda metade do século XIX”, artigo de Etienne Samain, um pouco difícil de encontrar (publicado no Boletim do Centro de Memória da Unicamp, vol 5, n°10, 1993).“Identidade / Identifica??o” primeiro capítulo do livro Identidades Virtuais. Uma leitura do retrato fotográfico, de Annateresa Fabris (UFMG,2004).Em tempo: o Blog do Cia de Foto publicou referências muito interessantes que complementam este post e o comentário deixado por eles aqui: HYPERLINK "" . Vale a pena ver.25 anos de A ILUS?O ESPECULAR O Brasil n?o gosta de efemérides. Muito menos de discutir mecanismos de preserva??o e conserva??o de informa??es que pertencem à nossa história. Ou até mesmo as reedi??es s?o raras em nossa história do livro, particularmente do livro de fotografia. Acreditamos até o último momento que alguma editora pudesse fazer uma nova edi??o deste clássico da fotografia brasileira.O livro A Ilus?o Especular – Introdu??o à Fotografia, de Arlindo Machado,? foi publicado em 1984, gra?as a uma a??o conjunta entre a Editora Brasiliense e o Instituto Nacional da Fotografia/Funarte, e ao esfor?o de Pedro Vasquez, na época Diretor do INFOTO. Por iniciativa própria e por acreditar que também temos que contemplar a produ??o dos pesquisadores, historiadores e críticos que pensam a fotografia como uma manifesta??o visual particular e com características próprias, Pedro Vasquez criou a Cole??o “Luz e Reflex?o”, iniciada em 1983, com a publica??o de Universos e Arrabaldes, de Luis Humberto. Pedro Vasquez justificou a import?ncia da cole??o que se propunha, entre outras metas, “garantir em espa?o fixo para o debate das quest?es fotográficas”.No início da década de 1980 várias editoras arriscaram a publica??o em língua portuguesa de livros que contemplavam a fotografia: em 1981, tivemos Ensaios sobre Fotografia, de Susan Sontag, e A C?mara Clara de Roland Barthes; e, em 1985 Vilém Flusser com o antológico Filosofia da Caixa Preta – ensaios para uma futura filosofia da fotografia.Isso nos permitiu antever um espa?o de democratiza??o da produ??o científica, crítica e histórica da fotografia, ao mesmo tempo em que se abria uma nova possibilidade de articula??o entre os diferentes autores que potencializaram o campo da reflex?o fotográfica.Por raz?es diversas a cole??o idealizada n?o progrediu, mas A Ilus?o Especular tornou-se referência obrigatória para fotógrafos e pesquisadores. Uma rápida pesquisa nos sites de vendas de livros é possível, de tempos em tempos, se deparar com algum exemplar “em bom estado” de A Ilus?o Especular, por um pre?o assustador: R$ 300,00. Como vimos isto ser praticado nos últimos anos, já se justifica uma nova edi??o.Queremos lembrar Arlindo Machado que na Introdu??o assinala: “ O que nós chamamos aqui ‘ilus?o especular’ n?o é sen?o um conjunto de arquétipos e conven??es historicamente formados que permitiram florescer e suportar essa vontade de colecionar simulacros ou espelhos do mundo, para lhes atribuir um poder revelatório. A fotografia, em particular, desde os primórdios de sua prática, tem sido conhecida como ‘espelho do mundo’, só que um espelho dotado de memória”.Parece que os nossos editores se pretendem efêmeros, n?o dotados de memória. Mesmo assim, vale o registro dos 25 anos de existência de um dos textos mais citados em teses acadêmicas no país que versam sobre fotografia.Miséria editorial Dizem que Giovanni Pico della Mirandola, um erudito do século XV, orgulhava-se de ter lido aos 30 anos de idade todas as obras escritas e disponíveis em sua época. Isso só era possível, claro, porque a recente descoberta de Gutenberg ainda n?o tinha produzido seus efeitos.?Com o mercado editorial produzindo mais do que nunca, quem poderia dizer algo parecido hoje?Talvez um jovem pesquisador da fotografia possa fazer uma visita à melhor livraria de sua cidade e, depois de algumas semanas, dizer que leu todos os ensaios disponíveis sobre o tema.?Mas n?o é motivo para orgulho.No post anterior, o Rubens apontou muito bem a import?ncia de A Ilus?o Especular em nossas pesquisas, e a necessidade de reeditá-lo. Dei uma repassada em minha biblioteca – nas coisas que tenho, nas que me faltam – e decidi fazer um pequeno balan?o.Temos visto um espa?o crescente para a publica??o de catálogos e livros com obras de fotógrafos. ? uma conquista, e os livros est?o cada vez mais bem diagramados e impressos. ?Mas a dívida das editoras com a pesquisa sobre fotografia é enorme. Muitas vezes, nem com edi??es feias podemos contar.A exemplo do livro de Arlindo Machado, outros títulos escritos em português est?o esgotados ou s?o difíceis de encontrar. Alguns textos importantes nunca foram traduzidos.Filosofia da Caixa Preta, de Flusser, disponível em turco (acima), russo, chinês, japonês e outras tantas línguasAté que n?o podemos reclamar de alguns clássicos: Sobre fotografia, de Sontag, e Filosofia da Caixa Preta, de Flusser, ficaram uns bons 15 anos longe das livrarias mas reapareceram e só ent?o pude substituir minhas cópias alternativas. Fotografia e História, do Boris Kossoy, n?o tenho certeza se chegou a esgotar, mas felizmente também ganhou uma edi??o revisada. A C?mara Clara, de Barthes, está por aí, resistindo bravamente. Mesmo assim, na semana passada, só vi disponíveis na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (Av. Paulista) exemplares dos livros do Boris e de Sontag. O de Barthes precisava ser encomendado. Flusser, inacreditável, nem encomendando. Alguém sabe se esgotou de novo?Publica??es recentes, como?A Máquina de Esperar, de Maurício Lissovsky ou?Fotografia e Viagem, de Antonio Fatorelli, já se tornaram livros importantes, mas n?o é óbvio que os encontremos em livrarias de S?o Paulo. Será que é bairrismo? Nessas horas, só a internet nos salva, mas também demora.Mais…?O livro de Philippe Dubois demorou muito a chegar: quando ele veio ao Brasil lan?ar?O ato fotográfico, aproveitou para dizer? em várias palestras que já n?o acreditava tanto no que havia escrito. O Fotográfico, de Rosalnd Krauss, só chegou com uma edi??o em português lan?ado por uma editora espanhola (G&G).Recentemente, houve rumores de que teríamos uma tradu??o de?Photographie Plasticienne, de Dominique Baqué, que já estava disponível em espanhol. ?Acho que desistiram, afinal, a própria autora lan?ou uma continua??o desse livro (um outro trabalho, n?o apenas uma reedi??o), tentando dar conta da rápida transforma??o vivida pela fotografia na última década.Fotografia e Sociedade, de Gisele Freund, foi lan?ado em Portugal, mas provavelmente está esgotado. Os usados s?o difíceis de encontrar e custam caro. Hoje, no site Estante Virutal, há um exemplar em espanhol ( HYPERLINK "" La Fotografia Como Documento Social)por R$ 319,00.Autores como Raul Beceyro (Ensayos Sobre Fotografia), Henri Van-Lier (Philosophie de la Photographie), Joan Fontcunberta (El Beso de Judas), André Ruille (La photographie), Geoffrey Batchen (Burning with desire: The Conception of Photography), que foram ou têm sido sistematicamente lidos por aqui, nunca foram sequer traduzidos. E The History of Photography, de Beaumont Newhall? Só em espanhol. Ou qualquer outro de história mundial…? Temos é claro obras como?A fotografia moderna no Brasil (Helouise Costa e Renato Rodrigues) e a colet?nea Fotografia: usos e fun??es no século XIX (organizado por Annateressa Frabris), ambos com recortes bem específicos. Mas alguém me ajuda a lembrar de um bom livro de história da fotografia mundial, escrito ou editado em português, que possamos encontrar hoje nas livrarias (n?o vale nos sebos ou leil?es de obras raras)…?Imaginem quanta gente deve ter passado batido. Maurício Lissovsky recomendou um autor português, Pedro Miguel Frade (Figuras do Espanto: a fotografia antes de sua cultura). Eu desconhecia, n?o lembro de tê-lo visto algum dia em livrarias por aqui. Tentei achar, mas já n?o está disponível sequer em Portugal.Também deve haver autores brasileiros publicando seus trabalhos em pequenas editoras ou editoras universitárias, coisas cujo acesso será sempre difícil. Ou pesquisadores cujas teses de mestrado ou doutorado, com um pouco de sorte, só v?o circular em PDF. Tudo isso num momento em que já temos dois (que eu conhe?a) cursos de gradua??o em Fotografia, muitos programas de pós-gradua??o distribuídos pelo Brasil com linhas de pesquisa que apontam para a fotografia.Ainda bem que temos os blogs, que n?o esgotam… Mas podem sair do ar.Doisneau publicitário ? surpreendente encontrar o nome de um típico “fotógrafo de rua” ligado ao acervo de imagens publicitárias e institucionais de uma grande indústria. ? isso que nos mostra a exposi??o A Renault de Doisneau (assim mesmo, com rima), que passou por Curitiba e agora está em cartaz na Fiesp, em S?o Paulo.Mas temos sempre que desconfiar daquilo que chamamos de “típico”.Eu mesmo sempre tive a sensa??o de que Doisneau foi um fotógrafo tipicamente francês. Por que isso? Talvez porque o tradicional Cours de langue et de civilisation fran?aises, de G. Mauger, ?método usado por muitos professores e escolas desde o tempo da palmatória, era ilustrado com fotografias dele. Talvez porque, enquanto vimos mestres como Kertész, Capa ou Cartier-Bresson se deslocando pelo mundo, o trabalho de Doisneau parece ter se concentrado nos hábitos e paisagens urbanas da Fran?a. Talvez ainda porque, em qualquer lugar do mundo, todo Café que deseja ganhar um clima parisiense e simpático coloca na parede algumas de suas fotos.Doisneau. O Beijo do Hotel de Ville, 1950.Na prática, esse “tipicamente francês” se refere a elementos de nosso imaginário que est?o representados em suas fotos: o francês rom?ntico, elegante, erudito, também com uma dose de malícia, de sedu??o, de bom-humor sem jamais perder a formalidade e a polidez.A famosa foto do “Beijo”, que tanto nos fez sofrer ao se revelar encenada, parece ser uma chave para responder a isso. Doisneau certamente n?o se rendeu ingenuamente a um estereótipo. Ao contrário: com muita habilidade, ele ajudou a construir aquilo que nosso imaginário reconhece como Fran?a, sobretudo por Paris.Sendo assim, mesmo na rua, Doisneau sempre foi um bom publicitário, sem nenhum preconceito quanto ao termo: refiro-me aqui a alguém que tem plena consciência das imagens que constrói e da leitura que delas se poderá fazer.E n?o se esquivou de mostrar a Fran?a quando a vida já n?o parecia t?o leve: n?o s?o as mais famosas, mas conhecemos as imagens que ele fez durante a guerra, a ocupa??o nazista e as atividades de resistência.As fotos da RenaultDoisneau praticamente iniciou sua carreira de fotógrafo, aos 22 anos, trabalhando para essa fábrica de automóveis.Os resultados s?o sempre bons, mesmo em situa??es muito diversas: ao ar livre ou em espa?os fechados, mostrando máquinas, paisagens, arquitetura ou pessoas, em tom publicitário ou documental, o que vemos é um grande domínio da técnica, da luz, da composi??o e, num dado momento, também da cor e daquilo que me pareceu ser um flash. Quanto às pessoas, às vezes as poses s?o evidentes, às vezes, n?o. Mas como saber? ? possível ver ao longo do tempo coberto pela exposi??o o modo como ele aprimora sua capacidade de dirigir seus modelos de modo convincente, seja em poses extravagantes da fotografia de moda, seja na encena??o do espont?neo, como no “Beijo”.Doisneau, 1935.Mesmo trabalhando com encomendas, ainda há leveza e romantismo no conjunto que vemos. ? muito bom que a Renault tenha preservado e mostrado esse material. Mas me incomoda notar que a empresa, numa exposi??o histórica, adota ainda hoje um tom propagandístico. No texto do folheto distribuído na exposi??o, a conservadora da cole??o fala numa “empresa mítica”, “à frente de seu tempo”. Diz ainda, que Doisneau está ali “promovendo a eleg?ncia dos automóveis da Renault” quando, na verdade, ele está exatamente construindo essa eleg?ncia através de suas fotografias. Por fim, fala do “orgulho dos trabalhadores” da fábrica.? verdade que Doisneau é, ele próprio, um desses trabalhadores. Ele n?o está ali para fazer denúncia, n?o é essa sua voca??o. Também é verdade que parece buscar o que existe de mais digno nas pessoas que poderiam muito bem desaparecer naquele ambiente escuro, com seu maquinário pesado e gigantesco. ? natural que olhemos para a fábrica quase com certa nostalgia: as ferramentas, as pe?as, engrenagens, manivelas s?o coisas de um tempo em que o trabalho na indústria ainda respondia a uma performance humana, ou seja, s?o de um tempo em que os produtos ainda eram feitos por alguém. Também é verdade que a indústria francesa quase sucumbiu por excesso de humanismo (às vezes, de sindicalismo), sendo mais lenta na ades?o de modelos que garantem produtividade.O momento em que Doisneau chega a essa empresa coincide com aquele em que o mundo todo se esfor?a para contornar os efeitos da crise de 1929. A resposta de Louis Renault é eficiente: ao mesmo tempo em luta pela diminui??o da carga tributáira e pela melhoria nas condi??es de crédito, investe em publicidade.?O sucesso da Renault desse período tem a ver também com uma?política?de redu??o dos custos, garantida pela renova??o das linhas de montagem segundo os modelos que observa nos EUA, que incluem a cronometragem do trabalho e rigorosas metas de produtividade.Voltando às fotografias, e ao modo como os trabalhadores aparecem nelas, vemos que há momentos de descontra??o, de aprendizado, há intervalos, e há também muitas poses, seja pelo compromisso institucional, seja porque as baixas luzes assim exigiam. Mas nem todas as express?es esbanjam felicidade e orgulho de estar ali. Com um pouco de aten??o, é possível ver também o esfor?o, o cansa?o e os corpos sujos de graxa.Doisneau,1935.Isso fica ainda mais evidente quando comparado ao glamour do outro lado da exposi??o: os belos carros, as paisagens exuberantes, grupos de pessoas se divertindo, os vestidos caros, as mulheres (n?o necessariamente lindas, mas charmosas e seguras, muitas vezes dirigindo os próprios carros). Também os “concursos de eleg?ncia”, dos quais o automóvel é sempre um componente.Mesmo a servi?o da empresa, Doisneau soube n?o confundir o esfor?o de venda dos carros – as imagens usadas como propaganda – com o esfor?o exigido para sua fabrica??o. ? o próprio texto de abertura da exposi??o que nos informa que os registros dedicados aos trabalhadores resultavam de uma iniciativa pessoal do fotógrafo.N?o é preciso levar à exposi??o uma bandeira marxista. N?o é preciso interrogar Doisneau a respeito de sua ideologia ou buscar ali um protesto contra o caráter alienante de toda indústria. As imagens est?o acima disso. Mas também seria um desperdício n?o reconhecer a amplitude de experiências que o fotógrafo soube mostrar, quando a indústria automobilística se colocou como tema de suas fotos. Em outras palavras, é preciso enxergar Doisneau para além do cronista das pequenas alegrias cotidianas.? exatamente pela possibilidade de nos reconhecemos em algum ponto dessa amplitude de experiências que suas imagens têm algo de universal. Se n?o fosse assim, estaríamos simplesmente diante do exótico (do glamour, das paisagens européias, dos vestidos pomposos, dos trejeitos chiques que podemos admirar sem propriamente nos identificar com eles).?? isso que faz de Doisneau um fotógrafo humanista e n?o apenas tipicamente francês.A fotografia e o pensamento selvagem O pensamento selvagem foi o primeiro livro de Levi-Strauss que li. E está entre aqueles poucos que nunca mais parei de ler. Tive também a sorte de ter um bom professor, Etienne Samain, que me ensinou quase tudo que eu sei sobre antropologia. Foi ele quem me explicou o grande salto que representava abandonar a idéia de uma “mente primitiva” para propor a existência de um “pensamento selvagem”.Chegarei lá, mas antecipo que tive a sensa??o de encontrar nesse livro algo que quase define a fotografia, pelo menos, uma certa fotografia.Para Levi-Strauss o índio n?o é um ser limitado ou defasado em sua forma de pensar, tampouco está desprovido de um saber sistematizado, conforme concluiu a ciência européia. Ele tem sim um modo legítimo de fazer ciência, que chamou de “a ciência do concreto”, título do primeiro capítulo do livro.“(…) é que existem dois modos de pensamento científico, um e outro fun??es, n?o certamente estádios desiguais do desenvolvimento do espírito humano, mas dois níveis estratégicos em que a natureza se deixa abordar pelo pensamento científico – um aproximadamente ajustado ao da percep??o e ao da imagina??o, e outro deslocado”.Enquanto a ciência moderna optou por olhar de longe para as coisas, em outras palavras, operar por abstra??es racionais, o índio produz seu conhecimento sempre rente à natureza, a partir de experiências sensíveis e concretas que ir?o atuar na composi??o do mitos. Enquanto traduzimos o mundo em conceitos, o índio observa as formas, movimentos, cores, sabores e, a partir disso, constrói categorias que organizam o que está ao seu redor. Essa n?o é uma maneira nem maior nem menor de fazer ciência, é diferente. O mito n?o é uma fabula??o que dá as costas à realidade, mas uma narrativa que organiza e transmite fragmentos dessa experiência com a natureza. ? aí que surge uma metáfora fundamental construída por Lévi-Strauss: enquanto nossos cientistas operam como um engenheiro, o? índio opera como um bricoleur.Palácio Ideal: construído início do século XX pelo carteiro francês Ferdinand Cheval ao longo de 33 anos, com pedras que recolhia no caminho durante seu trabalho. ? um exemplo de bricoleur citado por Lévi-Strauss.Talvez a bricolagem n?o nos seja algo muito familiar. Trata-se de?uma atividade em parte funcional, em parte lúdica, que consiste em colecionar de tudo um pouco com o princípio de que “isso poderá servir”. Diz Lévi-Strauss sobre o bricoleur:“seu universo instrumental é fechado, e a regra de seu jogo é sempre arranjar-se com os “meios-limites”, isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante heteróclitos, porque a composi??o do conjunto n?o está em rela??o com o projeto do momento nem com nenhum projeto particular mas é o resultado contingente de todas as oportunidades que se paresentam (…)”.No momento em que precisa de algo, o bricoleur revira seu acervo de achados para encontrar ali uma pe?a que pode se encaixar na nova fun??o, sem no entanto esconder ou apagar as marcas de sua origem. ? como improvisar um cabo de vassoura para recompor o pé de uma mesa, ou um chapéu para fazer um abajur.Enquanto o engenheiro, com seu projeto, parte de uma estrutura (uma saber ordenador)?para chegar a um evento (o fen?meno constituído), o bricoleur parte de um acontecimento para chegar a uma estrutura.Quando me deparei com essa idéia, pensei: é a fotografia.A fotografia como bricolagemQuando o fotógrafo está na rua, ele n?o trabalha como o pintor ou o escultor. O mundo visível n?o é uma matéria t?o “prima” como é a tinta na paleta ou um monte de argila que aguarda que uma ordem lhe seja oferecida pela autoridade do artista. O mundo com que lida o fotógrafo está pré-organizado por um universo de raz?es que n?o s?o as do fotógrafo. Um prédio, as pessoas, e todas as coisas enquadradas n?o est?o ali para compor sua imagem, apenas podem lhe servir. E o fotógrafo n?o deixa de observar todas as coisas, como o bricoleur n?o deixaria de recolhê-las. E pode ali encontrar os elementos de que precisa, n?o porque os produziu, mas porque soube aproveitar suas qualidade para colocá-los dentro de uma nova parar a fotografia com a bricolagem me parece resolver um antigo problema. A imagem n?o é o mundo em si, n?o é seu duplo, sua reprodu??o. Estamos mais do que de acordo que a fotografia transforma o mundo. Mas a imagem n?o é algo totalmente afastado e independente desse mundo, a ponto de n?o podermos mais reconhecê-lo.O que vemos na imagem s?o como pe?as que o bricoleur toma emprestado para dar-lhes um novo sentido, ao mesmo tempo em que seu sentido original ainda permanece visível. Ele n?o aceita de modo neutro aquilo que lhe chega, mas também n?o o renega, n?o o esconde.O sentido da fotografia, como toda bricolagem, é uma negocia??o entre uma necessidade de um pensamento e uma disponibilidade do mundo (no nosso caso, uma necessidade estética, n?o propriamente utilitária).Essa sempre me pareceu uma bela maneira de pensar a fotografia, porque nos permite evitar os extemos:? um conteudismo que só é capaz de buscar na imagem aquilo que o mundo era antes de ser fotografado; ?ou ?um formalismo que trata o mundo fotografado como uma matéria prima a ser manipulada do zero pelo artista. O fotógrafo, como o bricoleur, n?o é alguém produz o que precisa, mas sabe fazer sua busca dialogar intensamente com aquilo que encontra. Em certa medida, sabe redefinir sua busca a partir dos seus achados.Talvez isso pare?a valer apenas para uma fotografia antiquada, aquela feita pelo “fotógrafo ca?ador”, que ignora as quest?es propostas pelas novas imagens de simula??o (imagens construídas pelo método do “engenheiro”). Mas creio ser possível ampliar um pouco o espectro coberto pela idéia de bricolagem. Imagino que, mesmo um fotógrafo de moda, tenha que adequar suas necessidades ao potencial do corpo que está diante de sua c?mera, isto é, inventar um novo corpo a partir de fragmentos de um corpo que preexiste. Ou, quem teve a oprotunidade de ouvir Joel Peter Witkin falando de seu trabalho?recentemente, percebeu que, para ele, coletar e produzir n?o s?o experiências distanciadas. Ainda que suas imagens sejam totalmente encenadas, lembro de ouvi-lo dizer: “quando encontrei tal coisa”… “tal personagem”… “tal objeto”.?Na prática, toda arte tem um toque de bricolagem porque, um pouco ao contrário do que pode parecer, mesmo a tinta na paleta ou a argila n?o s?o matérias t?o inertes assim. Est?o menos ordenadas que o mundo diante da c?mera, mas certamente determinam a cria??o, imp?em suas?próprias?qualidades.Retrato de Lewis Payne por Alexander Gardner, 1865.Talvez seja possível ir um pouco além. O tempo que resulta da fotografia é uma espécie de tempo mítico: quando um ritual encena o mito, o passado é vivenciado como se fosse ocorresse agora. O ritual n?o relata algo que está dado, como faz o historiador, ele coloca uma origem em jogo no presente. ? assim que entendo o “isso foi” da C?mara Clara, de Barthes. N?o como um movimento em dire??o ao passado que se imp?e ao olhar diante da imagem, mas como uma espécie de curto-circuito temporal que dá virtualidade a esse passado e permite a ele ser sentido no presente. Como diz Barthes (também ele leitor e companheiro de estruturalismo de Lévi-Strauss): “isso será e isso foi”. Algo que repete a respeito do assassino de Lincoln condenado à morte, visto na foto de Alexander Gardner: “ele está morto e vai morrer”.Na fotografia, como na bricolagem, vemos esse tempo complexo, uma sobreposi??o entre aquilo que foi e uma potencialidade. Trata-se da possibilidade de produzir uma narrativa própria a partir dos fragmentos do mundo, em outras palavras, de produzir um saber que n?o abnega a natureza tal e qual ela se oferece aos sentidos, como só o pensamento selvagem é capaz de fazer.Para ser sincero, essa rela??o entre bricolagem e fotografia é uma idéia que foi recusada no exame de qualifica??o de meu mestrado porque, de fato, resultava mais em rebarbas do que em encaixes. Mas a idéia de bricolagem virou para mim quase um valor que reconhe?o em muitas das coisas de que gosto.? uma idéia imprecisa que, se n?o coube na disserta??o, talvez possa ser compartilhada neste blog de modo informal, também como a homenagem possível que posso deixar a Lévi-Strauss.Mario Ramiro e a fotografia de espíritos Amanh? (09/11) come?a o IV SEMIN?RIO ARTE CULTURA E FOTOGRAFIA: MEM?RIA, OUTROS DEBATES, na ECA-USP. A programa??o está ótima, com o mérito de abrir espa?o para jovens pesquisadores e de aproximar da fotografia críticos e teóricos que n?o s?o os nomes mais recorrentes desse campo.Queria indicar uma apresenta??o, em especial: A fotografia de espíritos no Brasil: uma iconografia do outro mundo, de Mario Ramiro, programada para o dia 10/11.Mario Ramiro é um artista irriquieto que integrou no final dos anos 70 o coletivo 3 nós 3, junto com Hudinilson Jr e Rafael Fran?a. Fez experiências com vídeo, fax, xerox, secretária eletr?nica, muito antes de falarmos t?o deslumbradamente das novas tecnologias. Passou algum tempo na Alemanha e, de volta ao Brasil, seguiu produzindo e tornou-se professor da Escola de Comunica??es e Artes da USP.No ano passado, tive a oportunidade de participar da banca de seu doutorado, na qual apresentou a tese “O Gabinê Fluidificado e a fotografia dos espíritos no Brasil”, com orienta??o de Donato Ferrari. Dividi a banca com nomes de peso: Annateresa Fabris, Jo?o Musa, Sandra Stoll, além do orientador. Foi uma das teses mais interessantes que li na minha vida, e volta e meia sou visto com ela debaixo do bra?o, mostrando para colegas e alunos.Retrato feito por Milit?o Augusto de Azevedo, com suposta aparei??o ao fundo.Ramiro se debru?ou sobre um campo nebuloso da história da fotografia: o registro de espíritos, fantasmas, manifesta??es ectoplasmáticas e outros fen?menos mediúnicos ou paranormais. Conhecíamos bem esfor?os realizados desde o século XIX que visam dar forma através da c?mera ao invisível. Conhecíamos também um livro relativamente fácil de encontrar, O trabalho dos Mortos, publicado pela Sociedade Espírita Brasileira, que já oferecia alguma iconografia.Ramiro faz um percurso bastante amplo: resgatou experiências importantes feitasnos Estados Unidos e na Europa, às vezes envolvendo nomes célebres, e analisou o modo como a fotografia espírita se desenvolveu de modo particularmente sistemático no Brasil. O trabalho é riquíssimo em ilustra??es, apresentando desde casos discretos e obscuros, até outros mais famosos, como a polêmica reportagem da revista O Cruzeiro sobre o grupo mineiro de Chico Xavier, além de outras ocorrências de paranormalidade veiculadas pela grande imprensa.O tema é delicado mas, com a sutileza de quem anda sobre uma corda, o texto consegue ser crítico quanto às evidentes manipula??es que às imagens trazem e, ao mesmo tempo, respeitoso com as fontes mais envolvidas com o tema que, conforme o autor, colaboraram sem impor exigências.Tudo isso já comp?e uma tese densa e original, mas Ramiro traz no trabalho uma segunda quest?o. Ele compara a capacidade inventiva da fotografia espírita com aquela da produ??o artística contempor?nea. O salto é abrupto, e Ramiro teve que responder a perguntas um tanto duras da banca sobre essa compara??o. Mas ele deu uma aula, e foi também uma oportunidade para conhecer a pesquisa que fez na Alemanha e alguma de suas produ??es recentes como artista, trabalhos que também discutem – sem deslumbramento – a rela??o possível entre novas tecnologias e fen?menos paranormais.Seja pela originalidade, seja pelos riscos que assume, vale conferir.A programa??o do evento pode ser conferida no site da ECA-USP: HYPERLINK "" Paulo - cidade da fotografia Mario Cravo Neto, Exu na grota do mar, c. 2000.S?o Paulo é, sem sombra de dúvida, uma capital cultural. A cidade vem exibindo nestas últimas e próximas semanas, imperdíveis mostras de fotografias que merecem nossa aten??o. No Instituto Tomie Ohtake, temos uma retrospectiva de Mario Cravo Neto (1946-2009), denominada Eternamente Agora – tributo a Mario Cravo Neto, curadoria de Paulo Herkenhoff e Christian Cravo. O Instituto Moreira Salles exibe Otto Stupakoff (1935-2009), com 70 fotografias de moda, mulheres e celebridades, até 22 de novembro e, em seguida, Norte, fotografias de Marcel Gautherot (1910-1936). No Itaú Cultural, a imperdível exposi??o A Inven??o de um Mundo, curadoria de Jean-Luc Monterosso e Eder Chiodetto, que reúne fotografias da cole??o da Maison Européenne de la Photographie,? e exibe trabalhos dos artistas Sarah Moon, Joan Fontcuberta, Duane Michals, Jan Saudek, Joel-Peter Witkin, Pierre e Gilles, Vicente de Mello, Pierre Molinier, Bernard Faucon, entre outros, até 13 de dezembro. No Espa?o Porto Seguro Fotografia, reúne os premiados da 9? edi??o sob o tema A Fotografia e o Tempo, com destaque para Miguel Rio Branco, até 15 de novembro. O Centro Cultural FIESP exibe 106 imagens do fotógrafo francês Robert Doisneau (1912-1994), na mostra A Renault de Doisneau, até 06 de dezembro. O Sesc Pinheiros Henri-Cartier Bresson – Fotógrafo, apresenta 133 imagens do artista do acervo da Funda??o Cartier Bresson e Agência Magnum, além da mostra Bressonianas, com os trabalhos de Juan Esteves, Cristiano Mascaro,? Carlos Moreira, Tuca Vieira, Flavio Damm, Orlando Azevedo e Marcelo Buaianin, até 20 de dezembro. Na Caixa Cultural, na Pra?a da Sé, a boa retrospectiva com 40 fotografias de Ed Viggiani, Meu olho esquerdo, é imperdível pois traz o melhor da fotografia documental brasileira dos últimos 15 anos, até 19 de novembro. A Galeria Cultural Olido, da Secretaria Municipal de Cultura mostra Pierre Verger – Andalucia 1935, que reúne 70 fotografias que foram realizadas por Verger (1902-1996) na província espanhola na primavera de 1935, antes de radicar-se no Brasil, até 22 de dezembro. E o Masp, Museu de Arte de S?o Paulo, traz pela primeira vez ao Brasil a retrospectiva Walker Evans (1903-1975), que traz imagens da Grande Depress?o americana às experiências com a Polaroid, até 10 de janeiro de 2010. No mesmo Masp também é possível se emocionar com a exposi??o Rodin: do Ateliê ao Museus – Fotografias e Esculturas, que mostra 193 fotografias, parte do acervo do parisiense Eugene Rodin (1840-1917), e que retratam o processo de cria??o do artista, até 13 de dezembro. No Museu da Casa Brasileira, uma boa surpresa com a exposi??o do canadense Robert Polidori, que reúne diferentes ensaios sobre a fragilidade do homem diante das intempéries naturais e dos desastres provocados pelo homem, até 12 de dezembro.Que cidade no mundo tem consegue trazer à luz essa quantidade de artistas de reconhecimento internacional, com trabalhos e/ou séries de excepcional qualidade, que fazem de S?o Paulo um centro irradiador do melhor da fotografia moderna e contempor?nea produzida no mundo. Ainda é possível ver também espalhados em mostras coletivas os trabalhos de Cris Bierrenbach e Rochelle Costi, no Centro Cultural S?o Paulo; Albano Afonso e Ana Lucia Mariz, na Funarte; Pierre Verger e Mario Cravo Neto, no Museu Afro-Brasil; e a instala??o Corpo da Alma, de Rosangela Rennó, na Galeria Vermelho.E se você ainda n?o viu nada, n?o diga que nada acontece na cidade de S?o Paulo.O olhar incomum de WALKER EVANS Walker Evans, Signs, NY, 1928-30.Walker Evans (1903, St. Louis, Missouri – 1975, New Haven, Connecticut) sem dúvida, uma referência na história da fotografia, está presente pela primeira vez em S?o Paulo, com uma exposi??o individual no MASP, que reúne 113 fotografias que abrangem diferentes períodos de sua trajetória profissional. A rela??o mais imediata que normalmente se faz com seu trabalho é que ele foi um dos fotógrafos ativos na década de 1930 no programa da Farm Security Administration (FSA). Mas sua grandeza e sua import?ncia est?o muito além disso. Evans é acima de tudo um intelectual refinado que se aproximou com muita intensidade da literatura e se conectou com movimentos artísticos que pontuam sua obra em diferentes momentos. Basta aprofundar um pouco nosso olhar sobre seu percurso para saber, por exemplo, que Evans incorporou o intelectualismo europeu da modernidade e das vanguardas, em particular o contexto literário que está presente e é significativo em sua fotografia. Ele mesmo se denominava “um homem da literatura, influenciado por Flaubert, Baudelaire, Proust, Stendhal, Henry James, Hemingway e acima de tudo James Joyce”.Influenciado por Eugene Atget, entre outros, sempre rejeitou o rótulo de “fine art photographer”. Aliás, o trabalho de Walker Evans foi muito mais publicado em livros, catálogos e revistas, do que exibido em museus e galerias. Assumiu esse compromisso desde o início de sua carreira, optando por publicar suas imagens. Mesmo assim, tornou-se referência para muitos, entre eles Robert Frank, Lee Friedlander, Diane Arbus, Garry Winogrand, o melhor da fotografia americana produzida entre as décadas de 1950 e 1970. Robert Frank, por exemplo, se aproximou de Evans desde sua primeira viagem aos EUA, e o tornou seu mentor intelectual. Por sua vez, Evans além de considerá-lo um jovem talento, foi o responsável (e uma espécie de co-autor secreto) por estimulá-lo a escrever um projeto à Funda??o Guggenheim, do qual era conselheiro. A realiza??o deste projeto após dois anos e 767 rolos de filmes 35mm, concretizou-se em outro clássico, o livro Les Américains, com 83 fotografias, em 1958, editado por Robert Delpire.Walker Evans por sua vez, já era consagrado quando Robert Frank chegou aos EUA pela primeira vez no final dos anos 1940. Foi colaborador da revista Fortune e em 1934 apresentou um vigoroso ensaio sobre o Partido Comunista dos EUA. Mais tarde tornou-se editor associado de fotografia e colaborou até abril de 1965. Entre outras realiza??es, em 1933, sua exposi??o Walker Evans: Photographs of 19th Century Houses, foi a primeira individual na história institucional do MOMA, apesar de Beaumont Newhall considerá-la apenas como uma exposi??o dedicada à arquitetura e n?o à fotografia. Mas, foi em 1938, com a lendária exposi??o American Photographs, resultado das fotografias produzidas nos dois anos anteriores no sul dos EUA, é que Walker Evans inscreve seu nome nas artes visuais. Praticamente criou um estilo para a fotografia americana e a mostra é considerada a primeira manifesta??o da fotografia como arte aut?noma no MOMA.Em 2008, tive a oportunidade de participar da banca de doutorado de Diana de Abreu Dobranszky, da Unicamp, que pesquisou durante mais de um ano os arquivos do MOMA para sua tese “A legitimiza??o da Fotografia no Museu de Arte: o Museum of Modern Art de Nova York e os anos Newhall no Departamento de Fotografia”, orientada pelo Prof. Dr. Fernando de Tacca. Um exemplar está disponível na Biblioteca do Instituto de Artes da Unicamp e recomendamos fortemente este trabalho pela quantidade e qualidade dos dados reunidos e que discute e relaciona a presen?a da fotografia no MOMA, após árdua e intensa pesquisa.O curioso é que a exposi??o American Photographs contempla mais de uma centena de fotografias produzidas ao longo de uma década e foi minuciosamente editada por Evans. A mostra foi concebida por Lincoln Kirstein, seu amigo de toda a vida, teve organiza??o inicial de Newhall. Mas, este último foi praticamente hostilizado por Evans que optou pelo controle total da exposi??o, criando conscientemente, uma narrativa consistente que valorizava inten??o, continuidade e clímax. Por outro lado, o livro publicado com o mesmo título tem projeto editorial do fotógrafo, mas é completamente diferente. 47 fotografias da exposi??o n?o est?o no livro e 33 outras que est?o? editadas na publica??o n?o est?o na exposi??o, o que diferencia os dois produtos, ambos clássicos e referenciais.Walker Evans: The Hungry Eye, de Gilles Mora e John T. HillAntes da FSA, Walker Evans já tinha realizado e publicados alguns? ensaios contundentes e reveladores, entre eles, Brooklyn Bridge e New York Streets, ambos de 1929, Tahiti, de 1932 e Havana, de 1933. Segundo Gilles Mora e John T. Hill, no fascinante livro Walker Evans – The Hungry Eye, “entre os 75 mil negativos dos arquivos da FSA, Evans contribuiu com apenas algumas poucas centenas. Sua produ??o, realizada no período dezembro de 1935 e julho de 1938, é diferenciada e n?o obedeceu aos preceitos de Roy Stryker, um dos coordenadores e que alinhava as imagens à ideologia do projeto. Evans se recusou participar deste contexto e quando se afastou, deixou claro que sua fotografia para FSA “era puro registro, n?o propaganda”.Walker Evans é um fotógrafo intenso, dramático e lógico, que soube articular com precis?o a c?mera para n?o transformá-la num mero aparato de reprodu??o, mas dotá-la de uma inteligência mediadora conectada ao seu olhar instigante e crítico. A exposi??o Walker Evans em exibi??o no Masp – Museu de Arte de S?o Paulo, Avenida Paulista, 1578 – tem encerramento previsto para o dia 10 de janeiro de 2010. N?o deixe de ver.A primeira notícia sobre a fotografia HYPERLINK "" O artigo, escrito pelo jornalista Hippolyte?Gaucheraud, adota uma postura empolgada e quase propagandística, apesar de expor algumas limita??es técnicas da nova imagem. Responde provavelmente a uma estratégia de divulga??o e afirma??o do daguerreótipo articulada por Daguerre e o político e cientista Fran?ois?Arago, que defendeu a descoberta junto ao poder público Francês.? interessante – apesar de óbvio – notar a falta de um vocabulário para descrever a fotografia, e o modo como o autor se esfor?a com termos ligados à pintura, ao desenho e à gravura para explicar ao público o que eram as imagens que tinha visto em primeira m?o.A tradu??o é a mais literal possível. No meio do texto, alguns parênteses meus. E, ao final, algumas breves referências históricas do que aconteceu depois.BELAS ARTES Nova descobertaPor ?H. Gaucheraud?Anunciamos uma importante descoberta de nosso célebre pintor de diorama Sr. Daguerre. ? uma descoberta prodigiosa. Ela desconcerta todas as teorias da ciência sobre a luz e sobre a ótica, e fará uma revolu??o na arte do desenho.O Sr. Daguerre encontrou um meio de fixar imagens que vêm se pintar sobre o fundo de uma c?mera escura; de tal modo que as imagens n?o s?o mais o reflexo passageiro dos objetos, mas sua impress?o fixa e duradoura, podendo se transportar para longe da presen?a dos objetos como um quadro ou uma estampa.Imagine-se a fidelidade da imagem da natureza reproduzida pela c?mera escura e some-se a isso o trabalho dos raios solares que fixam essa imagem, com todas as suas nuances de luzes, de sombra, de meios-tons, e teremos uma idéia dos belos desenhos que Sr. Daguerre exp?s a nossa curiosidade. N?o é sobre o papel que Sr. Daguerre pode operar, s?o-lhes necessárias placas de metal polido. ? sobre o cobre que vimos diferentes vistas de boulevares, a Ponte Marie e seus entornos, e tantos outros lugares mostrados com uma veracidade que só a natureza pode dar às suas obras. O Sr. Daguerre lhe mostra a pe?a de cobre nua, ele a coloca na sua frente dentro de seu equipamento e, ao final de três minutos, se temos um sol de ver?o, ou alguns [minutos] mais, se o outono ou inverno enfraquecem a for?a dos raios solares,? ele retira o metal e o mostra coberto de um desenho arrebatador que representa o objeto na dire??o do qual apontou o equipamento. Trata-se apenas de uma curta opera??o de banhos, creio eu, e eis que a vista construída em t?o curto instante torna-se invariavelmente fixado, e de modo que o sol mais ardente n?o a poderá mais destruir.Os Srs. Arago, Biot e Humboldt constataram a autenticidade dessa descoberta, que despertou neles admira??o, e o Sr. Arago a fará conhecer na Academia das Ciências dentro de poucos dias.Deseja outros detalhes? Aí est?o alguns mais.A natureza em movimento n?o pode ser reproduzida, ou n?o poderia a n?o ser com grande dificuldade pelo processo em quest?o. Em uma das vistas da qual falei do Boulevard, ocorreu que todos os que caminhavam ou se movimentavam n?o tiveram lugar no desenho, dos dois cavalos atrelados na esta??o, infelizmente, um deles balan?ou a cabe?a durante a curta opera??o, e o animal está sem cabe?a no desenho. As árvores se mostram muito bem, mas sua cor, ao que parece, imp?e obstáculos quando os raios solares a reproduzem com a mesma rapidez com que faz com as casas e outros objetos de cores diferentes. ? uma dificuldade para a paisagem, porque há uma regulagem fixa para a perfei??o das árvores e da cor verde, e outra para aquilo que tem outras cores, que n?o a verde. Resulta, de fato, que enquanto as casas s?o alcan?adas, as árvores n?o; e quando se alcan?a as árvores, é demasiado para as casas.A natureza morta, a arquitetura, aí está o triunfo do equipamento ao qual o Sr. Daguerre quer batizar, a partir de seu nome, de Daguerótipo [no original, Daguerotype, em vez de Daguerreotype]. Uma aranha morta, vista no microscópio solar [supostamente, Daguerre chegou a fazer fotografias microscópicas e telescópicas, destruídas num incêndio em seu laboratório, em 8/3/1839], é de uma tal riqueza de detalhes no desenho, que com ele poderíamos estudar sua anatomia, e sem lupa, como fazemos com a natureza mesma. N?o há nem um fio, nem um vaso, por tênue que seja, que n?o se possa seguir e examinar. Viajantes, vocês logo poder?o, talvez, com algumas centenas de Francos, adquirir o equipamento inventado pelo Sr. Daguerre, e poder?o trazer para a Fran?a os mais belos monumentos, os mais belos lugares do mundo inteiro. Vocês ver?o o quanto seus lápis e seus pincéis est?o longe da veracidade do Daguerótipo. No entanto, que os desenhistas e pintores n?o se desesperem, os resultados do Sr. Daguerre s?o algo diferente de seus trabalhos e, por melhor que seja, n?o pode substituí-los.Se eu quisesse fazer uma compara??o dos efeitos trazidos pelo novo procedimento, diria que s?o como a gravura a buril ou a gravura em negro [mezzo-tinto], mais para esta última. Quanto à veracidade, est?o acima de tudo.Falei apenas da descoberta sob o ponto de vista da arte nesta curta exposi??o. Se o que me chegou é exato, os resultados do Sr. Daguerre devem conduzir a n?o menos que uma nova teoria sobre um ramo importante da ciência. O Sr. Daguerre avisa generosamente que a primeira idéia de seu procedimento lhe foi fornecida, há quinze anos, pelo Sr. Nieps [o nome de Niépce aparece grafado exatamente assim], de Chalons-sur-Saone, mas dentro de um tal estado de imperfei??o que foi preciso um longo e obstinado trabalho para alcan?ar o resultado que ele esperava!E depois…Em 7 de janeiro, um dia após a publica??o desse texto, Arago exibe a descoberta para a Academia Francesa de Ciências e prop?e que o governo francês compre a patente para torná-la um patrim?nio público do país.Após alguns meses de articula??o política, a proposta de Arago é aceita e, no dia 19 de agosto de 1839 (que se oficializou como dia da fotografia), ocorreu numa sess?o especial conjunta da Academia de Ciências e da Academia de Belas Artes a solenidade em que Arago descreve detalhadamente o processo do daguerreótipo, e em que o governo francês formaliza a pens?o de 6 mil francos anuais para Daguerre, e de 4 mil francos anuais para o filho de Niépce.Reproduzido alguns dias depois no Journal of the Belles Lettres, Arts, Science, de Londres, esse texto provocou algumas rea??es imediatas. O pintor e bot?nico inglês Francis Bauer, que tinha consigo algumas das heliografias de Nièpce (incluindo a famosa vista da janela), se esfor?ou para que fossem reconhecidas as experiências pioneiras feitas pelo amigo. Fox-Talbot e John Herschel também se manifestaram. Conforme lembra Kossoy, o historiador Pierre G. Harmant chegou a computar um total de 24 pessoas que reivindicaram para si a inven??o da fotografia, Hercules Florence dentre elas.Intertextualidades: revista Studium #29 HYPERLINK "" Studium #29Acaba de ser lan?ado o número 29 da revista eletr?nica Studium, ligada ao Instituto de Artes da Unicamp, e coordenada por Fernando de Tacca: HYPERLINK "" studium.iar.unicamp.br. Paralelamente, ocorrerá a mostra “O Fotográfico no Cinema”, no Espa?o Cultural Casa do Lago (Unicamp), entre 24 e 27/11 (programa??o disponível na Revista). Vale a pena conferir, já que alguns dos trabalhos discutidos s?o de difícil acesso.Espa?o consagrado de reflex?o sobre a fotografia, a Studium dedica esta edi??o ao diálogo com o cinema. Trata-se de uma perspectiva que o próprio Fernando de Tacca ajudou a consolidar no país, através da pesquisa sobre “intertextualidades” que realiza há vários anos, em que mapeia e discute a presen?a da fotografia e do fotográfico no cinema, assim como na literatura.Os autores s?o: Gilberto Alexandre Sobrinho, Wilton Garcia, Andreas Valentin, Maurícius Farina, Erico Elias e Iara Lis Schiavinatto. Também estou lá entre eles.Percebemos que a Studium evitou obras que, apesar de inesgotáveis, já têm merecido grande espa?o em nossas reflex?es, como é o caso de?Blow Up. Nesse sentido, devo admitir que o título mais óbvio para o nosso meio é talvez o que discuto em meu texto: A Prova. Na lista de artigos, os clássicos est?o bem representados por Lá Jetée. Mas há ainda filmes pouco discutidos apesar de populares, como Memento e A mo?a com brinco de pérola, outros quase desconhecidos do grande público como A Barriga do Arquiteto, Dirty Pictures e Shortbus, e também os raros (mesmo que t?o próximos) e experimentais trabalhos de Marcelo Tassara, professor da ECA-USP.Para quem ainda n?o conhece a revista, vale percorrer as edi??es anteriores. ? raro ver um espa?o que consegue aliar rigor acadêmico, um belo projeto gráfico e uma proposta editorial que explora muito bem os potenciais da internet.[ N?o poderia deixar de lembrar que, recentemente, a Capes, responsável pelo sistema Qualis de avalia??o de periódicos acadêmicos, considerou a Revista pertinente a uma série de outros campos mas, inexplicavelmente, n?o ao de Artes, seu lugar mais natural e onde vinha merecendo a nota máxima, o “Qualis A”. Sobre isso, vale ler a entrevista que Tacca concedeu ao blog Olha Vê: ? HYPERLINK "" ]Abaixo, a lista de artigos e autores:A barriga do arquiteto e o fotográfico expandidoGilberto Alexandre SobrinhoCinema, corpo e fotografia: estudos contempor?neosWilton GarciaLa Jetée e Memento: lembrar para esquecerAndreas ValentinSobre as fotos proibidas de Robert MapplethorpeMauricius Martins FarinaA prova: ensaio sobre a incompletudeRonaldo EntlerDa Fotografia ao Cinema: os fotofilmes de Marcello Tassara?rico EliasO olho que vêIara Lis SchiavinattoO vídeo nos oferece mais que a fotografia O HYPERLINK "" \t "_blank" Let’s Blogar colocou novamente a quest?o sobre o futuro da fotografia, relembrando que as c?meras digitais fazem vídeo em HD e que alguns espa?os tradicionalmente ocupados pela fotografia est?o agora aptos a receber imagens em movimento, sejam porta-retratos ou páginas de revista.Já temos exemplos suficientes de que, no campo da arte, as linguagens e tecnologias n?o se substituem, mas a discuss?o é sempre pertinente no que se refere ao papel mais utilitário da imagem, na ciência, na comunica??o, nas documenta??es sociais. Algumas dessas coisas v?o nos divertir um pouco, outras v?o mudar – como já tem mudado – o modo como produzimos e como percebemos as imagens.N?o sou a pessoa mais indicada para discutir o mercado. O? HYPERLINK "" Let’s Blogar fez boas pondera??es e se encarregou de oferecer alguns bons links para esse debate. Queria pensar a fotografia numa rela??o mais abrangente e cotidiana com a produ??o de memória.Para come?ar, assumo meu conservadorismo: de um lado, só consigo imaginar um porta-retratos digital sendo vendido nesses programas de TV, entre um multiprocessador de alimentos e um aparelho de ginástica. E, de outro lado, n?o consigo imaginar um porta-retratos com um slide-show ou vídeo ligado o tempo todo na estante da sala. Menos ainda, alguém ligando o porta-retrato quando chega a visita.Memória e desejoA grande vantagem do vídeo é que ele oferece uma imagem mais completa, mais prolixa, nos dá mais informa??o que a fotografia.? Pode soar estranho, mas isso mesmo já me leva a supor: a vantagem da fotografia é o fato de que ela nos dá uma imagem mais sutil, mais lac?nica, com menos informa??o.Andre Kertesz, From my window, 1979.Sem dúvida há momentos que pedem o registro do movimento. Mas, de todo modo, os objetos de memória mais importantes operam por intensidade, n?o por estens?o. Eles têm aquilo que Barthes, referindo-se à fotografia, chamou de “for?a metonímica” (uma parte que traz a sensa??o de presen?a do todo ausente). Portanto, uma for?a que é tanto maior quanto menor o fragmento de mundo que é capaz de nos afetar. Um brinquedo que sobra da inf?ncia, uma conchinha recolhida na praia, o ingresso de um show n?o relatam muita coisa sobre o passado mas, de algum modo, parecem carregá-lo consigo. S?o fetiches que operam naquilo que ainda hoje pode restar de magia, no sentido antropológico do termo: o pensamento mágico, superado pelo pensamento racional, desconhece a diferen?a entre o signo e o objeto representado por esse signo, entre a imagem e o mundo. A fotografia às vezes parece operar desse modo: é a raz?o de se guardar e tocar quase com carinho a imagem das pessoas que amamos, bem como de se picar em pedacinhos a imagem de quem passamos a odiar. Essa sobreposi??o entre a imagem e o mundo é tanto mais poderosa quanto maior for a dist?ncia e a despropor??o entre eles (para o bom feiticeiro, basta uma pe?a de roupa, um fio de cabelo para poder se colocar diante de alguém).A fotografia funciona desse modo: ela nos encanta n?o tanto pelo tanto que ela explicita mas, ao contrário, pelo que oculta e que, n?o estando ali, deve ser recuperado pela imagina??o.Isso pode ser discutido no plano teórico: a psicanálise nos ensina que o desejo sempre atua sobre uma lugar vazio. Ou seja, só pode mobilizar o desejo aquilo que n?o está dado ou, ainda, o desejo se desloca para outro lugar vazio quando seu suposto objeto se oferece por completo. ? a diferen?a entre o erótico e o pornográfico: o primeiro é intenso, porque insinua sem oferecer quase nada, dando a certeza de que falta algo para ser visto; o segundo é enganoso, esvazia-se ao oferecer tudo, por n?o haver nada que se queira ver e que já n?o se tenha visto.Mas é possível demonstrar isso na prática de nossa rela??o com as imagens. As imagens se tornam importantes quando s?o quase perdidas, quase esquecidas, e depois reencontradas. Os vídeos ou os velhos super 8, que nos d?o mais que a fotografia, se tornam mais interessantes quando deles só restam fragmentos ou quando, por sabedoria, eles s?o editados para exibir apenas fragmentos. Eu me pergunto se os turistas que viajam com a c?mera ligada o tempo todo realmente assistem o que gravam, ou apenas se reconfortam com o fato de saber que tudo está lá. E tenho a impress?o de que nunca olhamos t?o pouco para nossas fotografias de viagem quanto agora, quando retornamos com milhares de imagens que, aliás, já foram vistas no LCD da c?mera.Cada vez mais é importante a figura do editor, essa pessoa que tem o poder e a sabedoria de n?o mostrar o que n?o tem for?a. Dizem que os fotojornalistas, num futuro próximo, em vez de se darem ao trabalho de encontrar o momento certo, poder?o voltar para suas reda??es com vídeos de qualidade suficiente para extrair o frame que será publicado. Se isso acontecer, mais do que nunca, os editores ser?o necessários e os bons “repórteres de imagem” ainda ser?o aqueles poucos que saber?o encontrar no fluxo das coisas uma meia dúzia de fragmentos indispensáveis.? absurdo o princípio de que imagem boa é aquela que nos oferece mais. A fotografia já produziu essa falácia no século XIX, ao tentar exibir suas vantagens sobre a pintura. Mas também seria também absurdo reagir ao vídeo do mesmo modo que, naquela ocasi?o, a pintura reagiu à fotografia.O vídeo é fabuloso. Disputará alguns espa?os com a fotografia e provavelmente conquistará vários deles. Mas n?o pelos motivos que estávamos supondo, n?o porque oferece mais. Ele ocupará seu lugar na medida em que souber selecionar, tornar-se lac?nico, operar por intensidades. Em outras palavras, oferecer as lacunas necessárias ao desejo e à memória. Também precisará saber conter o movimento e fazer a imagem durar diante dos olhos para que ela tenha consistência. E aprender a olhar com certo silêncio para as coisas banais, para tornar essa memória universal.Cao Guimar?es, Da janela do meu quarto, 2004.No filme Sem Sol (1992), Chris Marker imagina uma civiliza??o que habitará a Terra no ano 4001 e que será capaz de lembrar de todas as coisas: “após muitas histórias de pessoas que que perderam a memória, eis a de alguém que perdeu o esquecimento”. Esse habitante do futuro n?o entenderá a emo??o de ouvir uma música ou de ver um retrato, coisas ligadas à miséria de sua pré-história. A conclus?o já havia sido dada no come?o desse relato: “uma memória total é uma memória anestesiada”.?Assistam ao filme todo e vejam como que o valor da montagem (da bricolagem) que Marker faz está mais nos saltos que realiza, nas lacunas que deixa, do que na ilus?o de continuidade que o cinema poderia muito bem produzir (esse filme acompanha o La Jetée no mesmo DVD lan?ado aqui no Brasil).Também encontramos um recado semelhante num texto bastante conhecido de Borges, Do rigor na ciência: … Naquele Império, a Arte da Cartografia atingiu uma tal perfei??o que o mapa duma só Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do Império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmedidos n?o satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia ponto por ponto com ele. Menos Apegadas ao Estudo da Cartografia, as Gera??es Seguintes entenderam que esse extenso Mapa era Inútil e n?o sem Impiedade o entregaram às inclemências do Sol e dos Invernos. Nos Desertos do Oeste subsistem despeda?adas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos. Em todo o País n?o resta outra relíquia das disciplinas geográficas.(Suaréz Miranda: Viajes de Varones Prudentes, Livro Quarto, Capítulo XIV, Lérida, 1658.)Seria Gregori Warchavchik um fotógrafo moderno? Há anos venho colecionando fotografias. Recentemente adquiri um retrato de René Thiollier, um dos patronos do modernismo no Brasil e fundador da Academia Paulista de Letras. A autoria é de Gregori Warchavchik (Ucrania, 1896 – S?o Paulo, 1972) e isso bastou para lembrar sua produ??o fotográfica. Warchavchik chegou ao Brasil em 1923, no auge da vanguarda modernista experimentada pela Semana de 22, e encontrou um terreno fértil para suas idéias centradas nos arquitetos Walter Gropius, Le Corbusier e Mies van der Rohe.Casou-se em 1927 com Mina Klabin irm? de Jenny Klabin, casada com o pintor Lasar Segall, filhas de um rico industrial da elite paulistana e isso facilitou sua inclus?o no grupo modernista – Paulo Prado, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Gra?a Aranha, Victor Brecheret, Anita Malfati, Villa Lobos, Di Cavalcanti, entre outros. No ano seguinte, concluiu o projeto de sua residência, localizado à Rua Santa Cruz, Vila Mariana, considerado a primeira casa modernista do Brasil. A partir dos anos 1930 interessou-se pela fotografia e na década seguinte já participava com certa freqüência das atividades do Foto Cine Clube Bandeirante. ? aqui que nasce nosso interesse em pesquisar mais profundamente o seu trabalho e verificar sua import?ncia no movimento fotoclubista paulista, considerado bem sucedido e responsável pela fotografia moderna brasileira.As referências informais da sua atividade tivemos através de relatos de Luis Hossaka, falecido recentemente, nos intervalos das reuni?es da Cole??o Pirelli-Masp, e de Thomaz Farkas, um dos mais ativos fotógrafos no período de ouro do Foto Cine Clube Bandeirante. Hossaka que trabalhou durante quase 60 anos no Masp e também foi do Conselho do Museu Lasar Segall e ativo colaborador, falou-me em diversas ocasi?es da fabulosa cole??o de c?meras, lentes e acessórios deixada por Warchavchik, do seu profundo conhecimento técnico e do seu prazer em fotografar. Sabemos que mais tarde essa cole??o foi aos poucos desaparecendo e até mesmo o laboratório, talvez num anexo da Casa Modernista, foi desmontado.Warchavchik, autoretrato, c. 1944.Pesquisamos os Boletins do Foto Clube e os Catálogos dos Sal?es realizados pelo clube a partir de 1942. ? notório seu envolvimento com os fotógrafos do Bandeirante mas n?o foi possível através dos boletins detectar uma atua??o mais intensa. Gregori Warchavchik está presente no catálogo do 2? Sal?o Paulista de Arte Fotográfica, realizado em outubro de 1943, e foi capa do 3? Sal?o Paulista de Arte Fotográfica, realizado em novembro de 1944, na Galeria Prestes Maia, com um belíssimo autorretrato. Além disso, tem mais três fotografias selecionadas neste Sal?o.Nos boletins aparece pela primeira vez somente no número 10, editado em fevereiro de 1947, onde podemos encontrar na página 11, uma tabela de pontua??o dos fotógrafos, síntese que informa o número de sal?es nacionais e internacionais e o número de fotografias com que cada fotógrafo do clube participou. Esse ranking atribuía ao fotógrafo mais pontuado do ano o Troféu Prestes Maia, instituído em 1945. Tomamos conhecimento que José Yalenti em 1945 e Eduardo Salvatore em 1946 foram os vencedores. Em abril de 1947, no Boletim número 12, Gregori Warchavchik aparece em 28? lugar gra?as à sua participa??o em três Sal?es somando 80 pontos. No ano seguinte aparece em 39? lugar com apenas um Sal?o com duas fotografias e 40 pontos, evidenciando talvez algum desinteresse.? notável sua participa??o na década de 1940 das atividades promovida pelo Foto Cine Clube Bandeirante mas, curiosamente, sua fotografia nada tem a ver com a arquitetura, pois privilegia quase sempre o retrato. No livro A Fotografia Moderna no Brasil, de Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva, há apenas uma cita??o nominal e nenhuma informa??o sobre sua fotografia. De qualquer forma, nossa inten??o é deixar registrado o andamento desta pesquisa e mostrar algumas fotografias produzidas por Warchavchik. ? perceptível seu interesse pelo retrato e o que tenho disponível até o momento é exatamente esse gênero de produ??o. Porém, os retratos de Mario de Andrade, René Thiollier, e da menina, denominada Os óculos do vov?, aqui publicados, evidencia um tratamento único, ou seja, um enquadramento fechado, centrado no rosto do fotografado e com o foco crítico.Warchavchik: "Os óculos do papai", Mario de Andrade, René Thiollier (s/d).Esse foco crítico revela sua vis?o sensível e torna-se uma espécie de imprecis?o intencional e controlável. Mostra também um controle técnico sobre o processo e uma dire??o da cena, pois tenta evitar a frontalidade e prop?e uma leitura mais difusa e aberta, à medida que os olhares s?o quase sempre dispersos, um pouco diferente das conven??es disseminadas no movimento fotoclubista. Paradoxalmente, a “leveza do foco” também aproxima os retratos da tendência pictorialista, que predominou no clube durante os seus primeiros anos. De qualquer modo preferimos entendê-los mais como transgressores, pois Gregori Warchavchik foi um intelectual que tem seu nome associado à racionalidade moderna. Em 1925, ele publicou o primeiro manifesto da arquitetura modernista no Brasil e entre as diversas críticas elaboradas, a que faz ao ornamento é a me parece que mais tem rela??o com sua fotografia: “detalhe inútil e absurdo, imita??o cega da técnica da arquitetura clássica, tudo isso era lógico e belo, mas n?o é mais”.Tudo o que se enxerga por um furo de agulha Olhando minha prateleira de teses, reencontrei a disserta??o de mestrado de Maria Helena Villar, apresentada na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, sob orienta??o de uma grande amiga, a professora Luciana Martha Silveira. Estive algumas vezes nessa Universidade, de onde saem algumas pesquisas muito rigorosas sobre a rela??o entre comunica??o, arte e tecnologia (sejam as novas ou as velhas).O trabalho da Maria Helena se chama “A fotografia estenopéica revisitada: desconstru??o da homologia tradicional através das dimens?es sócio culturais da tecnologia”. Fotografia estenopéica é um nome mais técnico para as imagens feitas com as c?meras que costumamos chamar de pin-hole, com a ressalva de que nem toda c?mera estenopéica tem, efetivamente, um buraco de o é de praxe, o trabalho come?a com um passeio pela história da fotografia e pelas principais vertentes teóricas. Mas da metade em diante que se torna efetivamente original.Entender essas c?meras artesanais e improvisadas é talvez o modo mais efetivo de desmistificar a técnica, tal e qual nos convidam autores como Arlindo Machado, quando denuncia a “Mística da Homologia Automática” (primeiro capítulo de A Ilus?o Especular), ou Vilém Flusser, quando critica os fotógrafos que s?o “funcionários do aparelho”.Sobretudo agora, que as c?meras têm mais bot?es e recursos do que nunca, é incrível descobrir ou relembrar que ela n?o é mais do que uma caixa vazia e escura, com um orifício numa das faces. Quem já deu aula de fotografia sabe da import?ncia de passar por essas experiências simples e arcaicas. Quem ainda dá aula, sabe da dificuldade de manter nas escolas algumas velharias fundamentais: a c?mera, os ampliadores, a sujeirada química toda…Depois de fazer uma detalhada incurs?o pelas raz?es culturais que levam a c?mera a ser construída de uma forma e n?o de outra (isto é, de modo a respeitar o sistema de perspectiva renascentista), a disserta??o aborda o trabalho de artistas que subvertem essa programa??o elementar da fotografia, ou seja, artistas que desafiam e desmistificam o automatismo do aparelho, que deixam de ser seus funcionários. E podem fazer isso radicalmente, porque o controle do processo come?a com a fabrica??o da c?mera, ou com a descoberta de coisas que podem servir de c?mera. Aí vem algumas boas surpresas.Alguns artistas variam a forma de posicionar o material sensível na c?mera ou de construir o orifício que permitirá a entrada de luz. Por exemplo:Thomas Hudson monta a caixa com o próprio material sensível, de modo que quase todo o interior da c?mera se transforma em imagem, depois de desmontada e revelada. Jürgen Lechner e a brasileira Ana Angélica Costa posicionam o material sensível como um cilindro, no centro de uma c?mera com vários furos em sua parede, produzindo uma panor?mica de 360 graus. Joaquim Casado e Claudia Johas trabalham com rasgos (slits) com formatos variados em vez de furos, o que gera uma espécie de desordem na perspectiva. Paolo Gioli usa uma bolacha do tipo cream cracker e aproveita seus vários furos para formar imagens que se repetem e se sobrep?em no papel.Jürgen Lechner, Schloss weibenstein 1, Eckental Alemanha, 2006.Há também outros que, para além das caixas de sapato, de fósforo, caixotes, quartos, latas, utilizam objetos inusitados. Como diz Jochen Dietrich, um dos autores em que a pesquisa se apóia, “tudo o que é oco pode se transformar numa máquina fotográfica”: Ilan Wolff usa um piment?o vermelho, Paolo Gioli usa a m?o fechada, Thomas Bachler e Jeff Guess usam a boca, Jeff Fletcher usa cascas de ovos.Thomas Bachler, O Terceiro Olho, 1999 (fotos feitas com a boca).Como o furo resulta numa baixa exposi??o à luz, o registro pode se estender por dias, ou meses, ou ser feito em momentos muito distintos. Isso significa que a fotografia se afasta radicalmente da no??o de instant?neo: Tarja Trygg registra numa mesma imagem os diferentes trajetos que o sol faz no céu em dias e meses diferentes, o já citado Thomas Bachler usa uma mala como c?mera e registra, numa forma totalmente abstrata, o percurso de uma viagem, por exemplo, de Nuremberg a Kassel.Tarja Trygg, Solargraphy , Helsinki, 2003.E por aí vai… O trabalho traz um conjunto de 132 imagens, e n?o deixa de situar o trabalho de artistas brasileiros, como Paula Trope e Neide Jallageas, Dirceu Maués e a já citada Ana Angélica Costa.Muitas dessas experiências s?o facilmente encontradas na internet, mas a pesquisa tem o mérito de mapear uma diversidade de situa??es que poucos poderiam imaginar e de colocá-las a servi?o de uma compreens?o da fotografia, num sentido muito amplo. O trabalho de Maria Helena é uma espécie de arqueologia que demonstra o quanto as origens s?o importantes para entender o estado presente das coisas.A “origem”, como aprendemos com Walter Benjamin, é aquele lugar em que todos os potenciais estavam anunciados e disponíveis, que podem ser silenciados e esquecidos, mas que permanecem acenando para o presente. Desse modo, a origem n?o é apenas um objeto de culto saudosista, mas um lugar a que se chega quando a história permite realizar o potencial das coisas.Ao contrário do que faz a indústria quando acrescenta novos recursos aos equipamentos, o foco desta pesquisa e desses artistas todos n?o é tanto as novas tecnologias, mas as tecnologias plenas.? um trabalho que merece ser publicado. Por enquanto, a disserta??o pode ser encontrada no site HYPERLINK "" \t "_blank" Scrib.Imagem, morte e tempo Nesta última sexta-feira, faleceu Godelieve, esposa do professor e amigo Etienne Samain. Pouco antes do velório, Etienne apareceu com uma c?mera e me pediu para fazer algumas fotos da cerim?nia que aconteceria. Fiquei desconcertado, n?o consegui entender imediatamente o porquê dessas fotografias. Mas logo lembrei de uma de suas aulas numa disciplina que dividimos na Unicamp, em que ele analisa um álbum com 19 fotografias do enterro do av? de Godelieve, feitas em 1957, na Bélgica.Sem dúvida, a morte e seus rituais interessam a um antropólogo. Mesmo quando ela ocorre t?o próximo? Quem conhece Etienne, sabe o quanto ele critica o método t?o difundido nas ciências humanas de olhar com distanciamento, e a forma mais corajosa de fazer isso tem sido deixar sua vida aparecer com grande transparência em suas pesquisas. ? assim que vemos desde seu primeiro livro, em que apresenta a imers?o na tribo dos Kamayurá, o papel que teve Kay?maru (mulher que toca flauta), nome atribuído pelos índios à sua esposa. Cada um praticou a seu modo a antropologia: enquanto Etienne se aproximava das pessoas para compreendê-las, Godelieve fazia o mesmo para agregá-las. Foi assim nos muitos lugares em que ela viveu, foi assim também em sua morte. do documentário “De um caminho a outro”, dirigido por Clarice Ehlers Peixoto. No vídeo, vemos Etienne, Godelieve (recentemente e também quando era chamada Kay?maru) e a filha Maíra. N?o foi fácil circular com a c?mera enquanto todos sofriam e choravam. Sabemos que outros rituais – casamentos, aniversários, formaturas – já s?o formatados para a fotografia, mas n?o este. A morte ainda é assustadora demais para ser reduzida ao espetáculo das imagens.O álbum do enterro do “vov? Viktor” na Bélgica aliviava minha tarefa, como uma espécie de jurisprudência, mas eu ainda n?o sabia o que fotografar. Qual é a linguagem da fotografia de enterros? Se é que já houve uma, ela se tornou distante. Até conhecemos o antigo ?hábito de fotografar pessoas mortas, às vezes, de levar o cortejo fúnebre ao estúdio local, mas sempre vimos isso como uma bizarrice provinciana e arcaica. Enfim, o que fotografar?Lembrei de novo das aulas do Etienne. Nos últimos anos, ele n?o tem se interessado pelos grandes códigos que permitem ler a imagem: as poses, as composi??es, ou as performances que se repetem nos rituais. Ele tem levado a sério o interesse pelo Punctum, aquilo que escapa às inten??es do fotógrafo. E tem colocado Barthes em diálogo outro antropólogo belga, Albert Piette, que se interessa por aquilo que chamou de “modo menor da realidade”, o detalhe, o pequeno gesto, a pequena express?o facial, as dire??es dos olhares. Ent?o, era impossível decidir o que merecia ser fotografado.Difícil saber também o que n?o fotografar. Se n?o há uma linguagem para a fotografia de enterros, também n?o há uma ética. Aparentemente, ninguém se incomodou com minha presen?a, talvez porque todos ali soubessem da forte liga??o que Etienne tem com a imagem. Mas fquei me perguntando porque eu me tornava t?o moralista e tenso quando confrontado com a morte. Como já sugeri, fotografamos tudo mas, por medo e respeito, preservamos a morte da exposi??o.Ora, n?o fosse o esfor?o de nossos ancestrais em lidar com a morte, talvez n?o existisse a fotografia. Talvez n?o existisse sequer o que chamamos hoje de arte, pois chamamos assim imagens que muitas vezes surgiram para dar conta da morte, para garantir a passagem para uma outra vida, para criar uma comunica??o entre os que ficaram e os que se foram. “Sema”, que está na base de termos como sem?ntica, semiótica, semiologia era nada mais do que a pedra tumular. O sentido de um signo é garantir a possibilidade de presen?a daquilo que está distante ou ausente. ? assim que as imagens se afirmaram em nossas civiliza??es.Mas se as imagens nasceram da morte, porque ent?o poupamos a morte das imagens? Enquanto algumas sociedades antigas viviam em fun??o desse tema obscuro, a modernidade optou por se voltar para as luzes, para o bem estar, para o prazer da vida. Aparentemente, esquecer a morte é uma condi??o para alcan?ar a felicidade. Mas n?o é bem assim. Ninguém aproveitou tanto o tempo presente quanto os trágicos antigos, aqueles que viviam com a consciência de que talvez n?o existisse amanh?. O hedonismo moderno e o conseqüente pudor com rela??o à morte é apenas covardia travestida de racionalismo.Ent?o, se a pergunta é “por que alguém iria querer guardar imagens que lembram a morte?”, a resposta pode ser simplesmente: porque n?o há motivo para temê-la e porque enfrentá-la serenamente é uma forma de celebrar a vida.Essa é a quest?o que move um livro muito interessante de Regis Debray, Vida e Morte da Imagem. Ele lamenta o fato de que, quando afastamos a morte de nossas vistas, resta “um fluxo de imagens, sem pretexto nem conseqüências”, isto é, a imagem passa a existir sem o maior e mais profundo dos sentidos que já possuiu. Segundo ele, quando evitamos a imagem da morte, assistimos à morte da imagem.Interessante foi sair do enterro e chegar, horas depois, na festa de aniversário de outro amigo, co-autor deste blog. Como n?o deixaria de ser, a fotografia estava também ali muito presente, nos registros que eram feitos, mas também num álbum que circulava entre os convidados, com uma biografia visual do aniversariante que come?ava com os antepassados (essa palavra que a gente evita porque soa t?o primitiva!). Naquela casa, tudo é memória: a própria casa, os móveis, os discos de vinil, a decora??o de natal. Incrível como a forma intensa e espont?nea de lembrar as pessoas ausentes apenas intensificava a alegria de quem estava ali presente: nenhuma dívida com o passado, nenhum temor quanto ao futuro, apenas uma bela festa, uma festa expandida, que reverberava também a alegria vivida com outras gera??es.As duas celebra??es daquele dia me fizeram pensar que nada dá mais consistência à imagem que a vivência do tempo.? Nada nos deixa mais em paz com o tempo do que a experiência da imagem.Chile Estive no Chile por alguns dias neste final de ano, passando por Santiago, Valparaíso, Vi?a del Mar, Ilha de Chiloé, Puerto Montt, Puerto Varas e algumas outras pequenas vilas em torno do lago Llanquihue. Achei que iria conseguir saber melhor a quantas anda a fotografia por lá, mas acontece que o país é muito legal e n?o sobrou muito tempo pra trabalhar.Consegui ir a alguns museus. No Centro Cultural La Moneda (anexo ao palácio em que Salvador Allende viveu seus últimos momentos), havia uma grande exposi??o sobre a China. Mas o melhor era uma pequena mostra paralela que trazia releituras da tradi??o visual chinesa feitas por jovens artistas chilenos.Wellcome. Instala??o de María Luisa Murillo (2007-09). La Moneda, Santiago.O Museu de Bellas Artes é fundamental pela história, tanto das obras que acolhe quanto de sua arquitetura. Ao lado de grandes nomes da arte chilena, havia uma bela exposi??o do norte-americano Gordon Matta-Clarck, que talvez merecerá um outro post. O Museu de Arte Contempor?nea estava a meio vapor, por causa de uma reforma, com uma exposi??o média e precária em informa??es. O melhor de todos foi o Museu de Artes Visuais (MAVI), com um espa?o lindo, num bairro lindo (Lastarria). Nele, estava uma pequena retrospectiva do alem?o Gerhard Richter, e uma mostra competitiva de obras de artistas chilenos, excelente, com uma bela o n?o houve tempo para pesquisas, a melhor dica que posso dar é um blog que encontrei antes de ir, dos fotógrafos e pesquisadores Miguel Angel Larrea e Mane Adaro: HYPERLINK "" Chilenización de la Fotografia. Com esta última, cheguei a trocar alguns e-mails, mas n?o pude conhecê-la pessoalmente.?Vale a pena conferir o blog, que dá espa?o a jovens fotógrafos chilenos. Me chamou a aten??o o fato de que boa parte dos trabalhos mostrados s?o econ?micos ?no uso recursos cênicos e de manipula??es explícitas, um caminho da fotografia conceitual que tem me agradado muito. Segundo Mane, é uma escolha sua, pessoal, mas n?o deixa de ser também uma tendência forte no o a viagem foi puro turismo, para terminar, deixo algo que infelizmente n?o tenho mostrado com muita frequência: fotografias.Centro de Santiago.Centro de Santiago.Mercado de Santiago.Centro de Santiago.Museu de Arte Pré-Colombiana, Santiago.Vi?a del Mar.Puerto Varas.Puerto Varas.Castro, Ilha de Chiloé.Frutillar.Vulc?o Osorno, visto do aeroporto de Puerto Montt.As pioneiras conex?es entre fotografia e moda Gilda de Mello e Souza, em foto do músico Jo?o Gilberto, 1968A revista Piauí deste mês traz um texto bastante singular – “A menina e a m?e dela” – assinado por Ana Luisa Escorel, que rememora sua inf?ncia, estabelece rela??es interessantes e desencadeia conex?es diversas para nossas reflex?es sobre a fotografia. Ana Luisa é filha de Antonio C?ndido e Gilda de Mello e Souza (1919 – 2005), intelectuais, ensaístas, críticos e professores da USP, que marcaram gera??es. Também é casada com Lauro Escorel, um dos grandes fotógrafos do cinema brasileiro.Ana Luisa nesse delicioso ensaio, repleto de imagens mentais, relembra parte de sua inf?ncia, traz o cotidiano da rela??o familiar para seu texto e comenta a erudi??o e a inteligência das rela??es sociais e acadêmicas de seus pais. Entre várias e oportunas observa??es, Ana Luisa afirma ao comentar a paix?o de sua m?e pelas roupas: “pensando bem, ela deve ter sido um dos primeiros intelectuais, no Brasil, a valorizar a fotografia como fonte de informa??o”.Imediatamente fui tomado pela lembran?a do livro O espírito das roupas – a moda no século dezenove, editado em 1987, resultado da tese de doutoramento de Gilda de Mello e Souza – A Moda no Século XIX – defendida em 1950 na USP sob orienta??o de Roger Bastide, do qual foi assistente por mais de uma década. Também foi aluna e colaboradora de Claude Lévi-Strauss.Sua tese, publicada inicialmente em 1952, pela Revista do Museu Paulista, e agora pela Companhia das Letras, enfatiza a import?ncia cultural da moda do século XIX ao relacioná-la com outras manifesta??es, particularmente a literatura, a pintura, a gravura e a fotografia. Neste sentido, podemos considerá-lo como um ensaio pioneiro no Brasil ao tratar a fotografia como informa??o, trazendo-a para o campo de análise da cultura associado à moda. N?o podemos esquecer que Roland Barthes só publicou seu ensaio clássico Système de la Mode, em 1967.Gilda de Mello e Souza, de Araraquara, mudou-se para S?o Paulo a fim de cursar a recém inaugurada Faculdade de Filosofia da USP, tornou-se uma das primeiras mulheres a freqüentar o programa e estabeleceu-se na casa de seu primo, o escritor Mario de Andrade, outro importante intelectual que assumiu a fotografia como linguagem quando realizou suas viagens Brasil afora. No Instituto de Estudos Brasileiros da USP ( HYPERLINK "" ieb.usp.br) é possível acessarmos o arquivo do escritor e nos depararmos com inúmeros exemplares de revistas internacionais de fotografia que ele assinou por quase duas décadas.O Espírito das RoupasRecomendamos a leitura de O Espírito das Roupas, conceito extraído a partir da epígrafe da tese assinada por Thomas Carlyle. A divis?o dos capítulos é perfeita e Gilda vai avan?ando em sua análise à medida que se articulam as diferentes manifesta??es artísticas com a moda, herdeira direta da revolu??o industrial potencializada na primeira metade do século XIX e que vai alcan?ar a notoriedade e independência juntamente com outras conquistas da modernidade.Gilda, em grande parte de seu trabalho, analisa imagens de seu próprio álbum de família, fazendeiros bem sucedidos da regi?o de Araraquara até a crise de 1929. ? através de álbuns familiares e da sua intimidade com aqueles personagens fotografados é que ela amplia conceitualmente o valor da imagem, estabelece boas rela??es entre o retratado e a pose, a roupa e os objetos de cena, o cenário e a composi??o. Sem dúvida, uma análise pioneira da imagem fotográfica bem como sua valoriza??o enquanto documento e informa?? o olhar de hoje, o único sen?o para este trabalho seria a falta de identifica??o dos fotógrafos, e a n?o localiza??o dos seus ateliês. Mas isso n?o empobrece a análise uma vez que a maior preocupa??o de Gilda de Mello e Souza foi entender a moda como produto cultural da modernidade. Isso fica evidente nas imagens selecionadas para a edi??o do livro que valorizam o gesto, a atitude e a roupa dos brasileiros fixados nas fotografias. Uma análise vigorosa que determina a import?ncia deste trabalho para todos aqueles que se interessam perceber o mundo como uma trama que se constrói através de múltiplos processos colaborativos e distintas conex?es entre as linguagens.Iphan x Emurb: história como representa??o e história como burocracia As obras de revitaliza??o do Largo da Batata, no bairro Pinheiros em S?o Paulo, foram paralisadas porque os trabalhadores encontraram nas escava??es um local com objetos de suposto valor arqueológico. A prefeitura, que quer tocar a obra, e o Iphan (Instituto do Patrim?nio Histórico e Artístico Nacional do Governo Federal), que quer pesquisar o material, entraram numa disputa para decidir o qu?o arqueológico é o tal sítio: a prefeitura alega que os objetos encontrados têm 60 anos, o Iphan, cerca de 200 anos.? uma discuss?o técnica, n?o me atreveria a opinar, mesmo com a certeza de que há muita coisa importante do século XX a se preservar. Mas achei curiosa mesmo a explica??o da prefeitura, conforme a Folha de S. Paulo:“Quem apresentou os objetos ontem em nome da prefeitura foi o diretor de obras da Emurb (Empresa Municipal de Urbaniza??o), Edward Zeppo Boretto: “S?o dos anos 50”. “N?o têm valor porque na época a fotografia já existia“, acrescentou um assessor da Emurb” (“ HYPERLINK "" \t "_blank" Sítio arqueológico em Pinheiros para obra e irrita prefeitura”, Folha de S. Paulo, 22/12/09).Como assim? O que a fotografia resolve nesse caso?? verdade que a frase pode estar fora de contexto, já que o texto da Folha sequer apresenta o nome do tal assessor. Mas é um pensamento burocrático que reconhecemos cotidianamente.? inegável a import?ncia que o desenho, a fotografia, o cinema e o vídeo (e, quem sabe, já a computa??o gráfica) têm para as pesquisas em ciências humanas. Aprendemos muito com elas. Acredito mesmo que, em algumas situa??es, elas nos ensinam mais que a observa??o direta das coisas. Acredito até que n?o exista uma “história em si”, mas o conjunto de suas ruínas e de suas representa??es. Mas é perigoso inverter o raciocínio e supor que a imagem, quando reconhecida e oficializada como documento, torna o fato dispensável, assim como a possibilidade de retornar a seus outros fragmentos, às suas outras representa??es.N?o se pode confundir o poder testemunhal dos documentos com o princípio pragmático da burocracia. No primeiro caso, o documento traz quest?es sobre a realidade, no segundo, ele a silencia.Sabe quando você está diante do guichê com uma quest?o de vida ou morte e o funcionário confere os formulários sem olhar pra sua cara? Ou quando a atendente do SAC te dá o número do protocolo como resposta àquela longa história que tem tirado seu sono há dias? Ou, como lembra Arlindo Machado, quando você cai na ilegalidade porque você deixou de se parecer com a foto da carteira de identidade? Essas s?o rela??es burocráticas com as representa??es.Se depender do tal assessor da Emurb, a história será um conjunto de imagens em bom estado, guardadas num arquivo de a?o, em ambiente climatizado, cada qual com sua ficha catalográfica preenchida corretamente. Mas n?o é tudo. Em nome da democracia, essas imagens estar?o em breve acessíveis na internet, e algumas delas até poder?o ser vistas com efeito 3D, para garantir que detalhes sutis da história n?o se percam.———-PS.: para participar da proposta feita pela? HYPERLINK "" \t "_blank" Cia de Foto, que convidou o público a enviar imagens de S?o Paulo, fiz um passeio pela cidade no dia 13/01, e aproveitei para fotografar o Largo da Batata. Vi que a prefeitura ganhou a parada e as obras foram retomadas.Largo da Batata, S?o PauloRua Martim Carrasco, regi?o do Largo da Batata, S?o Paulo170 anos de fotografia no Brasil. VIVA A FOTOGRAFIA BRASILEIRA! No dia 17 de janeiro de 1840, seis meses após o anúncio oficial do advento da fotografia, uma experiência de daguerreotipia foi realizada no Largo do Pa?o Imperial na cidade do Rio de Janeiro, pelo abade Louis Compte. Sabemos pelos anúncios dos jornais da época que no navio-escola L’Orientale, viajava o Abade Compte encarregado de propagar o advento da fotografia ao mundo. Suas experiências foram realizadas em Salvador, em dezembro de 1839, no Rio de Janeiro e em Buenos Aires, mas apenas o daguerreótipo de 17 de janeiro, tomado no Largo do Pa?o, sobreviveu aos nossos dias e pertence à família Imperial, ramo Petrópolis.Abade Louis Compte. Pa?o Imperial do Rio de Janeiro. Daguerreótipo, 1840.O Jornal do Commercio registrou: “? preciso ter visto a cousa com os seus próprios olhos para se fazer idéia da rapidez e do resultado da opera??o. Em menos de nove minutos o chafariz do Largo do Pa?o, a pra?a do Peixe, o Mosteiro de S?o Bento, e todos os outros objetos circunstantes se acharam reproduzidos com tal fidelidade, precis?o e minuciosidade, que bem se via que a cousa tinha sido feita pela própria m?o da natureza, e quase sem interven??o do artista.”D. Pedro II. Autorretrato, c. 1855.Se relativizarmos a quest?o do tempo e do espa?o, seis meses na primeira metade do século XIX é um período pequeno para a fotografia ser disseminada mundo afora. Nessa experiência realizada no Rio de Janeiro, um jovem de 14 anos ficou, como todos os presentes, encantado e estupefato com o resultado. Era D. Pedro II que encomendou um aparelho de daguerreotipia e tornou-se o primeiro fotógrafo amador brasileiro. Esse impulso, somado a uma série de iniciativas pioneiras do Imperador, como a cria??o do título “Photographo da Casa Imperial” a partir de 1851, atribuído a 23 profissionais (17 no Brasil e 6 no exterior), coloca a produ??o fotográfica do século XIX como a mais importante da América Latina, qualitativa e quantitativamente falando. E Marc Ferrez, que recebeu o título de “Photographo da Marinha Imperial”, talvez seja o exemplo mais emblemático dessa produ??o, já que seu trabalho tem hoje?reconhecimento internacional frente à produ??o do século XIX.A primeira grande sistematiza??o da fotografia brasileira foi publicada no Rio de Janeiro, em 1946, pelo historiador Gilberto Ferrez (1908-2000), neto e herdeiro do fotógrafo, na Revista do Patrim?nio Histórico e Artístico Nacional, N? 10. O ensaio A Fotografia no Brasil e um de seus mais dedicados servidores: Marc Ferrez (1843-1923) ocupava as páginas 169-304, já trazia boas fotografias da sua cole??o e buscava mapear o movimento da fotografia no período estudado. Trinta anos mais tarde, o historiador e professor Boris Kossoy, mostrou ao mundo que o francês Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879), isoladamente na cidade Vila da S?o Carlos, atual Campinas, descobre em 1832 os processos de registro da imagem fotográfica. E mais, escreve a palavra photographia para denominar o processo. As pesquisas do professor Kossoy, desenvolvidas a partir de 1973 e comprovadas nos laboratórios de Rochester, nos Estados Unidos, ganharam as páginas das principais revistas de arte e fotografia do mundo, entre elas, a Art Forum, de fevereiro de 1976 e a Popular Photography, de novembro de 1976. No mesmo ano foi publicada a primeira edi??o do livro Hercules Florence 1833: a descoberta isolada da fotografia no Brasil, agora na terceira edi??o ampliada pela EDUSP.Retrato de Hercules Florence, 1875A tese demonstrou que esse fato isolado provocou uma reviravolta e uma nova interpreta??o da história da fotografia, que tem agora seu início n?o mais em Nièpce e Daguerre, mas é entendida como uma série de iniciativas de pesquisa que foram desenvolvidas quase simultaneamente, gestando o advento da fotografia. Uma nova história da fotografia relaciona os nomes dos pioneiros sem hierarquizá-los ou priorizá-los do ponto de vista da descoberta.? importante nos lembrarmos destas nossas iniciativas pioneiras, pois além de sistematizarem uma história mínima, nos propiciaram a possibilidade de buscar e relacionar outras fontes e trazer à superfície a história de muitos outros profissionais que desenvolveram incríveis trabalhos de documenta??o e linguagem. O novo gesta-se no conhecido, uma idéia que dá import?ncia ao conhecimento acumulado por todos aqueles que têm preocupa??o de pesquisar e democratizar informa??es com o intuito de que outros pesquisadores desenvolvam novas reflex?es e indaga??es diversas a partir do que foi estabelecido.Nesses últimos anos, diversos livros foram publicados sobre a produ??o fotográfica brasileira produzida no século XIX e primeira metade do século XX, enriquecendo a iconografia conhecida e agregando alguns dados novos sobre a biografia dos fotógrafos e suas trajetórias profissionais. Além disso, o interesse despertado em jovens pesquisadores, em todo o Brasil, evidencia a urgência de sistematizar informa??es, divulgar acervos e cole??es e estabelecer par?metros de análise e crítica sobre a produ??o e preserva??o fotográfica. Dezenas de disserta??es de Mestrado e teses de Doutorado foram apresentadas nos últimos anos, algumas delas já publicadas, demonstrando que precisamos encorpar, relacionar e preservar nossa fotografia, bem como discutir a produ??o contempor?nea com o intuito de produzir um corpus mínimo capaz de facilitar nossa compreens?o sobre a fotografia enquanto fato cultural da maior import?ncia para a identidade e memória de um povo.Infelizmente nenhum Museu ou Institui??o Cultural programou alguma atividade para celebrar os 170 anos da fotografia no Brasil, mas com este texto queremos refor?ar a máxima popular que diz “um país sem memória é um país sem história”. Particularmente, estamos programando um Seminário, ainda este semestre, cujo objetivo será comemorar esta data, com discuss?o, reflex?o e crítica sobre a fotografia brasileira. O momento é olhar um pouco para trás para fortalecer o presente e criar bases sólidas para refletir sobre o novo cenário da imagem técnica, particularmente a fotografia.Coletivizando o Coletivo Mote HYPERLINK "" Cia de Foto. Primeira imagem da proposta "S?o Paulo de Muitos"Nestes dias, vimos uma iniciativa da HYPERLINK "" Cia de Foto que abriu à comunidade de fotógrafos o convite para ocupar duas páginas da Revista da Folha com imagens de S?o Paulo, na edi??o que sairá na véspera do aniversário da cidade. Desde algum tempo, acompanho a produ??o da Cia e o blog, mas n?o tinha idéia do poder agregador dessa turma: com a provoca??o que fizeram, reuniram mais de 200 autores, entre fotógrafos importantes, outros emergentes, alguns esporádicos (como eu) e, claro, outros coletivos. A idéia se espalhou e ganhou corpo com o título de “S?o Paulo de Muitos”.A rede como eventoPor falta de tempo e desenvoltura, freqüento menos do que deveria os blogs e as redes sociais. Mas temos que admitir a for?a desses meios. A internet já me salvou da solid?o da pesquisa outras vezes. ?Independentemente da quantidade de leitores que conquistamos, o mais incrível é descobrir e fazer contato com um tanto de gente boa que tem produzido e pensado a fotografia. Foi assim que encontrei alguns blogs, foi assim que deu vontade de ter um. E aqui estamos, eu e o Rubens, também gra?as ao incentivo de outros blogueiros que encontramos no momento certo: Pio Figueiroa, Livia Aquino, Georgia Quintas…O que há de mais rico nessas experiências n?o é o conteúdo de cada blog, mas alguma coisa que acontece entre eles. ?s vezes, eu sinto que as redes proporcionam uma intera??o e uma imers?o semelhante àquela que só vemos nos grandes eventos, mas ainda mais potencializada. Digo isso porque, pela rede, tenho esbarrado em muita gente legal, com conversas informais, mas muito comprometidas, algo que eu só vivi nas antigas Semanas Nacionais de Fotografia. Infelizmente, n?o tenho frequentado, mas n?o esque?o da import?ncia de eventos como o Paraty em Foco que, além de cruzar alguns blogs, é um desses grandes espa?os em que o pessoal da fotografia se cruza em carne e osso.Também como nos grandes eventos, ao lado daqueles que aproveitam esses tantos pequenos encontros, há os que sabem criar condi??es para que eles aconte?am. ? esse o papel que a Cia tem feito muito bem nas redes, mandando recados, dando dicas, estimulando, provocando, convidando um blogueiro a ver o post do outro. No final das contas, é um trabalho de a??o cultural, que une um contingente de pessoas que só agora percebo.O que a Cia faz nas redes é uma espécie de metáfora de seu próprio processo de cria??o, em que a intera??o é mais forte do que os gestos individuais, em que o todo é mais que a soma das partes. Ou seja, o coletivo já é em si uma rede, espécie de microcosmo análogo ao cosmo da internet, que por sua vez é análogo ao macrocosmo que chamamos de cultura.AutoriaNa prática, toda cria??o tem algo de coletivo. Quando um pintor usa a perspectiva, quando um fotógrafo regula sua c?mera, quando um editor de imagens seleciona um efeito no photoshop, todos est?o recorrendo a um saber acumulado, transformado em programa e colocado à disposi??o dos criadores. Desse modo, há um universo de an?nimos que s?o sempre co-autoras das nossas imagens de modo que, quando expressamos algo, a cultura fala junto conosco.A no??o de autoria, sobretudo ligada a um indivíduo, n?o existiu sempre na história. Existe com mais clareza há uns 500 anos. Antes, os contornos desse sujeito n?o eram assim t?o claros. Por exemplo, n?o se sabe ao certo se Homero escreveu a Ilíada e a Odisséia, se foi um cantador erudito que organizou narrativas que circulavam pela Grécia, ou se é uma espécie de personagem síntese dos próprios mitos que s?o narrados por sua suposta voz. Outro exemplo: um sacerdote medieval n?o pensava como sendo suas as decis?es sobre o ícone que pintava, ele se supunha instrumento de algo maior do que ele, por isso, n?o havia sentido em assinar a obra. Foi a modernidade (no sentido amplo, algo que come?a a se organizar lá pelos séculos XVI, XVII) que construiu a no??o de indivíduo, alguém que se sente aut?nomo com rela??o a Deus, à natureza e à coletividade. ? aí que surgem os gênios, com seus estilos peculiares, suas personalidades marcantes, com suas assinaturas valiosas.Em 1969, Foucault realizou uma conferência chamada “O que é um autor?”, lan?ando sobre a literatura quest?es que podemos conduzir a outras artes. Para ele, “autor” é uma fun??o, ou seja, algo que n?o existe em si, mas para algumas finalidades dadas historicamente, dentre elas, garantir que a obra opere sob a condi??o de propriedade privada. Uma outra fun??o é permitir checar um pensamento diante de um nome que merece ou n?o nossa confian?a, em outras palavras, que tem ou n?o autoridade. Como n?o encontramos alternativas satisfatórias ao capitalismo, ok, a demarca??o dessa propriedade privada (o direito autoral) permanece indispensável, é nosso meio de sobrevivência. Mas n?o deixa de ser perturbador – uma pequena revolu??o – substituir o “nome próprio” que nos situa diante de uma obra pelo nome coletivo.A afirma??o da “autoria”, assim como do “sujeito”, é uma aquisi??o da qual n?o abrimos m?o. Mas ela corre sempre o risco de tornar a arte uma manifesta??o egocêntrica, e cria a ilus?o de que algumas conquistas históricas s?o produto de a??es de indivíduos. Entre a massa alienada que obedece a estereótipos e o indivíduo que acredita criar tudo a partir do zero e de si mesmo, a idéia de “rede” parece trazer uma medida mais adequada à realidade de uma experiência cultural. No que se refere particularmente à arte, a idéia de “coletivo” tem o mesmo valor: permite construir e manter uma identidade autoral forte sem cair no culto ao indivíduo, a um nome.Cria??o e inteligência coletivaO filósofo francês Pierre Lévy observa que as redes constituem um aparato de percep??o, memória e aprendizado exterior aos indivíduos. Como experiência descentralizada, essa nova cogni??o resulta no que chamou de “inteligência coletiva”, maior em amplitude e alcance que a inteligência individual ou mesmo a acadêmica; uma inteligência que se desenvolve de modo aut?nomo com rela??o aos projetos individuais ou institucionais. ? uma idéia importante, mesmo que eu n?o seja t?o otimista quanto Lévy: ao lado dessa inteligência existe também a possibilidade de desenvolvimento aut?nomo de algumas burrices coletivas, sobretudo quando dissolvemos todas as referências de qualidade em nome de um “democratismo”.Acho mais produtivo quando aliamos a liberdade de express?o nas redes a projetos que assumem a responsabilidade de propor par?metros para as a??es. Ou seja, também nesse sentido, o ideal me parece algo entre a vaidade individual e a aliena??o das massas. Coletivo (seja um grupo de artistas, de pesquisadores, de blogs) é, porque n?o, um nome que podemos dar a essa boa medida. No caso específico da Cia de Foto, enquanto buscam referências para seus próprios trabalhos, estimulam e reverberam aquilo que julgam ter qualidade, conectam e ampliam o sentido de produ??es isoladas, e colocam lado a lado nomes com diferentes pesos de autoridade. Em outras palavras, enquanto criam, fazem o que poderiamos chamar de política cultural (se o termo n?o estivesse t?o desgastado), talvez a mais adequada aos nossos tempos e aos potenciais das novas tecnologias.Avatar: coisas que a história da fotografia ensina sobre o futuro do cinema of de Avatar, 2009. Dica do Blog HYPERLINK "" Brainstorm9.Armado de duas sobrinhas como pretexto, fui ver Avatar, iMax, 3D, pacote completo. O tempo voou, foi uma ótima divers?o. O filme de James Cameron tem o que há de melhor em termos de efeitos especiais, uma história bem construída que alia saudosismo bucólico e imaginário high-tech (como disse minha sobrinha, a floresta de Pandora tem nativos e animais que já vem com USB). Além disso, o filme faz o esfor?o possível nesse contexto para deixar o espírito mais elevado: “o filme tem mensagem”, ouvi ?numa conversa entre dois desconhecidos. Considerando a média das superprodu??es, n?o é pouca coisa. Quem tiver dúvida, vá ver coisas como Independence Day, O Código Da Vinci, Eu sou a lenda que também explodiram nas bilheterias.Saí da sess?o pensando muito no que falam sobre o filme, que tem sido aclamado como um marco na história do cinema. Será? Certamente n?o pelo enredo, que está na medida para o público que busca entretenimento, n?o mais que isso. Talvez pelos efeitos especiais, que impressionam muito. Mas também impressionaram muito os efeitos de Guerra nas Estrelas (1977), Tron (1982), Matrix (1999). Essas coisas têm prazo de validade, e os seres de Avatar podem parecer bonecos de pano daqui a 20 anos.O 3D é a quest?o. Dá pra notar que o filme foi desenhado para ser visto desse modo, sobretudo a fauna e na flora exóticas do planeta Pandora, cheias de planos bem demarcados e movimentos inesperados. Funciona muito bem. ? pretensioso dizer que é um marco na história do cinema, mas certamente é um marco na história do cinema 3D: a tecnologia está mais bem resolvida do que na época de Tubar?o e, ao contrário de coisas como O fundo do mar que s?o exibidas agora nessas salas, Avatar pelo menos é um filme.O futuro do cinema é esse? Por mim, n?o precisaria, mas vamos discutir um pouco.Minha opini?o quase n?o vale. Mesmo que eu tenha me divertido, n?o é esse o cinema que me toca. Por enquanto, o que penso é que vale a pena ver de vez em quando um filme com essa tecnologia, como vale a pena andar de montanha russa no Hopi Hari… ? legal, é uma experiência pra se ter, mas n?o é o que me interessa no cinema. Atrapalha um pouco o fato de eu ter visto também nesta semana O Eclipse (1962) de Antonioni, em tudo oposto a Avatar: lento, p&b, silencioso, denso, e sem um mundo paralelo que possa salvar o ser humano de seus fracassos. Aí eu fico confuso, cheio de preconceitos, e meus pensamentos sobre o 3D ficam contaminados por compara??es que n?o fazem o menor sentido. interessante ver algum grande diretor experimentando o 3D, quem sabe, aliando uma tecnologia surpreendente com um conteúdo surpreendente. Há 30 anos, Antonioni e Coppola decidiram brincar com as cores e as luzes, fazendo longas-metragens em vídeo: o primeiro fez O Mistério de Oberwald (1981), que passou batido, e o segundo, O Fundo do Cora??o (1982), que o diretor de fotografia preferiu refazer todinho em película antes de lan?ar. Mas um exemplo de que é possível conciliar efeitos especiais e conteúdo é Kubrick, com 2001 (1968), que é intenso, belo e, ainda hoje, os efeitos convencem. Aliás, a sess?o de Avatar come?ou muito bem, com um trailer também 3D do ainda n?o lan?ado Alice, de Tim Burton, um desses caras que transitam bem pelo entretenimento e pelo experimentalismo. Enfim, pode vir coisa muito boa, mas eu ainda n?o vejo “o meu cinema” indo na dire??o do 3D.Tendemos a pensar o cinema 3D como ápice da evolu??o do realismo. Mas temos que desconfiar desse conceito: toda estratégia de representa??o, quando nos habituamos a ela, nos parece realista. E, ao contrário, para os olhares n?o acomodados, a mais sofisticada das imagens pode parecer tosca. No limite, isso quer dizer que um egípcio antigo acharia a fotografia uma imagem estilizada, distorcida, talvez precária, como achamos as imagens deles. Isso pode ser pensado em termos históricos: a representa??o mais fiel é aquela cujos códigos foram mais enraizados na cultura, ao longo de décadas ou séculos.Mas nosso olhar globalizado se tornou versátil, e essa acomoda??o pode ser muito rápida: depois de alguns minutos, aqueles que têm o espírito aberto podem achar muito convincente um filme mudo e P&B de Chaplin, a Branca de Neve totalmente 2D da Disney, um filme todo feito com fotografia como o La Jetée de Chris Marker, ou outro sem cenário como o Dog Ville de Lars Von Trier.Em contrapartida, o impacto de Avatar 3D também se atenua. No come?o, você se esquiva dos objetos que se projetam em sua dire??o (do mesmo jeito que a platéia fez com A chegada do trem em La Ciotat, dos irm?os Lumière, há mais de um século). Depois de meia hora, tudo se naturaliza, você se habitua e come?a a ver o filme do jeito que está acostumado. Se de vez em quando um objeto gigantesco n?o fosse atirado bruscamente na sua dire??o, você nem se lembraria que pagou mais caro para ter uma dimens?o a mais.Na prática, seja qual for o tipo de filme que as pessoas gostam, duvido que saiam das sess?es pensando algo como: “até que o filme é bom, mas falta alguma coisa, talvez uma dimens?ozinha…”. Mesmo que todas as novidades sejam bem vindas, às vezes a tecnologia dá respostas a quest?es que n?o foram colocadas, ou que n?o s?o prioritárias. Lembro do Arlindo Machado comentando a TV de alta-defini??o numa aula na USP: “será ótimo, mas as pessoas n?o clamam por mais pixels, elas querem uma programa??o melhor”.Todo o cinema será 3D em breve? O suposto acréscimo de realismo pode n?o ser t?o decisivo quanto imaginamos. A história da fotografia que conhecemos t?o bem nos mostra movimentos distintos. A cor veio pra ficar, mas n?o porque foi uma evolu??o da linguagem, porque tornou a imagem melhor ou mais realista. O P&B resistiu muito além do que se esperava, mas foi se tornando uma artesania complicada e economicamente inviável. Houve nesse caso uma press?o da indústria para a padroniza??o. Com as c?meras digitais, o P&B virou um “efeito” disponível tanto na c?mera e quanto nas ferramentas de pós-produ??o, mas a cor estabeleceu sua hegemonia.Mas e a fotografia estereoscópica (3D)? Idêntica em essência ao atual cinema 3D, e disponível desde o século XIX, simplesmente n?o pegou. Passou de brinquedo de adulto a brinquedo de crian?a, mas n?o criou uma din?mica convincente para a fotografia. Nesse caso, pesaram mais os rituais consolidados em torno de uma imagem simples, que pode ser manipulada livremente, que pode estar num álbum, no meio de um livro, impressa no jornal, pendurada na parece, no blog, no Flickr…Gostei da brincadeira de Avatar, mas n?o consigo imaginar meus filmes preferidos em 3D. E apostaria que os próximos filmes da minha vida v?o continuar como sempre estiveram. Mas, se esse for o caminho da indústria como andam dizendo, a ponto de n?o fazer sentido ter um filme de alto investimento em tecnologia tradicional, talvez o abismo entre o cinema de arte e o cinema de entretenimento fique um tanto maior (mesmo que diretores geniais possam fazer experiências inusitadas e complexas com as novas tecnologias, mesmo que a indústria possa surpreender com produ??es comerciais de grande profundidade).N?o será fácil. A produ??o de um filme convencional deverá assumir desde o início uma baixa expectativa de bilheteria. Por sua vez, manter uma sala convencional poderá se tornar um luxo sem sentido, para a alegria das igrejas evangélicas. Tanto uma coisa quanto outra vai depender ainda mais de patrocínios e políticas públicas. Aí as coisas ficam definitivamente imprevisíveis. Se essa for a tendência, talvez esse cinema como conhecemos passe a ser exibido em espa?os que tem mais a ver com a din?mica das galerias e museus, ou em mostras ainda mais alternativas do que as atuais. Sem problemas, estaremos lá!Saindo do iMAX e, depois, almo?ando no América do mesmo shopping, fiquei pensando nessas coisas todas, até que recebi uma mensagem iluminada… Encontrei ali mesmo Carlos Moreira, fotógrafo que viu muita coisa mudar e que permanece ativo, fotografando e ensinando, meditando quando necessário e indo ao Shopping quando conveniente. Quando eu fiz algumas de suas oficinas, há 20 anos, ele já discutia os benefícios das novas tecnologias, assim como nos convidava a tirar de vez em quando a bateria da c?mera para desligar o fot?metro. Ent?o, entendi que n?o importa o que se tornará hegem?nico: estará tudo bem enquanto houver alguma brecha de escolha e um pouco de coragem. E nos divertiremos muito também se n?o houver grandes preconceitos com o que há pela frente.A fotografia e a gravidade Em algum momento de nossa história, a fotografia foi assimilada de tal modo que tanto suas imagens quanto suas din?micas de produ??o parecem ter se naturalizado. Isso significa que lidamos com ela da mesma forma com que lidamos com a gravidade: ela está dada, ela é como deve ser, e participa de nossas vidas de modo fluido, sem que precisemos nos perguntar como funciona.Seria incrível (se n?o durasse séculos) viver esse momento em que uma tecnologia nasce e se difunde, algo que poderia ser lúdico como caminhar na lua ou desconfortável como andar com um escafandro, situa??es em que a gravidade ganha espessura.Em todo caso, a rela??o ideal com a tecnologia se dá numa situa??o em que ela já produz sentido mas ainda soa como artifício. Quando está aquém disso, ela pode ser violenta: por exemplo, quando a ciência positivista usa a documenta??o para justificar a educa??o do selvagem, a assepsia dos hábitos, a cura dos loucos etc. Quando está além, pode ser alienante, porque aceitar a técnica como natural é igualmente perigoso: é quando nós mesmos passamos a posar espontaneamente como pessoas civilizadas, sadias e normais, sem pensar o que isso significa.Deveríamos guardar um pouco da curiosidade corajosa das crian?as quando desmontam seus brinquedos, mesmo que, depois, eles nunca mais funcionem. Porque o pragmatismo adulto imp?e o contrário: n?o compreender as coisas é uma condi??o para seu bom funcionamento. Daí o recado de Vilém Flusser, quando nos provoca a abrir a “caixa preta”, lembrando que o que ele pensa sobre a fotografia vale também para outros aparelhos (os administrativos, os políticos…).Nunca vimos tanto a fotografia como imagem, mas vale o esfor?o de enxergar também a fotografia como procedimento, como performance, ritual, experiência. Sem saudosismos: n?o falo necessariamente de carregar a c?mera com o filme, sair à “ca?a”, ampliar a foto. Também há gestos, manias e quest?es mobilizadas pelas imagens captadas pelo celular, processadas no photoshop, postadas nas redes sociais, compradas nos bancos de imagem etc.O desejo de olhar um pouco mais n?o apenas para o plano e o instante das imagens, mas para o seu entorno, sua espessura, sua dura??o é algo que tem aparecido muito nas conversas recentes com os amigos.No meio disso, lembrei de um filme encantador: Ping-Pong da Mongólia. ? a história de um menino que vive no meio do nada e que encontra uma bolinha de ping-pong. Com curiosidade e coragem, ele cria fantasias sobre a origem e a raz?o desse objeto estranho. A aventura que surge a partir disso funciona bem como metáfora desse momento perigoso e fascinante, em que sentimos o presente se movendo entre o peso da tradi??o e a for?a do progresso. Essa instabilidade é tanto mais interessante do que a sensa??o de que o passado é algo resolvido e o futuro é algo necessário.E para apresentar o contexto em que se dará essa aventura, o filme come?a com uma experiência que nos interessa particularmente: a performance de um retrato de família, aqui, t?o deslumbrante quanto desajeitada.*Video:ping-pong da mongólia, hao ning, 2005Ping-Pong da Mongólia, Hao Ning, 2005Históricas Revistas de Fotografia Casa StolzeHá mais de três décadas venho colecionando tudo o que se relaciona ao mundo da fotografia. Comecei separando artigos interessantes sobre fotografia, algumas revistas, artigos esporádicos sobre técnica e estética fotográfica. Depois vieram os cart?es postais, as c?meras de fole (já desfeita), o material efêmero (envelopes de laboratórios, caixas de fósforo anunciando estúdios, propagandas etc.), e finalmente as fotografias propriamente. Para ficar atento ao que está disponível em sebos, brechós e livrarias interior afora, fui montando uma rede de amigos e fornecedores que hoje sabem exatamente o que eu gosto e compro. De tempos em tempos a sorte acena para mim.No início deste ano recebi um telefonema de um desses meus fornecedores informando que estava diante de um material que nunca tinha visto e que provavelmente interessaria para minha pesquisa. Sim, eles entendem que seus compradores s?o pesquisadores temáticos e assim fica mais fácil para eles procurarem material de interesse para os diferentes clientes que atendem, já que a diversidade de interesses é enorme. Bem, como sempre, informei que precisava ver o material antes da aquisi??o, inclusive para ter seguran?a em termos de qualidade e procedência. A surpresa, diante do material, foi saber que este material estava disponível desde o início de dezembro do ano passado no sebo e que ninguém havia visto nem se interessado até ent?o.Era um grande número de revistas de fotografia que foi deixado naquele sebo por alguém da família do antigo proprietário. Imediatamente comecei a checar os exemplares e emocionado dei início à negocia??o. Tratava-se de revistas que pertenceram?a Eduardo Salvatore, advogado, fotógrafo e presidente durante décadas do Foto Cine Clube Bandeirante, a quem tive oportunidade de encontrar diversas vezes e de entrevistar. Os envelopes que guardavam parte do material já informavam seu precioso conteúdo, pois Salvatore teve o cuidado de escrever “revistas históricas de fotografia”. Mesmo com estas anota??es elas foram descartadas e, por uma sincronia divina, chegaram para mim. Acredito no acaso e nessa possibilidade de conspira??o dos deuses que tornaram possível que estas revistas ficassem com alguém que valoriza e preza as informa??es nelas disponíveis.O lote (infelizmente essas raridades foram tratadas assim) continha a cole??o completa do Boletim do Foto Cine Clube Bandeirante, entre maio de 1946 e dezembro de 1981; dezenas de catálogos de sal?es internacionais de fotografia dos quais Eduardo Salvatore participou; revistas técnicas de diversas nacionalidades; a revista Artforum de fevereiro de 1976 e Popular Photography de novembro de 1976, ambas publicando textos e fotos sobre Hercule Florence e a descoberta isolada da fotografia no Brasil, tese apresentada nos Estados Unidos pelo professor Boris Kossoy, em mar?o desse mesmo ano.Revista Photográphica e Revista Brasileira de PhotogaphiaAfora isso, também incluía raridades tais como quatro edi??es da Revista Photographica, de 1909, “primeiro e único jornal de photographia no Brasil”, com 8 páginas, editada em S?o Paulo à Rua Lopes de Oliveira, 5; as sete primeiras edi??es da Revista Brasileira de Photographia, de 1926, “mensário consagrado ao estudo e divulga??o da photographia em todos os seus ramos e applica??es”, com 32 páginas, de propriedade de Frischkorn, Will & Cia, e na reda??o Renato Corvello, editada em S?o Paulo, à Pra?a da Sé, 46; cinco edi??es da revista Photogramma, de1926,? “órg?o official e propriedade do Photo Club Brasileiro”, com 30 páginas, que tinha como redator-chefe F. Guerra-Duval e secretario Nogueira Borges, conhecidos fotoclubistas na época, editada no Rio de Janeiro, à Rua República do Peru, 35, e que em sua primeira edi??o traz estranhamente o nome Photogramma colado em diversas páginas internas e uma curiosa folha avulsa informando que o fotoclube foi obrigado juridicamente a alterar o seu nome pois o nome Photographia já estava registrado; e finalmente, doze edi??es da Photorevista do Brasil, de 1925, “órg?o official do Photo Club Brasileiro – revista mensal illustrada de photographia e de cinematographia para amadores e profissionaes”, cujo Director Proprietario Emilio Domingues n?o era do fotoclube, mas um empresário interessado por fotografia (daí no ano seguinte o mesmo fotoclube criar a revista Photogramma anteriormente citada), editada no Rio de Janeiro, à Rua Treze de Maio, 35, Rio de Janeiro.Photogramma e Photorevista do BrasilMais uma vez, a memória foi descartada e cumpriu seu ritual de sorte e acaso. Fico pensando o que seria do conjunto acumulado por Eduardo Salvatore se alguém, fora do interesse da fotografia, adquirisse parte deste material. Fa?o o registro porque quase todas as revistas est?o grifadas e comentadas por Salvatore, principalmente quando o assunto é fotoclube no Brasil, em que ele destacava?todos os dados quantitativos sobre a produ??o e a circula??o fotoclubista. Salvatore tinha consciência da import?ncia deste material para a história da fotografia, mas nunca comentou (pelo menos comigo) sobre a existência deste conjunto e suas respostas sobre o movimento fotoclubista estavam sempre associadas às experiências dele, vivenciadas em profundidade.Estas revistas contêm um rico e diversificado material – textos, fotografias, nomes de profissionais atuantes, anúncios e endere?os, que muito poder?o colaborar em pesquisas e elucida??es desse imenso iceberg que ainda é a história da fotografia brasileira. Por alguma for?a estranha, que acredito ser uma sincronicidade de objetivos e responsabilidade, de desejos e sonhos em ampliar o conhecimento fotográfico, o conjunto n?o se dispersou e acabou chegando as minhas m?os. Pretendemos torná-lo público aqui no blog Ic?nica assim que for higienizado (alguns exemplares precisam de restauro), catalogado e digitalizado.Gordon Matta-Clark: o registro como obra Gordon Matta-Clark (1943-1978) pertenceu a uma gera??o de artistas que, a partir dos anos 60 e 70, rompeu com as linguagens tradicionais para realizar a??es cujo valor está sobretudo na experiência e nos debates que propiciam. Seus trabalhos mais importantes s?o interven??es em espa?os urbanos, às vezes sutis como a compra de propriedades minúsculas e inúteis que restaram da especula??o imobiliária em Nova York; às vezes grandiosas, como orifícios e recortes gigantescos feitos em edifícios que estavam prestes a desaparecer da paisagem.Para nós, é uma boa oportunidade para discutir uma quest?o mal digerida pela história da fotografia: o registro da obra elevado, ele próprio, à condi??o de obra de arte. Esses mesmos anos 60 e 70 abriram espa?os para todo um universo de obras efêmeras ou, às vezes, inacessíveis ao público: performances, processos criativos sem produtos efetivos, instala??es provisórias ou sujeitas a uma rápida deteriora??o, a??es de pequeno ou grande porte mas que aconteciam em lugares privados ou muito distantes do olhar do público. Assumindo-se como provisórias, essas experiências foram documentadas através da fotografia, cinema, vídeo e de outros rastros que eventualmente deixaram. Tornando-se reconhecidas, as imagens que geraram passaram a ser expostas em galerias e museus e, ainda, arquivadas, vendidas e colecionadas, ganhado uma aura que ultrapassa seu valor informativo.Gordon Matta-Clark, splitting, 1974No caso de Matta-Clark,? HYPERLINK "" uma rápida pesquisa na web permite verificar que essas fotografias s?o vendidas com certa regularidade em leil?es. Ainda que a no??o de originalidade aplicada a fotografia seja sempre discutível, trata-se cópias assinadas diretamente pelo artista, ou acompanhadas de certificados de autenticidade emitidos por ele ou, no mínimo, legitimadas por um histórico de exposi??es que incluem grandes retrospectivas e bienais.Para aqueles que tiveram o olhar formado pelo espírito transgressor das últimas décadas, essa assimila??o dos registros documentais pelas institui??es de arte n?o chega a ser um problema. No máximo, é uma ocasi?o para refletir sobre o quanto o mercado exige, mesmo das experiências mais desmaterializadas, que a arte produza algum tipo de objeto colecionável. Para os críticos específicos da fotografia, para a história específica da fotografia e para os fotógrafos, a quest?o soa mais desconfortável, porque a imagem é aqui apenas um meio, n?o um fim. ? instrumental, periférica, submissa a um processo de cria??o que n?o tinha a fotografia como centro de suas quest?es.Matta-Clark n?o é o caso mais problemático. Quem for à retrospectiva perceberá que muitas vezes a documenta??o em fotografia, cinema ou vídeo estava planejada. As a??es eram passageiras, mas já consideravam em suas poéticas os meios para falar à posteridade. Mesmo assim, ainda é irrelevante discutir se os registros foram feitos pelo artista ou por terceiros. Uma vez que tanto se lutou para construir a no??o de “fotografia de autor”, essa submiss?o e esse anonimato podem se tornar dolorosos.Salto no Vazio (1960) de Yves Klein, em foto de Harry Shunk? sintomático o caso do fotógrafo Harry Shunk, que fotografou vários artistas dessa gera??o irrequieta em plena a??o. A diferen?a é que ele teve autoridade para manter seu nome em evidência e sua cole??o reunida (adquirida em 2008 pela Funda??o Roy Lichtenstein). N?o confundimos, por exemplo, a performance de Yves Klein com a documenta??o feita por Shunk. Cada um tem seu trabalho, cada um tem seu valor.Portanto, as alternativas s?o: ou o fotógrafo desaparece de cena ou reivindica um lugar próprio e exclusivo. Uma terceira possibilidade, mais adequada à complexidade dessa situa??o, tem surgido com for?a no contexto da arte contempor?nea: a possibilidade de assumir a cria??o como um processo coletivo. Mas, acostumados ao trabalho solitário, ensimesmado, silencioso, zen, ainda temos dificuldes de fazer tais parcerias. Também temos limita??es na hora de contruir o diálogo com uma outra arte. O vídeo, que nasceu sob esses clima de ruptura, soube buscar rapidamente categorias que respondessem ao desejo de hibridiza??o. ?, por exemplo, o caso da vídeo-performance, que está efetivamente mais preocupada com a integra??o do que com a hierarquia entre as linguagens.Georges Rousse, Dravert, 2007No caso da fotografia, as experiências est?o aí, mas n?o é fácil discuti-las abertamente. Conhecemos artistas que realizam a??es exclusivamente para a c?mera fotográfica, como Georges Rousse, Cindy Sherman, Vik Muniz, Sophie Calle. Mas os olhares formados pela fotografia tendem a minimizar os aspectos de performance, cenografia, arquitetura, instala??o dessas experiências, para resolvê-los como etapas de uma “pré-produ??o” que n?o deixa de ser tipica e essencialmente fotográfica. Nosso olhar conservador se orgulha de saber que a fotografia é aqui um fim (n?o um meio), que é a raz?o de ser da obra, e que as outras a??es estavam a seu servi?o.O problema está colocado. Para os espíritos mais abertos, deixo algumas pondera??es:1. Antes de responder se o registro é ou n?o uma obra de arte, temos que pensar o que essas mesmas experiências nos prop?em a respeito da no??o de “obra”. N?o é nossa concep??o tradicional de cria??o fotográfica que irá nos ajudar a resolver o problema, assim como, isoladamente, as no??es de pintura, escultura, arquitetura, teatro tampouco ajudariam.2. Independentemente do tipo de arte que adoramos ou abominamos, vale a pena pensar o valor social dessa experiência de difus?o e de socializa??o que se dá pela imagem técnica, mesmo quando ela n?o soa t?o nobre, difícil e singular quanto outras obras tradicionais. Como sugeria Benjamin ao discutir o possível papel revolucionário da “reprodutibilidade técnica”, n?o lhe interessava naquele momento a “fotografia como arte”, debate t?o recorrente quanto infrutífero, mas “a arte como fotografia”.3. Qual nome responde pela autoria quando um registro fotográfico ascende à condi??o de obra? N?o haveria orgulho em ver o nome do fotógrafo na ficha técnica, por exmeplo, junto aos pedreiros e motoristas de tatores que ajudaram Matta-Clark a rasgar suas paredes. A obra, sobretudo a obra conceitual, é de quem a pensa. Nesse sentido, falta ao fotógrafo construir esse lugar de alguém que pensa a rela??o de sua imagem com outra obra, ou que a faz junto com outro artista. Atrapalha muito um preconceito que vem de dentro, a vergonha de se supor “apenas registrando”, sobretudo quando há um grande nome diante da c?mera. Melhor que isso, seria assusmir o trabalho fotográfico como “releitura”, como “tradu??o” e, quem sabe, como parte de uma a??o coletiva.4. A possibilidade de algo só “existir por meio da representa??o” é um fen?meno tipicamente contempor?neo, que toca a arte recente, mas também nossa história, nossa vida social, nossos valores, enfim, tudo daquilo que chamamos de realidade. Por exemplo, para aqueles que amam viajar e fotografar, como separar a viagem em si da viagem que foi construída para a fotografia? ? verdade que há excessos e distor??es, situa??es em que a imagem toma completamente o lugar da experiência. Mas, de modo geral, a imagem em si é também uma experiência. Por vezes achamos que a fotografia é um instrumento submisso a uma realidade exterior a ela, por vezes, pensamos que a realidade foi totalmente engolida e substituída pelas imagens (nestes casos, chamadas pejorativamente de simulacros). No meio dessas posi??es radicais, existe uma medida mais interessante, que é pensar a realidade como resultado de uma intera??o entre as coisas e suas representa??es. Se a imagem puder ser vista como algo que n?o t?o alheio à realidade, as documenta??es, os debates da crítica, os projetos curatoriais poder?o ser pensados como elementos n?o t?o exteriores à obra.Esse é um problema nosso, Matta-Clark sobrevive a isso, é maior do que isso. Com ou sem essas quest?es, vale a pena ver a exposi??o.?Gordon Matta-Clark: Desfazer o espa?o está em cartaz no Museu de Arte Moderna de S?o Paulo (no Parque do Ibirapuera), até 04/04/10.[ @ ]PS.: acabo de ver que nosso amigo Eder Chiodetto dará um curso no Espa?o Saber do Clube Hebraica:SABER VER A ARTE CONTEMPOR?NEASaber ver a arte contempor?nea fará uma abordagem geral da Arte hoje em dia sob vis?o do mestre Eder Chiodetto com foco no trabalho do fotógrafo Gordon Matta-Clark, um dos artistas mais importantes para a história da fotografia além de estudar os trabalhos de artistas brasileiros como Vik Muniz e Ros?ngela Rennó.?s ter?as-feiras, das 20h30 às 22h30.Início: 16/033818-8888/3818-8812espacosaber@.brO olhar e as paix?es: sobre o novo filme de J. J. Campanella Soledad Villamil, Ricardo Darin e Campanella, durante filmagem de O segredo de seus olhosNeste final de semana, fui ao cinema ver O segredo de seus olhos, dirigido por Juan Jose Campanella e um dos mais bem cotados para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Para quem gosta do cinema argentino, a nova produ??o pode soar um pouco grandiloqüente, afetada pelos anos em que o diretor esteve a frente de seriados norte-americanos como Law & Order. Mas o filme é ótimo e, mesmo com uma complicada trama policialesca, n?o perde sua capacidade de introspec??o.Muito de passagem, a fotografia está presente na história. Durante a investiga??o de um assassinato, o escriv?o Benjamín Espósito, personagem interpretado por Ricardo Darin, chega ao nome de um suspeito depois de observar atentamente um álbum de família. Ali, um amigo de inf?ncia da vítima aparece em diferentes momentos, sempre com um olhar encantado sobre ela.Lembrei de Blow Up. No clássico de Antonioni, o fotógrafo Thomas chega também à hipótese de um assassinato quando segue a dire??o do olhar da suposta criminosa. Num exercício de associa??es livres, fui um pouco mais longe: tanto o fotógrafo Thomas quanto o escriv?o Espósito s?o figuras entediadas com a rotina de seus trabalhos. Ambos se descobrem enredados pela imprecis?o dos registros técnicos com que lidam, sejam os do aparelho fotográfico, sejam os do aparelho judiciário (aparelhos sempre pregam pe?as, vejam também a máquina de escrever de Espósito, que fala uma língua própria). Nos dois filmes, uma fixa??o pelos supostos crimes é construída pelos personagens como uma forma de preencher suas vidas “cheias de nada”, como é dito por Espósito.O filme é sobre as “paix?es” humanas, num sentido amplo: aquilo que se manifesta mesmo quando se tenta esconder. E o olhar de Espósito é uma espécie de narrador silencioso da trama, que ora tenta desvendar essas paix?es, ora finge inutilmente que n?o as percebe. Por vezes, tenta dissimular as suas próprias. O olhar está em destaque no título, mas também num tipo de c?mera subjetiva que Campanella inventa: subjetiva em termos técnicos, porque mostra o mundo pelos olhos do personagem, mas também em termos simbólicos, porque os sentidos das imagens podem ser contundentes ou tateantes, nítidos ou obscuros, conforme as paix?es que movem esse olhar.Há aqui o exercício daquilo que o professor Alfredo Bosi chamou de “olhar expressivo”, composto pelo fluxo imagens que o mundo dirige ao corpo, mas também pelo fluxo de sentidos que o corpo dirige ao mundo: “esse novo olhar é o que, desde sempre, exprime e reconhece for?as e estados internos, tanto no próprio sujeito, que deste modo se revela, quanto no outro, com o qual o sujeito entretém uma rela??o compreensiva. A percep??o do outro depende da leitura dos seus fen?menos expressivos dos quais o olhar é o mais prenhe de significa??es” (Bosi, “Fenomenologia do Olhar”, 1988).Voltando à fotografia, olhar para os olhares é um exercício que deveríamos fazer com mais freqüência. ? algo que o antropólogo belga Albert Piette chega a propor como método, convidando o etnógrafo a observar a realidade através de seus “modos menores” que se manifestam nas fotografias. Dentre, esses modos menores, destaca os gestos, movimentos, rela??es, posturas corporais e, explicitamente, os “tipos de olhar” (Piette, Le Mode Mineur De La Realité: paradoxes et photographies en anthropologie, 1992).Para terminar, uma foto de Doisneau. Sempre achei que essa é uma imagem sobre os olhares (incluindo alguns que n?o aparecem). Quando você estiver vendo a foto, haverá pelo menos 6 olhares implicados por essa imagem. Quais s?o eles?Robert Doisneau, Le Peintre du Pont des Arts, 1953.Fotografia Digital. Breve! Você n?o pode perder! ? sempre perigoso falar em evolu??o quando estamos no território da arte. No que diz respeito aos estilos, n?o é nada correto dizer, por exemplo, que a arte renascentista superou a arte rom?nica medieval, ou que a pintura neoclássica superou a pintura barroca, mesmo que umas tenham sucedido as outras em termos de cronologia. N?o podemos pensar a cultura em termos de funcionalidade, portanto, n?o se trata de dizer um estilo se torna melhor ou mais eficiente que outro. As estratégias da arte dialogam com valores, hábitos, cren?as, pensamentos de uma dada época, e todas essas coisas se constroem e se transformam mutuamente. N?o é uma quest?o de eficiência, mas de adequa??o entre um modelo estético e a cultura.E se pensarmos em tecnologia, n?o em estilo? O assunto continua delicado. Sabemos que foram precipitados os prognósticos sobre o fim da pintura diante da fotografia, sobre o fim do cinema diante da televis?o, sobre o fim de todas as artes diante das tecnologias digitais. Bobagem!Mas, sem tom apocalíptico, podemos relembrar alguns episódios. Mesmo que haja quem a utilize ainda hoje, a têmpera (pigmentos com base em gema de ovo), hegem?nica noutros tempos, perdeu quase todo seu espa?o para a tinta a óleo entre os séculos XV e XVI. Mais próximo da gente, inegável que a c?mera analógica está perdendo quase todo seu espa?o para a c?mera digital, mesmo que daqui a um século, haverá quem utilize uma velharia qualquer ou fabrique artesanalmente o próprio equipamento. Enfim, algumas tecnologias podem efetivamente desaparecer, ou sobreviver apenas como “experimentalismo”.A pintura a óleo continuou sendo pintura, ninguém discute. E a fotografia digital continua sendo fotografia? Eu diria que sim. Aliás, se essa pergunta me fosse feita de surpresa, diria que n?o faz sentido. Mas n?o podemos ignorar o discurso recorrente da “revolu??o digital”.Há autores de peso que sugerem uma ruptura. André Rouillé diz logo nas primeiras páginas do recém-traduzido A fotografia (La photographie, 2005): “a mal denominada ‘fotografia digital’ n?o é de modo algum uma declina??o digital da fotografia. Uma ruptura radical às separa: sua diferen?a n?o é de grau, mas de natureza”. Ele n?o aprofunda a discuss?o, mas retoma essa afirma??o em algumas passagens e na conclus?o do livro: “do universo analógico ao universo digital, a passagem n?o é simplesmente técnica; ela toca a natureza mesma da fotografia. A ponto de que n?o é certo que a ‘fotografia digital’ ainda seja fotografia”.Num debate no Rio de Janeiro (Projeto Subsolo, 2009), eu esbo?ava timidamente minha desconfian?a quanto a essa revolu??o, quando Maurício Lissovsky atravessou de modo mais corajoso: “A fotografia digital n?o existe!” (e n?o vamos ignorar as inúmeras pondera??es que ele certamente é capaz de fazer, mas que, em nome da provoca??o, n?o se deu ao trabalho de fazer).N?o podemos deixar de ouvir o recado de Benjamin, que nos ensina que a mudan?a no modo de produzir as imagens muda a percep??o que temos dela. Ele é muito convincente quando fala da fotografia e do cinema: por mais que essas artes permanecessem presas por algum tempo aos c?nones da pintura ou do teatro, algo havia mudado pra valer na rela??o com público.Benjamin – assim como Marx – n?o poderia imaginar algumas sutilezas do capitalismo, que sabe colocar o novo a servi?o da conserva??o das estruturas. Assim se diluem muitas das grandes e pequenas promessas de revolu??o. Somos convidados a renovar nossos gadgets, mas continuamos em boa medida produzindo nossas imagens do mesmo modo e vendo as mesmas imagens nos mesmos lugares.Fotografia analógica e fotografia digital de ParisNo final das contas, pode ser que a resitência às mudan?as tenha sobretudo raz?es mercadológicas. Mas, ao contrário do que sugere ?as correntes menos dialéticas do marxismo, é preferível pensar a economia como um elemento dentro da cultura, e n?o como sua determinante. Isso significa que uma resistência mercadológica é também uma resistência cultural.De todo modo, n?o vejo raz?o para usar outro termo que n?o “fotografia”. Do ponto de vista teórico, entendo perfeitamente a mudan?a de natureza de que fala Ruillé, mas ainda n?o posso senti-la pra valer. ? mais ou menos como a física qu?ntica, quando nos convence de que há toda uma dimens?o da realidade que n?o se submete à mec?nica de Newton. Acreditamos, mas continuamos regidos pela mesma gravidade. HYPERLINK "" \t "_blank" Gravidade?da qual, aliás, já muito pouco nos lembrávamos.Enfim, reconhecemos que o processo de codifica??o da imagem digital é radicalmente diferente e isso se desdobra em inúmeras possibilidades e promessas. Mas, na prática, a din?mica de utiliza??o das imagens produzidas pelas novas c?meras tem sido submissa à tradi??o. A gente fotografa os amigos, as festas, as viagens, as coisas inusitadas do cotidiano. O estado, a ciência, os meios de comunica??o continuam documentando com a c?mera digital as coisas importantes para a ordem do conhecimento e da sociedade. Vez ou outra, nos assustamos com episódios de manipula??o da imagem. Antes, idem.Isso acontece em outros campos também: com medo de ficar de fora do jogo tecnológico, comprei um LCD e mudei o plano da minha TV a cabo. Mas ainda estou esperando para ver do que se trata a tal da TV digital. ? incrível como as mudan?as s?o rápidas, é incrível como as mudan?as s?o lentas.Para mim, a passagem da máquina de escrever para o computador foi uma experiência mais radical que a da c?mera analógica para a digital. Comecei a escrever minha disserta??o de mestrado numa Olivetti e terminei num Word para DOS. Ao final do processo, n?o sabia mais lidar com os rascunhos que havia feito a m?o, quando ainda pensava na datilografia. Aqui sim as possibilidades de manipula??o foram imediatamente sentidas e adotadas, mesmo pelo público leigo. Antes, o texto passava mais abruptamente de pensamentos desconexos para a vers?o final. Agora o texto vai sendo construído, lapidado, revisado, reorganizado, enfim, editado. Mesmo assim, quem usa essa ferramenta para fazer arte, continua fazendo literatura.? certo, alguns grandes impactos ainda est?o por acontecer ou por serem assumidos. Boa parte da mudan?a ainda é quantitativa (fotografamos mais, mais gente fotografa, manipulamos mais), n?o de natureza. Eu imaginava que o acesso às novas tecnologias traria maior consciência dos códigos (em outras palavras, do caráter construído da imagem), do modo de funcionamento do aparato. Mas até isso a fotografia digital ainda está devendo. O mesmo usuário que usa softwares para tirar olho vermelho, para deixar o céu mais azul ou para fazer pequenas montagens ainda abre o jornal e acredita na fidelidade da fotografia aos fatos.Paris vista pelo Google MapsSe vejo uma mudan?a importante, é aquela que ocorre nas brechas. Tem a ver com os celulares, com as redes sociais, e mesmo com a pirataria, coisas que ainda estamos aprendendo a digerir. Nesse contexto, as fotografias s?o feitas e publicadas de um modo surpreendente: as imagens passam das gavetas e para os pendrives, dos álbuns para redes; n?o há mais estruturas distintas (e nem delay) para a produ??o, a edi??o e a publica??o; as imagens se tornam livres das legendas e dos textos ou, pelo menos, um tanto desconexas com rela??o a eles; o ciclo de interesse do olhar é mais curto, mas as imagens est?o mais sujeitas à reciclagem e à recontextualiza??o; a autoria se dilui… Essas sim s?o coisas que merecem torrar nossos neur?nios, n?o tanto a passagem da película para o CCD.Tem um lado ruim nisso: nunca olhamos t?o pouco para as imagens que produzimos, em termos de intensidade e dura??o do olhar. Mas sem moralismos, tem também uma experiência boa acontecendo bem aqui ao lado com as fotografias veiculadas pelas redes. Basta olhar para os blogs dos colegas e para os projetos que nascem em torno deles.Por onde andou Sebasti?o Salgado? Esses dias, li uma entrevista com Sebasti?o Salgado na revista HYPERLINK "" \t "_blank" Serafina (disponível on-line apenas para assinantes), da Folha de S. Paulo, publicada no domingo passado. Aí fiquei pensando: porque paramos de falar de Sebasti?o Salgado? Pra dizer a verdade, nem tenho certeza de que paramos, mas tenho a impress?o de n?o ter ouvido quase nada sobre ele nos últimos anos. N?o tenho lido artigos, o nome dele n?o é citado nos debates e palestras dos colegas. Apenas vez ou outra ele aparece como notícia.Engra?ado que, nas minhas aulas, mais cedo ou mais tarde alguém sempre perguntava: o que você acha de Sebasti?o Salgado? Hoje, ninguém pergunta mais.? uma quest?o honesta, n?o tenho idéia do que aconteceu. Como eu n?o tenho acompanhado muito o fotojornalismo, eu posso muito bem ter perdido alguma coisa. Mas, até que alguém me explique, vou especular:– Talvez esteja tudo bem. Apenas se tornou muito óbvio falar de Sebasti?o Salgado: pra que falar dele se todo mundo fala dele? Aí, ninguém falou mais dele.– Talvez as pessoas tenham se saturado dele por conta de um processo de celebriza??o. Cansamos de Sebasti?o Salgado, como cansamos de toda superexposi??o.– Talvez ele tenha se tornado uma figura messi?nica demais e, como somos céticos, temos a obriga??o de desconfiar de alguém que aparece de repente para salvar o mundo.– Talvez guardemos algum ressentimento. Nos anos 90, comemoramos seu sucesso. Mas o “bom filho” n?o tem retornado muito à casa, e passamos a assumi-lo como estrangeiro.– Talvez as pessoas n?o gostem mais do seu trabalho. Talvez condenem o excesso de pose: Sebasti?o Salgado manipula a realidade através de sua fotografia!E por aí vai. Talvez um pouco de cada coisa, e de outras tantas.?xodosQuando Salgado lan?ou o livro ?xodos, eu gostei muito, e gostei mais ainda por uma circunst?ncia muito pessoal. Eu tinha acabado de traduzir um livro de Pierre Lévy, filósofo franco-tunisiano, um dos primeiros a produzir um pensamento denso sobre as novas tecnologias. Mas a obra que me propuseram, World Philosophie (que virou A Conex?o Planetária), representava um momento de deslumbramento de Lévy com o mundo. Ele falava da liberdade trazida pelas redes e pela economia globalizada. Era lindo poder ser um cidad?o do mundo, trabalhar e pensar em colabora??o com pessoas t?o distantes, dormir num país e acordar em outro. O mundo come?ava a abrir suas fronteiras, era fácil ver como as pessoas se deslocavam e diluíam o mapa.Aí chegou em casa o livro ?xodos, e foi fácil entender que esse grande fluxo de pessoas se deslocando pelo mundo n?o é necessariamente produto de uma liberdade, mas de um exílio. Para mim, a tese de Salgado era mais convincente do que a de Lévy. Gostei das imagens, gostei do choque de realidade e gostei principalmente de poder ver um pensamento ser desenvolvido por meio de imagens.Mostrei esse trabalho em algumas aulas, falei um pouco sobre ele, mas passou. Os outros livros que ele lan?ou, cheguei a ver por aí, mas n?o comprei. Eu esqueci Sebasti?o Salgado. Portanto, dali até a leitura da entrevista na Serafina, tem uma história que eu n?o acompanhei.SerafinaA revista se prop?e a comentar Gênesis, o novo trabalho, mas come?a de fato desenhando uma celebridade: avisa que levou um ano e meio para conseguir a entrevista e que, logo após o encontro com a reportagem, ele estaria lotado de compromissos. Dentre eles, uma viagem à ?frica “para passar um tempinho com os Pigmeus”. Essa frase, entre aspas, deve ter sido dita por ele. Mas, colocada desse modo, soa como a Madona fazendo turismo social entre um show e outro. Em seguida, a jornalista descreve sua roupa e explica como ele consegue manter sua careca t?o reluzente mesmo quando está na Patag?nia ou em Galápagos.Difícil saber de quem é a culpa, mas a revista aponta para um ecologismo estranho, com frases do tipo: “a iguana é minha prima”. Tudo isso soa menos complexo do que as grandes quest?es sobre a explora??o da for?a de trabalho ou sobre os deslocamentos populacionais que víamos nas outras o todo rom?ntico, Salgado é nostálgico: “busco terras que permanecem iguais desde o come?o da cria??o, humanos que representam os seres que fomos há milhares de anos”. Mas, nas palavras da revista (a legenda de uma foto), isso vira um Darwinismo mal interpretado e desastroso: “Os mentawai consideram a natureza uma divindade. Est?o no estágio evolutivo da domestica??o das plantas e animais”. Qual estágio evolutivo? Assim, alguma coisa entre o Neanderthalensis e o Sapiens?As imagens… Bem, mesmo que n?o seja o tipo de fotografia que mais me interessa, as imagens s?o exuberantes. Alguns certamente dir?o que s?o muito publicitárias: a foto dos tais “mentawai” até parece ter sido feita com um fundo infinito. Mas, pra mim, esse é um problema menor. N?o me incomoda a manipula??o da cena, assim como n?o me comove o fato de que ele ainda produz negativos, contatos e amplia??es, mesmo depois de adotar uma c?mera digital. As imagens continuam lindas, humanistas, com cinzas profundos, como sempre foram. Sustentar todas essas características, assim por tanto tempo, é o que me surpreende sempre que o vejo, mas é provavelmente o que também me faz esquecer dele.Mas um fotógrafo que tem uma tese e que passa anos desenvolvendo-a através de imagens, já merece nosso respeito. Eu estranho o pensamento que Salgado parece querer construir com esse trabalho: aparentemente, a defesa e a busca de um paraíso perdido. Mas é preciso dar todos os descontos. Se ele encontrou na fotografia uma forma precisa e poderosa de express?o, n?o poderíamos querer que seu discurso permanecesse íntegro numa entrevista apressada.Nesse sentido, vale a pena esperar esse trabalho ser apresentado do modo como ele foi planejado. E vale a pena esquecer entrevistas como a de Serafina e posts como este, que pouco ajudam a lembrar de Sebasti?o Salgado.Por que ver os clássicos Capa do livro "Fotografias", de Maureen Bisilliat, editado pelo Instituto Moreira Salles.Visitar a exposi??o de Maureen Bisilliat no espa?o da Galeria de Arte do Sesi, em S?o Paulo, é adentrar numa rara experiência sensorial, na qual imagens de um Brasil profundo articuladas com objetos de produ??o artesanal, textos literários e poéticos, vídeos e sonoridades, permitem uma comunh?o única com a raiz da cultura brasileira e com a essência da cria??o fotográfica. Depois de tamanho êxtase, somos tomados por uma espécie de orgulho vaidoso pois, diante desta grandeza fotográfica, acreditamos que realmente é um privilégio conviver com estas imagens e estar diante de uma artista cuja produ??o sintetiza de forma t?o contundente o melhor da fotografia brasileira das últimas décadas do século passado.Tomado por esta emo??o, fiquei pensando que todos deveriam ver esta exposi??o – aqueles que tiveram a oportunidade de acompanhar a trajetória de Maureen Bisilliat e os jovens fotógrafos que poder?o se inspirar numa trajetória marcada pelo profissionalismo, pela ética e pela permanente inven??o. As cópias em prata e os cibaprints, que foram produzidas por Silvio Pinhatti, s?o também uma respeitosa homenagem à fotografia, já que penetramos num mundo de tons e de texturas, de sombras e luzes, de brilhos, opacidades e transparências, e recuperamos uma experiência única: a de olhar uma cópia fotográfica. Um impacto para nossos olhos já acostumados com a imagem digital, mais “flat” e entintadas por pigmentos comandados por softwares e n?o impressos pela a??o da luz num suporte sensível.Imediatamente lembrei-me do livro Por que ler os clássicos, de Italo Calvino. Logo na introdu??o, como se isso fosse necessário, o autor se justifica: os clássicos s?o aquelas obras de forma??o para qualquer indivíduo; constituem uma riqueza ímpar àqueles que têm acesso; exercem influência particular quando se imp?em como inesquecíveis; toda releitura de um clássico é na realidade uma redescoberta; entre muitas outras observa??es preciosas. Através dessa associa??o, a exposi??o com as diferentes séries de Maureen Bisilliat torna-se obrigatória, adquire uma dimens?o histórica e imprescindível para a compreens?o da fotografia brasileira.? interessante perceber como os visitantes ficam imbuídos de uma deferência com as imagens. Estas s?o, em sua maioria, um registro colado num referente conhecido, mas tratado com dignidade diferenciada. N?o buscam o exótico nem o folclórico, mas tratam a identidade cultural brasileira como fato significativo do saber e do conhecimento humano. Maureen foi buscar inspira??o a partir da perspectiva da literatura e em sua fotografia predomina a consciência e a lucidez de uma op??o voluntária e política. Ela acredita que sua paix?o pelo país, que escolheu para viver depois de tantas outras passagens, a aproxima de ser Oxumaré. Segundo depoimento para o crítico Leo Gilson Ribeiro, “Oxumaré é aquele misto de arco-íris e serpente, que n?o é divindade, mas um ponto de liga??o entre fragmentos de um mundo plural que espelha em outros fragmentos os seus equivalentes”.Maureen Bisilliat, Caranguejeiras, 1968.Essa conex?o entre literatura e fotografia é que tornou a inglesa Maureen Bisilliat, naturalizada brasileira em 1963, uma das principais artistas do país. Seu processo de trabalho é quase sempre detonado a partir das referências que buscou para compreender o povo brasileiro e a ancestralidade de suas manifesta??es culturais de raiz. Por exemplo, seu clássico ensaio As Caranguejeiras, publicado pela editora Abril, matéria de capa da revista Realidade, nasceu de sua curiosidade por vestígios encontrados em outras linguagens. Depois disso, eles passam por uma cuidadosa elabora??o e foram transformados em imagens que trazem uma incrível dimens?o poética, até ent?o inédita na fotografia brasileira. Veja o fragmento do vídeo-depoimento que me foi dado em 2009, e entenda o processo criativo, que teve a participa??o do acaso, mas foi sua consciência crítica e histórica que a permitiu potencializar politicamente o ensaio.Maureen Bisilliat inscreveu seu nome na fotografia brasileira com um percurso bastante incomum. Trabalhou na editora Abril entre 1964 e 1972, para as revistas Quatro Rodas e Realidade, publicando ensaios que hoje s?o referências para o fotojornalismo inteligente e diferenciado. Editou livros de fotografia sobre as obras de Euclides da Cunha, Jorge Amado, Guimar?es Rosa, Adelia Prado, Jo?o Cabral de Mello Neto, e ensaios sobre o Xingu, Romeiros, O Turista Aprendiz, de Mario de Andrade, Pele Preta, China, Jap?o, entre outros.A exposi??o sintetiza os 50 anos de intensas atividades de Maureen Bisilliat e oferece uma possibilidade ímpar para refletirmos sobre a fotografia, sua import?ncia histórica, documental e artística. Ainda traz uma série de informa??es sobre o processo de produ??o dos livros, pois reúne fotolitos, chapas de impress?o, provas de máquina, cartas de críticos, escritores e intelectuais de todo o mundo. Isso só refor?a e reflete sua import?ncia no trabalho de edi??o de imagens e sua preocupa??o em publicar e democratizar, através da fotografia, a cultura e o conhecimento.Atualmente, seu acervo de fotografias pertence ao Instituto Moreira Salles que n?o só participou ativamente do projeto da mostra, como se esmerou em produzir um livro que documenta toda a trajetória criativa de Maureen Bisilliat. O exercício de revis?o de sua produ??o e de edi??o de imagens para a exposi??o permitiu a Maureen pensar sobre seu trabalho e seu percurso. Ela declarou: “a cataloga??o do meu acervo fotográfico obrigou-me n?o só a preservar meu material, mas a organizar e refletir como sou hoje, aquilo que fui ontem. ? muito interessante e rico esse exercício”. Essa retrospectiva traz uma imers?o da artista no próprio trabalho em busca de algumas respostas para sua experiência profissional e existencial através da arte. O que podemos auferir pelas imagens é sua capacidade de dar visibilidade à exuberante paisagem brasileira e a tornar pública a dignidade nem sempre visível do nosso povo.Maureen Bisilliat – Fotografiasde 02/03 a 04/07/2010Galeria de Arte do SESI-SPAv. Paulista, 1313 – S?o PauloO triste fim de Sophie Calle Primeira página do UOL, 21/03/2010.Ao acessar o portal UOL na manh? de ontem, reconheci numa pequena foto que ilustrava a se??o “Comportamento” as figuras da artista Sophie Calle e de seu ex-namorado, o escritor Gregoire Bouillier. Ao lado da foto, um link em destaque: “Você muda de personalidade quando está namorando?”. Trata-se de um teste que, ao final de algumas perguntas, define o perfil da mulher em seu relacionamento. Até onde pude ver, nada sobre Sophie Calle.Para os que n?o acompanharam as notícias recentes (se é que isso foi possível), uma pequena apresenta??o da artista: no ano passado, Sophie Calle chegou ao Brasil a convite do VideoBrasil, já como um dos mais importantes nomes da arte contempor?nea mundial, trazendo para S?o Paulo, Bahia e Rio de Janeiro a exposi??o “Cuide de Você” (Prenez soin de vous), destaque da Bienal de Veneza de 2007. Trata-se de uma espécie de performance na qual uma centena de mulheres interpretam o e-mail com que Bouillier, ent?o seu namorado, p?s fim à rela??o entre eles. A história pode parecer um tanto estranha, mas a exposi??o foi incrível.Cuide de Você, no Sesc Pompéia, em 2009 (imagem do blog do VideoBrasil)Estranha mesmo foi a HYPERLINK "" \t "_blank" participa??o da artista na Flip (Feira Literária?International?de Paraty), pouco antes da exposi??o, dividindo a mesa exatamente com Boullier, que havia escrito um livro (O convidado surpresa) sobre a rela??o entre eles.Sophie Calle deixa um mal estar que é o valor mesmo de sua obra: impossível dizer se o que vemos é um relato sobre sua vida pessoal ou uma fic??o construída para o trabalho. Na verdade, essas duas situa??es se sobrep?em na medida em que ela transforma em jogos suas experiências afetivas, assim como vive intensamente os rituais que elabora como projeto artístico.Quem acompanhou um pouco das minhas HYPERLINK "" \t "_blank" últimas pesquisas, sabe que gosto do trabalho dela. Também gostei muito da exposi??o que veio ao Brasil. Mas essa superexposi??o tem seu pre?o: ela se tornou uma celebridade. Dos mais sofisticados cadernos de cultura às mais populares revistas de fofoca, o assunto era Sophie Calle, que chegou a se irritar o assédio da imprensa, apesar de permanecer muito receptiva às quest?es do público. Foi uma febre interessante: enquanto alguns tomavam partido na briga do casal, outros se manifestaram de modo passional e performático, brincando, eles próprios, de Sophie Calle.Ao contrário de muitas exposi??es de arte contempor?nea, a de Sophie Calle teve público e foi capaz de reunir nos mesmos espa?os figuras muito heterogêneas, de acadêmicos a leitores de revistas femininas. E n?o importa o que as tenha levado à exposi??o, chegando lá, viram uma obra importante e tiveram a oportunidade de refletir sobre os limites da arte, com um belo trabalho feito pela equipe de educadores.Ser lembrada por todos, indiscriminadamente, é uma conquista. O problema é o que sobra quando o assunto sai de pauta e come?amos a esquecê-la. A imprensa funciona por impulso, cria debates importantes, mas n?o é capaz de sustentá-los por muito tempo. E muito rapidamente Calle passa de um fen?meno artístico à ilustra??o de um teste de personalidade.Até haveria o que dizer, mas nenhum novo espetáculo, nenhum novo esc?ndalo, apenas fatos: Calle voltou recentemente ao Rio, creio, sem o estrondo daquele primeiro momento na Flip e em S?o Paulo. Há algumas semanas, venceu o Hasselblad Award 2010, HYPERLINK "" \t "_blank" notícia que correu quase que exclusivamente pelos blogs. Deve integrar nos próximos meses a coletiva Haunted: Contemporary Photography/Video/Performance no Guggenheim, ao lado de nomes como Andy Warhol, Robert Rauschenberg, Jeff Wall, Cindy Sherman e o casal Becher.Há duas quest?es muito distintas que podem nos interessar:Primeiro, sobre a arte: temos lutado muito para ampliar o alcance da arte contempor?nea. Mas o artista, ao atingir o grande público, torna-se alvo da voracidade que marca toda experiência de consumo de massa: ele se transforma em objeto de culto com a mesma velocidade com que desaparece de cena. Aqui, um desafio para os educadores: há um trabalho a ser feito para garantir a compreens?o das exposi??es, isoladamente. Há outro trabalho a ser feito para formar efetivamente um público para a arte contempor?nea. Este último é muito mais difícil e, para ele, n?o se pode contar tanto com a imprensa. ? preciso formá-la também.Segundo, sobre os usos das fotografias: podemos nos divertir tentando imaginar quais eram as duas ou três palavras chaves que indexavam a fotografia de Calle e Boullier no banco de imagens, e que os trouxeram até essa situa??o. Mas a quest?o é séria. A produtividade que se alcan?a com os bancos de imagem é incrível, mas precisamos distinguir entre “acúmulo de informa??es” e “produ??o de conhecimento”, entre “ilustra??o” e “memória”. A quest?o agora é pensar em como dar sentido a todo o material acumulado nas redes privadas ou abertas. Quanto maior a disponibilidade de imagens, mais complexas e difíceis se tornam suas possibilidades de recupera??o, de análise e de uso.Irina Ionesco: imagens de um tempo sem data EstereótiposAté ver sua exposi??o HYPERLINK "" na semana passada (Espelho de Sombra e Luz, na Caixa Cultural da Sé, SP), eu mal tinha idéia de quem era Irina Ionesco. Em geral, isso n?o é problema, temos um mapa de experiências históricas que nos permite situar bem um artista, mesmo quando é desconhecido. Tentamos captar na obra o espírito de seu tempo, coisas que transpiram no estilo, na composi??o, no tratamento do tema, no uso de certas técnicas e materiais. ?s vezes isso funciona, às vezes n?o.Irina Ionesco, Dracula, 2006Quem chega como eu desavisado na exposi??o de Ionesco, vê sua erudi??o fazer algumas piruetas: sentimos ali um ar histórico, os excessos e as alegorias do barroco, o tom metafísico do simbolismo, a sofistica??o ornamental do art nouveau, o glamour e o erotismo de uma primeira fotografia de moda, constru??es oníricas do surrealismo, algo do cinema expressionaista. E, ao lado dessas referências imprecisas, datas mais recentes do que podemos imaginar (1968 a 2006).Sendo assim, podemos apelar para uma categoria mais acolhedora: a “fotografia contempor?nea”. Igualmente fiel ao espírito de um tempo que refuta todo tipo de coerência, ela nos permite lidar relativamente bem com uma produ??o que tende a ignorar fronteiras históricas, investe na descontextualiza??o e combina referências de diferentes épocas.N?o é t?o simples. O trabalho é escorregadio, deslocado, mas uma imagem após a outra nos mostra uma coes?o forte, amarrada por uma tradi??o que parece n?o estar denominada nos livros, algo que n?o se sustentaria se a quest?o fosse apenas o desejo de atropelar categorias.? t?o desconfortável quanto prazeroso ver nossa erudi??o se tornar inútil. Quando abandonamos o ?mapa de estereótipos que trazemos de casa é que come?amos a ver de verdade a obra que temos diante do olhar. Em princípio, tudo o que precisamos está ali na exposi??o, mesmo que de uma forma problemática: um texto mais sucinto do que a exposi??o merecia, um vídeo em francês com legendas em inglês (Irina Ionesco, Nocturnes Porte Dorée, de Delphine Camolli)?e, acima de tudo, nosso olhar que é rapidamente encantado pelas imagens, mesmo que o corpo esteja impaciente com o calor da sala.ArquétiposIrina Ionesco, s/d.Irina Ionescu nasceu em Paris mas passou sua inf?ncia na Romênia, terra natal de sua família. Filha de uma trapezista e de um músico, trabalhou no circo como bailarina e contorcionista. Após um acidente e um longo período de convalescência num hospital, passou a se dedicar à pintura e à fotografia. Apesar da tragédia, foi uma feliz mudan?a de rota, algo que Ionesco explica como um “acaso objetivo”, conceito que toma emprestado dos surrealistas: uma espécie de encontro entre um fato da natureza e um desejo subjetivo.? sempre perigoso querer explicar a obra pela biografia do artista. Esse cenário oferece n?o uma explica??o, mas uma metáfora que ajuda a entender o tempo deslocado em que seu trabalho encontra.A Romênia de onde imigra sua família no início do século XX é, em si, um lugar de encontro de tradi??es do ocidente e do oriente, também de uma Europa moderna e outra apegada à tradi??o de seus mitos.O circo é uma dessas experiências míticas, lugar de formas próprias que remetem a um passado sem data. N?o se trata de um estilo, mas de um arquétipo, e arquétipos n?o s?o simplesmente antigos, s?o originários. Representam uma experiência reconhecida por todos, mesmo que n?o tenha sido transmitida por ninguém.? uma coes?o semelhante a essa que permanece evidente nas fotografias de Ionesco, mesmo quando as categorias históricas falham. O ar antigo que n?o conseguimos situar nas imagens é, na verdade, igualmente sem data, é arquetípico.Irina Ionesco, Eva, s/d.As imagens de uma de suas primeiras séries, Eloge de ma fille, est?o na exposi??o e mostram sem ingenuidades o corpo de Eva, sua filha, quando ainda era uma crian?a. N?o se trata do nu como estado anterior ao pecado, metáfora da pureza, mas de um corpo que foi despido (nude e naked, categorias definidas pelo historiador Kenneth Clark). Em nosso tempo marcado pelo pragmatismo, esse pode ser um trabalho que exp?e de modo perigoso o corpo infantil. Para o tempo sem data em que o trabalho se situa, é o erotismo de um corpo idealizado, portanto, igualmente sem idade.Em princípio, o vídeo que acompanha a exposi??o?soa um pouco triste. Ionesco parece querer conter a decadência de sua beleza por meio da maquiagem carregada e do apego aos objetos do passado. ? o mesmo ar decadente que fica para quem vê o circo pelo lado de fora, montado provisoriamente num terreno esquecido entre um prédio e outro da cidade.Mas é preciso entrar no circo. Os excessos, seja o da maquiagem, seja o do cenário, est?o ali também como elementos de cena, numa teatralidade que se realiza por voca??o. Trata-se, ainda, de um palco. A beleza que representa, assim como o erotismo de sua filha, está situada fora da idade do corpo. Basta retornar às fotografias para entender que é possível mostrar no arcaico o lugar para onde nosso desejo nos convida a avan?ar.?Ionesco se equilibra sobre palavras t?o bem quanto sobre os ornamentos e alegorias das imagens. ? um prazer escutar seu depoimento. Mas é preciso ver o vídeo do mesmo modo que vemos as fotos, como cria??o, como encena??o do mito com o qual sua vida se confunde.***Lamento demorar a comentar. A exposi??o Espelhos de Sombra e Luz fica em cartaz na Caixa Cultural da Pra?a da Sé, em S?o Paulo, só até o dia 11 de abril. N?o encontrei informa??es precisas, mas o realease ?promete que a exposi??o irá também para Bahia e Brasília. A exposi??o esteve também no Sesc Copacabana, em 2007.***Estou aqui no processo de descobrir essa artista, procurando imagens e textos. Encontrei HYPERLINK "" \t "_blank" uma bela entrevista de Ionesco dada ao psicanalista carioca Antonio Quinet, em 2003. Infelizmente, só está disponível em francês. Se alguém conhecer outros artigos disponíveis, adoraria ter as referências.Teatro e fotografia Cena de Policarpo Quaresma. Foto de divulga??o de Emidio Luisi.Durante o espetáculo Policarpo Quaresma, cria??o e dire??o de Antunes Filho a partir do texto de Lima Barreto, pude perceber dentre as muitas cenas do espetáculo, imagens que s?o pura fotografia. Sabemos que o diretor é um mestre em congelar cenas para atrair nossa aten??o (influências claras de Bob Wilson) e, diante dessas cenas estáticas, vi que elas estavam prontas para serem fotografadas. Eu sentava na penúltima fileira do teatro Sesc Anchieta e, próximo dali havia um fotógrafo que confirmava minha intui??o: a cada grande momento do texto e da encena??o, o disparador era acionado com a finalidade de eternizar aquele instante.Lembrei-me de algumas conversas que tive com Thomaz Farkas sobre a fotografia de teatro. Sua posi??o sobre este gênero de fotografia sempre foi muito clara: o fotógrafo de teatro registra cenas pré-visualizadas pelo diretor do espetáculo. Ou seja, diante de uma imagem teatral, incluindo aqui ópera e dan?a, estamos sob o domínio da luz e da a??o dramática já planejada por alguém, e n?o propriamente buscando o acaso ou alguma eventual singularidade de uma performance. Aparentemente, isso coloca em cheque a possibilidade de haver algum trabalho criativo na fotografia teatral.? uma dúvida que me assolou naquele momento. Quando estamos diante um conjunto de imagens de algum espetáculo, vemos um documento fotográfico de uma cria??o exterior à fotografia? Será que fotografia neste caso confirma a tese de Baudelaire em seu clássico texto O Sal?o de 1859: “… Que enrique?a rapidamente o álbum do viajante e restitua a seus olhos a precis?o que faltaria à sua memória, que enfeite a biblioteca do naturalista, amplie os animais microscópicos, até fortale?a com algumas informa??es as hipóteses do astr?nomo, que seja, enfim a secretária e o bloco de notas de quem quer que necessite de uma absoluta exatid?o em sua profiss?o, até aí nenhuma obje??o. Que salve do esquecimento as ruínas pendentes, os livros, as estampas e os manuscritos que o tempo devora, as coisas preciosas cuja forma vai desaparecer e que exigem um lugar nos arquivos de nossa memória, se lhe agradecerá e aplaudirá. Mas se for permitido invadir o campo do impalpável e do imaginário, aquilo que vale somente porque o homem aí acrescenta algo da própria alma, ent?o, pobre de nós!”Cacilda Becker, em cena de A Dama das Camélias, 1951. Foto de Fredi Kleemann.Na fotografia brasileira, temos experiências marcantes de fotografia de palco. O trabalho mais emblemático nesta área é sem sombra de dúvida aquele desenvolvido por Fredi Kleemann (Berlim, 1924 – S?o Paulo, 1974), um ator coadjuvante do Teatro Brasileiro de Comédia, desde 1949, que se notabilizou muito mais pelos seus registros fotográficos de inúmeros espetáculos do TBC e de outras companhias do que pela sua atua??o teatral no grupo. Curiosamente, Fredi trabalhava como atendente nos Laboratórios Fotóptica localizado na Rua Major Diogo, a mesma rua da sede do TBC. Também era membro atuante no Foto Cine Clube Bandeirante, fotógrafo de still da Companhia Cinematográfica Vera Cruz e produziu uma fotografia tecnicamente sofisticada, mas para alguns, limitada do ponto de vista da cria??o.Fredi, judeu alem?o que chegou ao Brasil em 1933, segundo relatos que ouvi da atriz Nydia Licia, também integrante do TBC, tinha a oportunidade de fotografar os atores no momento em que o espetáculo estava pronto para ocupar a cena, com os figurinos, a luz e toda a pontua??o dramática ensaiada e finalizada. Ele fotografava os atores nestes momentos de plenitude, mas seus registros s?o muito mais o documento do resultado visual desejado pelo diretor do que uma possível leitura criativa do espetáculo. Para o crítico Décio de Almeida Prado, o trabalho de Fredi Kleemann tem “o impressionante grau de adequa??o que se observa entre as personagens de palco que retratou e o seu próprio ponto de vista fotográfico. Pertenciam todos, os que estavam além e o que estava aquém da objetiva, ao mesmo projeto estético, habitavam todos o mesmo projeto artístico”.Os mais de 12.000 negativos produzidos por Fredi Kleemann no período de 1949 a 1973 foram adquiridos pela Secretaria de Cultura do Município, através do escritor e crítico de teatro Sábado Magaldi por ocasi?o da forma??o do IDART, em 1976, e por sugest?o da atriz Cleide Yáconis. Diga-se de passagem, uma atitude louvável já que estes negativos hoje possibilitam n?o só uma compreens?o da estética teatral do TBC, como do grupo de teatro Cacilda Becker e da Vera Cruz.E eis o paradoxo: uma fotografia tecnicamente perfeita, certamente difícil de fazer, mas questionada em seu valor criativo, validada apenas como registro necessário para a compreens?o daquele momento histórico dos movimentos mais significativos do teatro e do cinema.Este espa?o de reflex?o nos permite levantar esses questionamentos e abrir a discuss?o. A fotografia nasce sob o signo da representa??o fidedigna do mundo visível e, à medida que o domínio técnico invade o fazer, inicia sua trajetória como linguagem. Será que quando pensamos neste tipo de experiência e na sua import?ncia enquanto documenta??o, suas possibilidades expressivas se tornam uma quest?o secundária? Ou será que cabe pensar numa espécie de co-autoria, numa parceria entre um diretor que constrói ?obra e um fotógrafo que escolhe um instante-síntese?Ao término da apresenta??o do espetáculo Policarpo Quaresma o que detive na memória imediata foram as imagens criadas por Antunes Filho (sabidamente um diretor de imagens inesquecíveis do teatro brasileiro nas últimas décadas), a partir de um texto literário que foi capaz de incendiar a criatividade visual do diretor. N?o vi as fotografias daquele fotógrafo que estava nas proximidades, mas seguramente, além daquelas imagens que me entusiasmaram, outras provavelmente foram escolhidas e registradas pelo fotógrafo em pleno êxtase – uma espécie de suspens?o do tempo no espa?o, nos interstícios do processo criativo.Vale ainda pensar no trabalho de Maarten Vanden Abeele, fotógrafo nascido em Bruxelas, em 1970, que registrou exaustivamente os espetáculos de Pina Bausch, além de realizar documenta??es sobre os grandes teatros europeus e japoneses. No Brasil, mais recentemente, temos Emidio Luisi (autor da imagem acima da pe?a Policarpo Quaresma), Vania Toledo, Lenise Pinheiro, Gal Oppido, entre outros que se dedicam de corpo e alma a fotografar o teatro e a dan?a no Brasil. Mas isso já é assunto para outra reflex?o."Pixo" na Bienal (… entre um post e outro, um pensamento em voz alta, mesmo deslocado dos nossos temas…)M?nica Bergamo noticiou na HYPERLINK "" \t "_blank" Folha Ilustrada de segunda-feira que o grupo de “pixadores” que fez um protesto na 28a Bienal de S?o Paulo foi convidado a integrar a 29a edi??o do evento. Naquela ocasi?o, o curador Ivo Mesquita criticou duramente a a??o.Deixo aqui algumas dúvidas.O gesto de Moacir dos Anjos, atual curador, pode ser lido de modo ambíguo: pode representar a abertura do evento a manifesta??es n?o institucionalizadas, ou pode ser uma demonstra??o do poder das institui??es sobre as manifesta??es que lhes s?o críticas.Só pelas discuss?es que suscita, a iniciativa já é válida, como uma espécie de performance que visa refletir sobre os limites da arte contempor?nea. Mas, caso o grupo aceite, como será a interven??o? Ou melhor, ainda será uma interven??o? Eles poder?o decidir qual parede v?o utilizar ou em quais obras v?o interferir? ? improvável, mas quem sabe…?Em HYPERLINK "" \t "_blank" entrevista à Folha, o curador disse:“O que realmente queremos incluir na presente edi??o da Bienal é a pixa??o, ou simplesmente o pixo, com ‘x’ mesmo, grafia usada por seus praticantes para diferenciar o que fazem hoje em S?o Paulo das picha??es político-partidárias, religiosas, musicais, ou mesmo ligadas à propaganda que há vários anos enchem os muros e paredes da cidade, a despeito do qu?o ‘limpa’ ela queira apresentar-se.”Existe aqui algo curioso. Para organizar um processo de abertura que come?ou lá pelos anos 60, construiu-se a distin??o entre o grafite e a picha??o, em palavras da época, entre a arte de rua e o vandalismo. Neste momento, abrir a Bienal para as ruas exige, novamente, dividir suas experiências: existe ent?o a boa e a má picha??o. Soa um pouco maniqueísta.Por enquanto, o curador pode estar dando um passo bastante razoável: se essa interven??o chegou até ali, ali é um bom lugar para discuti-la. Mas ainda é preciso entender o que significaria a presen?a dos pichadores na Bienal, para ambos os lados.Para que o debate n?o se dilua precocemente, tendo a pensar que a coisa mais interessante neste momento seria a Bienal fazer o convite e o grupo n?o aceitá-lo. Os pichadores continuariam sendo?um fantasma?que assombra?a curadoria,?a curadoria seguiria tentando lidar com as for?as desse além-da-arte. E agente seguiria discutindo.Multimídia tensa e multimídia relaxada Na semana passada tive uma boa conversa com o pessoal do HYPERLINK "" Garapa, Leo Caobelli,?Paulo Fehlauer e?Rodrigo Marcondes. Eles contaram que, numa apresenta??o de seus trabalhos, alguém esbravejou afirmando que o que eles faziam n?o era multimídia, era apenas vídeo. arte e a comunica??o têm vivido nas últimas décadas um momento muito fértil, que convida a atravessar as fronteiras que separam uma linguagem da outra, uma técnica da outra. Daí vem a voca??o para as produ??es que chamamos de multimídia. Reconhe?o nesse processo dois momentos distintos, um que tem a ver com o desejo de transgress?o e outro, com a liberdade de transgress?o. ? sutil, mas é diferente.De um lado, há uma gera??o de artistas que deu a cara para bater enfrentando as tradi??es das várias artes, que trabalhou duro nas experimenta??es com a tecnologia, que testou as possibilidades de aproxima??o entre as linguagens. Essa gera??o fez disso uma bandeira, levou muita bordoada, mas soube construir as justificativas para produ??es que tinham um pouco de pintura, vídeo, fotografia, literatura, música, game, que explorava novos suportes, que convidava o público a interagir com suas obras. Temos que agradecer a essa gera??o por suas conquistas e pela heran?a deixada aos artistas mais jovens.Do outro lado, há exatamente essa turma mais jovem, que foi contaminada pelo ar com esse espírito transgressor. Essa gera??o ainda é capaz de enxergar tanto o que fazia a tradi??o quanto os resultados das novas rupturas, mas a diferen?a é que podem ter uma postura mais leve diante de ambas. No exercício das liberdades que receberam de heran?a, sua produ??o simplesmente transborda em dire??es várias, por exemplo, da fotografia para o vídeo, da galeria para a internet. ? uma gera??o privilegiada, porque teve a oportunidade de assistir à luta que foi travada, porque conhece a crise que se instaurou, e sabe discutir esse processo quando é convocada. Mas já n?o é preciso levantar uma bandeira, identificar o inimigo. Ao contrário, pode fazer o que quer, com uma radicalidade que nasce mais como despojamento do que como esfor?o. E podem ainda admirar trabalhos feitos à velha maneira, película, fine art, moldura etc.Vale ainda considerar uma gera??o que estará produzindo em breve, e que n?o saberá o que é o mundo sem c?mera digital, sem internet, sem celular, sem celular com c?mera digital e internet. Contei ao pessoal do Garapa sobre o filho de um amigo que explicou um coleguinha que “carta é igual a um e-mail, só que se escreve a m?o”. O Paulo Fehlauer respondeu com outra anedota: uma crian?a vê uma máquina de escrever e diz “pai, olha, um computador que já vem com impressora!”. Essa garotada vai fazer muita coisa boa, mas vai ter que estudar nos livros essa passagem que vivemos há pouco, se tiver alguma paciência para olhar para a história.Retomando, há portanto uma multimídia tensa, que se configurou em meio a uma revolu??o, e uma multimídia relaxada, que se realiza no exercício da liberdade conquistada. A primeira tinha coisas a provar. Precisava mapear e demonstrar as possibilidades de conex?o entre as linguagens. Ser multimídia era ser poderoso, ágil, amplo, eloquente, era ser de tudo um pouco ao mesmo tempo. Com isso, nossa concep??o de multimídia nasceu um tanto barroca, marcada pelo excesso. Alguns dos pioneiros já haviam feito essa pondera??o: Julio Plaza lembrava frequentemente de um antigo princípio da cibernética que diz: quanto maior a quantidade de informa??o, menor a probabilidade de produzir uma mensagem. Carlos Fadon Vicente também me disse uma vez: “bot?o demais é igual a interatividade nenhuma”.A outra multimídia, essa mais relaxada, atravessa as fronteiras sem ter de pedir licen?a. Como disse o pessoal do Garapa, o vídeo estava lá na Mark II ( HYPERLINK "" vejam um post no Olhavê?sobre a Mark II), a internet estava aí pra todo mundo… ?N?o foi preciso enfiar o pé na porta, foi só aceitar o convite.?No que diz respeito às tecnologias, essa gera??o só se sente transgressora quando confrontada à história, situa??o que também enfrenta com desenvoltura.Uma analogia: lembram do esperanto? Um dia alguém percebeu que o mundo estava cheio de conex?es e decidiu aprofundá-las criando uma língua universal, que contivesse um pouco de todas as línguas. Foi um belo pensamento, mas passamos dessa fase. Hoje, é mais legal chegar num país sem grandes medos, sem uma causa, e descobrir que dá pra ter uma boa conversa em portu?ol, ou num francês cheio de inven??es, ou num inglês bem gesticulado. N?o é preciso mixar todas as palavras e gramáticas, só é preciso flexibilizar o idioma quando necessário.Conflitos ainda existem, n?o tanto no uso das tecnologias, mas nas din?micas dos mercados. Como o jornalismo pode absorver um trabalho multimídia? Como as galerias podem absorver obras que est?o na internet em Creative Commons? A vida n?o ficou necessariamente fácil, n?o faltam bandeiras pra levantar, nem bordoadas pra levar.Mas n?o tenho dúvida de que há coisas simples que merecem hoje a denomina??o de multimídia. Na conversa com o Garapa, lembramos que há outros fotógrafos fazendo vídeo, como o pessoal da HYPERLINK "" \t "_blank" Cia de Foto. Ou, ainda, HYPERLINK "" \t "_blank" Gustavo Pellizzon, com uma experiência radical em sua simplicidade, que chamou de?Fotografias que respiram. Se a multimídia implica atravessar uma fronteira, trata-se aqui de tentar se equilibrar em cima dela. que faz o Garapa, a Cia ou Pellizzon quando recorrem ao vídeo ou à internet é multimídia. Só n?o é uma multimídia ansiosa em testar todas as conex?es, nem barroca, nem panfletária. ? multimídia, e o que é importante: é também fotografia, porque essa é a forma??o deles. ?Porque a fotografia ainda é o “lugar conceitual” a partir de onde pensam sua produ??o. Aliás, n?o seria multimídia, seria apenas vídeo se esse?fosse ao mesmo tempo o lugar de partida e de chegada. Mas, n?o, eles est?o em pleno atravessamento.Dois filmes sobre fotógrafos Nesta semana, assisti a dois filmes sobre fotógrafos. Gostei muito de um deles, do outro, nem tanto. Um pouco sobre cada um:A fronteira do alvorecer de Portugal, onde o filme recebeu o título de “A fronteira do amanhecer”.A fronteira do amanhecer (2008) é dirigido por Philippe Garrel, cineasta com olhar formado pela Nouvelle Vague, que alcan?ou um bom reconhecimento a partir dos anos 80, obtendo prêmios em Cannes e Veneza. O filme está centrado na vida amorosa do fotógrafo Fran?ois (interpretado por Louis Garrel, filho do diretor) que vive uma paix?o súbita e intensa pela linda Carole (Laura Smet), uma estrela de cinema que ele fotografa para uma publica??o. A profiss?o do personagem é pretexto para Garrel – ele próprio, um excelente fotógrafo – mostrar no filme luzes e composi??es belíssimas, a come?ar pelas cenas do ensaio, que já s?o como uma sucess?o de fotografias. ? um início promissor, mas que n?o se sustenta. Como cinema, estamos diante de uma história pretensiosa e uma estética repleta de maneirismos.No primeiro post deste blog ( HYPERLINK "" \t "_self" Fotógrafos n?o s?o normais), eu brincava com o fato de que os personagens fotógrafos do cinema s?o sempre introspectivos, complexos, profundos, enigmáticos e perturbados. Garrel desmonta esse estereótipo: desta vez, o personagem n?o é coisa alguma, além de belo. Mesmo que o roteiro pe?a uma personalidade forte e anti-burguesa, em si, o que o personagem mostra é alguém psiquicamente plano, que n?o tem história, que n?o pensa nada, n?o acredita em nada, e que reage às suas tormentas sempre com a mesma express?o de vazio.Por sua vez, o filme abusa das cita??es ao velho cinema francês: preto e branco, grandes silêncios, olhares perdidos no infinito, diálogos truncados e poéticos, fragmentos de história quase aleatórios, loca??es improvisadas, um violino estridente para traduzir emo??es intensas. Certamente, o diretor n?o faz isso ingenuamente, ao contrário, brinca explicitamente com o tempo: efeitos cinematográficos datados, personagens que escrevem e mandam cartas, um sanatório que trata seus pacientes com eletrochoque, uma cidade que lembra a Paris de Doisneau, muitos objetos didaticamente vintage (as c?meras, por exemplo), tudo isso ao lado de algumas pistas que remetem à atualidade (incluindo o ano “2007”, que aparece de modo claro numa cena). Nada está ali ingenuamente, mas é difícil fazer tantas cita??es sem cair na paródia. Em termos de nostalgia, Garrel está para o cinema intelectualizado, como Tarantino está para o cinema popular. Mas Garrel tem a desvantagem de se levar muito a sério.Vi o filme no Espa?o Unibanco numa se??o especial para professores, deve entrar em cartaz em breve. Vale a pena assistir se as expectativas estiverem ajustadas. Pela fotografia, será uma bela experiência se for tomado como uma espécie de Roman Photo.Jan Saudek: preso por suas paix?es, nenhuma chance de resgate O documentário Jan Saudek (2007) é dirigido por Adolf Zika, um fotografo comercial que se aventurou no cinema. Para quem n?o se lembra, Saudek é um artista Tcheco, pioneiro e um dos grandes nomes daquilo que temos chamado de fotografia contempor?nea, com um trabalho inconfundível: retratos carregados de teatralidade, com temas que oscilam entre o erótico e o abjeto, às vezes com um tratamento artesanal que remete às fotografias pintadas do século XIX (algumas de suas imagens estavam na exposi??o “A inven??o de um mundo”, organizada pelo Eder Chiodetto no Itaú Cultural, em 2009).Escrevendo esse post, eu me perguntei: qual é a diferen?a entre as cita??es de Garrel ao cinema francês dos anos 60 e as de Saudek, à fotografia do século XIX? O primeiro me parece apenas saudosista, o segundo desenvolve uma estratégia muito firme a partir da liberdade que a arte contempor?nea lhe dá de tornar presentes tempos distintos.Esteticamente, o documentário n?o traz grandes inova??es, apenas lida de modo competente com a história e a personalidade marcante de Saudek. Num movimento contrário ao do filme de Garrel, Adolf Zika come?a tateante e, devagar, vai alcan?ando uma boa profundidade. No princípio, o diretor simula uma espontaneidade pouco convincente (por exemplo, quando finge chegar de surpresa à casa do fotógrafo, enquanto a gente sabe que as c?meras já est?o lá dentro). Ele também acredita rápido demais no personagem que Saudek constrói diante da c?mera: sobrevivente de um campo de concentra??o, artista excêntrico, sedutor incorrigível que perdeu as contas de quantas mulheres teve.Ao longo das filmagens, que inclui um mês de desapari??o de Saudek, eles come?am a construir uma intimidade mais sincera. O resultado disso é que o fotógrafo passa a ser desconstruído, enquanto o diretor passa a explicitar melhor as estratégias de seu documentário. Em algum momento, come?amos a ver um Saudek verdadeiramente complexo, sobrevivente n?o de uma guerra, mas de toda uma longa história de fracassos: a desastrosa política soviética na Tchecoslováquia, um mercado que lhe rendeu mais fama que dinheiro, e uma err?ncia afetiva que o conduziu à solid?o. Parece n?o ter nenhum contato com seu irm?o gêmeo Kaja Saudek, de quem era inseparável até os anos de juventude. N?o teve coragem de visitar sua filha na pris?o, mesmo que a defina como a mulher que gostaria que sobrevivesse, se só restasse uma no mundo. Sua atual namorada – com quem teve um bebê – parece participar menos de sua vida do que a memória de suas rela??es antigas. Nesse sentido, é muito perturbadora a presen?a no documentário da fotógrafa Sara Saudková, sua ex-namorada, atual empresária e suposta responsável por suas dificuldades financeiras, m?e de seus netos (ela come?ou um relacionamento com Samuel, filho de Saudek, enquanto ainda viviam juntos) e, um fantasma afetivo que permanece mais próximo do que parece. Assim vamos desarmando suas defesas e enxergando suas fragilidades, no mesmo ritmo em que compreendemos a for?a de seu trabalho.Jan Saudek, fotos feitas no por?o em que viveu entre 1970 e 77. Algumas dessas imagens aparecem como obras nos anos 80.O documentário já valeria pelas fotos e pela contextualiza??o de seu trabalho. Mesmo que soe um pouco encenado, é emocionante rever algumas loca??es, sobretudo o pequeno por?o em que permaneceu praticamente trancado, durante o período mais duro de domina??o soviética. Foi ali, num espa?o minúsculo e diante de uma janela sem paisagem, que ele “inventou um mundo” e produziu algumas das imagens fantásticas que conhecemos hoje. ? aí que entendemos que seu trabalho é também político.Saudek tem no filme mais de 70 anos, mas é ainda um homem em boa forma física e criativa. ? o que parece querer demonstrar na performance de um auto-retrato que produz junto a uma jovem modelo. Mas, por trás de seu corpo malhado e de seu reconhecimento, chegamos a uma figura bastante humanizada, sujeita a decep??es, fracassos e uma postura autocrítica às vezes dura quanto ao trabalho que hoje realiza.Ao final, Saudek volta a atuar para a c?mera, com situa??es e falas que parecem ter sido negoiadas. Mas, desta vez, com um nível de entrega surpreendente. Parece ser essa a voca??o de Saudek: tocar mais a profundamente a realidade quando assume a fic??o.Vi o filme numa cópia em DVD que passou pela minha m?o. N?o há previs?o de estréia no Brasil, mas é possível garimpá-lo por aí.Um ano sem Otto Stupakoff Dia 22 de abril fez um ano que Otto Stupakoff (1935 – 2009) nos deixou. Quem o conheceu sabe que era um homem culto, que dominava vários idiomas, um gentleman que articulava como ninguém esse seu saber com inteligência e perspicácia. Fiquei pensando como poderia prestar uma homenagem sem ser piegas e sem deixar de registrar sua ausência sentida. Com certeza, a mídia n?o faria men??o alguma a ele, como n?o fez, e muito menos se lembraria daquilo que já passou.Diante disso resolvi compartilhar e aqui registrar uma das nossas muitas conversas sobre arte, vida e influências. Ele sempre me disse que em seu trabalho, a principal referência foi a pintura de Balthasar Klossowski de Rola, ou melhor, Balthus (Paris, 1908 – Rossinière, 2001). Em diversas ocasi?es tentei fazer essas aproxima??es e confesso, em algumas delas constatei a influência e em outras n?o. Vi Balthus no Moma e no Metropolitan, em Nova York, e percebi semelhan?as e diferen?as, mas jamais refleti sobre isso. Só agora fica mais ou menos claro. Balthus criou várias situa??es visuais e algumas delas se tornaram as principais referências e est?o presentes parcialmente nas fotografias de Stupakoff.O crítico Robert Hughes, por ocasi?o de uma exposi??o retrospectiva de Balthus no Beaubourg, em Paris, e depois no Metropolitan, em 1984, registrou que ele criava “a superfície calma e a inocência envenenada”, querendo insinuar que sua pintura era conservadora, mas a temática instigante é que talvez fosse detonadora da potência de sua obra. De qualquer forma é interessante perceber como Stupakoff repetiu alguns gestos mais insinuantes e alguns movimentos que s?o congelados como espont?neos. Na verdade s?o estudos precisos e calcados no mestre. Vejam estas imagens. Estabele?am os possíveis confrontos.Otto Stupakoff e Balthus (Therese sonhando, 1937)Só agora, quando me deparo mais pontualmente com a obra de Balthus, é que percebo com mais clareza o vigor da cita??o. O mundo de Balthus estava longe dos movimentos artísticos síncronos com os quais conviveu, longe do surrealismo por exemplo, mas muito próximo de Freud e da psicanálise. Aparentemente, um paradoxo. Sim, mas o que seria da arte se n?o fossem essas descontinuidades que correm paralelas ao mundo que gira e produz um esfor?o coletivo, bem como muitos pequenos esfor?os individuais nos quais pulsam uma diferen?a. Assim é o trabalho de Balthus. Corre paralelo à arte que se produzia e se buscava nos anos 30 e 40.Outro aspecto presente na fotografia de Otto Stupakoff ?e também presente em Balthus é um aparente relaxamento da cena. Na verdade, esse aparente flagrante é de uma incrível teatralidade, cujo controle é absoluto, quase obsessivo. Stupakoff sabia muito bem como dirigir suas modelos e tirar delas o melhor momento para sua fotografia. Elas est?o quase sempre numa recorrente posi??o provocativa, no limite, entre o belo e o vulgar, expressando e despertando a libido do Outro. Na fotografia parece que tudo se harmoniza – o movimento, as pernas e os bra?os desconexos, o corpo que se contorce na representa??o. Um controle total naquilo que é aparentemente incontrolável, ou seja, a sensualidade que aflora na cena. Nesse sentido, as fotografias de Stupakoff se aproximam fortemente da pintura de Balthus e eu compreendo melhor o que ele queria me dizer.Ao mesmo tempo, s?o personagens solitários, imersos em silêncios, confinados em espa?os limitados, em que apenas tem import?ncia essa luminosidade que incide sobre os corpos e os movimentos que estes desenham, estejam sentados em cadeiras com seus bra?os e pernas desajeitados, sejam relaxados nas poltronas, enclausurados no espa?o do quadro fotográfico. Uma sensualidade fugaz que mais se parece com momentos de puro tédio. As imagens provocam nossa imagina??o porque somos capazes de empreender a cena seguinte insinuada pelo movimento, criando narrativas imaginárias. S?o como que fossem retratos da incompletude da própria vida que nos ati?am e nos for?am a prosseguir dando vida ao aparentemente inanimado. O que interessava a Otto Stupakoff era produzir uma fotografia que despertasse uma inquieta??o sutil e provocativa. E nisso ele se tornou um mestre e a melhor das referências para a fotografia brasileira contempor?nea.A retórica de um fotógrafo, as retóricas da imagem Meu primeiro álbum de fotografia foi feito por um fotógrafo itinerante de uma tal Cia. Fotográfica Euclydes, de Lins, interior de S?o Paulo. N?o havia c?mera em casa, mas a fotografia já tinha seu papel na constru??o da imagem de uma família e de uma inf?ncia feliz.Os tempos eram outros, uma periferia de S?o Paulo quase interioriorana, a casa simples da minha avó, ingredientes de uma inocência que n?o existe mais. Tocavam campainha e simplesmente abria-se a porta. Podia ser pesquisador, vendedor, evangélico, e logo a pessoa estava no sofá de casa. HYPERLINK "" Certo dia, era um fotógrafo que batia à porta. Perguntava se havia na casa alguém que pudesse servir de modelo para uma exposi??o num tal Sal?o Fotográfico da Crian?a. Minha avó, que cuidava de mim e de minha irm? enquanto minha m?e trabalhava, disse que dispunha ali dos dois exemplares mais lindos da espécie. ?Eu tinha uns três anos e minha irm?, uns cinco.Deve ter sido emocionante. Foto era algo que se fazia só nas férias e nos aniversários, quando algum amigo da família levava a c?mera, ou no Foto Moderna, melhor estúdio do bairro. Desta vez, minha avó n?o apenas acolheu o fotógrafo como participou da produ??o ajudando a escolher os objetos e loca??es. HYPERLINK "" Semanas depois, o sujeito retornou e explicou a injusti?a: infelizmente, as fotos n?o foram escolhidas para o Sal?o. “Mas as fotos ficaram t?o lindas…”.? Ele disse que as imagens iriam pro lixo, morreu de pena. Pelo pre?o de custo, só pra cobrir o filme e a revela??o, as fotos seriam nossas. O álbum era de presente.Dessa vez, minha m?e estava em casa. E o que minha avó tem de inocência, minha m?e tem de desconfian?a. Enquanto uma se derretia com as imagens, a outra partia pra cima do fotógrafo. Minha m?e n?o botou fé na história do Sal?o, agarrou o álbum e avisou que, dali, essas imagens n?o sairiam. Enxotou o fotógrafo sem pagar um tost?o.Imaginando minha m?e enfurecida, tenho pena do nosso colega de profiss?o. Vida dura essa de vender álbuns de porta em porta. E, mesmo a lorota do Sal?o… Já n?o se fazem golpes como antigamente. HYPERLINK "" Esse foi nosso primeiro álbum de fotografia que, no final das contas, minha m?e adorou. Mas até hoje ela n?o perdoa minha avó, que caprichou na produ??o, mas me deixou aparecer com uma bota ortopédica t?o esfolada e com a perna toda riscada de caneta.Vinte anos depois, eu virei fotógrafo. Fazia outro tipo de trabalho, mas a vida n?o era lá t?o mais fácil. Quantas vezes também eu precisei abusar da retórica pra conseguir me aproximar das coisas, fazer minhas fotos e vender as imagens. Depois, virei teórico, tentando entender como a fotografia participa intensamente das din?micas que definem nossos papéis e rela??es sociais.O retrato de Zidane Em época de copa do mundo, vale lembrar de um filme experimental sobre um jogador que se aposentou na última edi??o do evento: Zidane, um retrato do século XXI (Zidane, un portrait du 21e siècle, 2005).Dirigido por dois artistas com boa presen?a na agenda européia de arte contempor?nea, o escocês Douglas Gordon e o francês Philippe Parreno, o filme foi rodado durante a última partida de Zinedine Zidane pelo Real Madrid (em 2005, no estádio Santiago Bernabéu), com todas as c?meras focadas no jogador, independentemente do que acontece em campo. N?o é, portanto, um trabalho sobre futebol, mas sobre um ídolo. O áudio alterna entre o som direto captado do campo, comentários do narrador da TV e a música da banda escocesa Mogwai. Em alguns momentos, legendas trazem frases do jogador:“Quando crian?a, um comentário se passava em minha cabe?a enquanto eu jogava. N?o era propriamente a minha voz. Era a voz de Pierre Cangioni, um ?ncora da televis?o dos anos 1970. Toda vez que ouvia sua voz, eu corria para a TV, o mais perto que eu podia, pelo tempo que eu conseguia. N?o eram suas palavras que eram t?o importantes, mas o tom, o sotaque, a atmosfera, era tudo…”Apesar de sua estratégia direta, o filme n?o é simplista, nem na técnica de capta??o (17 c?meras super 35 mm sincronizadas e um som direto de incrível qualidade), nem no diálogo que reivindica com a tradi??o das artes plásticas. “Retrato do século XXI” n?o diz respeito apenas à data??o do trabalho, mas à tentativa de verificar para onde se deslocam nossos objetos de culto, condi??o que permitiria, ainda hoje, a realiza??o dos potenciais históricos do retrato.Pelo mundo, essa obra fez sucesso entre os aficionados por cinema experimental e vídeo-arte. Mas é o fascínio do público por Zidane e pelo Real Madrid, respectivamente na Fran?a e Espanha, que permite melhor enxergar essa tradi??o com a qual os diretores dialogam. O modo como se concentram nas express?es e na gestualidade do jogador reivindica para ele uma aura semelhante àquela dos retratos religiosos ou históricos, que mostravam personagens divinos ou heróicos para um público devoto de seus feitos. Por vezes, lembra as esculturas dos jovens (kouros), que n?o escondiam o fascínio dos antigos gregos pelas aptid?es físicas do corpo masculino. E, ainda, o desejo de enquadrar e deter na memória a express?o de Zidane em plena a??o remete a uma maneira de lidar com o tempo que é própria da fotografia.A idéia n?o é totalmente inédita. Os diretores assumem a inspira??o em uma obra mais antiga: Futebol como nunca antes (Fu?ball wie noch nie), rodado em 16 mm, em 1970, pelo diretor alem?o Hellmuth Costard, também centrado num único jogador, George Best, numa partida pelo time inglês do Manchester United.Vale também lembrar de Garrincha, alegria de um povo, realizado em 1962 por Joaquim Pedro, filme que os diretores de Zidane conheceram posteriormente.Zidane, un portrait du 21e siècle foi uma dica dada alguns anos atrás pelo amigo Fernando Oliva. Lan?ado mais recentemente no Brasil em DVD, passou totalmente despercebido. Pode ser encontrado por R$ 12,90 em lojas na internet.O que é fotográfico na fotografia? [Publicado no Sabático, do jornal O Estado de S?o Paulo, em 17 de abril de 2010] HYPERLINK "" Estética da Fotografia, de Fran?ois Soulages.Mesmo que tardia, a publica??o do livro Estética da Fotografia – Perda e Permanência (1998), de Fran?ois Soulages (Senac, 384 págs., R$ 75,00, tradu??o de Iraci D. Poleti e Regina Salgado Campos), é contribui??o extraordinária para aqueles que se dedicam à pesquisa e à reflex?o da fotografia no Brasil. O principal objetivo do autor, foi, independentemente do gênero – retrato, paisagem, fotografia de reportagem, nu, entre outros –, dar relev?ncia tanto ao processo de constru??o da imagem fotográfica quanto à sua recep??o.Fran?ois Soulages é professor da Universidade Paris VIII e do Instituto Nacional de História da Arte, em Paris, e autor de vários livros sobre arte contempor?nea e, claro, fotografia. Neste trabalho, ele elabora uma surpreendente análise crítica, cuja inten??o final é concretizar uma leitura da fotografia a partir dos vestígios encontrados na imagem. Isto lhe dá a oportunidade de trazer para o seu campo de reflex?o conceitos e aproxima??es centrados n?o somente na estética, mas principalmente, na semiologia, na filosofia e na psicanálise. A associa??o entre diferentes fotógrafos, filósofos e psicanalistas lhe permite estabelecer novas rela??es entre fazer e pensar o espa?o, o tempo e o real.Considerando que a fotografia é o seu foco de preocupa??o, Soulages defende que fotos s?o objetos enigmáticos, pois habitam nossa imagina??o e nosso imaginário. Se a fotografia for assumida como um “vestígio” para percep??o, ent?o cabe ao receptor elaborar as conex?es entre o passado e o presente, o antes e o depois, o efêmero e o permanente.O ensaísta enfatiza a rela??o entre o objeto fotografado e o real, pois nem sempre a foto promove esse tipo de aproxima??o. Imbricados, real, objeto e foto suscitam os problemas essenciais para uma estética fotográfica e revelam que a arte da fotografia é mais ampla e menos conhecida do que se pensa.A discuss?o em torno da idéia de que a fotografia seja vestígio, tra?o, nasce das análises de Soulages a respeito do trabalho da crítica de arte Rosalind Krauss, desdobradas nas obras de Roland Barthes, Phillipe Dubois e Jean-Marie Schaeffer. Provocado sobre esse tema em entrevista concedida ao Estado, Soulages comentou: “O trabalho de Rosalind Krauss é interessante; renovou a análise da fotografia. Mas hoje n?o devemos reduzir toda a teoria da fotografia à teoria do tra?o e do vestígio.”A melhor contribui??o da abordagem teórica de Soulages talvez seja o conceito de fotograficidade, que designa “a propriedade abstrata que faz a singularidade do fato fotográfico”. Traduzindo: aquilo que indica o que é fotográfico na fotografia. Além disso, a fotograficidade, explica ele, se caracteriza por ser “a surpreendente articula??o do irreversível e do inacabável; entendemos o irreversível como o negativo obtido a partir do ato fotográfico, que pressup?e interatividade entre o fotógrafo e o objeto e em seguida as opera??es químicas necessárias para sua obten??o; e o inacabável como a possibilidade de se conseguir diferentes (e numerosas) cópias a partir deste negativo, também considerando a sequência química de diferentes etapas de sua produ??o”.O tempo. ? nesse sentido que a foto, para Soulages pode ser definida como a articula??o entre a perda e a permanência. O que se perde tem a ver com as circunst?ncias que envolvem o ato fotográfico, pois o fotógrafo enquadra e registra uma possibilidade entre muitas, interrompe um fluxo de tempo entre muitos, e assim sucessivamente. O que permanece é o que fica gravado na matriz e na cópia. Apesar de o livro ser do fim dos anos 90 (o que dizer que ao escrever, Soulages se referia à fotografia fotoquímica), ele crê ainda ser possível compreendê-la do mesmo modo contemporaneamente. “Quando penso em fotografia, independentemente de ser química ou digital, estou refletindo sobre o tempo; n?o o tempo fotográfico, mas o tempo filosófico e psicanalítico. N?o é o fotógrafo que é marcado pela perda e pela permanência; é a fotografia que permite você viver essa rela??o.” Para o ensaísta, a capacidade da foto de ati?ar o inconsciente acaba por transformá-la em obra aberta. HYPERLINK "" Jean-Marc Lalier, La famille des Hybrides, 1984.As fotos que precedem cada capítulo exigem aten??o especial. Por exemplo, o capítulo 4 traz uma foto de Jean-Marc Lalier, La famille des Hybrides (1984), reproduzida ao lado. Um olhar apressado sugere o retrato de duas pessoas, mas, ao mergulhar na imagem, o leitor descobrirá procedimentos levados a cabo na constru??o da foto que n?o est?o explícitos no resultado apresentado.Soulages insiste que devemos enfrentar o desafio e buscar entender o que caracteriza a fotografia. No caso da foto de Lalier, sua pesquisa é conceitual, pois cria uma fic??o em foto – e depois fotografa a fabrica??o dessa proposta ficcional. Olhar para essa imagem convida a tentar entender o que é o objeto, o que é o real fotografado e sua representa??o. Olhá-la é, também, perceber que a foto n?o tem mais rela??o imediata com a realidade, já que resulta da rela??o de várias realidades. Ainda assim, a obra fotográfica remete sempre ao ato fotográfico e tudo que o cerca, mas nessa obra específica, os efeitos visíveis, nem sempre apreensíveis, nos oferecem a possibilidade de compreender a obra em seu processo de constru??o. No livro, Soulages busca a reflex?o n?o só no processo criativo de constru??o da imagem, mas também em sua conex?o com o real, questionando essa conex?o e valorizando os processos de recep??o. Como se nos lembrasse que o sentido da fotografia está, em todos os sentidos, no olhar.Vou ao cinema, n?o escapo da fotografia Tenho falado muito sobre cinema aqui no blog. Vejo filmes sem muita pretens?o mas, onde houver uma brecha, acabo buscando a fotografia. E muitas vezes encontro.Na semana passada, fui ver “Viajo porque preciso, volto porque te amo” sem ter a menor idéia do que se tratava. Fui por um motivo bom: gosto dos diretores Karin Ainouz, de “Madame Sat?” e “O céu de Suely”, e Marcelo Gomes, de “Cinema, Aspirina e Urubus”. E um motivo n?o t?o bom: num cinema de shopping, era a chance de encontrar uma sala mais tranqüila (n?o precisava tanto: exatas dez pessoas).O pretexto é a história de um geólogo que, ainda muito preso ao amor por uma mulher, parte sozinho numa viagem de trabalho pelas terras inóspitas do sert?o brasileiro. O que vemos é uma colagem de fragmentos de paisagens e registros quase etnográficos, boa parte deles filmados em super 8 (ou tratados para assim parecer), amarrados pela voz do personagem que conversa consigo mesmo sobre a solid?o e o abandono. Numa espécie de roadmovie, os fins-de-mundo por onde ele passa servem como metáfora desses sentimentos.O resultado pode ser frustrante pra quem busca um filme, mas é de encher os olhos pra quem gosta de imagens, numa perspectiva mais ampla. Um olhar formado pela fotografia tem, por exemplo, uma boa disposi??o para deter-se sobre imagens que perduram longamente, assim como para dar grandes saltos, coisa que essa obra exige. Das poucas pessoas na sala, algumas ficavam impacientes quando a história n?o fluia com a linearidade esperada. Pra mim, bastaria o pensamento construído pelas imagens. Aliás, era a narrativa que às vezes sobrava, como um esfor?o para arrancar uma trama de algo que nasceu despretensioso.Mas o texto é cuidadoso. Como as imagens, as falas s?o uma cole??o de pensamentos fragmentários. E mesmo quando o filme assume um ar documental, sabe evitar juízos de valor que, no cinema nacional, quase sempre resulta num tom de denúncia ou de deslumbramento.A fotografia está lá, muito presente. Em algumas passagens, a história se constrói efetivamente a partir de imagens estáticas. Em outras tantas, a cena é t?o imóvel e pregnante que o olhar se assume facilmente como diante uma fotografia. E alguns movimentos s?o t?o sutis e delicados, que parecem “fotografias que respiram” (emprestando o termo de HYPERLINK "" \t "_blank" Gustavo Pellizzon).Lembrei logo de alguns pioneiros do que exploram a fotografia no cinema. Lembrei de Marcelo Tassara, principalmente de Abeladormecida, pelo sotaque da fala e das imagens (no caso de Tassara, uma única imagem, com texto adaptado de James Joyce), pela forma como a c?mera passeia sobre uma cena estática, e pelo modo como o título surge: “A Bela Adormecida” e “Viajo porque preciso, volto porque te amo” s?o frases que a c?mera descobre em algum canto do filme (para conhecer esse cineasta, vale ler o artigo de HYPERLINK "" \t "_blank" ?rico Elias, na Studium). Claro, lembrei também de HYPERLINK "" \t "_blank" Chris Marker, pelo despojamento – ou falta de purismo – técnico, pela mescla de documentário e fic??o, pela forma como as imagens e as palavras se descolam e se reencontram, pelo modo como um pensamento se articula na apropria??o de imagens desconexas.Foi uma boa surpresa sair de casa sem expectativas e encontrar um filme como esse. ? um trabalho que poderia estar numa galeria ou numa mostra de vídeo. Mas seria mais óbvio, porque já encontraria olhares bem adaptados. Vale o desafio de colocá-lo no cinema, de formar um público lentamente, mesmo que seja de dez em dez pessoas.Futebol e fotografia Em semana de Copa do Mundo é inevitável falar de futebol. Há algumas semanas, fiz um comentário sobre HYPERLINK "" \t "_blank" Teatro e Fotografia, quando defendi que o fotógrafo tem uma participa??o diminuta na constru??o da imagem fotográfica teatral, já que há a dire??o de cena, a ilumina??o, a express?o corporal, entre outras variáveis que n?o s?o de seu controle e responsabilidade. No caso de um jogo de futebol, em que supostamente predomina a imprevisibilidade, a aten??o do fotógrafo é fundamental para o registro do instante decisivo e efêmero da partida.Afora o estilo dos técnicos e dos jogadores, nada num jogo de futebol pode ser previsto. ? exatamente isso que move inúmeros profissionais que se dedicam a flagrar os momentos mais fascinantes de uma partida – exatamente aqueles que mudam o rumo da história do jogo. E n?o precisa ser necessariamente o momento do gol. Aqui entra uma quest?o interessante, pois os jogadores sabem de antem?o que est?o sendo registrados em vídeo e fotografia. Será que, diante disso, n?o poderíamos supor alguma previsibilidade gestual?Roland Barthes, em seu clássico A C?mara Clara defende que “a partir do momento em que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: preparo-me para a pose, fabrico instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem”. No caso de um jogo de futebol é quase impossível prever ou pré-visualizar algum lance, sendo assim, como poderia o jogador “fabricar” alguma pose ou anunciar algum gesto? HYPERLINK "" Bicicleta de Le?nidas da Silva, autoria n?o identificadaPor exemplo, esta fotografia ao lado (infelizmente n?o encontrei a autoria) teria sido a primeira imagem flagrada do consagrado lance criativo – uma bicicleta – de Le?nidas da Silva, o “Diamante Negro” do futebol brasileiro, no Estádio do Pacaembu, em 1942. Seria inimaginável alguma combina??o prévia entre o jogador e o fotógrafo. Na realidade, ao olharmos admirados para esta fotografia, o que devemos valorizar é a perspicácia do fotógrafo que atento ao jogo documentou um lance até ent?o inédito no futebol mundial. O jogador de costas para o gol tenta surpreender o goleiro com um movimento imprevisível. O que vemos na fotografia é o instante detido no inexorável fluxo de tempo. E a imagem consagra o lance e o jogador. HYPERLINK "é-bicicleta1.jpg" Alberto Ferreira, bicicleta de PeléAnos mais tarde, Pelé repete a cena com uma precis?o milimétrica. ? uma bicicleta mais elaborada, do mais puro virtuosismo, mas t?o surpreendente como a do Le?nidas. Esta fotografia é de autoria de Alberto Ferreira, que trabalhou por 30 anos no Jornal do Brasil, sendo por 25 anos editor de fotografia. Essa imagem foi realizada no Maracan?, num jogo entre Brasil e Bélgica, em 1965. A precis?o que podemos observar na fotografia, n?o é a mesma das informa??es disponíveis. Mas n?o fosse esta fotografia, como poderíamos descrever esse movimento, esse ?ngulo reto entre a perna direita e o corpo paralelo ao gramado, o zagueiro at?nito e ao fundo a arquibancada do estádio? Palavras insuficientes para a grandeza da imagem.O fotógrafo coloca-se no campo de futebol e, quase sempre, acompanha o jogo através da sua teleobjetiva, registrando os momentos que acredita ser detonadores de percep??es singulares. No livro Máquina de Esperar – origem e estética da fotografia moderna, Mauricio Lissovsky prop?e uma ampla reflex?o sobre a quest?o do tempo no instant?neo fotográfico e traz uma contribui??o diferenciada para a análise da fotografia. Vale a pena conferir.Sabemos que a representa??o fotográfica associa-se ao tempo. Quando revisitamos algumas fotografias da história do futebol é perceptível o controle excessivo do tempo da cena, claro, sem descaracterizar a beleza do registro. Sabemos que as c?meras mais antigas eram desprovidas de foco automático e de dispositivos técnicos que pudessem garantir o documento fotográfico, daí a necessidade de estar atento e manter o rígido domínio das variáveis. Barthes n?o apreciava esses fotógrafos justamente pelo excesso de controle. Mas o que seria do futebol caso n?o tivéssemos esses fotógrafos que acompanham atentamente a bola e o movimento dos jogadores a fim de documentar para a posteridade o momento extático (de êxtase) de um jogo?Para lembrar alguns dos grandes nomes da fotografia futebolística, citamos Domício Pinheiro (1922-1998) que acompanhou Pelé em todos os seus grandes momentos; Reginaldo Manente, repórter-fotográfico do Jornal da Tarde que publicou em 1982 o menino chorando após o Brasil perder a Copa da Espanha; o saudoso fotógrafo gaúcho J. B. Scalco (1951-1983) em suas memoráveis fotografias publicadas na revista Placar na década de setenta; e mais recentemente temos Ricardo Correa e Alexandre Battibugli (lembra-se da fotografia do campo de futebol com uma árvore no meio dele?), ambos da editora Abril. HYPERLINK "é-Medeiros-19501.jpg" José Medeiros, Maracan?, 1950Mas, dentre todas as fotografias de futebol, a que mais me comove é a de José Medeiros, realizada no Maracan?, na Copa de 1950, na final entre o Brasil e o Uruguai, em que perdemos o título. José Medeiros disse-me sobre esta fotografia numa entrevista feita na cidade de Ouro Preto, em 1987, por ocasi?o da VI Semana Nacional de Fotografia: “quando encerrou o jogo, todos buscavam fotografar o desespero dos jogadores brasileiros; ent?o resolvi inverter a prioridade e fotografar os fotógrafos que buscavam registrar as mesmas cenas”. Ao inverter o centro de aten??o naquele momento, Medeiros demonstrou sensibilidade e colocou em evidência os profissionais preocupados em registrar o desespero dos nossos jogadores derrotados, mas também emocionados demais para pensar numa imagem que n?o fosse o senso comum.Hoje, mesmo com as c?meras cada vez mais automatizadas e a grava??o do jogo em diferentes mídias, a fotografia continua a atrair os olhares de todo o mundo. ? ela quem consagra o momento espetacular, que exalta o gesto fenomenal, que inspira e entusiasma os amadores, que traduz a emo??o do lance e dá autenticidade ao instante evanescente. Nossa expectativa é que nesta edi??o da Copa do Mundo de Futebol, na ?frica do Sul, novas fotografias sejam incorporadas à história. Vamos aguardar.Direito autoral: propriedade hereditária x cultura Acompanhamos nas últimas semanas o HYPERLINK "" \t "_blank" debate em torno das restri??es para exposi??o e publica??o de obras de artistas importantes como Volpi, Lygia Clark e Hélio Oiticica, impostas por seus herdeiros. Nos bastidores, descobrimos ainda que as autoriza??es, quando dadas, podem incluir condi??es a respeito dos textos e debates que discutem os artistas.Vale lembrar também de restri??es que institui??es culturais privadas imp?em à pesquisa de seus acervos, mesmo quando s?o adquiridos por meio de renúncia fiscal e, portanto, com dinheiro público.Esbarrei em algo parecido quando tentei publicar minha tese de doutorado. Cheguei a assinar um contrato com a Hucitec, mas empaquei exatamente nas autoriza??es para publica??o das imagens. Depois de uma longa pesquisa, foram 16 cartas enviadas a artistas e institui??es de vários países, explicando que se tratava de um trabalho acadêmico, cuja publica??o me renderia apenas um percentual em exemplares. Os dois únicos artistas vivos, o brasileiro Carlos Fadon e o inglês Harold Cohen, responderam diretamente autorizando a publica??o. Os representantes de artistas falecidos me enviaram tabelas com pre?os que variavam entre US$ 50 e US$ 700. Conhe?o uma dezena de episódios semelhantes que ocorreram com outros pesquisadores.Na prática, vemos que o direito autoral protege de modo precário os artistas que est?o batalhando o dia a dia em seus mercados, e vira um dogma quando se está diante de uma grande institui??o ou de um nome consagrado.O direito autoral n?o é em si um valor, é uma espécie de mal necessário. O que ele regula n?o é a natureza da produ??o intelectual e estética, mas os efeitos colaterais gerados pelo esfor?o de encaixá-la num lugar que n?o lhe é o mais confortável: o da coisa, o da propriedade privada. N?o se trata de moralismo. Nada mais digno que um artista sobreviver e lucrar com sua produ??o. Também n?o é pecado haver um mercado para a arte. Mas o direito autoral n?o é a ferramenta criada para socorrer os artistas em suas necessidades. Ele é a própria imposi??o de uma existência jurídica sobre o objeto estético, inevitável no mundo moderno, mas que pode sim resultar em algumas contradi??es.? fundamental perceber que a obra de arte n?o é um bem como outro qualquer. Se você construir um predinho, n?o parece natural que, depois da sua morte, seus filhos mere?am receber o aluguel pelo uso dessa propriedade? Agora, se você n?o constrói prédios, mas faz arte, n?o é a mesma coisa? ? preciso ter clareza sobre os limites de uma compara??o com essa. Por exemplo: como negócio, pode ser interessante e legítimo que os herdeiros reformem, modifiquem ou mesmo derrubem o imóvel. A propriedade n?o é quest?o absoluta no direito autoral, e a lei já tenta fazer uma distin??o. Ela fala num “direito patrimonial” que diz respeito à posse do objeto propriamente dita. Esse direito pode ser transferido, vendido, doado, herdado. Mas, mesmo que de modo vago, fala também um “direito moral”, irrenunciável, dentre eles, a obriga??o de garantir a integridade da obra.Ainda falta alguma coisa. Ao lado de um direito patrimonial negociável e um outro moral inalienável, deveria existir também um direito cultural, inapropriável pelos herdeiros, que é o direito de ter a obra submetida à exposi??o, à análise, ao debate, à pesquisa, à crítica, aquilo de que obra se alimentou para se tornar valiosa e sem o que ela teria se tornado uma matéria morta, sem sentido.Se você encontrar ouro no seu quintal, talvez você tenha obriga??es fiscais a cumprir. Mas pode decidir n?o fazer alarde sobre sua nova riqueza, que se valoriza enquanto permanece escondida, secreta, trancada num cofre. Isso porque o valor simbólico de um recurso natural, assim como das a??es de uma empresa ou de um terreno é algo genérico, abstrato, que se mede pelo peso, pelo lote, pelo metro quadrado.Quando você descobre que tem algum talento artístico, você n?o o esconde, você o expressa. Porque uma obra de arte n?o é apenas matéria, mas é também um sentido singular que apenas se realiza diante de um olhar, de um corpo sensível, de uma consciência. Nesse mesmo contexto moderno, é em sua exposi??o ou circula??o como objeto cultural que uma obra de arte poderá se tornar também um patrim?nio valioso. Por isso, é uma grande contradi??o renegar o interesse cultural quando foi exatamente em fun??o dele que algum interesse mercantil foi constituído. Se é de uma experiência coletiva que esse objeto se alimenta, ela n?o deixa de pertencer também à coletividade.Existe hoje uma HYPERLINK "" \t "_blank" press?o para a reformula??o da lei do direito autoral, que convida ainda a pensar os potenciais t?o promissores quanto assustadores das novas tecnologias. Mas é importante que o assunto seja tratado no plano da política cultural, n?o apenas do direito civil. As raz?es e din?micas da arte s?o complexas demais para serem debatidas apenas na esfera jurídica. Como patrim?nio, aquilo que um artista deixa é importante demais para ser hereditário.Desorienta??es moment?neas ou estranhas serenidades Antonio Saggese, Pittoresco.Na contemporaneidade, quando tudo parece conhecido e banalizado, o fotógrafo A. Saggese prop?e uma nova reflex?o sobre a imagem fotográfica. Ao contrário dos seus trabalhos anteriores, quando a discuss?o era sobre uma fotografia tecnicamente precisa e exageradamente perfeita, exigência de sua vis?o binocular, imperfeita, agora ele trabalha a partir de uma imagem digital gravada na memória da c?mera. Isto significa que o registro n?o tem mais o compromisso com o referente.Saggese especula sobre a possibilidade da imagem representar mais do que nela está registrado. Relaciona intencionalmente natureza e beleza para evidenciar que a primeira continua criando formas extravagantes que ainda nos surpreendem pela espetaculariza??o do belo. Suas fotografias s?o singelas, algumas comoventes, que perturbam exatamente por serem óbvias demais. Mas afinal o que vem a ser esta provoca??o?A nova série, produzida nos últimos três anos, denominada Pitoresco trabalha exatamente nesta brecha desprotegida entre as varia??es do imaginativo e do fantástico. A própria denomina??o do conjunto já é provocativa, ou seja, uma espécie de sutileza crítica a fim de mostrar que o trabalho foi criado para ati?ar os questionamentos e as dúvidas, e n?o para cristalizar conceitos. Afinal, a idéia primeira do Pitoresco nasce no movimento rom?ntico, final do século XVIII (Ver Ensaios sobre o Pitoresco, de Uvedale Price, de 1795; Um inquérito filosófico sobre as origens das nossas idéias do sublime e do belo, de Edmund Burke, de 1757).Richard Payne Knight (1750 – 1827, autor de Principles of Taste, de 1805) defende que o Pitoresco está baseado em valores de luz e cor; isto equivalia a uma antecipa??o teórica da dissolu??o da matéria temática concreta em puros efeitos coloristas, que seriam colocados em prática de forma excepcional por pintores ingleses como William Turner (1775 – 1851) e John Constable (1776 – 1837). Já Edmund Burke (1729 – 1797) entende o termo Pitoresco como essencial para a compreens?o daquele momento, pois considera a paisagem como a “arena do sublime” e a natureza selvagem e indomável como o “palco para ocorrências emocionantes”.Essa denomina??o surgiu com o amadurecimento da idéia inicial e as diversas discuss?es que Saggese teve comigo e com vários outros interlocutores. Num primeiro momento o conjunto de fotografias denominava-se Natureza e Cultura, e buscava n?o só relacionar os conceitos como também entender o próprio processo de trabalho. Ele constatou que as imagens técnicas de natureza produzida nas últimas décadas n?o trazem mais o mistério nem a fascina??o que tanto perturbavam os artistas e os escritores.Nesse sentido, seu trabalho foi concebido na dire??o oposta, ou seja, criar imagens que recuperasse a for?a do espanto provocado pelo registro da natureza. Ele aprofundou a excitante experiência de olhar e ver. Ver e registrar. Dar existência perpétua a algo efêmero através de uma fotografia que capta esse universo indistinto em que luz e sombra n?o tem limites definidos.Antonio Saggese, PittorescoA aten??o de Saggese está voltada para as águas e pedras, para os céus e para as árvores. Para ele, a fotografia torna-se a imagem mais adequada para apreciar esta natureza ‘selvagem’ em seu estado bruto, pois há uma penetrante intensidade e transitoriedade naquilo que é registrado. Um mundo de sonhos e devaneios que emerge da misteriosa luminosidade da qual ele traduz com o máximo aproveitamento. Essa natureza flagrada em seu esplendor vigoroso e caótico permite agora este intrigante e harm?nico conjunto que provoca uma estranha serenidade.Nessa ‘primitiva’ atmosfera encontrada por Saggese, em diferentes tempos e em diferentes lugares os volumes s?o envoltos por suaves penumbras. A brancura ofuscante das nuvens ou das espumas das águas turbulentas que explodem nas pedras cria efeitos mágicos de luz, equilíbrios de tons e cores, texturas difusas, desintegra??o das formas. Uma espécie de apari??o instant?nea que gravadas tecnicamente na matriz digital, para análise e tratamento posterior denotam a incessante experimenta??o do artista.As fotografias, enquadramentos e registros dentre muitas possibilidades, interrompem o fluxo temporal. A inten??o do artista foi retirar todas as referências possíveis de lugar para permitir que a imagem fosse soberana. Os fluxos de águas, o movimento, as for?as que atuam constantemente no cotidiano, as puls?es naturais, tudo registrado para que a imagem traga a verdadeira beleza que se revela ao acaso. Saggese quer oferecer para o espectador a possibilidade de estender o visível perceptível para o visível transformado, ou seja, o que ficou gravado na matriz e posteriormente tornado visível novamente, é o registro da a??o espont?nea da natureza.As imagens impressas nos transportam para outra dimens?o do tempo. N?o é fácil deixar de interagir, pois elas se tornaram concep??es visuais poéticas que remetem invariavelmente à nostalgia do passado. Mas temos que considerar que o artista procurou se posicionar num local específico, e atribuir import?ncia ao seu ponto de vista para criar a dist?ncia adequada em rela??o ao objeto e harmonizar a escala. Essa constru??o visual permite que a fotografia gravada na c?mera seja singular exatamente pela sua literalidade descritiva.Saggese também desenvolveu na pós-produ??o uma meticulosa pesquisa para poder dar à impress?o das imagens um acabamento que a aproximasse do registro visível da tela luminosa. E durante o processo levantou inúmeras quest?es. Uma delas, parte da idéia de que a impressora pinta, pois é uma espécie de aerógrafo computadorizado. Diante disso, o artista questiona: o resultado é uma fotografia ou uma pintura?Outra quest?o importante discutida pelo artista é sua compreens?o da fotografia digital como o império do artifício. N?o à idéia de artifício enquanto processo artesanal; mas artifício como um recurso engenhoso, uma artimanha. No caso da fotografia digital, o registro de luz e sombra é eletronicamente traduzido em código (0/1). A consequência é que cada pixel individual pode ser transformado pela simples altera??o do código. E as eventuais altera??es n?o deixam rastros na imagem final. Portanto, ao vermos um ensaio como este, produzido digitalmente, n?o sabemos quantificar o quanto de interven??o foi necessário. E se isso realmente acontece, o que pode significar?O fim da fotografia documental, aquela associada à idéia de verdade, n?o nos permite concluir que toda a produ??o contempor?nea é falsa e fantasiosa. Roland Barthes defende que toda fotografia está colada no seu referente (A C?mara Clara, 1981). Claro está que os vários teóricos que defendem a indexicalidade da fotografia, diante da nova produ??o digital, há de se questionar. Afinal, parte significativa da produ??o contempor?nea é digital e isso implica em tratamento de imagem e visualidades transformadas. Nesta série Pitoresco o referente, segundo Saggese, deixa de ser o mundo visível, o real existente, e passa a ser as gravuras japonesas, a obra do artista venezuelano Armando Reverón, os céus de Hercule Florence, as nuvens de Alfred Stieglitz na série Equivalentes, e tudo o que essa temática detona em seu repertório imagético.Saggese, por seu conhecimento técnico na fotografia fotoquímica e na digital, por sua reflex?o constante sobre imagem e seus desdobramentos, dá relev?ncia a essas quest?es. Mas tem consciência que como artista quer aprofundar a discuss?o da quest?o cultural da fotografia e neste trabalho em particular teve a clara inten??o de ir além do assunto ao desterritorializar a imagem. Ele buscou um enquadramento que n?o nos permite identificar com clareza a linha do horizonte. Estamos à mercê de imagens que invadem nossa percep??o e nos deixa perplexos, desorientados momentaneamente.A fotografia de Saggese, sintonizada com a produ??o contempor?nea e neopictorialista, produz visualidades singulares, claridade e transparência, opacidades e riqueza de detalhes, aparente neutralidade e altera??es tonais, texturas difusas e luz, cor, profundidade. E também provoca uma série de estranhamentos que instiga nossa compreens?o de divino na natureza. Fotografias que foram concebidas para exaltar o extraordinário no cotidiano banal, só para provar que tornar visível é muitas vezes provocar a vertigem necessária para conferir beleza à realidade imediata.A exposi??o Pittoresco, de Antonio Saggese está no Instituto Tomie Ohtake, de 15 de junho a 25 de julho – de ter?a a domingo, das 11 às 20 horas. Este texto integra o catálogo da exposi??o.Sofrimento em slow motion: a plasticidade das faltas no futebol HYPERLINK "" Daniel Alves, Brasil x Costa do Marfim. Foto de Gabriel Bouys. AFP/Getty Images.Nesta copa, me chamou a aten??o a performance dos jogadores que sofrem falta. S?o incríveis as quedas: com a potência de uma corrida, um pequeno toque do adversário pode gerar um salto acrobático, uma cambalhota no ar, ou um v?o com bra?os e pernas projetados, terminando com uma sequência incrível de rolamentos no ch?o. Claro, também o grito e a express?o de dor no rosto e, por algum tempo, a contor??o ou a agita??o desesperada. Talvez tenha sido sempre assim no futebol, a diferen?a está na nas tecnologias disponíveis, nas nossas TVs maiores, na qualidade da transmiss?o, na quantidade e na posi??o das c?meras, no super slow motion, e nas c?meras fotográficas com super fast burst, que registram num único segundo, e em alta resolu??o, mais imagens que uma c?mera de vídeo, de modo que o detalhe decisivo sempre está lá.Imagino que essas performances envolvam duas coisas complementares, o sofrimento em si e a comunica??o do sofrimento. N?o se trata da quest?o do fingimento, da simula??o, situa??es que as c?meras também flagram, e que se tornam particularmente c?micas ( HYPERLINK "" \t "_blank" o Youtube tem vídeos muito divertidos sobre isso). Vamos nos deter sobre os casos em que a falta existiu, em que o movimento é ao mesmo tempo verdadeiro e plástico, de modo que o atleta se torna um poeta: “chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”.O que me chamou a aten??o para essa performance da comunica??o é alguma coisa bastante explícita: a maneira como as regras ainda s?o lembradas em meio à irracionalidade da dor, quando o jogador se contorce e grita, ao mesmo tempo em que acena freneticamente com a m?o estendida, num gesto que pede claramente a aten??o, seja do juiz, dos colegas, talvez das c?meras. Ele n?o esquece que seu sofrimento tem uma fun??o no jogo, pode explicar o gol perdido, e render uma nova chance de gol, pode garantir a puni??o do adversário, serve para gastar o tempo e segurar um resultado. Como há tempos as c?meras fazem parte do jogo, elas est?o ali para garantir a ades?o das massas a essas pequenas causas.Na vida, deve existir todo tipo de sofrimento, talvez seja um tra?o de personalidade, há os que sofrem de modo mais contido, os que xingam (mesmo os seres inanimados, como a quina do móvel), há os que sofrem escandalosamente. Raramente vemos no futebol o sofrimento silencioso, retraído, aquele que, por uma resposta instintiva à dor, contrai e imobiliza todos os músculos, cessa toda a??o.Susan Sontag, que perguntava sobre como nos portamos “diante da dor dos outros” (ensaio de 2003), percebeu também que a presen?a das c?meras nas situa??es de conflito e sofrimento agem sobre o fato. A quest?o se inverte: “como a dor dos outros se manifesta diante do nosso olhar?”, pergunta válida n?o apenas para as guerras, para o sofrimento coletivo que se desdobra em causa política, mas também para situa??es mais efêmeras. ? nítido o fato de que nossos rituais íntimos de sofrimento também assimilam as estruturas de comunica??o e a constante presen?a das c?meras.Uma m?e sofre honestamente a perda de seu filho. Ela chora como tem que ser. Precisa ser amparada para se manter em pé. Uma c?mera de TV chega para mostrar de perto um sentimento universal que já compreendíamos de longe. O repórter pergunta com voz solene aquilo que já sabemos: como você se sente? O sofrimento irracional n?o impede a mulher de lembrar o que é a TV, ela sabe que tem um papel a cumprir, sabe que n?o basta sentir a dor, deve comunicar a dor. Ali ela encontra energia para um choro mais vigoroso, um grito angustiado, um pedido desesperado de justi?a.Essas situa??es inevitavelmente levam à pergunta: o sofrimento é real? Ou é uma encena??o (um espetáculo, um simulacro)? Creio que as duas coisas ao mesmo tempo. ? fundamental discutir os limites dessa “existência como imagem”, mas a polariza??o entre realidade e representa??o é sempre limitante. Somos seres simbólicos, pertencer a uma sociedade é representar papéis. Se n?o sabemos viver de outro modo, se isso é da “natureza humana”, somos verdadeiramente os papéis que cumprimos. Sabemos que faz parte disso um conjunto de rituais consolidados que chamamos de cultura: a maneira como nos vestimos, como nos portamos, com quem andamos, como nos organizamos em coletividade, os lugares que frequentamos etc.A quest?o agora é pensar o quanto as tecnologias da imagem passam a ser assimiladas pelas estratégias inconscientes dessa auto-representa??o. Incorporamos aquilo que elas s?o capazes de mostrar, nossos papéis passam a ser constituídos de detalhes, essa verdade da representa??o se torna mais plástica, já considerando a possibilidade de ser vista de vários ?ngulos, ampliadas,?dissecadas, congeladas, ou em slow motion.Gabinete de Curiosidades HYPERLINK "" Bob Wolfenson, Apreens?es.A exposi??o Apreens?es, de Bob Wolfenson, no Centro Universitário Maria Antonia, me surpreendeu. Por inúmeras raz?es, que tentarei colocar em discuss?o, mas principalmente pela for?a das imagens que me tocaram t?o profundamente. Como sabemos, Bob Wolfenson tem inegável reconhecimento na produ??o fotográfica associada à Moda, ao Retrato e ao Comportamento, com qualidade e originalidade incomuns. Mas, desde sua primeira exposi??o Minhas Amigas do Peito, realizada na Galeria Fotóptica, em 1989, demonstra uma disposi??o criativa para ampliar sua esfera de atua??o.Para isso, basta lembrar suas últimas exposi??es – A Caminho do Mar, na Galeria Milan, 2007, e Cinepolis, no MAM-BA, 2008 – para perceber que seu trabalho com a imagem extrapola os limites da fotografia aplicada e ocupa significativamente outros espa?os, como os destacados acima. Agora, com Apreens?es, prop?e-se a refletir sobre as imagens midiáticas e como estas s?o ineficientes tanto do ponto de vista da informa??o, quanto do impacto que poderiam provocar em sua recep??o a exposi??o me provocou certo desconforto, procurei entender melhor o trabalho a partir do seu título. A palavra ‘apreender’ se insinua como signo potencialmente mais amplo e, claro, tem conex?o com o universo da fotografia que ‘apreende’ o mundo visível ao registrar ou documentar um fragmento qualquer no tempo. No Dicionário Aurélio, apreender significa “apropriar-se judicialmente de alguma coisa”. Já apreens?o, é “ato ou efeito de apreender”. Em contrapartida, para a Filosofia, é o “conhecimento imediato (por meio de percep??o, julgamento, memória ou imagina??o) de um objeto relativamente simples, e que resulta na pura presen?a desse objeto à consciência”. Ou ainda, “conhecimento imediato de um objeto relativamente simples, em oposi??o a processos mais elaborados, como, por exemplo, a compreens?o, o julgamento, o raciocínio”. HYPERLINK "" Bob Wolfenson, Apreens?es.Bob Wolfenson opera uma espécie de metalinguagem a fim de provocar o espanto. Enquanto as imagens midiáticas s?o efêmeras no noticiário político-policial, as fotografias apresentadas no Centro Universitário Maria Antonia pulsam na memória do visitante. A sala da exibi??o, de formato retangular, foi tomada por fotografias de grandes e diferentes formatos e de um realismo perturbador. S?o registros captados digitalmente das apreens?es policiais que, organizadas aleatoriamente nos locais de destino, simulam assemblages cujas texturas e arranjos denotam nossa impotência diante do crime organizado e nossa incapacidade de rea??o.Assim como nos ensaios anteriores, em que o drama de Cubat?o e da Metrópole era, paradoxalmente, questionado por imagens assustadoras e belas, mais uma vez, Bob Wolfenson dá mostras de sua indigna??o diante do intolerável. Chama nossa aten??o para assuntos cotidianos e aparentemente insolúveis, ao criar uma fotografia tecnicamente bem resolvida, dissociada de seus suportes convencionais e efêmeros, e potencializada como a imagem do still life contempor?neo. No limite, a apreens?o fotográfica de uma realidade que nos cerca pode nos cegar quando massificada pela mídia, mas é sempre uma possibilidade de conscientiza??o quando resignificada pelo artista. HYPERLINK "" Bob Wolfenson, Apreens?esNossa inten??o n?o é elucidar o processo artístico ou as próprias obras (estas s?o suficientemente fortes e especulativas), muito menos edificar um sistema de leituras ou de decifra??o. Mas n?o podemos deixar de destacar a a??o técnica e o pensamento do artista que norteou este trabalho. Bob Wolfenson nos lembra: “o aparato técnico empregado para capturar aquilo que vemos diariamente na mídia foi novo para mim. Cheguei a ele na busca de um procedimento que substituísse os sistemas analógicos tradicionais possibilitando mais agilidade no set fotográfico e também na pós-produ??o. Foi utilizado o sistema de varredura digital, ou seja, um fracionamento da cena no momento da tomada fotográfica para que a imagem final alcance uma defini??o alta, salvo nas fotos de animais, pelo fato de se moverem e impossibilitarem o uso dessa técnica”.Com essa nova série denominada de Apreens?es, Bob Wolfenson se mostra mais contundente em seus temas. Um inventário de objetos, materiais e animais silvestres que permite ao artista especular sobre a quest?o e, ao mesmo tempo, tentar compreender o insólito mundo do qual somos parte e pouco questionamos. Uma das experiências mais radicais realizada por Bob Wolfenson que mostra maturidade artística diante desta tragédia anunciada e insolúvel.Centro Universitário Maria Antonia, Rua Maria Antonia, 294, Vila Buarque, Tel. 3255-7182; exposi??o Apreens?es – de 17 de junho a 10 de outubro.Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados – Parte I HYPERLINK "" An?nimo. Walter Reed Hospital, 1918Sabemos que, desde sua inven??o, recaiu sobre a fotografia uma confian?a exagerada. A ideia de que ali havia uma reprodu??o fiel da realidade garantiu sua imediata aceita??o como instrumento de memória e documenta??o, no entanto, atrapalhou seu reconhecimento como arte.? Nos últimos 30, talvez 40 anos, muitas teorias se empenharam em desconstruir essa confian?a, denunciando as bases ingênuas que legitimavam muitos dos usos da fotografia. Para combater um século de pensamento enviesado e garantir uma postura mais crítica diante do meio, foi preciso afirmar a ideia de que a fotografia é artifício, é codificada, construída, subjetiva, ideológica, eventualmente mentirosa. Em contrapartida foi necessário policiar o uso de certas palavras e express?es emblemáticas dessa confian?a cega e ultrapassada: real, realidade, objetividade, documento, analogia, mimesis, verossimilhan?a se tornaram heresias, e tal vocabulário só podia ser requisitado para caracterizar o inimigo que se combatia.Pois bem, uma vez que o corretivo foi bem aplicado, que estamos conscientes dos limites da representa??o fotográfica, podemos tentar reconhecer nesse inimigo esfacelado alguns valores que merecem ser preservados. Para ser mais claro, vale revisitar esses conceitos renegados, vale entender suas sutilezas e fazer também deles instrumento da consciência que reivindicamos.Para aqueles que têm paciência para a teoria, algumas tentativas de resgate:Realidade: Existe essa coisa? Se estamos falando da natureza física, percebida empiricamente, pode n?o ser algo un?nime. Para uma filosofia idealista dogmática, como a do filósofo irlandês George Berkeley, é problemático afirmar que existe mesmo um mundo fora do pensamento. Deixado de lado esse radicalismo, vou ent?o admitir, por exemplo, que você é real, que está aí sentado lendo meu post, e que n?o existe apenas no meu pensamento. A segunda quest?o é saber se é possível a uma consciência acessar diretamente essa realidade, ou apenas uma representa??o dela. Isso merece ser discutido, sem a necessidade de radicalismos. Charles Sanders Peirce admite que toda nossa rela??o com o mundo está mediada por signos, mas assume também que existe uma realidade fora do signo, que também participa do processo de representa??o (semiose). Ou seja, existe seu nome, sua foto, suas poses, seu jeito de se vestir, seus discursos, e eu só posso alcan?á-lo por meio de ?signos como esses. Mas você também tem uma existência para além dessas representa??es e essa realidade determina em maior ou menor grau os signos que o representam. Por isso, a ideia de representa??o n?o precisa ser pensada como um avesso da realidade. Podemos ir mais longe. Se a “natureza humana” é essencialmente simbólica (isto é, para nós as coisas nunca s?o puras, nunca s?o apenas elas próprias, sempre representam algo), podemos admitir que aquilo que representamos é uma parte constituinte de nossa realidade, uma realidade psíquica, social, cultural.Representa??o da realidade: A fotografia representa a realidade? Estupidez! Heresia!!! Quem ainda afirmaria uma coisa dessas? Bem, já admitimos que existe algo que podemos chamar de realidade. O que é representar? ? apontar para algo, fazer referência, partir de uma rela??o entre duas coisas, tomando uma delas para fazer pensar na outra. Basta qualquer defini??o razoável de “representa??o” para saber que ela n?o se confunde com “duplica??o”, “reprodu??o fiel”, com “ser idêntico”. Afinal, seu nome o representa, o desenho que seu filho de quatro anos fez de você o representa, aquele perfume que você usa sempre o representa, até o numero do seu PIS que você nunca decorou o representa, e nada disso se confunde com a totalidade do que você é. Até mesmo uma imagem distorcida, uma informa??o fragmentada ou uma mentira também s?o representa??es, pelo simples fato de que fazem referência a um objeto. Ou seja, quando se diz que a fotografia representa a realidade, isso já equivale dizer que ela n?o é a realidade. ? apenas uma representa??o da realidade: em certas condi??es, para certos fins, e sempre provisoriamente, ela se coloca no lugar de alguns de seus aspectos.Realismo: a fotografia é realista? Ela pode ser, e pode n?o ser. Realismo e realidade n?o s?o a mesma coisa. O realismo é um modo de se portar diante da realidade. Admitir que existe uma realidade fora do pensamento e atribuir a ela alguma relev?ncia para o conhecimento já é o suficiente para uma filosofia ser caracterizada como realista. Na história da arte, encontramos movimentos denominados realistas que se referem ao desejo de produzir uma arte comprometida com a vida social, com as possibilidades de conhecê-la e de transformá-la. Esse é o caso da pintura realista de Courbet ou da literatura realista de Balzac, no século XIX. E, no século XX, é o caso do cinema neo-realista italiano de diretores como Vittorio de Sica ou Rosselini. No caso da fotografia, entra em jogo uma quest?o herdada da pintura renascentista, que diz respeito ao desejo de extrair da própria natureza os critérios para representá-la. A perspectiva, baseada na mesma matemática que explicava t?o bem o mundo, parecia ent?o produzir uma imagem realista. Assim como a c?mera: objeto técnico que supostamente apreende um comportamento natural da luz para produzir também uma imagem realista. Aqui sim existe algo de problemático que valeu a pena questionar. Mas hoje está suficientemente claro para todos que o realismo n?o é mais que um conjunto de procedimentos escolhidos dentre outros possíveis, e devidamente legitimados pela tradi??o. Quando utilizados, produz para a cultura que elegeu tais procedimentos uma comunica??o compreensível sobre a realidade. Ser realista é, portanto, produzir uma imagem segundo um modelo considerado válido. Nesse sentido, podemos bem dizer que a pintura de Salvador Dali é realista, porque constrói todo tipo de fantasia, mas respeita os artifícios de convencimento adotados pela tradi??o da pintura ilusionista. ? certo que a fotografia seguiu nas últimas décadas uma postura anti-realista, em vários sentidos. De um lado, essa fotografia se mostra pouco interessada pela realidade, priorizando uma discuss?o sobre o próprio meio, sobre aquilo que a própria fotografia é capaz de forjar.? De outro, ela recusa e desconstrói deliberadamente esses modelos tradicionais, inclusive – e sobretudo – aqueles? programados na c?mera. Esse é um movimento legítimo da fotografia contempor?nea. Mas é equivocado pensar a imagem realista como o contrário da imagem ficcional. Todas as aplica??es do termo pela arte nos levam a concluir que o realismo é um certo modo de se portar da fic??o, da imagem ilusionista. Como eu disse em outra ocasi?o, cabe à fic??o ser realista, n?o à realidade. Podemos dizer que uma fotografia é realista porque localizamos certas expectativas da imagem perante a realidade. Mas só é possível pensar a rela??o entre duas coisas quando elas n?o se confundem. Ou seja, ao dizer que a imagem é realista, já fizemos a devida distin??o entre a fotografia e a realidade.Em posts futuros, podemos tentar resgatar outras vítimas, conceitos como documento, analogia, mimesis, objetividade, verossimilhan?a…Fotógrafo n?o é dedo-duro, meritíssimo! Há 20 anos, fui processado pela universidade em que estudava, a PUC-SP, por causa de algumas fotos que fiz. Mais precisamente, porque eles queriam essas fotos.Folha de S. Paulo, 8/4/1990. Fotos de Fernando Santos.Eu estava numa aula, no meu último ano do curso de jornalismo, quando correu a notícia de que um grupo de alunos ocuparia a reitoria em protesto contra o aumento das mensalidades. Fotografei tudo: a articula??o do grupo, o arrombamento da porta, a entrada dos alunos que ficaram ali acampados durante 16 dias, com direito a show do Tom Zé.Vendi algumas imagens e também cedi duas delas para um jornal que era editado pela própria PUC, mas independente a ponto de cobrir as a??es do movimento estudantil. Invas?es ocorriam ali quase todos os anos, isso era parte da história do lugar. Dessa vez, a reitoria decidiu endurecer: escolheu duas lideran?as estudantis, o rapaz que aparece junto comigo na foto acima e outra menina, e pediu a eles uma indeniza??o de 10 salários mínimos, muito dinheiro para um aluno de lá naquela época (a mensalidade equivalia a menos de um salário). HYPERLINK "" Folha, 8/4/90. No fragmento, a reitora da PUC.Um dia recebo em casa uma carta do advogado da PUC solicitando minhas fotos para que fossem anexadas ao processo como prova. Mandei às favas. Meses depois, chega uma intima??o: eles abriram contra mim um processo chamado “a??o de exibi??o”. O parágrafo da reportagem da Folha ao lado resume um pouco a história. Uma das fotos publicadas mostrava um aluno arrombando a porta com um pé de cabra, mas seu rosto n?o aparecia. Como a foto foi publicada em formato quadrado, a PUC imaginou que o corte teria sido feito na edi??o para poupá-lo.Jornal da PUC com as minhas fotos, nov/1989.Procurei uma boa advogada que fez a seguinte sugest?o: “Simples, você diz que jogou fora os negativos”. Para mim n?o era simples. Eu queria garantir o direito de decidir como minhas imagens seriam ou n?o usadas. E a briga n?o deixava de ser excitante para um estudante de jornalismo cabeludo que ainda tinha marcas de espinha no rosto. Comecei a receber apoios de todos os lados, alunos de outras universidades se posicionaram, o Sindicado dos Jornalistas antecipou meu registro profissional, já que, durante o processo, a PUC n?o me permitiu sequer participar da cola??o de grau. A Uni?o dos Fotógrafos de S?o Paulo (Iat? Canabrava era o presidente) também ofereceu suporte, e recebi muitos recados solidários de colegas da imprensa. Daí surgiu a matéria no caderno de Educa??o da Folha sobre movimento estudantil na PUC e os processos movidos pela Universidade.A audiência aconteceu quase um ano depois da invas?o da reitoria. O advogado da PUC fez um discurso inflamado sobre a necessidade de preservar o patrim?nio de uma institui??o de ensino tradicional, mantida pela Igreja. O juiz foi pragmático. Disse que o caso parecia simples e que gostaria de me ouvir. Perguntou se eu havia participado do movimento (ninguém é obrigado a produzir prova contra si). N?o era essa a quest?o. Eu também desfilei meu discurso dramático: imagine um ditador requisitando fotos da imprensa para perseguir subversivos; empresas fazendo o mesmo para identificar grevistas; grupos de extermínio identificando seus inimigos. Fotógrafo n?o é dedo-duro, uma coisa dessas poderia destruir a profiss?o! O advogado da PUC disse e o juiz concordou que nada disso estava em discuss?o. Com o rumo das perguntas do juiz, eu senti que ia ecei a dizer coisas do tipo: “mas e os direitos autorais, e a lei de imprensa?!” Minha advogada me?interrompeu?e disse exatamente assim: “você me deixa trabalhar?” Foi a vez dela fazer seus malabarismos retóricos. Argumentou que esse processo n?o permitia especular sobre provas possíveis, isto é, a PUC só poderia exigir evidências que sabia existir, portanto, deveria especificar exatamente quais imagens estava solicitando. Com isso, ela conseguiu limitar a demanda às três únicas fotos que eram conhecidas, o que evitou que outros alunos fossem comprometidos. As discuss?es se estenderam por duas horas. O acordo assinado me garantia o direito de permanecer com os negativos, mas exigia que eu ampliasse as fotos no laboratório da PUC, na presen?a do advogado. Ainda conseguimos que a PUC pagasse uma pequena indeniza??o por uma informa??o falsa na peti??o, sobre um pagamento prévio que alegaram ter feito para que eu fotografasse o episódio.Houve um recesso enquanto tive que buscar os negativos em minha casa para conferência. Quando apresentei os três fotogramas, o advogado tentou desfazer o acordo: a foto do arrombamento n?o mostrava o rosto do aluno, o corte tinha sido feito na largura, n?o na altura. Claro que sabíamos disso, até o jornal da PUC sabia, mas o advogado n?o. O juiz manteve o acordo e encerrou o caso.Restava uma preocupa??o. Uma segunda foto que seria entregue, feita dentro da reitoria ocupada, mostrava o rosto desse mesmo aluno e, por conta da roupa, um microfone no bolso e um botton na camiseta, era possível identificá-lo na cena do arrombamento. Minha advogada garantiu que isso jamais seria aceito como prova, mas a emo??o se estendeu mais um pouco.No dia combinado, fui à PUC fazer as amplia??es. Foi cinematográfico. Com medo que houvesse manifesta??es de alunos, o?advogado isolou a área e colocou seguran?as na porta. Mas aí vem a parte mais divertida, gra?as a uma sugest?o dada por um ex-laboratorista da própria PUC: um fixador batizado com a ajuda do velho “Formulário Fotográfico” da Editora Iris deixou um cheiro insuportável de amoníaco no laboratório. Eu fui devidamente paramentado com máscara e luvas. Depois de alguns minutos, o advogado preferiu sair. Uma queimadinha aqui outra ali, e ninguém seria reconhecido. Os processos foram arquivados. A história do laboratório virou piada entre alunos e funcionários.Deixando de lado minha aventura pessoal, duas quest?es para pensar:A atual lei do direito autoral emperra vários usos culturais das obras, mas n?o impede seu uso judicial mesmo contra a vontade do autor. Diz o texto: “N?o constitui ofensa aos direitos autorais (…) a utiliza??o de obras literárias, artísticas ou científicas para produzir prova judiciária ou administrativa”.A Lei de Imprensa protege o jornalista em situa??es análogas: “será (…) assegurado e respeitado o sigilo quanto às fontes ou origem de informa??es recebidas ou recolhidas por jornalistas, radiorrepórteres ou comentaristas”. Ou seja, se você entrevista alguém que é considerado criminoso, se tem anota??es ou grava??es, nada o obriga a disponibilizar seus registros e informa??es à justi?a. Mas essa lei ignora a fotografia: se você fotografou um acusado, pode ver o resultado de seu trabalho ser colocado à servi?o da caguetagem.Imagem, memória e coerência HYPERLINK "" Dzi CroquettesEsta semana assisti a dois documentários: Dzi Croquettes e Uma noite em 67. Para mim, uma experiência visceral, pois participei ativamente desses dois momentos históricos. Históricos? Sim, pensei muito para assumir isto, mas é inevitável perceber que o tempo passou. Uma noite em 67, centra-se no Festival de Música da TV Record de 1967, num momento em que Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo, Roberto Carlos e Sergio Ricardo disputavam o prêmio de melhor música do festival. Já Dzi Croquettes revela como este grupo de 13 homens a partir de 1973 perturbou n?o só a ditadura, mas incluiu e trouxe a discuss?o da contracultura para o Brasil ao colocar em cheque as cren?as consolidadas sobre família, sexualidade, religiosidade e política., o que basicamente me interessa discutir é a import?ncia das imagens técnicas para a recupera??o da memória e sua for?a inquestionável enquanto documento histórico. Os documentários assistidos ganham em expressividade gra?as às essas imagens gravadas pela fotografia, pelo cinema e pela televis?o. N?o fossem esses registros que ficaram arquivados durante décadas, as novas gera??es n?o poderiam experimentar o frescor libertário desses dois momentos significativos para a história recente do país.Em seu famoso On Photography, Susan Sontag escreveu que “a fotografia é a guinada essencial na história da percep??o. ? difícil imaginar um mundo sem imagens, elas ficaram cada vez mais essenciais”. As últimas experiências do cinema documental, particularmente no Brasil, est?o centradas em imagens de arquivo, de toda ordem, e tem nos brindado com momentos de êxtase ao reavivar e resignificar informa??es que ficaram esquecidas durante longos anos. Isso mostra que estamos procurando o passado para entender melhor o presente. HYPERLINK "" Dzi CroquettesAs imagens dos documentários acima citados foram resgatadas da televis?o, do cinema e da fotografia. Para lembrar alguns fotógrafos podemos citar Madalena Schwartz (Dzi Croquettes), David Zingg, Jean Solari, entre outros que registraram os movimentos da MBP do período. ? incrível como estas imagens est?o indissoluvelmente associadas à nossa vida cotidiana, e é isso que nos possibilita compreendê-las como instrumentos de conhecimento e de liberta??o. Quando as vemos hoje, com admira??o e certo fascínio, algumas quest?es merecem reflex?o. Afinal, o registro e a conserva??o desse material, seja pelas empresas ou pelos artistas, representam a necessidade que temos de preservar nossa existência.Vilém Flusser defende a idéia que nós humanos, criamos a comunica??o porque somos o único animal que tem consciência da morte e também porque sabendo disso, para evitarmos a solid?o, criamos artifícios que ajudam a prolongar nossa existência na vida dos outros. Ou seja, a comunica??o humana é um processo artificial e as máquinas semióticas (de produ??o sígnica) s?o responsáveis pelas imagens que gravamos cotidianamente para em algum momento, por exemplo para quando quisermos olhar o que fomos. Basta recuperar o que foi registrado. Lembro-me de uma fala intuitiva do grande fotógrafo José Medeiros: “o que vemos é o que somos; e o que somos é aquilo que vemos”.Mas quando se trata de resgatar um período de intoler?ncia política, um momento em que o Brasil vivia uma ditadura militar sem precedentes em nossa história, fica mais difícil encontrar disponível algum material de relev?ncia estética e política para as novas gera??es. O que podemos ver nos documentários e nas suas granuladas imagens históricas projetadas na tela do cinema é que aquelas informa??es arquivadas e guardadas estavam disponíveis na esperan?a de que alguém pudesse, a qualquer momento, reorganizá-las numa nova informa??o. Para evitar seu esquecimento, aparecem de tempos em tempos esses novos olhares que trazem novas sintaxes que, ao serem compartilhadas publicamente, recuperam sua import?ncia e sua potência revolucionária.Na verdade, podemos inferir que a história vista por imagens é mais amigável para o conhecimento. ? exatamente essa idéia que Flusser defendia há mais de trinta anos quando afirmava que nossa civiliza??o é das imagens, denominada por ele como pós-histórica. No caso dos documentários, os arquivos das imagens resignificados permitem emergir uma consciência histórica e crítica. Com ela, aqueles acontecimentos tornaram possível reativar a memória de alguns e informar gera??es que sequer imaginavam a quantidade e a qualidade dos detalhes da nossa história.A ética da civiliza??o exige a árdua tarefa de preservar a memória, que para alguns sempre pode parecer desconfortável. Uma coisa é reverenciar despudoradamente a memória, outra coisa é sua vivência e sua politiza??o. Talvez hoje o verdadeiro problema da civiliza??o seja a responsabilidade da preserva??o da memória, que contrariamente quer viver esquecendo, como ordena a mídia e os apelos da contemporaneidade. Mas, como escreveu Luis Bu?uel em seu livro Meu ?ltimo Suspiro, “uma vida sem memória n?o seria uma vida, assim como uma inteligência sem possibilidade de exprimir-se n?o seria uma inteligência. Nossa memória é nossa coerência, nossa raz?o, nossa a??o, nosso sentimento. Sem ela, n?o somos nada.”N?o sabemos hoje como trataremos os gigantescos arquivos de imagens que estamos selecionando e produzindo. O exercício de voltar para nossas imagens é mais ligeiro e menos freqüente que antes, mas o mais importante é olharmos para frente com a certeza de que nosso tempo está gravado e de que nosso futuro estará garantido por aquilo que produzimos.“Uma arte que tem vida n?o reproduz o passado; ela dá continuidade a eles” – Rodin.Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados – Parte II Depositamos sobre a fotografia uma confian?a exagerada. Como resposta, muitas teorias se voltaram contra antigos conceitos que pareciam impedir uma vis?o mais crítica sobre o meio. Mas, afirmada tal consciência sobre os limites da fotografia, é possível fazer as pazes com um vocabulário que, usado de modo mais preciso, pode nos ser novamente úteis. HYPERLINK "" \t "_blank" No primeiro post dessa série, tentamos resgatar as no??es de “realidade”, “representa??o da realidade” e “realismo”. Para os que chegaram agora, HYPERLINK "" \t "_blank" fica o convite. Desta vez, recolocamos outros quatro conceitos: analogia, mimesis, verossimilhan?a e objetividade.Dr. Rodman, Cirurgia, Filadelfia, 1863Analogia: a fotografia é análoga ao real? Analogia pode ser entendida como semelhan?a ou compara??o. No campo de uma Semiologia, os teóricos já brigavam nos anos 70 para decidir se a fotografia e o cinema produziam ou n?o analogia com a realidade. A quest?o também era tomada de modo polarizado: essas imagens s?o idênticas ou totalmente diferentes daquelas que vemos com os olhos? Ora, quando se diz que algo é semelhante, isso já implica?reconhecer?alguma distin??o entre o que está sendo comparado. Um desses semiólgos, Cristian Metz, num artigo de 1970 (“Além da Analogia”), já nos convidava a resolver a quest?o em termos mais sutis, pensando em diferentes “graus de analogia” que a imagem poderia manter com um objetos, mas convidando a perceber outras formas de referência que n?o passam apenas pela semelhan?a, mas que convivem com ela: conceitos, por exemplo, n?o tem forma física e n?o s?o imitáveis, mas podem ser representados pela imagem. Os adeptos da semiótica peirceana, fortes no Brasil, também denunciaram o caráter convencional da fotografia, desbancando sua pretens?o analógica. Hoje, está mais do que claro que, em termos pragmáticos, um signo pode ser ic?nico (produzir semelhan?a com o objeto), indicial (ter conex?o física com o objeto) e simbólico (relacionado ao objeto por uma conven??o) ao mesmo tempo. Isso já bastaria para que o problema fosse colocado com menos radicalidades. Mas a quest?o poderia ter se resolvido com um breve olhar sobre os clássicos. Aristóteles usa o termo “analogon” no sentido matemático euclidiano, como sin?nimo de propor??o, para explicar o funcionamento da metáfora: se A está para B, como C está para D, A pode ser substituído por C numa senten?a poética. No exemplo dele: “a ta?a é para Dionísio o que o escudo é para Ares, assim o poeta dirá da ta?a que é o escudo de Dionísio” (Poética, XXI). Ou seja, dizer que A é análogo (proporcional) a C é bem diferente de dizer que A é igual a C. A metáfora exige semelhan?a, mas exige também diferen?a entre as partes envolvidas. Ela simplesmente n?o funciona com sin?nimos: “a fé é uma rocha” é uma metáfora, “a pedra é uma rocha” jamais será. Mas voltando ao nosso território, é Barthes quem deixa os espíritos armados, quando diz que a fotografia é um “análogon perfeito”, num texto de 1961. Dito assim, fica difícil defender. Poderíamos imaginar que, sendo Barthes um profundo conhecedor de Aristóteles, ele quis apenas falar de um alto poder metafórico da fotografia. N?o é preciso for?ar a barra. O que cabe lembrar em sua defesa é que, em “A c?mara clara”, ele permanece um “realista” (ver verbete no post anterior), n?o abre m?o da for?a de presen?a da realidade, mas coloca a quest?o com muito muito mais cuidado (e poesia). Outro autor mais jovem e pouco lido entre nós, Jean-Marie Schaeffer (de “A imagem precária”), também?volta a defender com muita clareza que a analogia ainda é, em termos pragmáticos, o que melhor define nossa rela??o com as fotografias. Como ele diz, n?o uma analogia entre a fotografia e a realidade em si, que é muito mais complexa, mas entre a fotografia e uma certa forma de perceber visualmente essa realidade. Enfim, o que vale resguardar é que ser análogo nada tem a ver com ser idêntico.Mimesis / Verossimilhan?a: a fotografia é mimética? Mimesis e verossimilhan?a precisam ser discutidas juntas. Traduzindo literalmente, mimesis quer dizer imita??o. Já quanto à verossimilhan?a, ficamos tentados a entender como “semelhan?a com a verdade”, mas isso é totalmente insuficiente. De novo, a Poética de Aristóteles… Para ele, arte (techné) é imita??o (mimemis), mas num sentido peculiar. Ele diz: “está claro (…) que a obra do poeta n?o consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas que poderiam acontecer, possíveis do ponto de vista da verossimilhan?a ou da necessidade” (Poética, IX). Isso quer dizer que, quando o poeta produz a mimesis n?o repete uma a??o, constrói uma a??o potencial respeitando certas exigências. Verossimilhan?a é uma das condi??es de existência dessa imita??o poética. Umexemplo: quando o Hulk fica forte e verde, estamos diante de algo verossímil? Se a história está bem contada, sem dúvida. N?o porque na nossa natureza existam pessoas assim, mas porque essa a??o é coerente com a natureza intrínseca à narrativa. Ou seja, se a história cria condi??es para que isso aconte?a, é verossímil. Alguns saltos dos filmes de kung-fu podem n?o ser verossímeis, mas o verde do Hulk sim. Ent?o, verossimilhan?a é uma qualidade da obra inventiva que, sem repetir, sem reproduzir a natureza cotidiana, constrói uma outra t?o coerente quanto ela. Sendo assim, vejam que interessante: a mais radical das “fotografias construídas” pode ser perfeitamente?verossímil, porque mostra com coerência o mundo que inventa.Objetividade: se por objetividade entendemos a possibilidade de eliminar de toda subjetividade, ent?o, ela n?o existe em nossas rela??es com as coisas. Portanto, n?o existe na fotografia. Até é possível o exercício de resgatar sutilezas. Quando a ciência fala em conhecer algo, sup?e existir um sujeito desse conhecimento, eu, e um objeto, aquilo a que o conhecimento visa. O resultado desse processo tem algo de subjetivo, porque está determinado por predisposi??es minhas (gostos, valores culturais, morais etc.). Mas se aceitamos o fato de que o objeto manifesta algo de si, se determina em parte esse conhecimento, poderíamos bem falar num “certo grau de objetividade”. No meu Dicionário de Filosofia (Nicola Abbagnano), talvez para evitar problemas com a t?o desgastada no??o de objetividade, esse reconhecimento da existência do objeto aparece denominada como “objetivismo”. Peirce, por exemplo, reconhece perfeitamente a possibilidade de uma determina??o do objeto representado sobre o signo, sobretudo (n?o apenas mas)?naquele tipo que define como “índice”, que é fisicamente afetado pelo objeto. Mas temos que admitir que foi necessário bombardear a ideia de objetividade seja para reivindicar maior consciência sobre os valores culturais e estéticos implicados em toda representa??o (como a fotografia), seja para construir uma crítica às pretens?es da ciência positivista. O problema é que, para derrubar a cren?a nessa objetividade, caímos às vezes numa espécie de culto egocêntrico à subjetividade, em que as justificativas para todas as coisas se esgotam no sujeito (aquela história do “cada um é cada um”, “cada um com seu cada qual”, “vai da pessoa”…). Isso tem sido chamado de relativismo e, para alguns filósofos (L. F. Pondé), é o grande problema desta virada de milênio. Quando somos convidados a interpretar uma obra de arte, sabendo que n?o há objetividade, ficamos sempre tentados a dizer: “é subjetivo!”. Essa é a melhor forma de fugir da discuss?o, de n?o dizer coisa alguma. Falamos isso como se todo sentido da obra viesse de dentro de nós, como se n?o houvesse um autor, uma técnica, uma cultura fora de nós articulando também a matéria e os sentidos. Se cada um pudesse ver o que quisesse onde quisesse, n?o precisariamos mais ir ao museu, poderíamos olhar para a parede branca nosso quarto e ver Klee, Chagal, Robert Frank ou Mario Cravo Neto… Se recusamos a ideia de objetividade, melhor seria ent?o visar uma “intersubjetividade”, algo que é humano, cultural, nada objetivo, mas que n?o inviabiliza o diálogo com algo fora do indivíduo. Afinal, a “comunica??o” existe porque temos coisas em “comum”, porque os sentidos produzidos podem ser negociados, podem ser “coletivos”. Ent?o, uma imagem n?o diz uma mesma coisa para todo mundo, mas o que diz pode ser interpretado, debatido e transmitido, sen?o com consenso, pelo menos com uma coerência compartilhável.Num post futuro, e para encerrar a série, eu ainda gostaria de discutir o conceito de “virtual”. Ao contrário dos que foram apresentados até aqui, esse conceito tem sido alvo de forte tietagem, o que pode ser igualmente mutilante.Luiz Braga – ruptura e contempla??o Luiz Braga é um fotógrafo diferenciado dentro da produ??o visual contempor?nea brasileira. Primeiro, porque basicamente trabalha apenas na sua cidade, Belém, e no entorno; e depois, porque ao longo de mais de trinta anos, desenvolveu uma fotografia com características próprias, totalmente diversas daquela produzida em outras regi?es do país. Suas raízes e seu conhecimento da cidade viabilizaram uma fotografia marcante, centrada na cor e na luz, elementos determinantes na constru??o de sua sintaxe. Ele acredita que o território do olhar é o seu espa?o interior e isto potencializa sua fotografia como um esfor?o constante de expandir a imagina??o e ampliar os seus limites. HYPERLINK "" Luiz BragaA exposi??o Ensaio – Estrada Nova S/N, no Espa?o Cultural Porto Seguro, traz especificamente os diferentes aspectos da cidade de Belém e da Estrada Nova, uma de suas vias públicas. S?o retratos e paisagens domésticas que remontam o olhar intimista e minimalista que Luiz Braga confere à sua fotografia. A edi??o das imagens abrange mais de três décadas de produ??o e evidencia que n?o se trata de um olhar distanciado, mas sim um profundo conhecedor do ambiente.O que podemos inferir de imediato é que o caminhar pela cidade pode ser associado à memória e essa paisagem pode ser convertida em fotografia. Luiz Braga tem um olhar delicado que enfrenta o tempo todo o desafio de fugir do senso comum, para subverter a visualidade padronizada da regi?o amaz?nica. Como ninguém, ele consegue transformar os ambientes ordinários através de seu olhar extraordinário. Sua fotografia está baseada na idéia de ruptura e repouso. HYPERLINK "" Luiz BragaA ruptura fica mais evidente por conta da sua luminosidade especial. Ele trabalha a luz natural equatorial em harmonia com as fontes de luzes artificiais que, simultaneamente, est?o presentes em suas fotografias. Luzes fosforescentes e fluorescentes dos espa?os domésticos, e luzes de mercúrio da ilumina??o pública. Uma hibridiza??o luminosa que se tornou uma espécie de marca registrada do seu trabalho, ou seja, ele cria uma lógica desconcertante que nos provoca uma inc?moda sensa??o e nos faz indagar sobre a quest?o das fronteiras entre realidade e fic??o.Essas cores de Luiz Braga, praticamente impossíveis de serem registradas pelo olho humano é que desencadeiam estranhas emo??es, pois se trata de uma luz misteriosa que estimula nossa imagina??o. S?o instantes atemporais plasmados na inquieta??o da solid?o da luz crepuscular. Podemos entender sua fotografia como exercícios de admira??o do cotidiano popular, presente no centro e nas periferias de Belém.O escritor Milton Hatoum ao comentar o trabalho de Luiz Braga lembra que “é esse cotidiano humilde que a lente de Luiz espreita com sutileza, fixando os gestos e atitudes de um pequeno mundo que ainda vive num tempo peculiar, n?o seccionado pela urgência. S?o imagens que nos remetem a outro tempo: o da demora e o do prazer na demora. ? esse outro Tempo que nos convida a admirar sem pressa as imagens fisgadas no sonho mínimo de cada noite ou no breve devaneio de cada dia”.A naturalidade de quem se reconhece nos personagens e nas paisagens que fotografa decorre de sua convivência profunda e diária com esse mundo que vemos em suas fotografias; na verdade, fragmentos de um todo que se completam em nossa imagina??o. Isso é que possibilita seu olhar particular e poético. Poético no sentido de ser transgressor no momento da cria??o. Também é essa experiência que o faz trafegar com liberdade entre a objetividade do mundo visível e a possibilidade de criar abstra??es a partir dele. HYPERLINK "" Luiz BragaOutra característica da fotografia de Luiz Braga é que nos faz sentir abertos à surpresa de uma presen?a que se manifesta, ainda que escape às articula??es possíveis da nossa memória. Em cada fotografia uma série de valores indicativos de uma cultura material, muitas vezes resignificada, que permite essa aparente proximidade que estabelecemos com as imagens.Luiz Braga tem sua fotografia centrada em Belém. Raramente temos a oportunidade de ter contato com um trabalho de tamanha coerência e dedica??o. Por isso mesmo é que ele vive transformando as artes visuais, pois consegue criar novas imagens e pesquisar novas possibilidades de express?o olhando para seu próprio cotidiano. Como Tolstoi imaginava – “fale de sua aldeia e seja universal” – Luiz Braga produz uma fotografia a partir de sua cidade, que guarda sua história e sua memória, e constantemente reinventa seu cotidiano e as artes do seu fazer com a astúcia sutil do criador e com táticas que inspiram novos saberes, que surpreendem a arte contempor?nea.***A exposi??o Ensaio – Estrada Nova S/N, até 12 de setembro, no Espa?o Cultural Porto Seguro, Avenida Rio Branco, 1489, S?o Paulo, de ter?a a domingo, das 10 às 17 horas.Henri Cartier-Bresson - O século moderno HYPERLINK "" Capa do livroA editora Cosac Naify, num raro senso de oportunidade, publica o livro Henri Cartier-Bresson: o século moderno, simultaneamente à exposi??o que está em exibi??o no Museu de Arte Moderna de Nova York neste momento, dando nova visibilidade à import?ncia da parceria estabelecida entre a editora e o MOMA.O livro, organiza??o de Peter Galassi, que também assina a curadoria da mostra, permite-nos ter acesso n?o apenas às imagens de Cartier-Bresson (1908 – 2004), um dos nomes mais emblemáticos da fotografia produzida no século passado, como possibilita ampliar significativamente sua esfera de atua??o com informa??es inéditas de sua trajetória. Cartier-Bresson também foi cineasta, ator, editor, diretor de documentários e de filmes de publicidade, pintor e desenhista, entre muitas outras atividades desenvolvidas ao longo de seus 96 anos de idade.O livro é ambicioso, pois quem imaginava conhecer Cartier-Bresson vai se deparar com uma quantidade enorme de novidades sobre sua vida, seus percursos e sua extensa obra. Com a abertura total dos arquivos, agora reunidos na Funda??o Cartier-Bresson pela viúva Martine Franck, Peter Galassi soube articular uma enormidade de dados e valorizá-los com a finalidade de trazer à luz um conjunto expressivo de informa??es que seguramente abrirá novas possibilidades de investiga??o para outros críticos e pesquisadores. HYPERLINK "" Cartier-Bresson, Coffee Shop, Bosnia and Hercegovina, 1965Enfatiza sua ascendência familiar burguesa, sua rela??o com o ideário do Partido Comunista dos anos 20 e 30 que sonhava com uma sociedade mais igualitária, sua participa??o no movimento surrealista, seu engajamento em produzir informa??es sobre as col?nias francesas e sobre a ?sia, sua conex?o com os fotógrafos de seu tempo e, em particular, sua participa??o na Agência Magnum. Também valoriza seu relacionamento com os editores das revistas e jornais em que prestava servi?os, e sua proximidade com Robert Capa – que foi decisivo para a carreira de Bresson e responsável por ele assumir-se como fotojornalista, já que n?o queria ser rotulado apenas como fotógrafo surrealista. Esse estímulo foi fundamental para seus inúmeros deslocamentos em busca de uma fotografia documental de qualidade e diferenciada.Sua participa??o na Agência Magnum n?o significou abandonar a esfera artística coerente em favor de um trabalho estranho, pois para ele ser um fotojornalista significava ampliar sua atua??o e ser também um diplomata, viajante, repórter e historiador. Para Peter Galassi, essa trajetória como fotojornalista é que se torna a essência do seu trabalho no pós-guerra – “a mais completa, variada, abrangente e convincente descri??o do século moderno que um fotógrafo já nos deu”. HYPERLINK "" Cartier-Bresson, Simone de Beauvoir, Paris, 1946Além de defender a tese de que Cartier-Bresson, desde o início dos anos 1930, ajudou a definir o modernismo fotográfico, Galassi também mostra que ele soube como ninguém transitar com liberdade tanto pela fotografia artística quanto pelas publica??es nas revistas ilustradas. O livro reflete na realidade o projeto curatorial e expositivo sobre a trajetória e a obra de Cartier-Bresson, dividido no texto crítico de apresenta??o em diferentes momentos – o fotógrafo, o prodígio, o artista, o idealista, o observador, o profissional e o historiador.Daí sua temática ser a sociedade, a cultura e a civiliza??o, pois para ele ser fotógrafo significava “envolver-se com a totalidade do mundo”. O livro também traz um quadro detalhado de como ele trabalhava – tanto sobre as especifica??es técnicas de c?meras e filmes, como a logística das viagens com seus colaboradores e os preciosos mapas desenhados por Adrian Kitzinger, que minuciosamente tra?ou todos os deslocamentos de Cartier-Bresson entre 1930 e 1960.Muito já se sabia sobre Cartier-Bresson, mas poucos perceberam que de todos os grandes fotógrafos da primeira metade do século passado ele foi um dos poucos que floresceu e consolidou uma obra fotográfica após a Segunda Guerra. Peter Galassi nos mostra as estratégias que Bresson elaborou para continuar viajando, produzindo e publicando seu material nas revistas e jornais mais importantes do mundo, e iniciando seu circuito de exposi??es.? Por exemplo, sua primeira individual foi realizada em Nova York, em 1947, depois em Londres, em 1952. Já em Paris, isso só aconteceu em 1955. HYPERLINK "" Cartier-Bresson, Houston, Texas, 1957Outra novidade do livro é tornar público algumas cópias contato, procedimento de produzir um copi?o para selecionar as melhores tomadas. No caso de Bresson avaliado pelo autor, ao se deparar com as cópias contato, desvenda-se parcialmente o processo de cria??o e edi??o das imagens. Pode-se verificar o quanto ele era econ?mico em sua produ??o. Para cada assunto em particular, com raras exce??es, ele realizava de cinco a dez fotogramas para em seguida de concentrar em outro tema. Cartier-Bresson tinha um espírito independente e empreendedor e isso foi determinante para desenvolver sua fotografia centrada numa inteligência rápida e intuitiva, associada à sua vasta e sofisticada cultura.Essa perspicácia e determina??o provam que Bresson estudava atentamente seu objeto antes de fotografar, e ver agora sua cópia contato também possibilita perceber seus movimentos em torno daquilo que lhe chamava a aten??o. Enquanto n?o conseguia enquadrar o assunto à sua maneira, “dan?ava” em torno dele. ? incrível nesses casos ter a dimens?o exata de seu trabalho, tanto que Galassi salienta que ele disparava o obturador da c?mera somente após haver “traduzido o assunto em imagem”.Cartier-Bresson desenvolveu dois ensaios – Gandhi e Pequim – que se tornaram seus pilares de reputa??o profissional. Ele apreendeu e registrou apenas o que era importante, descartando do seu enquadramento o que era insignificante. Essa atitude é que permitiu seu reconhecimento junto às revistas ilustradas que buscavam fotografias que fossem síntese e tivessem clareza e transparência, indispensáveis para dar respeitabilidade ao material publicado. HYPERLINK "" Cartier-Bresson, Preparations for the Baris Dance, Ubud, Bali, Indonesia, 1949Suas atividades extra fotografia, explicitadas neste livro, só se viabilizaram gra?as à meticulosa sistematiza??o de guarda e registro estabelecida pelo fotógrafo ao longo de sua vida, que soube organizar seu material para agora tornar-se público. Peter Galassi? valorizou e ordenou cada informa??o encontrada de modo que chega a surpreender o leitor pela farta documenta??o acumulada por Cartier-Bresson. Claro que n?o esgotou o assunto, mas com certeza abriu caminhos que ainda poder?o revelar muitas outras surpresas.Os números s?o impressionantes: em 1976, ele ultrapassou o rolo de número 14 mil, somando mais de meio milh?o de fotografias em três décadas de trabalho. Como atesta Peter Galassi, “o trabalho de Cartier-Bresson é extraordinário n?o necessariamente por sua amplitude geográfica e cultural, mas também por seu alcance histórico ao largo das vastas transforma??es do século moderno”. O livro Henry Cartier-Bresson: o século moderno, da Cosac Naify, traz ainda uma listagem cronológica dos jornais e revistas que publicaram as fotografias de Bresson em todo o mundo; uma expressiva listagem das principais exposi??es fotográficas e livros publicados; e uma selecionada bibliografia e filmografia do autor.[As imagens de Cartier-Bresson foram retiradas da HYPERLINK "" \l "/" \t "_self" apresenta??o da exposi??o no site do MoMA]Invisibilidades, recalques e revela??es Na semana passada, tivemos no Senac Consola??o o evento Estética do (In)visível, com a presen?a de Evgen Bavcar. Ele realizou uma palestra e integrou a exposi??o do projeto Alfabetiza??o Visual, coordenado por Jo?o Kulcsár, que envolve deficientes visuais num trabalho de arte-educa??o com fotografia. Participei também da programa??o num debate com Fernando Fogliano. A provoca??o era falar do “invisível na fotografia”,? aí vai (mais ou menos) o que foi a minha fala.Jo?o Maia, Passado e PresenteO acaso como espa?o de descoberta de um olhar descentralizadoA fotografia está marcada por um potencial com o qual sua própria história lida um tanto mal: aperta-se um bot?o e uma imagem simplesmente “acontece”. Isso parece fazer da fotografia uma arte menor. Se eventualmente uma “a imagem acontece” é exatamente por sua complexidade: além das inten??es de um indivíduo, um universo de outras determina??es participam dessa experiência. Mas é difícil enxergá-las, porque foram recalcadas pelo desejo de afirmar na fotografia uma no??o um tanto egocêntrica de autoria. Como isso ocorreu?A primeira propaganda da fotografia, de fato, abusou ao prometer uma imagem feita exclusivamente pela natureza. Aqui, o próprio ser humano se tornou um aspecto invisível da técnica. Para compensar o estrago feito por esse discurso, partimos para um caminho radicalmente oposto: tentamos afirmar a total submiss?o da imagem à autoridade do olhar. Quando reivindicamos essa autoridade para o indivíduo, tornamos invisíveis os movimentos da natureza e o pensamento da coletividade que participam da técnica.N?o comecei a pensar sobre isso por causa de fotografias feitas por cegos, mas por causa de algumas imagens minhas. Muitas vezes me perguntavam sobre a raz?o que guiava algumas decis?es no momento da tomada, e eu simplesmente n?o tinha o que dizer. Meu problema n?o era ent?o a cegueira, mas a mudez que eu assumia diante dessas perguntas. Isso virou o meu mestrado, “A fotografia e o acaso”. E o que chamo de acaso é o próprio universo de determina??es que cruzam as decis?es de qualquer artista, situa??o particularmente desconfortável no caso da fotografia, por conta de seus traumas históricos.Vale pontuar alguns desses aspectos recalcados na fotografia:A natureza: por arrog?ncia, definimos a técnica como submiss?o da natureza, cujas for?as seriam colocadas a servi?o do homem. Apesar dos riscos assumidos pelos primeiros discursos sobre a fotografia, a natureza ainda têm seu papel na constru??o da imagem. A fotografia n?o é feita apesar das propriedades dos materiais (da luz, da lente, da prata ou das células sensíveis…). A fotografia é feita com eles. Nenhuma matéria é neutra ou amorfa. Em qualquer arte, a pesquisa de materiais envolve uma espécie de jogo de perguntas e respostas feito com a natureza, para descobrir o que é possível inventar por meio das qualidades que ela nos empresta.O mundo diante da c?mera: mesmo para a mais construída das fotografias, o mundo que se coloca diante da c?mera também n?o uma massa disforme que aguarda a manipula??o do artista para ganhar algum sentido. Em particular, a fotografia lida com coisas que, antes da tomada, tem seu próprios movimentos e suas histórias, além daquelas que a fotografia lhes acrescenta. Nesse sentido, o fotografo é uma espécie de bricoleur que faz convergir sua inten??o com inten??es preexistentes, que se apropria em seu discurso de sentidos já construídos no mundo.A cultura: a forma e o modo de funcionamento de um objeto técnico (seja a c?mera, o pincel, o arco e flecha) s?o moldados por expectativas e gestos dados ao longo de toda uma história. Se, quando apertamos o bot?o, uma imagem acontece é exatamente porque as possibilidades do aparelho foram orientadas para a produ??o dessa ordem. Nesse sentido, por mais que a decis?o final perten?a a um indivíduo, a coletividade sempre fala através de seu gesto. Curioso o tom de denúncia que assumimos quando se trata de lembrar que a fotografia é culturalmente codificada, como se fosse possível uma arte livre de par?metros.Particularmente, a obra de Bavcar ainda faz pensar em outras determina??es que participam da fotografia:O corpo: em grego, aesthesis diz é conhecimento permitido pelos sentidos do corpo, qualquer um deles, ou todos eles. A primazia do olhar, sentido que melhor responde à nosso desejo de racionaliza??o, parece almejar uma anestesia (anula??o da aesthesis) dos outros sentidos. Mesmo a pintura pode ser pensada como uma arte mais que visual (W. Mitchell: HYPERLINK "" \l "v=onepage&q=%22No%20existen%20los%20medios%20visuales%22&f=false" No existen médios visuales). A action painting sublinhou o caráter tátil e performático que toda pintura talvez tenha; Duchamp rompeu com uma tradi??o da arte que chamou de olfativa (pelo cheiro da terebentina que os pintores usam). Parte desse dialogo que um autor tem com os materiais, com a cultura, com o mundo é mediado por sentidos que um pouco arbitrariamente s?o resumidos sob o nome de olhar (o que Bavcar chamou de oculocentrismo).A vida própria das imagens: assim como o mundo diante da c?mera tem uma história, a imagem que ela produz terá a sua. Se um artista dominasse totalmente sua imagem, uma vez pronta, ele n?o precisaria retornar a ela. Incomoda pensar como um fotografo cego vê suas imagens? Podemos inverter o problema:? será que algum artista viu um dia a totalidade de suas imagens? Uma obra sempre estará em dialogo com outros tantos discursos que a envolvem. ? só por isso que uma imagem ainda pode provocar surpresa, mesmo quando já foi vista tantas vezes, mesmo para aquele que a produziu.Quando se trata de pensar a fotografia feita por um cego, algumas quest?es s?o recorrentes: como ele pode ter o controle sobre a imagem que produz? Mais ainda, como ele pode checar se a imagem produzida coincide com suas intui??es? Em sua fala, Bavcar deixou claro que seu trabalho é mais o exercício de uma descoberta do que de uma certeza. E quando perguntado se a imagem que lhe descreviam coincidia com a que ele havia imaginado, a resposta foi curta:? jamais! ? uma quest?o menor saber como um cego pode alcan?ar em seu trabalho o mesmo nível de controle que tem um fotografo vidente. A grande quest?o é como qualquer fotografo tem aí uma oportunidade de reaprender algo sobre as tantas determina??es que s?o recalcadas pelo pretenso controle sobre suas imagens.Evgen Bavcar, Imagem Quebrada.***Para quem ainda n?o passou por lá, sugiro uma visita ao HYPERLINK "" Dobras Visuais, onde Lívia Aquino traz também uma reflex?o sobre o trabalho de Bavcar.No blog do HYPERLINK "" Fórum Latinoamericano de Fotografia, comentamos TCC da mexicana Carolina Sepúlveda, que discute a fotografia feita por deficientes visuais.A exposi??o “Estética do (in)visível” segue até o dia 17/09/10, no Senac Lapa-Scipi?o (R. Scipi?o, 67 – Lapa).A fotografia segundo Jesus Cristo Nesse fim de semana, tivemos o Intercom em Caixas do Sul. Houve algumas ausências,? como Fernando de Tacca, Cláudia Linhares e meu parceiro Rubens Fernandes Junior. Em compensa??o, chegaram novos integrantes, como HYPERLINK "" \t "_blank" Eduardo Queiroga e HYPERLINK "" Lívia Aquino.?O trabalho que apresentei nasceu de um post para o Ic?nica, que nunca foi publicado porque ficou grande (e talvez estranho) demais. Aí vai um resumo:Acheiropoiesis: sobrevivência do valor de culto na imagem técnica O cristianismo passou séculos discutindo se era ou n?o legítimo representar Deus por meio da imagem. Dentre toda a arte que produziu, um tipo de imagem-relíquia parecia mais competente do que as outras para essa tarefa, aquela que foi chamada de “acheiropoietos” (ou “achiropita”, numa grafia italiana). Literalmente, essa palavra grega se refere a uma imagem que n?o foi feita pela m?o do homem (a=n?o; kheir=m?o; poiesis=fazer). Ou seja, trata-se a uma representa??o que supostamente emana de Deus, impregnada de sua própria subst?ncia.Representa??o do rei Abgar recebendo um acheiropoietos de Cristo, pintura do séc. X.Algumas lendas crist?s apontam para essa situa??o: até desaparecer no final do século XVIII, cultuava-se na Europa uma imagem que Cristo teria feito aparecer num tecido para ser enviada ao Rei Abgar de Edessa, já que seu brilho ofuscava a vis?o do pintor que deveria retratá-lo; pelo menos duas imagens na Itália (uma no Vaticano e outra em Manoppello) s?o reivindicadas por alguns de seus devotos com sendo o pano que Ver?nica usou para enxugar o rosto de Cristo no Calvário (há a hipótese de que o nome Ver?nica seja oriundo de “Vero Icon”: verdadeira imagem); por fim, uma das mais comoventes relíquias do cristianimso, o Sudário de Turim, mortalha que teria envolvido Cristo em seu sepultamento, cuja imagem teria sido revelada com mais clareza, gra?as a uma fotografia do século XIX.N?o é difícil intuir a liga??o entre a fotografia e esse tipo de imagem sagrada, pois há uma grande proximidade entre o que os teólogos medievais chamavam de “imagem consubstancial” e o que nossa semiótica contempor?nea chama de “índice”. Barthes foi provavelmente o primeiro a explicitar essa rela??o:“A fotografia sempre me espanta, com um espanto que dura e se renova, inesgotavelmente. Talvez esse espanto, essa teimosia, mergulhe na subst?ncia religiosa de que sou forjado; nada a fazer: a Fotografia tem alguma coisa a ver com a ressurrei??o: n?o se pode dizer dela o que diziam os bizantinos da imagem do Cristo impregnada no Sudário, isto é, que ela n?o é feita pela m?o do homem, acheiropoietos?” (A c?mara clara).Com inspira??o em Barthes, um pequeno e denso texto de Georges Didi-Huberman, “O índice da chaga ausente. Monografia de uma mancha” ( HYPERLINK "" \t "_blank" L’image ouverte), retoma a liga??o entre o Sudário e a fotografia. A partir de Barthes e Didi-Huberman, Philippe Dubois também se aproxima desse tema no ensaio “O corpo e seus Fantasmas”(O ato fotográfico).? claro que pensar a fotografia como “imagem n?o feita pela m?o do homem” significa retomar um equívoco propagado desde o século XIX. N?o é preciso voltar a isso. A quest?o que coloco é: quando buscamos sentir na fotografia a presen?a de uma “subst?ncia” emanada do objeto representado, n?o repetimos as mesmas expectativas que os crist?os depositam no acheiropoietos? Em outras palavras, será que n?o sobrevivem nos rituais que praticamos diante das imagens técnicas resíduos de um olhar místico aparentemente sepultado pela modernidade?O que buscamos n?o é tanto um “significado” presente na fotografia, mas aquilo que Didi-Huberman chamou de “sintoma”, uma fissura que surge na imagem e que escapa às determina??es culturais que normalmente o historiador da arte busca. No final das contas, alguns gestos s?o reafirmados pela própria a??o que visava negá-los: com todas as rupturas trazidas pelo Renascimento, a perspectiva ainda traz para a pintura as expectativas de que a natureza ofere?a um método para sua própria representa??o. Ou seja, o que se deseja ainda é uma imagem espont?nea, e a fotografia (o “Lápis da Natureza”) é o ápice dessa busca, uma espécie de acheiropoiesis racionalizada.Esse resíduo místico na fotografia sugere a sobrevivência de um valor de culto exatamente nessa imagem que, conforme Benjamin, parecia superá-lo. Mas é ele próprio quem nos fala da resistência da uma “aura” na fotografia, sobretudo em certos retratos, cujo caráter mágico nem mesmo a pintura é capaz de superar.O Sudário de Turim é um lugar de encontro de uma potência religioso e uma potência científica. Mesmo para os mais devotos, as manchas trazidas por esse tecido nunca mostraram exatamente uma figura??o de Cristo. Foi preciso aguardar que ele fosse fotografado por Secondo Pia, em 1898, para que se pudesse ver no negativo a imagem que hoje conhecemos do corpo de Cristo. Trata-se de uma dupla revela??o, no sentido religioso e técnico ao mesmo tempo.Negativo fotográfico do Sudário de Turim (1898), e autorretrato de Secondo Pia (1890).Nada disso explica o que é a fotografia. Mas talvez ajude a entender o desejo de “ressurrei??o” que ainda depositamos em algumas imagens que mobilizam nossos afetos.***Em breve, devo publicar o texto completo na forma de artigo. Mas os trabalhos apresentados no Intercom 2010 podem ser encontrados no HYPERLINK "" site do evento.Revista Nacional Sou um apaixonado por revistas. Tenho uma cole??o das mais diversas. Do come?o do século passado gosto da Kosmos, da Illustracao Brasileira, da Frou Frou, Brazil Magazine, entre outras revistas ilustradas que buscavam mostrar o Brasil do ponto de vista político, social e cultural. Depois disso guardo alguns exemplares da revista O Cruzeiro, a cole??o da Revista S. Paulo, os primeiros cinco anos da revista Senhor e a cole??o da Realidade. Ah, também tenho alguns exemplares da revista Bondinho. Além disso, as revistas especificas sobre fotografia. HYPERLINK "" Revista NacionalMas confesso: a Revista Nacional me deixou perplexo. Passei mal! N?o só pela qualidade da apresenta??o, da dire??o de arte, dos textos e, claro, das fotografias. O que me estarreceu foi a coragem de produzir na mesma edi??o um volume t?o surpreendente de informa??o, em tese, comercialmente inviável. Mas a parceria de J R Duran com os gráficos Burti mostra uma excelência de trabalho conjunto raro e, ate mesmo, inédito em nosso país. E é isso que nos deixa cada vez mais otimistas em rela??o à fotografia.S?o 144 páginas super bem impressas no formato 30X36,5 cm e papel Novatech 170g. Contabilizei 99 páginas dedicadas à fotografia, 3 ao desenho e 32 ao texto, num fundo branco t?o impecável que impressionam nossa vis?o e cria instantaneamente uma atmosfera diferenciada. Ou seja, 70% da revista s?o imagens que deixam em êxtase qualquer mortal apaixonado que tem a oportunidade de percorrê-las livremente. Uma experiência que permite perceber a coexistência harmoniosa entre texto e fotografia, entre mancha gráfica e informa??o, entre a tradi??o e o frescor da novidade.J R Duran é um fotógrafo que persegue apaixonadamente seus projetos. A publica??o tem uma pegada contempor?nea, mas está apoiada em vivências editoriais bem sucedidas. E fácil constatar que n?o se trata de uma aventura, e sim projeto de longo prazo, ambicioso que pretende produzir em dez anos um volume de informa??o que será síntese da década que se inicia. Iniciativas como essa – a materialidade do trabalho impresso e disseminado – e que nos d?o ?nimo para acreditar que o futuro pode ser diferente do que propaga.As fotografias selecionadas para esta edi??o tem as características do trabalho autoral de J R Duran. Os retratos concisos em seus planos fechados ou médios atraem nosso olhar e concentram nossa aten??o; as mulheres, quase sempre fotografadas com seus segredos e sensualidade, mostram que é inútil sondar o abismo do mistério interior; a documenta??o do cotidiano indígena tem um tratamento clássico e inspirado; e S?o Paulo vista do alto, ganha ares de metrópole espetacularizada pelo olho educado e sensível do artista.Enfim, a Revista Nacional promete ser uma experiência editorial que fará história na mídia impressa brasileira. A sele??o impecável dos colaboradores, associada às fotografias e à dire??o de arte de J R Duran, e a ousadia gráfica Burti garantem que o desafio da continuidade está assegurado. Um projeto requintado, merecedor de todos os elogios e de todos os vivas.Muita fotografia e vídeo na Bienal Fui procurar saber o que haveria de fotografia na 29a Bienal de S?o Paulo: Guy Veloso, Jonathas de Andrade, Rochelle Costi, Rosangela Rennó, Miguel Rio Branco, Alice Miceli, Alfredo Jaar, Nan Goldin s?o nomes que consigo identificar na HYPERLINK "" \t "_blank" lista oficial de participantes. Certamente, há outros fotógrafos que n?o conhe?o, e artistas menos óbvios que eventualmente podem se aproximar dessa linguagem.Guy Veloso. Da séire "Penitentes", que será mostrada na Bienal.Já se insinuou que a intensa presen?a da fotografia e do vídeo nas Bienais coincidia com a escassez de obras consagradas e com o fim dos “núcleos históricos”, sintomas de um empobrecimento do evento. Mas é fácil constatar que essas linguagens conquistaram seu lugar nos espa?os e debates dedicados à arte contempor?nea em todo o mundo.Poderíamos investir no argumento de que foram superados os preconceitos históricos que emperravam o reconhecimento da fotografia como forma legítima de arte. Mas vale a pena refletir sobre o que pode haver de verdadeiro por trás desse suposto “empobrecimento”. De verdadeiro, e n?o necessariamente de negativo.Acredito que essa presen?a da fotografia tenha sim algo a ver com o desejo dos artistas e principalmente dos curadores de dialogar com a cultura de massa, de aproximar a arte de express?es que s?o familiares ao público, de oferecer alternativas para a ideia arcaica de “gênio”, de deslocar o valor do objeto para o conceito. Essas s?o várias formas de falar da mesma coisa: o embate que arte contempor?nea estabelece com tudo aquilo “auratiza” a obra. Como percebeu Benjamin, coube exatamente à fotografia e ao cinema a tarefa de confrontar pela primeira vez a arte com essa quest?o, que foi também colocada por outros fen?menos tipicos do século XX, os ready mades, as tendências pop, a arte desmaterializada. Natural que a fotografia esteja presente no momento em que os artistas e curadores decidem aprofundar esse debate. HYPERLINK " pouca realidade.pdf" \t "_blank" Ferreira Gullar publicou há alguns meses em sua coluna, na Folha de S. Paulo (“A pouca realidade”, 07/03/2010), uma crítica que aponta outra forma de empobrecimento, n?o do objeto artístico em si, mas do sentido que ele é capaz de produzir. O vil?o é um tipo de fotografia, de cinema e de vídeo que ele imagina invadir o espa?o da Bienal. Diz ele:“Leio que a próxima Bienal de S?o Paulo será tomada por filmes, fotografias e videoinstala??es. E n?o ser?o filmes de fic??o, mas filmes que tratam da realidade política, econ?mica e social. Essa notícia veio ajustar-se a uma leitura que tenho feito do rumo tomado pelas artes plásticas, segundo a qual tudo o que nelas era fantasia foi substituído pela realidade. (…) Ao substituir as significa??es simbólicas pela exposi??o pura e simples dos fen?menos reais, abre-se m?o da capacidade humana de criar um universo imaginário que, durante milênios, contribuiu para fazer de nós seres culturais, distintos dos demais seres vivos que, estes, sim, limitam-se à experiência do mundo material.”Ele parte provalvelmente a uma HYPERLINK "" reportagem de Silas Marti, publicada no mesmo jornal (25/01). Gullar retomou a discuss?o (“A pouca realidade 2”,?21/03), respondendo a uma manifesta??o da curadoria da Bienal que, segundo ele, concordava com sua “tese de que a arte existe porque a realidade n?o nos basta”. Mas a limita??o de algumas linguagens lhe parece incontornável: “Se é assim, tanto melhor. Mas por que fazê-lo por meio do cinema se a Bienal é de artes plásticas?”Interessante como o artigo de Gullar tem afinidades com a famosa HYPERLINK "" \t "_blank" crítica de Baudelaire ao Salon de 1859. Alguns trechos mais violentos contra a fotografia já s?o bem conhecidos, vejamos apenas o parágrafo final do texto:“Dia a dia, a arte perde o respeito por si mesma, se prosterna diante da realidade exterior, e o pintor se torna cada vez mais inclinado a pintar, n?o o que sonha, mas o que vê. Entretanto, é uma felicidade sonhar, é uma glória exprimir o que se sonha, mas o que direi? Você ainda conhece essa felicidade? Afirmará o observador de boa fé que a invas?o da fotografia e a grande loucura industrial n?o estejam ligadas a esse resultado deplorável? Será possível supor que um povo, cujos olhos se habituaram a considerar os resultados de uma ciência material como produtos do belo, n?o terá, ao largo de certo tempo, particularmente diminuída sua faculdade de julgar e de sentir o que há de mais etéreo e de mais imaterial?”Esses s?o dois críticos e poetas respeitáveis, n?o podemos simplesmente desqualificar suas opini?es. O temor que manifestam tem fundamento: realidade e arte s?o coisas distintas. O que cabe é perguntar a que exatamente se dirigem suas críticas.Que fotografia é essa que pode ser entendida como “exposi??o pura e simples dos fen?menos reais”? Esse sim foi um “sonho” que a ciência positivista produziu, e que a primeira propaganda da fotografia ingenuamente replicou.O problema é muito mais um discurso equivocado sobre a fotografia do que uma escolha feita pelos artistas. A diferen?a é que, na época de Baudelaire, esse discurso era hegem?nico, na de Gullar, se ainda sobrevive (ele dá exemplos no segundo texto), já n?o deveria ser levado t?o a sério.Se de fato a fotografia, o cinema e o video se fazem cada vez mais presentes nos espa?os de arte é exatamente porque já se constatou o fracasso dessas linguagens como “reprodu??o do real”. Já n?o precisamos da retórica didática da “fotografia construída” para perceber que a mais documental das imagens n?o escapa da condi??o de “representa??o”.N?o encontramos em textos posteriores de Baudelaire manifesta??es contra a fotografia como essa de 1859. Ao contrário, sabemos da admira??o e respeito que cultivou pelo trabalho de fotógrafos como Etienne Carjat e Nadar, que se tornaram seus amigos. Isso leva a crer que Baudelaire teve a oportunidade de vencer seus temores e de compreender melhor os potenciais da fotografia. ? surpreendente ter que voltar ao assunto um século e meio depois.Ninguém tem a obriga??o de gostar da fotografia. Mas se é para questioná-la, que seja por aquilo que ela pode efetivamente ser. N?o pela sua suposta coincidência com a realidade, coisa que, por mais que se tenha tentado, ela jamais alcan?ará.***Textos na íntegra: HYPERLINK "" \t "_blank" A pouca realidade 1 e 2, de Ferreira Gullar HYPERLINK "" \t "_blank" O público moderno e a fotografia, de Charles BaudelaireHistória da fotografia à maneira de Dan Brown Três posts abaixo, eu falava da sobrevivência de um “valor de culto” na fotografia, emprestando de Barthes e Didi-Huberman a compara??o com o Sudário de Turim, como forma de expressar um aspecto misterioso e sagrado que existe em algumas fotos.Zapeando a TV dias depois, parei num programa do Discovery Channel que falava extamente sobre o Sudário (na última experiência que tive com esse canal, aprendi muito sobre os possíveis resultados do duelo entre um urso polar e uma morsa). Nesses pseudo-documentários as coisas sempre adquirem um aspecto espetacular, com direito a encena??es, simula??es, infográficos, demonstra??es em laboratório, um narrador com voz dramática, músicas de suspense, e cientistas dando depoimentos do tipo: “eu n?o podia acreditar no que estava vendo…!” O Sudário, que na m?o daqueles pensadores era uma bela metáfora para pensar a fotografia, se torna aqui pretexto para especula??es mirabolantes, com ares de teoria conspiratória. Em resumo, a tese deles é a seguinte:Mesmo sendo evidente que Cristo passou longe daquele tecido, a imagem é feita com um realismo surpreendente e com uma técnica até hoje n?o desvendada. Aí vem a pergunta: qual gênio teria sido capaz de tal proeza? Quem, sen?o ele, Leonardo da Vinci! O documentário explica que a falsifica??o do sudário teria sido uma espécie de jogada de marketing dos Savoy, poderosa família italiana, com a colabora??o secreta de Leonardo, pintor com certa voca??o para a heresia. Desvendada a autoria, resta saber qual é a técnica misteriosa empregada. E adivinhem só… Daguerre, Talbot, Florence, Nièpce, n?o tem pra ninguém. Leonardo foi o verdadeiro inventor da fotografia. Conforme um tal Nicholas Allen é a de que ele teria aplicado uma solu??o de sulfato de prata sobre um tecido, devidamente exposto dentro de uma c?mera escura. ? frente da c?mera, um cadáver provavelmente servia de modelo. A coisa n?o pára por aí. Existe certa despropor??o do rosto em rela??o ao corpo representado no Sudário. A conclus?o é a de que o rosto teria sido gravado numa exposi??o separada. Compara??es com algumas pinturas sugerem, na leitura dos cientistas consultados, que quele rosto de Cristo era, na verdade, um autorretrato de Leonardo. Parece um roteiro saído de um livro de Dan Brown (de “O código Da Vinci”), que certamente inspira o documentário.Fragmento de “O manto de Da Vinci”, Discovery Channel, 2006.Um breve olhar para a história da fotografia já evidenciaria algumas contradi??es, que o documentário ignora sem qualquer cerim?nia. Eles falam como se fosse um consenso que a sensibilidade da prata já era conhecida no renascimento. Nunca soube disso, mas vamos supor que sim. N?o explicam, no entanto, como a imagem teria sido fixada, quest?o crucial que emperrou as pesquisas no século XIX. Outra coisa: como o programa sugere, a exposi??o do corpo à luz pode ter levado três dias, até gerar a imagem tênue que está no Sudário. Fica difícil entender como Leonardo teria conseguido gravar seu rosto. Conhecemos bem as dificuldades para o retrato no século XIX, mesmo quando a exposi??o já tinha baixado para alguns poucos segundos.Sei que Boris Kossoy enfrentou resistências quando divulgou para o mundo suas pesquisas sobre a descoberta da fotografia no Brasil, por Hércules Florence. Será que um dia teremos que dar o bra?o a torcer e nos desculpar com os cientistas injusti?ados do Discovery? N?o tem compara??o. O problema n?o está nas especula??es que eles fazem, mas na linguagem sensacionalista a que se rendem. Qualquer verdade manifestada desse modo merece nossa desconfian?a. Contra essas teses rebuscadas e emocionantes, vale o conselho do filósofo medieval Guilherme de Ockham: dentre as várias teorias que explicam um fen?meno, a mais simples é sempre a melhor.Ouvi algumas vezes de Luis Felipe Pondé, colega da Faap, a seguinte frase: o problema quando deixamos de acreditar em Deus é aquilo que colocamos no lugar dele. Tanto faz no que acreditamos mas, pelo menos, as estratégias de como??o das religi?es tradicionais s?o mais sofisticadas e poéticas do que as adotadas por essas pseudo-ciências. Se é pra tirar alguma li??o dos mitos, é preferível recorrer àqueles que sobreviveram ao tempo, n?o aqueles que est?o em cartaz na programa??o da Discovery.Um momento especial para a fotografia Nunca na história da fotografia, nacional e internacional, vivemos um momento t?o intenso como este. Pelo fato da fotografia passar por uma nova consolida??o de seu suporte tecnológico, tem provocado uma aten??o especial à sua produ??o. Sua legitimidade como manifesta??o artística e cultural é indiscutível e podemos assistir agora em S?o Paulo uma verdadeira explos?o fotográfica de qualidade inquestionável. ? possível acessar exposi??es em que a fotografia, moderna e contempor?nea, ocupa espa?os nobres da cidade e provoca nossa imagina??o.O século XX possibilitou a consolida??o da fotografia gra?as aos artistas que souberam n?o só dominar a técnica, como expandir os limites do fazer fotográfico e produzir imagens que nos deixa em estado de êxtase. Antes de mais nada, entender o território da fotografia dentro da arte contempor?nea é perceber como ela conquistou um espa?o nobre nas artes visuais através de um trabalho incessante em várias dire??es, viabilizando-se como documento e como superfície sensível capaz de detonar quest?es estéticas e perceptivas. HYPERLINK "" Irm?os Vargas. Isabel Sanchez Osório, 1926Se pensarmos na fotografia moderna, há de se destacar as exposi??es da Pinacoteca do Estado – Estúdio de Arte Irm?os Vargas – a fotografia em Arequipa, Peru – 1912/1930 e Gaspar Gasparian – um fotógrafo, ambas com a curadoria de Diógenes Moura; e a mostra As constru??es de Brasília, fotografias de Marcel Gautherot, Peter Scheier e Thomaz Farkas, na Galeria de Arte do Sesi (Avenida Paulista, 1313), organizada pelo Instituto Moreira Salles.Visitar a exposi??o dos Irm?os Vargas é se deparar com a beleza acentuada da fotografia encenada e se emocionar com o clima dramático das luzes e dos retoques da fotografia pictorialista. Mantendo um estúdio em Arequipa, distante e desconectado dos centros de produ??o, eles desenvolveram com muito sucesso uma fotografia baseada no retrato teatralizado. Incríveis performances que lembram o cinema mudo, mas que ainda hoje ressoam como experiências estéticas realizadas entre o pictórico e o cinemático no interior da própria fotografia. HYPERLINK "" Gaspar GasparianA exposi??o de Gaspar Gasparian traz outra desconcertante vivência diante do belo, pois estamos frente a cópias vintage, de época, que tem uma adequa??o exata entre a densidade da matriz (o negativo) e a textura e o tom do papel utilizado. Essa quest?o é relevante, pois a fotografia produzida nos anos 1950 era idealizada para ser impressa num suporte específico dentre as variedades disponíveis no mercado. Isso dava à fotografia uma característica imagética diferente das impress?es digitais atuais. Além disso, Gasparian foi empresário bem sucedido na área têxtil e fotógrafo amador, um exemplo clássico dos associados do Foto Cine Clube Bandeirante, a moderna escola da fotografia brasileira. A exposi??o nos permite perceber que suas fotografias s?o composi??es harmoniosas, algumas arranjadas, de luzes estudadas e cortes precisos, que desvendam os seus procedimentos de trabalho.Já a Galeria de Arte do Sesi traz em As constru??es de Brasília, imagens de alguns dos mais importantes nomes da fotografia documental dos anos 1950 – Marcel Gautherot e Peter Scheier – e da fotografia modernista – Thomaz Farkas. A exposi??o tem a monumentalidade da arquitetura da capital e acentua a qualidade técnica e estética da fotografia produzida por estes profissionais, referências fundamentais da história do período. Como sempre, a montagem do Instituto Moreira Salles é exemplar.Simultaneamente aos modernos, temos os contempor?neos. As exposi??es Apreens?es, de Bob Wolfenson, no Centro Cultural Maria Antonia; Maldicidade, de Miguel Rio Branco, no Museu da Imagem e do Som; Recorrências, de Mauro Restiffe, na Galeria Fortes Vila?a; Esqueceu de Beber ?gua, Agora Chora de Sede, de Caio Reisewitz, na Galeria Luciana Brito; A Casa em Festa, da novata Flavia Junqueira, na Zipper Galeria; a 18? edi??o da Cole??o Pirelli-Masp, no Masp; e a presen?a da fotografia da Bienal Internacional de S?o Paulo. HYPERLINK "" Miguel Rio BrancoEssa reuni?o de artistas e institui??es culturais mostra a for?a da fotografia na cena cultural paulistana e brasileira. A individual de Miguel Rio Branco, por exemplo, reúne 40 fotografias, 3 vídeos e uma instala??o, discute o drama e o isolamento dos menos favorecidos que vivem nas grandes metrópoles. Rio Branco com seu olhar crítico e poético mantém o tom provocativo de seus trabalhos anteriores e deixa claro que sua inten??o é dar visibilidade à situa??o de abandono e decadência do espa?o público. Fotografias sombrias, de extrema complexidade e carregadas de denúncias que, somadas aos vídeos e à instala??o, montam uma narrativa dramática e sensível do homem contempor?neo.Fica claro que houve um esfor?o por parte das institui??es culturais e galerias comerciais que selecionaram o seu melhor para o período da Bienal da Internacional. Se por um lado temos a Cole??o Pirelli-Masp com 17 artistas que integram esta edi??o, mostrando mais uma vez a diversidade geográfica e a singularidade da produ??o fotográfica brasileira; por outro, temos a Bienal Internacional, que nesta edi??o ampliou significativamente os espa?os para a fotografia e o vídeo. HYPERLINK "" Nan GoldinA decep??o fica por conta da exposi??o de Nan Goldin, divulgada pela Funda??o Bienal de S?o Paulo com bastante antecedência, mas que na verdade n?o mostra as fotografias da artista. S?o apenas imagens projetadas e sonorizadas. N?o é vídeo nem fotografia. A expectativa que tínhamos era de ver as amplia??es fotográficas de Nan Goldin que, ao longo de suas séries, desenvolveu uma profunda análise das nossas rela??es sociais, familiares e amorosas. Suas imagens s?o provocativas e n?o permitem qualquer indiferen?a. The Ballad of Sexual Dependency, de 1986, título que remete a uma can??o de Bertolt Brecht, já é um clássico da fotografia intimista e dramática; The Beautiful Smile, de 2007, relativo ao prêmio da Hasselblad; e Emotions and Relations, de 1998; s?o livros que trazem a quest?o do cotidiano e da intimidade via uma fotografia direta, sem desvios aparentes.Essas exposi??es, que mostram importantes artistas, abrangem o moderno e o contempor?neo, ampliam nossa imagina??o e oferecem um conjunto de referências significativas para melhor compreens?o do mundo que vivemos. Nenhuma outra manifesta??o das artes visuais ocupa a cidade com tal diversidade e qualidade. Um momento especial para todos nós que batalhamos para criar espa?os de visibilidade e circula??o para a produ??o fotográfica nacional e internacional.Incubadora Borda, de Felipe RussoWelcome Home, de gUi MohallemSopro, de Breno RotatoriNesta quinta, dia 14/10, come?aremos na HYPERLINK "" \t "_blank" Galeria Olido a exposi??o do HYPERLINK "" \t "_blank" Projeto Incubadora, do qual participo junto com Felipe Russo,?gUi Mohallem, Breno Rotatori, Pio Figueiroa, Lua Cruz e Lucas Sim?es.Do que se trata? Quem estiver lá nesse dia, verá uma montagem inacabada de três trabalhos: HYPERLINK "" \t "_blank" Welcome Home, do gUi, HYPERLINK "" \t "_blank" Sopro, do Breno, e HYPERLINK "" \t "_blank" Borda, do Felipe. Também estaremos lá para um bate-papo. A exposi??o deverá se reconfigurar e, no dia 28/10, haverá uma nova abertura. A principal interface do projeto é um HYPERLINK "" \t "_blank" blog, onde se pode acompanhar o desenvolvimento das nossas conversas.Breno, Felipe e gUi já trabalhavam muito juntos quando decidiram transformar o debate num projeto. Cada fotógrafo formalizou a presen?a de alguém que já estava mais ou menos por perto: Breno chamou Pio, Felipe chamou Lua, e gUi chamou Lucas. Depois, sugeriram me incluir.Foi em mar?o deste ano, numa padaria, que eu os encontrei pela primeira vez. Eles me apresentaram a idéia e mostraram o que já tinham feito. Os trabalhos eram muito bons, aceitei participar, mas n?o necessariamente eu entendia “ HYPERLINK "" \t "_blank" o que nós, os outros, fazemos aqui”. Esse foi o título do meu primeiro post no blog do projeto. Está claro que n?o somos autores, nem exatamente curadores. Quebramos a cabe?a pensando em nomes para isso, mas é o que menos importa.A idéia era criar condi??es para que os trabalhos fossem afetados pelas conversas, e deixar num blog o rastro dessa experiência.? Por mais que eu mesmo desconfiasse, foi de verdade. Era absolutamente sincera a abertura que os três promoviam, e todos puderam ver o quanto os formatos e os sentidos dos trabalhos se reconfiguravam ao longo dos encontros. Chegamos a nos perguntar se deveria haver uma exposi??o, ou se o blog n?o vestia melhor a face mais importante do projeto, que era a interlocu??o. O desenho da exposi??o foi uma etapa crucial das conversas, talvez a parte mais coletiva de tudo o que foi criado pelo grupo.Incubadora é um projeto, n?o é um coletivo de arte. Seu contrato é mais provisório, mais instável. Mas é uma resposta peculiar dada a quest?es que movem muitas experiências contempor?neas, incluindo a dos coletivos. Discutir e mostrar “processos” também n?o é exatamente uma novidade na arte contempor?nea. Mas a fotografia é particularmente resistente a isso, porque ainda pesa o modo de trabalho dos clássicos: a cria??o fotográfica como algo puramente introspectivo, que se resolve dentro do “instante”,? e que gera imagens únicas e definitivas. Mesmo para os clássicos, isso n?o é totalmente verdadeiro.O Projeto Incubadora n?o inventa nada de novo (coisas como o processo, a interlocu??o), também n?o destrói o que é antigo (coisas como a autoria). Apenas busca uma medida para essas coisas, e coloca em evidência aspectos da cria??o fotográfica que tendem a ser recalcados, mesmo que estejam sempre presentes.—Galeria OlidoAv. S?o Jo?o, 473, CentroAbertura: 14/10, 20h30Visita??o: ?15/10 a 28/11, ter?a a domingo, das 13h às 20hA exposi??o reconfigurada abre no dia 28/10Darwin e a fotografia Neste fim de semana, assisti ao filme “Creation” (2009), recorte da biografia de Charles Darwin centrado nas dificuldades que enfrentou quando finalizava A origem das espécies (1859). Vemos ali um personagem debilitado por uma doen?a desconhecida, atormentado pela morte de uma filha, e em conflito com os valores crist?os de sua comunidade e de sua família.Numa das primeiras cenas, sua filha Annie está num estúdio se preparando para ser fotografada. Darwin lhe explica como funciona a técnica. Enquanto o fotógrafo tenta fotografar a menina, ela parece mais interessada nas aventuras que seu pai lhe conta. HYPERLINK "" Creation, 2009 (trecho do filme excluído por solicita??o da produtora)Imagino que a fotografia apare?a ali como emblema das inova??es técnicas que, ao lado da teoria de Darwin, impactaram o século XIX (ainda que, para a pequena Annie, essa novidade esteja ofuscada pelas histórias fantásticas que seu pai lhe conta).Especula??es à parte, a fotografia teve uma presen?a importante numa pesquisa posterior de Darwin, que resultou em A express?o das emo??es no homem e nos animais (1872). Encontrei uma HYPERLINK "" vers?o digitalizada da primeira edi??o desse livro, e vi que ele traz um número razoável de referências a trabalhos fotográficos, sobretudo feitos por cientistas. Podemos ler já nos agradecimentos: HYPERLINK "" Fotos cedidas por Herr Kindermann para "A express?o das emo??es".“Eu tenho o prazer de expressar meus agradecimentos ao Sr. Rejlander pela disposi??o de fotografar para mim várias express?es e gestos. Agrade?o também ao Sr. Kindermann, de Hamburgo, pela cess?o de alguns excelentes negativos de crian?as chorando, e ao Dr. Wallich, por um outro encantador, de uma menina sorridente.?Já expressei meu agradecimentos ao Dr. Duchenne, que generosamente me permitiu ter algumas de suas grandes fotografias reproduzidas e reduzidas.?Todas estas fotografias foram impressas pelo processo da Heliotipia, que garante a precis?o das reprodu??es.” HYPERLINK "" Duchenne de BoulogneO livro traz longos comentários sobre a pesquisa de Duchenne de Boulogne, que hoje nos parece um tanto lunático e perverso, dando choques no rosto de pacientes da Salpêtrière, diante da camera de Adrien Tournachon, irm?o de Nadar. Mas Darwin mesmo explica a import?ncia desse trabalho na compreens?o do funcionamento dos músculos faciais. HYPERLINK "" Oscar G. Rejlander, Autorretrato.Também foi uma supresa ver que nas referidas imagens de autoria de Oscar Gustave Rejlander, o próprio fotógrafo aparece encenando as “emo??es”, provavelmente, pautado diretamente por Darwin. HYPERLINK "" Darwin, por Julia M. Cameron, 1868.Conhecemos o belo retrato de Darwin feito por Julia Margaret Cameron, e encontramos HYPERLINK "" registros de duas cartas trocadas com Lewis Carroll, em que agradece o envio de fotografias, provavelmente para a pesquisa sobre as “Express?es”. Darwin, como outros cientistas e intelectuais, certamente mantinha boas rela??es com esses fotógrafos e artistas da Era Vitoriana.Para encerrar, uma curiosidade, mesmo que n?o explique muito sobre a rela??o de Darwin com a fotografia: vi que a m?e de Darwin se chamava Susannah Wedgwood. N?o foi difícil verificar que se trata da irm? de Thomas Wedgwood, pioneiro nas pesquisas que antecedem a descoberta da fotografia no século XIX, autor do artigo “Descri??o para de um método para copiar pinturas sobre cristal e para criar perfis por meio da luz sobre nitrato de prata” (1802).—Aproveitei o entusiasmo para comprar um livro que encontrei na Amazon: HYPERLINK "" \l "reader_0195150317" Darwin’s Camera: Art and Photography in the Theory of Evolution, que deve demorar algumas semanas para chegar. Se houver grandes novidades, complementarei o post.Infelizmente, o fime HYPERLINK "" Creation teve uma passagem efêmera pelas salas de cinema brasileiras, em mar?o deste ano.CLAUDIA ANDUJAR – CLAUDINE HAAS Este texto foi escrito para por ocasi?o do II Fórum Latino-Americano de Fotografia de S?o Paulo, realizado no Itaú Cultural, em que tive a oportunidade de entrevistar a artista Claudine Haas, ou melhor, Claudia Andujar. Acompanho o trabalho de Cláudia e sua trajetória desde os anos sessenta e setenta como leitor da revista Realidade. Mais tarde, tive a oportunidade de estar com ela em diversas ocasi?es. A única certeza era que o tema do Fórum – Fora de Casa, Fora do Eixo, Exílios e Migra??es na Fotografia – tinha fortes conex?es com sua experiência de vida. HYPERLINK "" Claudia Andujar no Palco do II Fórum - Foto: Olga Lislov, Fórum VirtualClaudia nasceu na Sui?a, passou a inf?ncia na Hungria, na cidade de Transilv?nia, que fica na divisa com a Romênia. Durante a Segunda Guerra Mundial sua cidade foi anexada à Hungria. Como refugiada foi para a Sui?a e posteriormente para os Estados Unidos. Lá teve sua educa??o e forma??o cultural e tornou-se artista plástica. Com vinte anos, em 1955, veio ao Brasil pela primeira vez, por raz?es familiares e logo se sentiu em casa. N?o sabe explicar o porquê, mas o contato humano foi t?o emocionante e intenso, que logo se apaixonou pelo país. Encontrou aqui um calor humano que n?o havia encontrado nos lugares por onde havia passado anteriormente.Mas, Claudia gosta de enfatizar que toda sua trajetória de vida, inclusive com a fotografia, está muito ligada aos seus primeiros vinte anos, ocasi?o em que teve a oportunidade de viver em diferentes lugares, presenciar o horror da guerra e a destrui??o dos la?os humanos e familiares.Para conhecer mais e melhor o povo brasileiro, viu que somente a pintura, que havia estudado nos Estados Unidos, n?o dava conta de suas necessidades expressivas. Foi ent?o que surgiu em sua vida a fotografia. Através dela pode conhecer melhor o povo brasileiro – aquele que vive no interior deste país t?o generoso e t?o diverso e grandioso geograficamente. Seu interesse sempre foi e continua sendo tentar entender porque as pessoas fazem o que fazem. Tem consciência de que o comportamento humano tem raiz na cultura, mas, também sofre influências de ordem psicológica. HYPERLINK "" Claudia Andujar, YanomamiEssa sua necessidade de compreender o Outro, sempre incluiu, necessariamente, um tempo de convivência alongado, o suficiente para tornar-se invisível diante desse Outro para obter imagens mais próximas possível da realidade. ? complemente avessa à idéia fotografar apressadamente, sem o mínimo conhecimento do homem e do seu entorno espacial. Para ela, o fotógrafo que tem esse tipo de comportamento n?o valoriza minimamente as rela??es humanas de cumplicidade e intimidade que envolve o ato fotográfico. HYPERLINK "" Capa da Revista RealidadeDesenvolveu seu notável trabalho de foto-repórter free lancer, entre 1958 e 1971. De 1959 a 1961 publicou nas revistas Life, Look, Aperture, entre outras. Na Editora Abril, trabalhou para as revistas Realidade, Quatro Rodas, Cláudia e Setenta. A partir de 1972 passou a se dedicar exclusivamente à causa Yanomami, que conheceu no início dos anos setenta, ocasi?o em que participou de uma grande reportagem sobre a Amaz?nia para a revista Realidade. Para iniciar este novo momento em seu trabalho com a fotografia, deixou sua atividade como free-lancer e conseguiu uma Bolsa da Funda??o Guggenheim (em 1972 e 1974) para realizar a documenta??o fotográfica sobre os Yanomami. Mais tarde, outra bolsa da Fapesp – Funda??o de Amparo à Pesquisa do Estado de S?o Paulo. Foi o come?o de uma nova vida ligada à defesa dos Direitos Humanos daquele povo, do seu território e à divulga??o de sua cultura.Durante 14 meses apenas conviveu e observou o cotidiano daquela comunidade indígena a fim de estabelecer os processos de confian?a mútua. Só após esse conhecimento mínimo é que ela come?ou a fotografá-los. Cláudia costuma afirmar que sua rela??o com os índios Yanomami, fio condutor de sua trajetória na fotografia e na vida, é essencialmente afetiva. Mais tarde, Cláudia agregou à sua atividade artística a milit?ncia política. Sua a??o como cidad? e artista se politizou. Seu engajamento ético e sua sensibilidade estética transformaram radicalmente sua vida. Através da ONG Comiss?o Pró-Yanomami atuou fortemente na demarca??o das suas terras, conquistada somente nos anos noventa. HYPERLINK "" Claudia Andujar, YanomamiSuas fotografias sobre os índios Yanomami s?o instauradoras de um mundo de incrível coerência centrado no aspecto humano e na confian?a mútua. ? um trabalho bastante espiritualizado, pois ambos – os índios Yanomami e Cláudia est?o concentrados na conex?o possível entre a fotografia, a sinceridade e o que há de divino naquele momento mágico em que os índios se abra?am e se enla?am; se pintam – gestos cotidianos que na sua fotografia se transfiguram de modo inquietante e cósmico. S?o imagens profundas, diretas, de profundo respeito, sem artifícios de embelezamento, que evidenciam a condi??o humana, motiva??o presente em toda a sua obra.Cláudia rompe com maestria o limite entre a fotografia documental e a abstra??o, e viabiliza um universo poético intenso e de rara beleza. Nisso reside sua potência de artista: trazer a fragilidade humana, seu cosmos e suas cren?as para a esfera do visível. Por ocasi?o de sua exposi??o em 2005 na Pinacoteca do Estado e lan?amento do seu livro A Vulnerabilidade do Ser, pela editora Cosac Naify, ela afirmou ao rever o seu arquivo: “o que chamou a aten??o ao rever meu trabalho é que em todos os momentos eu sempre procuro no Outro a beleza que vem desse amor que tenho pela Humanidade”.Para finalizar quero lembrar que Cláudia também publicou nas revistas Bondinho e Fotografia, que tinham como editor de fotografia, George Love, seu companheiro. Juntos eles organizaram em setembro de 1974, no Museu de Arte de S?o Paulo, a I Semana Internacional de Fotografia, ocasi?o em que tiveram a oportunidade de fazer a aquisi??o de muitas fotografias de consagrados autores internacionais. Cláudia publicou muitos livros, entre eles: Yanomami, em 1978, e Amaz?nia, ambos pela editora Praxis; Yanomami, em 1998, por ocasi?o da 2? Bienal Internacional de Fotografia Cidade de Curitiba; A vulnerabilidade do Ser, em 2005 e Marcados, em 2009, ambos pela Cosac Naify. Possui fotografias nas cole??es dos principais museus do mundo.—Dentre as várias quest?es que preparei para Cláudia Andujar, a primeira visava expor um fato importante muitas vezes ignorado, também pelos estudos estrangeiros que tem sido dedicados aos livros de fotografia brasileira:?pedi a ela que discorresse sobre a a??o da ditadura militar que censurou seus dois primeiros livros. Os textos, de Darcy Ribeiro e do poeta Thiago de Mello respectivamente, tiveram que ser retirados dos livros para garantir sua distribui??o. Cláudia nos brindou com respostas precisas e com informa??es preciosas que se tornaram públicas para grande maioria da platéia. Muitos vieram me agradecer por tomar conhecimento, pela primeira vez, de informa??es que requerem, além de pesquisa, rela??es de proximidade e intimidade. Do mesmo modo que Cláudia realiza seu trabalho.Seu discurso foi coerente, engajado politicamente, evidenciando a rela??o de amor, respeito e toler?ncia com os Yanomami. Após o debate, quando perguntei o que ela realmente sentiu quando se deparou com esses índios pela primeira vez, ela simplesmente respondeu: “eu fiquei t?o emocionada que percebi logo que apenas estava retornando a um mundo ao qual um dia eu também pertenci. Foi uma descoberta da minha ancestralidade. Me senti voltando para casa”.Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados – Parte III HYPERLINK "" Cena de Metrópolis, de Fritz Lang, 1927.? natural que idéias sejam deturpadas por quem as menospreza, mas o conceito de virtual foi às vezes mutilado pelo fogo amigo: é o fato de estar na moda que dificulta sua compreens?o.Este é o último de uma série de três posts. No primeiro, discuti os conceitos de HYPERLINK "" \t "_blank" realidade HYPERLINK "" \t "_blank" , representa??o da realidade e realismo, no segundo, HYPERLINK "" \t "_blank" analogia HYPERLINK "" \t "_blank" , mimesis, verossimilhan?a e objetividade.VirtualTemos chamado de virtual tudo aquilo que está associado às novas tecnologias, sobretudo às redes. Construímos assim a impress?o de que esta palavra surge para dar conta de uma novidade. Mas é preciso saber que estamos diante de uma no??o que é, pelo menos, uns vinte e cinco séculos mais velha que os computadores.No campo da fotografia, temos chamado de virtual a realidade inventada pelos artistas, em oposi??o àquela realidade que a c?mera encontra ordinariamente e que os fotógrafos documentaristas se esfor?am por reproduzir. Aqui, realidade virtual se torna o viés criativo e bem intensionado do que poderíamos chamar simplesmente de falsa realidade.Mas virtual n?o é aquilo que se op?e ao real, é uma dimens?o da realidade. A metafísica sempre se interrogou sobre o “ser” das coisas (aquilo que chamamos corriqueiramente de essência). Nessa perspectiva, Aristóteles dizia que esse ser pode existir em “ato”, aquilo que já está manifesto (que é “atual”), ou pode existir em “potência”, aquilo que tem a capacidade de “vir a ser” (Metafísica, livro V). Virtual é essa dimens?o potencial e disponível da existência, que já está inscrita no ser como possibilidade, que pode ser intuída, mas que ainda n?o se tornou presente. Por exemplo, um negativo fotográfico exposto e ainda n?o revelado é virtualmente uma imagem, as a??es da bolsa s?o virtualmente dinheiro, ou uma semente é virtualmente uma árvore (este último exemplo é de Pierre Lévy).Sugere-se aí a possibilidade de compreender o devir, portanto, de projetar o conhecimento para uma temporalidade mais complexa, que considera o movimento das coisas.Aristóteles gostava da arte exatamente porque enxergava nela essa competência de abordar o mundo em suas potencialidades. Ao contrário do historiador, que narra o acontecido, o poeta narra o que poderia acontecer (Poética, cap. IX).Novas tecnologiasPara mim, as discuss?es sobre tecnologia n?o s?o as mais empolgantes. Podemos passar rapidamente por elas, já assumindo que o que mais interessa virá no próximo tópico.Tudo o que está no computador ou na internet é virtual em certo sentido. N?o existe ali uma imagem, um texto, uma música, pelo menos, n?o o tempo todo. Existem apenas dados, mas que s?o potencialmente imagem, texto, música, ou seja, que est?o disponíveis para serem “atualizados” nessas formas. Mais ou menos como a “imagem virtual” que existe no negativo n?o revelado mas, enquanto a revela??o é um processo definitivo, a imagem digital permanece sendo essencialmente dados, e sua atualiza??o numa manifesta??o visível é sempre provisória.Num sentido mais complexo, podemos dizer que as imagens de síntese numérica, isto é, geradas diretamente no computador, produzem realidades virtuais. Elas n?o s?o cópias de um fato ocorrido, s?o encena??es “modeladas” a partir de conceitos abstraídos da realidade. N?o s?o simplesmente fic??es, pois ainda podem corresponder às potencialidades do real. Sem dúvida, elas est?o aptas a simular também?realidades impossíveis mas, uma vez que responde a um modelo, a imagem n?o deixa de mostrar potenciais coerentes com as condi??es estabelecidas. Se n?o reproduz uma natureza idêntica à nossa, constrói uma natureza com uma coerência similar. A realidade virtual construída por meio de simula??o n?o prova nada, nem prevê nada, apenas diz que, dadas tais condi??es, tais coisas poderiam acontecer. Por isso mesmo, ainda tem valor de conhecimento em certos conhecimentos. Mas cabe dizer que isso n?o é exclusividade das experiências mediadas pelas novas tecnologias. Sem dúvida, isso é válido para a simula??o de um terremoto calculada por um super computador, mas também para a tradicional simula??o de incêndio feita num edifício.N?o vou entrar nesse assunto mas, há alguns meses, publiquei no blog de um amigo HYPERLINK "" um artigo sobre a “virtualiza??o das identidades” nas redes sociais.FotografiaCom novas ou velhas tecnologias, a quest?o do virtual tem atravessado muitas discuss?es sobre a fotografia. Isso está claramente colocado em duas diferentes perspectivas (e talvez em mais uma terceira, que apresento como pura especula??o):1. A fotografia contemor?nea investe muitas vezes na encena??o como forma de romper com a tradi??o documental, de desvincular a imagem de um instante dado no passado, o “isso foi” de Barthes, para fazê-la apontar para um tempo indefinido, que é o das potencialidades. Como já disse no come?o deste post, aqui estamos diante do virtual. Mas é abusivo confundir simplesmente virtual com ficcional, sobretudo se tomarmos o ficcional como o avesso do real (esta última, no??o que a fotografia contempor?nea também renega). Faz sentido falar em virtual se reconhecemos na fic??o o exercício de um entendimento que se descola dos fatos observados para operar no plano dos conceitos e, a partir deles, testar as possibilidades de reconfigura??o dessa realidade. HYPERLINK "" Cindy Sherman, 1977.Assim é, por exemplo, uma personagem de Cindy Sherman. Podemos reconhecer nela a representa??o de algo virtual n?o porque n?o exista. Ao contrário, é virtual porque, mesmo como inven??o, mesmo sem se referir à pessoa que esteve diante da c?mera, exp?e um modelo de mulher que pode ser identificada com alguém próximo, alguém distante, alguém possível, talvez, consigo mesma…A chamada “fotografia construída” teve o mérito de expor as possibilidades de diálogo da imagem fotográfica com essa dimens?o virtual. Mas, talvez por esse esfo?o pioneiro, creio que às vezes?tenha feito isso com certo didatismo.2. Autores como Vilém Flusser e Arlindo Machado nos lembram que a fotografia n?o lida diretamente com o real, ela o transforma segundo códigos ou modelos conceituais forjados pela cultura. Desse modo, a imagem representa o mundo segundo um universo de possibilidades previstas nesses códigos. Para simplificar essa idéia: uma pessoa diante da c?mera sempre flexibiliza sua identidade para encenar um personagem, aquele que é possível de ser captado pela c?mera, aquele que nos esfor?amos para construir quando queremos ser fotogênicos, aquele que os rituais sociais exigem (o casamento, a formatura, mas também a guerra, a catástrofe…). Enfim, quando vemos uma foto, acreditamos estar diante de “fulano”.?Mas, em boa medida, o que a imagem nos dá aver é um modelo: um trabalhador, um pai, uma noiva, um burguês, um índio, uma vítima… Mesmo uma fotografia documental sempre terá algo de virtual, na medida em que n?o aponta apenas para o instante do passado, isto é, a pessoa ou o fato que foi resgistrado, mas para uma situa??o abstrata na qual projetamos uma grande amplitude de fen?menos. HYPERLINK "" Joachim Schmid, Photogenetic Drafts, 1991.Essa idéia aparece às vezes no trabalho de muitos artistas com certa ironia, ou em tom de denúncia. Quando Joachim Schmid picota retratos e sobrep?e uns aos outros, ele demonstra que o que temos ali n?o n?o é uma pessoa singular, é apenas uma pose, uma conduta diante da c?mera, que se repete em lugares e tempos distintos. Sua conclus?o, alardeada de modo quase performático, é a de que n?o precisamos mais fotografar, pois o retrato que alguém faria de mim certamente já foi feito milhares de outras vezes. HYPERLINK "" Dorothea Lange, Migrant Mother, 1936.Essa ironia funciona como uma espécie de terapia de choque para os olhares mais alienados ou resistentes, que s?o incapazes de enxergar os códigos que orientam a imagem fotográfica. Superado isso, podemos reconhecer nessa virtualidade um valor mesmo da fotografia documental. Um exemplo: eu n?o me comovo muito com a depress?o norte-americana que sucedeu a crise de 1929. Mas reconhe?o na imagem de Dorothea Lange o sofrimento de uma m?e, potencialmente a minha, a sua, qualquer m?e que n?o pudesse resgatar seus filhos de uma situa??o de indignade. A for?a da fotografia documental é de falar de alguém que esteve diante da c?mera ao mesmo tempo em que fala de todos nós, em outras palavras, de construir com fragmentos do passado alegorias sobre o futuro. Mesmo Barthes, acusado de limitar a fotografia ao “isso foi”, parecia ter compreendido isso, por exemplo, quando diz sobre Lewis Payne, condenado a morte: “ele está morto e vai morrer”. Trata-se de alguém que que já morreu e que pouco deve importar a Barthes, mas trata-se também da iminência da morte, angústia que atormenta qualquer ser humano.Essa virtualidade n?o está apenas nas imagens dos grandes mestres. Quantas vezes, diante de uma fotografia an?nima que encontramos perdida em algum lugar, n?o ficamos tentados a desdobrar aquele instante que a imagem nos mostra, projetando sobre seus personagens histórias que, no final das contas, s?o sempre as nossas.História e virtualidadeAcabei de sugerir que mesmo a fotografia documental penetra o campo da virtualidade quando se liberta do passado que a gerou. Essa imagem nos oferece um relato aberto, enquanto a história está limitada e constrangida pelos fatos ocorridos. Essa parece ser a perspectiva de Aristóteles, quando prefere o trabalho do poeta ao do historiador.Mas Walter Benjamin prop?e uma vis?o muito distinta da história, avessa às abordagens que se contentam em resolver o passado estabelecendo a cronologia dos fatos, articulados num tempo homogêneo, que sempre avan?a numa dire??o necessária, a do progressso (Sobre o conceito de história).Para ele, considerar o passado como algo resolvido é legitimar o poder que narra a história sob a perspectiva dos vencedores. ? como pisar nos corpos insepultos dos vencidos, negando um sentido às suas mortes.Ele convida ent?o o historiador a “escovar a história a contrapelo”, a escutar nas vozes que ouvimos também “as vozes que emudeceram”, a n?o dar essas batalhas por encerradas, porque é o nosso futuro que está em jogo na abordagem que fazemos desse passado. Ou seja, n?o se trata de saber como o passado determinou o presente, mas de se perguntar sobre as potencialidades nele existentes e ainda n?o realizadas, pelas quais vale a pena lutar.Há talvez aqui mais um caminho para pensar o virtual nessas imagens que servem à memória (inspirado nas? HYPERLINK "" \t "_blank" leituras de Maurício Lissovsky): n?o é preciso à fotografia romper com a história e menos ainda com a realidade para encontrar nela uma virtualidade. Porque o passado para o qual a imagem aponta permanece pulsante, colocando em causa nosso próprio devir. ? por isso que, nas palavras de Benjamin, “o observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos” (Pequena história da fotografia).Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados: #1, #2 e #3 Pequeno glossário de termos mal utilizados pelos debates teóricos sobre a fotografia. Artigos s série HYPERLINK "" HYPERLINK "" \o "Permalink to Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados – Parte I" Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados – Parte IRonaldo Entler | 19.Jul.10Sabemos que, desde sua inven??o, recaiu sobre a fotografia uma confian?a exagerada. A ideia de que ali havia uma reprodu??o fiel da realidade garantiu sua imediata aceita??o como instrumento de memória e documenta??o, no entanto, atrapalhou seu reconhecimento como arte. Nos últimos 30, talvez 40 anos, muitas teorias se HYPERLINK "" HYPERLINK "" \o "Permalink to Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados – Parte II" Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados – Parte IIRonaldo Entler | 8.Aug.10Depositamos sobre a fotografia uma confian?a exagerada. Como resposta, muitas teorias se voltaram contra antigos conceitos que pareciam impedir uma vis?o mais crítica sobre o meio. Mas, afirmada tal consciência sobre os limites da fotografia, é possível fazer as pazes com um vocabulário que, usado de modo mais preciso, pode HYPERLINK "" HYPERLINK "" \o "Permalink to Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados – Parte III" Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados – Parte IIIRonaldo Entler | 3.Nov.10? natural que idéias sejam deturpadas por quem as menospreza, mas o conceito de virtual foi às vezes mutilado pelo fogo amigo: é o fato de estar na moda que dificulta sua compreens?o. Temos chamado de virtual tudo aquilo que está associado às novas tecnologias, sobretudo às redes. Construímos assimRodtchenko e o estranhamento O HYPERLINK "" \t "_blank" Instituto Moreira Salles, do Rio de Janeiro, realiza em parceria com a Pinacoteca do Estado de S?o Paulo a exposi??o HYPERLINK "" \t "_blank" Aleksandr Rodtchenko – revolu??o na fotografia. Este texto sintetiza minha apresenta??o no Seminário realizado na última semana, que reuniu pesquisadores, críticos e curadores para discutir a obra de Rodtchenko. HYPERLINK "" Rodtchenko, 1930Aleksandr Rodtchenko (1891–1956) foi o grande protagonista do construtivismo, movimento estético fundado por Vladimir Tátlin, em 1913, que tornou cosmopolita a arte russa, que passa a dialogar com a experiência abstrata européia que Kandisnsky iniciara em 1910. Rodtchenko foi o mais vigoroso artista da Rússia: pintor e desenhista, designer e cenógrafo, fotógrafo e cineasta. De espírito experimental e inovador versátil, seu principal interesse era a valoriza??o da pesquisa visual e dimensional que atribuía movimento e lirismo às formas geométricas.Para a vanguarda russa e para Rodtchenko em particular, a fotografia era evidentemente muito mais do que um simples meio de documenta??o, por isso mesmo ela deveria ser responsável n?o só pela amplia??o do uso da imagem fotográfica para provocar e ampliar nossas percep??es, como também revolucionar o pensamento visual. A nova realidade do mundo industrial das primeiras décadas do século XX imp?s um novo ritmo para as cidades e para o homem das metrópoles, e exigiu uma nova tomada de consciência.A incomparável criatividade de Rodtchenko deu à fotografia uma nova possibilidade de representa??o, pois trouxe uma nova lógica interna para a inven??o formal. Em 1923, influenciado pelos trabalhos de El Lissitzky, sintonizado com László Moholy-Nagy, e impressionado com os dadaístas alem?es, que combinavam algumas formas geométricas com a fotografia, ele inicia sua trajetória com a fotomontagem, pois acreditava que a geometria do Construtivismo encontraria sua necessidade espiritual e filosófica numa arte n?o representacional.Rotdchenko admitiu em várias ocasi?es que a fotomontagem o levou à fotografia, pois precisava fazer certas imagens para continuar a produ??o de seus trabalhos como artista gráfico. Seus primeiros trabalhos fotográficos marcam um retorno à abstra??o, mas seu principal foco de interesse foi sempre a composi??o. Para ele, a chave da transforma??o da fotografia e da arte depende do senso de composi??o e, para isso, baseia-se em esquemas geométricos e aponta as possíveis variantes de sua constru??o: ?ngulos insólitos, diagonais ascendentes e descendentes, linhas verticais e horizontais, círculos, bem como suas combina??es, como vemos nas fotografias da exposi??o, em sua grande maioria apresentadas em cópias vintage. As fotografias da exposi??o pertencem a Moscow House of Photography, à família e cole??es particulares. HYPERLINK "" Rodtchenko, Capa de Pro Eto, de Maiakovski, 1923 HYPERLINK "" Rodtchenko, ilustra??o para Pro Eto, de Maiakovski, 1923Antes de iniciar seu percurso com a fotografia, ele desenvolveu em 1923 uma série de fotomontagens que ilustram o poema mais conhecido de Maiakovski, Pro Eto (About This), incorporando todas as premissas dos movimentos vanguardistas: o uso das formas elípticas para romper com a linguagem tradicional; a inclus?o de marcas das novidades tecnológicas que pudessem capturar a velocidade e a simultaneidade dos acontecimentos da vida moderna; a rela??o conflituosa entre o sóbrio e o espont?neo; enfim, uma série de contrastes que tra?am as evidências em oposi??o de um mundo em plena transforma??o. No texto O choque do novo, o crítico Robert Hughes afirma que este projeto representa “a mais eficaz fus?o entre a arte e vida pública na vanguarda russa e foi feita por Rodtchenko com seu estilo brilhante e contundente”.Rodtchenko acreditava que a rela??o homem e máquina poderia ser frutífera dependendo de como a tecnologia seria utilizada para a criatividade. Para ele, a c?mera era o veículo ideal, pois era uma máquina para ver, com poder investigativo, a gramática da luz e da forma. Entendia a rela??o arte e técnica como uma nova unidade trazida pela modernidade e entendia a possibilidade de reprodu??o fotomec?nica como um instrumento de arte-educa??o, um exemplo de como a tecnologia poderia atender a algumas das necessidades básicas de difus?o do conhecimento.? Para ele, a reprodutibilidade ampliava e democratizava a experiência estética. HYPERLINK "" Rodtchenko, Mo?a com uma Leica, 1934Após os primeiros contatos com a fotografia, seu trabalho ganhou um novo senso de espa?o, associado com um novo dinamismo nascido de uma nova sintaxe, caracterizada pelo ritmo do contraste geometrizado de luz e sombra, pelo corte insólito, pelos novos e inusitados ?ngulos de tomada, e pela for?a dada à composi??o diagonalizada. As fotografias de Rodtchenko mantém o frescor e dá relev?ncia à vanguarda. Seu pensamento visual estava contaminado pelo desejo de mudan?a que movia a constru??o do mundo socialista. Essa nova possibilidade de express?o fotográfica rompeu com o procedimento tradicional e desarticulou os automatismos de vis?o, despertando o observador da mesmice visual em que estava submerso há décadas pela imposi??o convencional da fotografia e das artes visuais.Rodtchenko descobre na fotografia outra possibilidade entre o realismo e a abstra??o. Podemos verificar que as diferentes posi??es assumidas pela c?mera é parte integrante do novo programa desenvolvido por Rodtchenko para chocar e estranhar o olho receptivo. A partir da obra de Rodtchenko, interessa-me chamar a aten??o para o conceito de estranhamento desenvolvido em 1929 pelo formalista russo Victor Chklovski (que juntamente com Roman Jakobson fundou a Escola Formalista Russa da Teoria Literária), que está presente na obra em quest?o à medida em que a forma apreende a realidade na sua diferen?a provocando o espectador que, por sua vez, se vê empenhado em buscar uma organiza??o a partir da desconstru??o da imagem fotográfica. Rodtchenko incorporou ao seu trabalho as teorias dos formalistas russos, particularmente Chklovski cujo conceito de estranhamento lhe servia de base para uma virada radical na prática fotográfica habitual.Chklovski assume que uma das fun??es da Arte é desautomatizar o modo de ver o mundo, restituindo às coisas o impacto e a singularidade que despertaram quando foram vistas pela primeira vez. Para ele, a Arte deveria trazer os objetos e as situa??es com uma sintaxe peculiar, provocando o estranhamento. Estranhar para perturbar. Estranhar para causar inc?modos; para abalar as nossas certezas; provocar reflex?o; despertar novas sensa??es visuais. A percep??o automatizada do cotidiano daria lugar a uma nova vis?o das formas, onde a natureza da experiência estética pede um olhar mais atento e prolongado. A fotografia se encaixava perfeitamente no programa criativo dos construtivistas russos.Para Aaron Scharf, a fotografia, produzida pela máquina, praticada universalmente e compreendida por todos estava em sintonia com os objetivos do novo estado soviético por sua proximidade às aparências aceitáveis e sua adequada aplica??o à propaganda visual instituída pelo sistema – cartazes, revistas ilustradas, livros, murais, entre outras. De todas as correntes de vanguarda animadas por idéias transformadoras, o Construtivismo desenvolvido na Rússia, foi o único que se inseriu numa realidade revolucionária concreta, e que colocou explicitamente a fun??o social da arte como uma quest?o política. Como assinalou Rodtchenko: “eu gostaria de fazer fotografias que nunca fiz antes, de modo que tivessem vida e realidade, que fossem ao mesmo tempo simples e complicadas, surpreendentes e espantosas”.Um belo catálogo acompanha a exposi??o que chegará a S?o Paulo em fevereiro de 2011, na Pinacoteca do Estado.Chacal vs Capit?o Nascimento Na semana passada, fui ver HYPERLINK "" \t "_blank" Carlos (2010), filme de Olivier Assayas que se apresenta como “fic??o baseada em pesquisas jornalísticas”, e que conta a história do legendário terrorista venezuelano conhecido como Chacal. Produzido como minissérie pelo “Canal Plus”, rede francesa de TV, foi exibido na Mostra Internacional de Cinema de S?o Paulo, assim como em Cannes, em sess?es de quase seis horas de dura??o.Na semana anterior, havia assistido também a HYPERLINK "" Tropa de Elite II (2010), de José Padilha, que dispensa apresenta??es.Ambos tratam da complexa rela??o entre política, corrup??o e violência. A história de Carlos se concentra nos anos 70 e 80, no bolo internacional que mistura a guerra fria, a quest?o palestina e o comércio de petróleo. Tropa de Elite II exp?e a rela??o dos poderes públicos com as a??es do crime organizado nos morros cariocas.O filme francês me ajudou a situar algo que me incomodou em Tropa de Elite: o didatismo, aquela voz facilitadora do Capit?o Nascimento, sempre nos ajudando a fazer as conex?es entre os fatos e a julgar as a??es dos personagens. Em Carlos, ninguém explica nada. Temos que simplesmente detectar em cada momento as tens?es políticas que, assim como em Tropa de Elite, se reconfiguram o tempo todo.Os personagens de Tropa s?o quase arquetípicos, por isso s?o fáceis de apreender: o principal deles, o homem sem refinamento que se revela bom em sua rudeza, como s?o os pais, tios ou avós de alguns de nós, que desenvolveram uma sólida no??o de certo e errado sem precisar desenvolver teorias sobre o assunto (o discurso final do Capit?o Nascimento em Tropa II é indignado, ingênuo e verdadeiro, como a opini?o política dos nossos tios). Tem também o comunicador bonach?o, performático que traveste de indigna??o seu pensamento fascista; o professor universitário de esquerda, militante, sedutor e cheio de retórica; o governante inseguro e manipulável que, quando n?o chega, termina corrupto… Conhecemos uma dúzia de cada um desses personagens.Em Carlos, os personagens s?o contingentes, aqueles que a história nos deu. E, n?o sendo exemplares de nada, s?o difíceis de apreender. Para saber do que estamos falando, temos que puxar pela memória o que representam figuras como Kaddafi, Arafat, Sadat, Husseim, ou cidades como Damasco, Tripoli, Bagdá, Beirute, Cairo, ou organiza??es como OPEP ou FPLP etc. Depois de quase seis horas de filme, ainda é preciso gastar mais algum tempo na wikipedia.Em Carlos, nenhum personagem que tenha um nome é inocente por muito tempo. Só os figurantes s?o bons. O filme deixa claro que as alian?as s?o amorais e que, de um instante para o outro, ex-inimigos se juntam para eliminar seus ex-aliados. Já aparece ali, por exemplo, a delicada coopera??o entre os EUA e países e líderes ligados ao petróleo que, depois, passariam a representar o mal.Se Capit?o Nascimento já come?a Tropa II na condi??o de herói, fica sob nossa responsabilidade saber exatamente em que momento Chacal deixou de ser o ideólogo marxista, vaidoso e atrapalhado em suas a??es, para se tornar o mercenário frio, meticuloso e corrupto. Nesse sentido, o Capit?o Nascimento era mais complexo em Tropa I, porque restava ali alguma ambiguidade entre os meios desumanos que adotava e os fins nobres que almejava.Tanto Carlos quanto Tropa deixam a angústia de n?o saber como nomear o verdadeiro culpado.? O primeiro se limita a exibir, sempre como pano de fundo, o ponto de vista que se converterá na causa de Chacal, e que redefinirá seu alvo, a cabe?a que está a prêmio. O segundo ainda tenta coordenar as coisas numa intrincada rela??o de causas e efeitos (e que sempre exige a interven??o da voz em off do Capit?o Nascimento).Para demostrar que n?o há simplesmente um vil?o, Tropa de Elite II apela para a no??o de “sistema”. Mas, sem querer enfrentar a complexidade desse conceito, o filme quase o transforma num personagem oculto, ou seja, novamente num vil?o. ? interessante demonstrar ao público que a corrup??o é sistêmica, isto é, enraizada de modo insconsciente em a??es muito distintas, alimentada por um conjunto complexo movimentos e de rela??es, mais do que por um centro de decis?es. Desse modo, o poder é algo que circula de modo coordenado nas práticas cotidianas, aquilo que Foucault chamou de “microfísica do poder”.Mas perceber um poder como sistema deveria ser uma forma de enfrentá-lo em suas sutilezas, n?o uma explica??o sobre a impossibilidade de combatê-lo. O sistema, a estrutura, o organismo é algo mais abstrato, mas que ainda pode ser aprrendido por um conhecimento ajustado à sua complexidade. Mas Capit?o Nascimento, esse herói rude, só consegue dizer “a culpa é do sistema” do mesmo jeito que se dizia “foi Deus quem quis assim”.Mesmo que o filme estimule a pensar nesse fantasma que é o sistema, acho mais convincente o que parece se depreender do filme Carlos, quando ele evita grandes explica??es: a idéia de que o poder é amoral, de que os movimentos da história têm algo de aleatório, de que as motiva??es por trás das alian?as s?o sempre de imediatas, de que a ilus?o de paz só pode ser alcan?ada no breve instante de inércia em que todos tem uma arma apontada para suas cabe?as.No final das contas, s?o dois filmes muito bem feitos, com escolhas estéticas diferentes. Tropa de Elite é sofisticado em sua linguagem. Equipara-se às boas produ??es norte-americanas no uso dos recursos técnicos e narrativos do cinema, algo que a maior parte dos filmes nacionais fica devendo. Carlos é simples, está longe de ser experimental, continua sendo um filme de a??o feito para a TV. Equivale ao olhar atento que dedicamos ao jornal todas as manh?s, enquanto nosso pensamento n?o cessa de formular discretamente quest?es sobre um mundo que jamais chegamos a compreender.– – –Carlos deve chegar como série em algum canal brasileiro de TV ou, pelo menos, nos cinemas, numa vers?o de cerca de três horas prometia pelo diretor. Ouvi também notícias de que é possível baixar pela internet, com legendas em português.A trilha do filme?é incrível (Brian Eno, New Order, Wire, The Feelies,?Chico Buarque & Pablo Milanez), mas n?o encontrei nem na Amazon. Se alguém souber de algo, avise.Quando a verdade n?o importa Por causa de uma reportagem sobre a autobiografia de Robert Capa, retornei às suas imagens e me detive sobre a polêmica fotografia do miliciano, na Guerra Civil Espanhola. HYPERLINK "" Robert Doisneau. O Beijo do Hotel de Ville, 1950Senti quando o beijo de Doisneau foi desmascarado, e torci para que a tese da encena??o na foto de Capa fosse apenas especula??o. Mas os céticos – para quem realidade e fotografia s?o coisas sempre avessas – tinham raz?o, e nos olharam com um ar de “eu avisei!”.Por voca??o ou por obriga??o, quase todos nós aprendemos a desconfiar das imagens. Dominamos seus códigos, suas armadilhas retóricas, suas estratégias de sedu??o.? Com a devida autoridade, temos passado também essa li??o aos nossos alunos. HYPERLINK "" Robert Capa. Morte de um miliciano, 1936.Mas voltei à fotografia do miliciano e percebi algo curioso: porque uma ponta de fé ainda persiste? Porque ainda sinto nessa imagem a mesma for?a? Por que ainda vejo aquilo que sei n?o ser verdadeiro? Ainda vejo um homem que corria na dire??o do inimigo como se quisesse impedir sozinho a entrada dos fascistas naquele vasto território. O tiro cujo impacto interrompe seu movimento e o lan?a na dire??o contrária. O instante da morte, quando a express?o de dor ainda n?o se desfez, quando a m?o já deixa escapar a arma, mas ainda n?o o idealismo. O corpo que, tombando para trás, se projeta para o futuro e, ainda hoje, nos convoca para a sua luta. Nada disso é verdade, mas está tudo lá.O que sustenta a imagem n?o é tal no??o de verdade. Ela interessa à grande ciência que busca compreender realidades imutáveis: Newton descobriu a verdade sobre a atra??o dos corpos. Interessa também à pequena moral: a polícia descobriu a verdade sobre certo assassinato que comove o público. Uma coisa é t?o estável que n?o precisa ser lembrada, a outra é t?o insignificante que logo será esquecida.As imagens operam no domínio da memória, que n?o é nem t?o definitiva quanto a gravidade e nem t?o efêmera quanto um fato televisivo. Ela persiste, sempre em movimento. As memórias mais intensas n?o almejam a verdade, caso contrário elas se esgotariam diante de uma prova. Elas est?o aí para serem vividas em sua incompletude, repetidamente, e aquilo que lhes falta é exatamente o que permite a ela tocar o presente. Como diz Chris Marker, “uma?memória?total é uma?memória anestesiada” (Sem Sol, 1983).A foto de Capa n?o é intensa porque mostra exatamente o que ocorreu, mas porque mantém viva uma realidade, porque a torna memorável. Ela opera como os mitos.Curioso que “mito” tenha se tornado para nós sin?nimo de “mentira” (o HYPERLINK "" \t "_blank" documentário que denuncia a foto de Capa tem a mesma linguagem cientificista de um programa do tipo “mythbusters”, território de verdades inúteis e efêmeras). Uma narrativa n?o se torna mítica por ser verdadeira ou falsa, mas por ser o modo mais efetivo de fazer o passado atuar na busca de um sentido para o presente. Nunca foi importante saber se a Guerra de Tróia aconteceu tal e qual descrito na Ilíada. ? parte da mitologia de nossos ancestrais, mas suas inven??es s?o t?o consistentes que, ainda hoje, recorremos a ela para pensar o que somos. Em contrapartida, quantas imagens mais verdadeiras a gente n?o esquece todos os dias?Algumas imagens constituem uma espécie de mitologia, s?o aquelas que parecem deixar o tempo em suspens?o. Ainda temos pela frente a luta que está prestes a ser perdida na foto de Capa. Mas temos também o amor que nunca cessa na foto de Doisneau.Formas puras e abstra??es pertinentes Fragmento do texto de apresenta??o do livro Bonito – Confins do Novo Mundo, fotografias de Valdir Cruz. A exposi??o com 25 fotografias encontra-se na Galeria Lourdina Jean Rabieh, Avenida Gabriel Monteiro da Silva, 147, telefone 3062-7173.“O que é real é a mudan?a contínua da forma:a? forma é apenas uma vis?o instant?nea da transi??o”Henri BergsonA fotografia é a primeira manifesta??o tecnológica na história das artes visuais e também é a linguagem que mais se reinventou nos últimos 170 anos. Um olhar retrospectivo nos possibilita entender que desde o princípio, os suportes e as tecnologias foram sucessivamente se modificando a fim de propiciar um resultado imagético cada vez mais convincente, verdadeiro e renovador. E a cada novo paradigma, temos a oportunidade de perceber o quanto o homem se esmerou em criar um registro técnico que também provocasse nossa imagina??o.? o caso das fotografias de Valdir Cruz publicadas nesta exposi??o (e no livro), que documentam a regi?o de Bonito, Mato Grosso do Sul, conhecida como uma das mais belas do país. Um trabalho exaustivo, que exigiu muitas viagens e um mergulho na história e nas peculiaridades daquelas belezas naturais. Também imp?s a necessidade de elaborar uma leitura própria das diferentes luzes tropicais do centro-oeste brasileiro, para conceber um ensaio que pudesse dar conta de algumas das singularidades visuais de Bonito com as características técnicas que definem o seu trabalho fotográfico. HYPERLINK "" Valdir Cruz, Nascente do Rio Bonito, 2009Valdir Cruz tem uma trajetória bastante específica na fotografia brasileira. Iniciou sua forma??o técnica e estética nos Estados Unidos, sob orienta??o do mestre George Tice HYPERLINK \l "_ftn1" [1], que lhe deu uma sólida base para a compreens?o de todo o processo fotográfico e possibilitou sua aproxima??o das matrizes de E. Steichen e, mais tarde, de Horst P. Horst, Mappelthorpe, entre outros. Para Valdir, é difícil pensar sua produ??o fotográfica sem a c?mera de grande formato, sem a longa exposi??o que garante profundidade de campo e informa??es distintas nas diversas zonas de luz e sombra, sem uma revela??o e impress?o que lhe ofere?am quase todos os detalhes pré-visualizados. Dificilmente ele admite algum imprevisto ao longo da sua opera??o sequencial e clássica da fotografia.Fotografar para Valdir Cruz é um ato que exige disciplina e rigor, é uma opera??o técnica sofisticada que requer concentra??o e conhecimento profundo das variáveis que envolvem o processo. Ele sabe que só assim é possível registrar uma imagem que tenha alguma essência transformadora, que traga alguma centelha que seja capaz de revesti-la com magia. Essa disciplina aprendida é que permitiu este ensaio desenvolvido com mais naturalidade e despojamento. Um conjunto de fotografias em que prevalece uma leveza e uma liberdade incomum, que se diferencia bastante dos seus trabalhos anteriores.Em Bonito – Confins do Novo Mundo podemos conferir sua maturidade como artista, pois mesmo mantendo uma forte rela??o com a tradi??o da fotografia paisagista em preto e branco, ele soube incorporar à sua fotografia uma atmosfera poética que parece guiar com clareza as idéias que desenvolveu para este ensaio. Idéias que refletem uma consciência aguda do seu processo criativo.Ele assumiu o encanto e o frescor das sensa??es fugazes. Sua composi??o é elegante e imaginativa. Nada escapa ao seu olhar atento que elabora um universo visual a partir de um mapa de procedimentos que revela formas puras e abstra??es impertinentes, com estranhas e pulsantes luzes. Sua matriz de grande formato registra uma natureza exuberante, quase intocável. ? possível perceber também que Valdir esperou pacientemente o momento em que toda a improvável ordem natural do cotidiano entra em revolu??o e explode na beleza da sua fotografia. Ele descobre certas estruturas visíveis e cria uma conex?o entre elas; concentra na imagem uma for?a desconcertante que excita nossos sentidos.Claro que o caráter documental que permeia sua obra n?o se constitui aqui um obstáculo à express?o de sentimentos e emo??es, mas o deslocamento provocado pelo ambiente in natura de Bonito parece que exigiu uma preocupa??o estética e plástica diferenciada dos seus trabalhos anteriores. Estas fotografias de Valdir Cruz tem o poder de nos conduzir a um novo patamar de percep??o, distribuído em diferentes camadas, a partir de uma superfície, a água, que reflete e refrata a luz. HYPERLINK "" Valdir Cruz, Encontro de Exus, 2008Diante de algumas fotografias, como por exemplo, a surpreendente Encontro de Exus, temos uma sucess?o de eventos amalgamados em simultaneidade. A primeira impress?o é de estranhamento, pois é uma imagem ruidosa e com ricos detalhes. O resultado fotográfico exige concentra??o para entender a imprecis?o dos contornos, os diferentes tempos reunidos no mesmo espa?o, ou as diferentes paisagens que integram a mesma fotografia.Valdir Cruz n?o esqueceu o legado dos grandes mestres da fotografia, e realizou um ensaio que sintetiza uma experiência imersiva puramente visual. Um perfeito equilíbrio entre intui??o e intelecto. Bonito – Confins do Novo Mundo é um ensaio inovador, resultado de décadas de trabalho lapidado e testado em diferentes temáticas. Se “a técnica é o exercício da sinceridade” como defendeu o poeta Ezra Pound, Valdir Cruz trouxe para este trabalho toda sua experiência. Potencializou com sua competência técnica e seu olhar sensível, a for?a invisível que organiza e alinha os diferentes objetos – pedras, folhas, seixos, galhos, peixes, entre outros – que ao serem fotografados parecem conduzir ao devaneio nosso olhar de espectador. HYPERLINK "" Valdir Cruz, Rio da Prata, 2008Forma, tempo e movimento. Estas s?o algumas das variáveis que Valdir Cruz combina com maestria neste ensaio e é isso que torna sua fotografia diferente e estranhamente harmoniosa. A verdade é que ele conseguiu com seu inesgotável repertório de formas, enquadradas num tempo alongado, instaurar uma rela??o privilegiada com o sagrado. Uma espécie de exatid?o e beleza. Uma trama delicada e, ao mesmo tempo, densa e leve, desorganizada e equilibrada. Por exemplo, essa água que se torna espelho – Rio da Prata –, que reflete o céu e as nuvens, a floresta e a mata, também viabiliza ver suas profundezas através da transparência. Quantas culturas est?o impregnadas nestas fotografias? Que espécie de palimpsesto ele conseguiu inscrever nestas fotografias?A natureza é extremamente complexa e a de Bonito registrada neste ensaio em particular, torna-se imagem à qual nós podemos entender melhor o seu sentido e sua for?a espiritual. Esse movimento natural que a cada instante transforma o mundo visível é que interessa ser registrado. Na verdade, o lapso entre momentos singulares que por um acaso qualquer, faz tudo movimentar e gerar uma imagem que desperta o interesse do artista.De modo geral, o ensaio produz um efeito paralisante que nos deixa at?nitos porque as fotografias parecem enigmas imobilizados diante dos nossos olhos. Daí, nossa admira??o confessa, pois a esfera onírica é evocada. Marcel Proust escreveu que “a verdadeira viagem de descoberta consiste n?o em procurar novas paisagens, mas em possuir novos olhos”. E foi exatamente isso que moveu Valdir Cruz neste trabalho pois ao mesmo tempo que evitou a imagem apressada e vulgarizada do mundo contempor?neo, buscou registros que impressionam pela densidade temporal, pela desintegra??o das formas, pela provoca??o do espanto e do fantástico quase inesperado naquela paisagem ancestral. HYPERLINK \l "_ftnref" [1] George Tice (1938, Newark, New Jersey), fotógrafo norte-americano, professor da Maine Photographic Workshops, desde 1977.?A tens?o crítica entre a palavra e a imagem No trabalho que levou à Bienal, Jonathas de Andrade?toma como referência uma série de cartazes propostos pelo educador Paulo Freire para a alfabetiza??o de adultos, e estabelece rela??es entre novas imagens e palavras a partir de conversas que manteve com um grupo de mulheres analfabetas ( HYPERLINK "" \l "564374/educa-o-para-adultos" \t "_blank" vejam mais informa??es no site do artista). HYPERLINK "" Jonathas de Andrade, Educa??o para Adultos, 2010.Barthes disse uma vez que a língua é fascista, n?o porque impede de dizer, mas porque obriga a dizer (Barthes, A aula).? Usar uma palavra é filiar-se a uma estrutura cuja tradi??o espera impor um sentido. Cabe ao artista atuar em suas brechas, arrancar dela as ambiguidades e os contrassensos possíveis. N?o só a poesia, mas também as artes plásticas conseguem às vezes explorar essa potencialidade da palavra.Marcel Duchamp recorre à linguagem verbal de modo “sistematicamente irresponsável”. Ali onde se espera que a palavra apare arestas do discurso e ofere?a maior precis?o, os títulos, legendas e comentários de Duchamp fazem da obra um mecanismo repleto de folgas e solavancos. Um título como “A noiva despida por seus celibatários, mesmo” ?(obra apelidada de “Grande Vidro”), tem sido objeto de debates inesgotáveis, mesmo depois de quase um século. HYPERLINK "" La Mariée mise à nu par ses célibataires, même (A noiva despida por seus celibatários, mesmo), 1915-23; La Bo?te verte (Caixa Verde), 1934, com desenhos e notas sobre a obra "A noiva...".Como diz Octavio Paz comentando a obra de Duchamp:?“o jogo de palavras é um mecanismo maravilhoso porque em uma mesma frase exaltamos os poderes de significa??o da linguagem só para, um instante depois, aboli-los completamente” (O. Paz, Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza). HYPERLINK "" Magritte, A trai??o das imagens (Isto n?o é um cachimbo), 1928-29.René Magritte mergulha na filosofia da linguagem, e exp?e suas artimanhas de um modo t?o simples quanto certeiro.Num só gesto, Magritte desfere um duplo golpe: de um lado, ele nos lembra que o cachimbo é ali apenas uma imagem. Parece óbvio, mas o poder opressor da imagem reside na dificuldade que temos de percebê-la como tal, como representa??o.? De outro lado, como lembra Foucault, essa obra retira a linguagem do automatismo que parece tornar seu sentido natural, e demonstra que a palavra tem o poder de “dizer o que quer”,? apontando “sua própria autonomia diante daquilo que ele nomeia” (Foucault, Isto n?o é um cachimbo).Como fará Jonathas de Andrade, Magritte também jogou com a forma das cartilhas de alfabetiza??o. HYPERLINK "é-MagritteThe-Key-to-Dreams-193011.jpg" René Magritte, La clef des songes ("A chave dos sonhos": a acácia, a lua, a neve, o teto, a tempestade, o deserto), 1930Ao mesmo tempo em que nos convida a imaginar que um objeto poderia ser chamado por outro nome, ele nos lembra – flertando também com o surrealismo – que o insconsciente é um lugar em que as liga??es entre signos e coisas podem ser t?o livres quanto poderosas.O jogo entre imagem e palavra que Jonathas de Andrade cria em “Educa??o de Adultos” é bastante sutil, está longe do aparente nonsense que muitas vezes faz as obras de Duchamp ou Magritte parecerem herméticas.? Aqui, n?o chega a haver contradi??o: os objetos sugeridos pelas palavras est?o também ali, visivelmente referenciados pela imagem. HYPERLINK "" Jonathas de Andrade, Alfabetiza??o para Adultos, 2010Levando adiante o método emprestado de Paulo Freire, Jonathas de Andrade espera ir além do contrato – a rela??o arbitrária das palavras – que as cartilhas estabelecem. Exige-se das linguagens que elas sejam usadas num embate mais efetivo com a realidade.Desse modo, palavras e imagens deixam de ser representa??es abstratas, tornam-se apropria??es de fragmentos de experiências, apontadas por conversas que o artista mantém com o grupo de mulheres.Algumas das rela??es que vemos parecem óbvias, mas basta dar alguns passos para trás, ampliar o enquadramento que fazemos da obra, situar como fundo n?o a parede da Bienal, mas a história recente do país, e veremos o poder crítico desse trabalho. Essa contamina??o com a realidade multiplica irreversivelmente os sentidos da obra, e nos convida a extrapolar as rela??es propostas em cada cartaz. Ao se tornar “lúdico”, o trabalho se torna também “político”, duas qualidades que a pedagogia sempre valoriza, mas que raramente consegue conciliar.Se a linguagem pode ser fascista, é preciso saber que nem toda alfabetiza??o é libertária. Em princípio, ela visa garantir a compreens?o e o cumprimento de uma ordem. Para ser libertária, a alfabetiza??o deve estimular no uso da linguagem algum nível de abertura.Voltando à Barthes: “só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapa?a salutar, essa esquiva, esse?logro?magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolu??o permanente da linguagem” (A Aula).—A série “Educa??o para adultos” pode ser vista na Bienal de S. Paulo, em cartaz até o próximo fim de semana (12/12). Vale ver?também a HYPERLINK "" \t "_blank" entrevista que Jonathas de Andrade concedeu ao Olhavê.Arqueologia de um filme de Godard O HYPERLINK "http://" \o "" \t "_blank" Dobras Visuais lan?ou uma pergunta a uma série de convidados: qual imagem chacoalhou você na 29a Bienal? HYPERLINK "" \t "_blank" Vale a pena conferir as respostas.Escolhi Je vous salue, Sarajevo, de Jean-Luc Godard, filme de pouco mais de dois minutos em que Godard disseca uma fotografia feita durante a guerra nos Balc?s, na antiga Iugoslávia.? Mandei para o Dobras um breve comentário. Aqui, deixo um relato sobre a aventura que foi mergulhar nesse pequeno filme.Pensar qualquer obra de um artista erudito implica fazer uma espécie de arqueologia. Você encontra coisas surpreendentes em lugares inesperados, e algumas pe?as?sempre ficam faltando.?Para come?ar, decidi fazer minha própria tradu??o do filme, pelo exercício de mergulhar nas palavras. Procurando o texto, descobri que ele já é uma colagem de outros textos.O filme come?a com uma fala sobre o medo, extraída da pe?a Dialogue des Carmelites, ?adaptada em 1949 por Georges Bernanos, escritor que viveu no Brasil durante a Segunda?Guerra: “Num certo sentido, paúra é filha de Deus (…) Ela vela cada agonia, ela intercede pelos homens”. Na pe?a de Bernanos, uma religiosa enclausurada reivindica a idéia de que o medo, como fraqueza, n?o é ofensiva a Deus, ao contrário, o medo a tornaria “irm? de Cristo em sua agonia”.Ao final, a bela estrofe extraída de um poema de Luis Aragos (do livro Le Crève-C?ur, de 1941), que traz um pensamento sobre a morte: “Quando for preciso fechar o livro, farei isso sem nada lamentar. Vi tanta gente viver t?o mal, e tanta gente morrer t?o bem”.Essas duas falas, inserem o filme numa perspectiva trágica: o medo faz parte da vida, e a morte pode terminar como uma aliada.O filme destaca fragmentos de uma única fotografia, que apenas ao final é mostrada integralmente. Nessa imagem, vemos três soldados sérvios, um deles prestes a chutar a cabe?a de uma mulher caída no ch?o. Diz Godard: “a cultura é a regra, a arte é a exce??o”. A “Europa da cultura” imp?em a sua regra, e mata a “arte de viver”. N?o há o que celebrar nesse projeto de civiliza??o que se desenvolve ao pre?o da intoler?ncia, como a imagem n?o cessa de mostrar.Isso me remeteu ao livro de Susan Sontag, Diante da dor dos outros. Lá reencontrei uma descri??o da mesma imagem que está no filme (o que permitiu também identificar o autor). Diz Sontag sobre essa imagem: HYPERLINK "" Foto de Ron Haviv, da série "Blood and Honey" (Bijeljina, Bósnia, 1992).“Narrativas podem nos levar a compreender. Fotos fazem outra coisa: nos perseguem. (…) vemos um miliciano sérvio uniformizado, um jovem com óculos escuros no alto da cabe?a, um cigarro entre os dedos médio e anelar da m?o esquerda levantada, um rifle que pende da m?o direita,? a perna direita em posi??o de chutar o rosto da mulher deitada, de cara para baixo, sobre a cal?ada, entre dois corpos. (…) Na verdade, a foto nos revela muito pouco – exceto que a guerra é um inferno e que rapazes bonitos armados s?o capazes de chutar a cabe?a de mulheres velhas e gordas que jazem indefesas, ou já mortas” (Sontag, Diante da dor dos outros, 2003).A descri??o de Sontag n?o vem acompanhada da imagem, mas quase parece comentar a sequ?ncia de fragmentos que vemos no filme. Por sua vez, Godard, que disseca a fotografia, opta por um texto descolado da imagem. Sua estratégia é a montagem num sentido primordial, que aproxima detalhes da foto, textos e um trecho da música?Silouans Song (1991), de Arvo P?rt. HYPERLINK "" Imagem final de "Je vous salue, Sarajevo"Em todo precurso arqueológico restam lacunas. Há uma segunda imagem que encerra o filme, sobre a qual n?o encontrei nenhuma referência*: uma pessoa que se curva sobre um objeto que também n?o conseguimos identificar, uma espécie de bloco que segura com certa tens?o sobre o colo. Pouco se pode dizer sobre essa imagem. Fica apenas certa sensa??o de angústia, de clausura, o recolhimento de alguém que renuncia à vida. Essa imagem desaparece como um olho que se fecha.As descobertas sobre o filme v?o se encaixando. Mesmo assim, aquela cena de violência jamais fará sentido. Ela sugere que a história da cultura nos conduz a um beco sem saída. Restam a arte e a morte.* Nos comentários a esse post, Paulo Miyada nos dá informa??es detalhadas sobre esta última imagem (23/05/11)O tempo que passa ou a inquieta??o dos sentidos Acompanhei de perto as publica??es sobre os 30 anos da morte de John Lennon. Invariavelmente, lembrei-me de uma frase dele que diz mais ou menos assim: “enquanto você sonha com o futuro, sua vida acontece”. Para nós, o tempo passou rapidamente, mas para ele o tempo foi interrompido. Ou parou? Parece incrível! Conhecemos muitas fotografias do Beatle mais talentoso e rebelde, mas fico chocado com a imutável juventude fixada nas imagens. Claro, mito morre cedo e jamais envelhece. E minha gera??o n?o só perdeu John Lennon, como também Janis Joplin, Jimi Hendrix e Jim Morinson. Todos muito jovens.Fico impressionado cada vez que me deparo com suas fotografias. Tempo congelado e memória afetiva. Inquieta??o dos sentidos. O tempo é cruel apenas com aqueles que ficam por aqui, insistindo na dura??o e na permanência. Vilém Flusser em suas reflex?es deixa claro que nós, humanos, criamos a comunica??o, um artifício que dribla o medo que temos da solid?o e da morte. Por isso mesmo também criamos e desenvolvemos tecnologias que registram imagens e sons para que as futuras gera??es possam nelas se reconhecer. Na verdade, as fotografias permitem expandir nossa existência na vida dos outros. As novas gera??es com certeza conhecem o som revolucionário do final dos anos sessenta e as fotografias que permaneceram para todo o sempre. Este é o poder imagético que se revela, quase sempre nos interstícios entre presen?a e ausência, passado e presente.No dia 8 de dezembro de 2010, exatamente no dia do assassinato de John Lennon, a Globo News Document exibiu uma bela matéria conduzida pelo repórter Sidney Rezende entrevistando o fotógrafo brasileiro Luiz Garrido, que conviveu com John Lennon e Yoko Ono no ano de 1969. ? comum afirmarmos que a história da fotografia é, metaforicamente, um imenso iceberg, do qual apenas uma minúscula ponta é conhecida. Com exce??o de algumas fotografias publicadas na saudosa revista IrisFoto, em 1974 (Garrido n?o se recorda precisamente do ano da publica??o) era quase desconhecida a rela??o casual entre Luiz Garrido e o casal mais famoso dos anos setenta.Embalado pelo movimento estudantil de 1968 em Paris, Garrido cursou e abandonou a Faculdade de Economia (os professores eram Celso Furtado, Josué de Castro, entre outros) e foi viver a experiência Blow Up, típica daqueles que entenderam que o momento era viver a intensidade e o glamour proporcionado pelo poder da imagem. Frequentou a Escola Nacional de Fotografia Francesa, cuja orienta??o era uma boa forma??o técnica sob a coordena??o dos engenheiros da Kodak Pathé (associa??o empresarial de muitos anos na Fran?a). Como isso n?o bastava, foi trabalhar como free lancer para publica??es brasileiras.Silvio Silveira, ent?o Diretor Comercial da antiga revista Manchete, lhe fez um provocatico desafio: “o John Lennon está em lua de mel aqui em Paris e vai encontrar o Salvador Dali no Hotel Plaza Athenée. Porque vocês n?o tentam fazer uma matéria?” Na ocasi?o, o jornalista que acompanhava Luiz Garrido era o Carlos Freire, hoje um dos mais importantes nomes da fotografia brasileira em atividade do exterior. Após dois dias de espera do lado de fora do hotel, ao lado de centenas de outros jornalistas, Garrido escreveu um bilhete para John Lennon e desenhou uma flor. Foi exatamente esta mensagem que cativou o ainda Beatle que o convidou a subir no apartamento e acompanhá-lo por algum tempo. HYPERLINK "" John e Yoko, por Luiz GarridoDepois disso, foi à Amsterd? a convite do casal que lan?ava o movimento Bed and Peace, e quando encerrou a entrevista coletiva John Lennon publicamente enfatizou: “você fica”. Uma nova oportunidade e passaram a tarde juntos trocando idéias. Depois disso, uma semana em Londres convivendo com eles – conversando, comendo juntos e fumando um. Garrido percebeu que a inicia??o política de Lennon, vinha através das idéias de Yoko que o provocava para aproveitar sua imagem de ídolo globalizado para potencializar alguma revolu??o.Foram ao Canadá, pois os EUA proibiram sua entrada no país, e o movimento pela paz cresceu. Quando voltaram para Londres, novamente Garrido estava ao lado de Lennon que, naquele período, fazia pequenas altera??es na letra e mixava a música Give Peace a Chance e recebia a visita de Ringo Star, Mick Jagger e Keith Richard. Na época, Garrido era apenas um jovem que estava vivendo a raridade do instante. Hoje, as mais de 300 fotografias em preto e branco, realizadas entre mar?o e setembro de 1969, s?o o registro de uma época e, simultaneamente, o documento de um momento histórico para o Rock and Roll.Depois desses meses de convivência, Garrido e Freire venderam a matéria para a Manchete e foram finalmente contratados pela revista. Sem no??o da import?ncia do que documentara, Garrido conservou os negativos, e agora, assediado pela imprensa internacional, procura a melhor oportunidade para compartilhar suas fotografias. Hoje, neste mundinho em que qualquer celebridade vira-lata tem um exército de seguran?as, o jovem fotógrafo dificilmente poderá ter alguma experiência parecida com a de Garrido. HYPERLINK "" Vale a pena clicar no link e conhecer um pouco mais desta aventura incomum de um fotógrafo que se tornou uma referência da fotografia brasileira, particularmente no gênero retrato, um gênero que o consagrou ao longo de sua trajetória artística.O olhar trágico através da lente Os pensadores chamados trágicos – como Nietzsche – sugerem que n?o há no mundo nenhuma for?a que conspire espontaneamente a nosso favor. O nitzscheano Clément Rosset? (A lógica do pior, 1971) vai um pouco mais longe. Ele diz que, vez ou outra, quando menos esperamos, esse mesmo mundo nos brinda com certa ironia, fazendo com que o trágico beire o c?mico. ? o que ele chama de “riso exterminador”.No come?o deste ano, acompanhamos a notícia sobre um vereador filipino, Reynaldo Dagsa, que, ao fazer uma foto de sua família na comemora??o do ano novo, registrou também um homem que lhe apontava uma arma. Ele foi baleado ali mesmo e morreu logo em seguida. HYPERLINK "" Familia de Reynaldo Dagsa. ? esquerda, apontando a arma, o homem que foi identificado como Michael Gonzales.Dagsa era um amador, queria apenas celebrar um ano bom com sua família. Para ele, o acaso surgiu como uma espécie de fantasma que a c?mera foi capaz de tornar visível, num gesto t?o fora de lugar quanto definitivo. Esse é o tipo de ironia de que fala Clement Rosset (em seu exemplo, ele remete aos que embracaram na primeira classe do Titanic para celebrar o progresso, que havia permitido construir um navio “inafundável”, conforme dizia o folheto publicitário).Amadores ou profissionais, a c?mera sempre mantém alguma independêcia de nossa consciência. N?o raramente, o acaso nos envia esse recado e descobrimos em nossas fotos coisas que nos surpreendem. Mesmo que essas presen?as tenham sempre algo de assombroso, esse é um dos prazeres da fotografia.Contra tal ironia, muitos que trabalham com imagens assumem essa perspectiva trágica e aceitamos seus riscos. Se for o caso, olham a morte de frente quando a encontram. ? o que acontece com Emilio, fotógrafo e cinegrafista do belo filme La puta y la ballena (Luis Puenzo, 2004),? que filma sua própria morte na Guerra Civil Espanhola.Por mais que pare?a inverossímil, a realidade também sabe jogar com as improbabilidades. Talvez a inspira??o do personagem de Puenzo seja o cinegrafista argentino Leonardo Henrichsen, que buscou com sua zoom aqueles que ele certamente intuiu que seriam seus assassinos. Ele cobria no Chile o levante militar de junho de 1973 que ficou conhecido como Tanquetazo, e que já dava o tom daquela que viria a ser uma das mais violentas ditaduras da América Latina, iniciada alguns meses depois.Para o olhar verdadeiramente trágico, esses acasos permanecem imprevisíveis, mas já se anunciam como expectativa.? Todo fotógrafo que aceita se confrontar com a realidade cultiva em alguma medida esse olhar e tende a fazer da exce??o a regra que move sua arte, sejam os pequenos acidentes que se revelam lúdicos, sejam as injusti?as que se tornam catastróficas.Jo?o Castilho é mestre Em dezembro de 2010, eu postei no Twitter: “Jo?o Castilho é mestre”. Várias pessoas concordaram e algumas acrescentaram outros adjetivos. Os elogios eram merecidos, Castilho já demonstrou seu talento como artista, mas minha afirma??o era um pouco mais literal. Eu tinha acabado de participar de sua banca de mestrado na Universidade Federal de Minas Gerais, onde ele apresentou a disserta??o “A fotografia entrópica de Robert Smithson”.N?o é t?o óbvio encontrar um artista com voca??o e disposi??o para a pesquisa acadêmica. Ainda vemos bons programas de pós-gradua??o acolhendo artistas que n?o vêem nenhuma distin??o entre a universidade e o ateliê, e que acabam por eleger a si mesmos como tema, justificativa e método de toda a pesquisa.Castilho bem que poderia, mas em seu mestrado n?o quis se deter em sua produ??o. N?o precisaria, mas optou por debater um tema delicado e ainda mal assentado na história: a produ??o fotográfica pouco conhecida de Smithson, artista norte-americano consagrado por suas interven??es em espa?os naturais e urbanos, e que morreu aos 35 naos de idade, no auge de sua carreira. Para nós, é um tema pouco confortável porque em seus trabalhos mais conhecidos – como o Spiral Jetty – a fotografia parece ser um mero registro de suas a??es. HYPERLINK "" R. Smithson, Spiral Jetty (1970).Pode nos parecer pouco, mas esse representa um momento importante de afirma??o do diálogo entre a fotografia e as outras linguagens que, nessas últimas décadas, passaram a conviver indistintamente dentro dentro dos espa?os dedicados à arte. Como diz Jo?o Castilho:“Smithson se op?s, sistematicamente, à ordem estabelecida da arte modernista e a todas as ortodoxias. Tinha como objetivo claro expandir o campo de sua atua??o e implodir as fronteiras das diversas categorias de arte e dos limites de suas institui??es. Nada mais natural que come?asse a usar a máquina fotográfica.Esse projeto de renova??o artística implicava, em um primeiro momento, um rompimento com a prática dos c?nones da fotografia da época, e, depois, a convivência da fotografia com todos os outros meios disponíveis aos artistas daquele período. A fotografia deveria conviver com as outras formas artísticas, sem hierarquiza??o”.De um lado, a pesquisa n?o se limita às obras mais conhecidas de Smithson. De outro, tenta demonstrar que a fotografia n?o era para ele assim t?o assessória quanto pensamos. Para isso, Castilho mergulha em relatos biográficos e depoimentos deixados pelo artista, recorrendo a uma bibliográfia quase desconhecida no Brasil. Foi uma surpresa descobrir como Smithson falava com profundidade sobre seu tempo e sua arte. E, mesmo que tenha optado por usar sempre uma c?mera amadora (uma Instamatic 400), n?o deixou de pensar com propriedade sobre o sentido histórico e cultural do meio a que recorria. HYPERLINK "" R. Smithson, Photo-Markers, 1968.A estrutura da disserta??o de Castilho é simples: come?a com uma contextualiza??o ampla da produ??o do artista e termina com uma análise em profundidade de algumas obras escolhidas. No meio disso, foi preciso abordar um conceito t?o difícil quanto importante, entropia, que Smithson toma emprestado da física moderna para criar uma chave crítica que permite pensar muitas das transforma??es vividas pelo século XX. ? difícil e distante do nosso vocabulário, mas vale deixar um parágrafo sobre o tema.A primeira lei da termodin?mica diz que a energia n?o se perde, se transforma. No entanto, a segunda lei diz que o aproveitamento dessa energia depende de uma ordem que tende a se desfazer contínua e irreversivelmente, conduzindo à sua “morte térmica” do sistema em quest?o. ?Esse acréscimo de desordem equivale ao aumento de entropia. Por exemplo, quando se coloca em contato por??es de água quente e de água fria, a distin??o de temperatura cria um fluxo ordenado de moléculas que permite explorar a energia desse sistema. Ele se tornará “morto”, atingirá seu grau máximo de entropia quando esse contato resultar irreversivelmente em uma única por??o de agua morna. A desordem medida pela entropia tem a ver com um estado de indistin??o de formas e de fluxos, de nivelamento, de esgotamento, de degrada??o, de incapacidade de produ??o de estímulos, tendência espont?nea da natureza contra a qual o ser humano, com sua for?a construtiva, acreditou poder lutar.Smithson constata, no entanto, o fracasso desse esfor?o. Isso podia ser visto em Passaic, sua cidade natal no estado de Nova Jersey, que era naquele momento uma espécie de grande ruína gerada pelo próprio esfor?o organizador do progresso. Ele reencontrou ali uma paisagem em que tudo remetia à no??o de entropia, e realizou um importante trabalho que envolveu mapas, fotos e textos, resultados que ele chamou de “monumentos”, como explica Castilho:“Os monumentos de Passaic parecem, inicialmente, n?o ser monumentos. Onde já se viu tubos, canos, pontes, parquinhos serem monumentos? O que teriam essas constru??es a ver com com as gloriosas edifica??es em homenagem a tempos gloriosos? Os monumentos de Passaic est?o todos vazios, esvaziados de toda memória. Nenhuma presen?a humana, nenhuma referência histórica. Em Passaic, a ordem e a irracionalidade da sociedade industrial fracassaram no caos e na catástrofe. As estruturas sucumbiram na desintegra??o. Estes seriam, ent?o, monumentos erigidos à entropia”. HYPERLINK "" R. Smithson, Monumentos de Passaic, 1967.Em sua conclus?o, de modo muito discreto, Castilho introduz seu próprio trabalho para mostrar algumas afinidades que descobriu e cultivou com Smithson. Antes mesmo de definir o tema de sua pesquisa, Castilho havia come?ado a série denominada HYPERLINK "" \t "_blank" Aqui tudo parece que é ainda constru??o e já é ruína, de 2007, título que também aponta para a idéia de um esgotamento precoce das paisagens.Jo?o Castilho, Aqui tudo parece que ainda é cosntru??o mas já é ruína, 2007Smithson parece ter oferecido a Castilho uma linha de pensamento crítico que deu ainda mais consistência ao seu trabalho. O debate em torno do conceito de entropia se tornou nítido em suas obras posteriores, como no vídeo Abalo, de 2010, e nas imagens que comp?e seu mais recente livro, Peso Morto, também de 2010, realizado em parceria com escritores convidados. HYPERLINK "" Jo?o Castilho, Abalo, 2010A identifica??o entre Castilho e Smithson n?o se resume ao tema “entropia”. Temos nessa pesquisa o feliz encontro de dois jovens artistas de gera??es e lugares distintos, que se destacam n?o só por suas produ??es plásticas mas também pela densidade de suas reflex?es.Além de oferecer uma escrita clara, sem maneirismos, Castilho fez ainda uma apresenta??o muito tranquila e segura para a banca, composta pela orientadora da pesquisa, Maria Angélica Melendi (UFMG), Eduardo de Jesus (PUC-MG) e eu. Todos destacaram o ineditismo da pesquisa e recomendaram que o trabalho fosse publicado. Vamos torcer para que isso aconte?a logo.Norman Rockwell – behind the camera HYPERLINK "" Triplo aurretrato, 1960 – capa The Saturday Evening Post, 13 de fevereiro de 1960O universo da imagem sempre nos surpreende. Há algumas semanas, visitando a exposi??o do ilustrador Norman Rockwell (1894-1978), no HYPERLINK "" \t "_blank" Brooklyn Museum, em NYC, mais um mistério é desvendado. A exposi??o torna pública, pela primeira vez, o uso da fotografia nos trabalhos daquele que é considerado o maior nome do desenho e da ilustra??o norte-americana entre as décadas de 1930 e 1970. Aliás, é na década de 1930 que ele incorpora a fotografia em seus trabalhos e a exposi??o, com curadoria de Ron Schick, desvenda todo o mistério – seus parceiros fotógrafos, alguns dos seus episcópios (projetores) utilizados para ampliar as imagens, a cópia contato, a dire??o de cena, enfim todos os procedimentos que o transformaram no artista que melhor soube trazer o imaginário do cidad?o norte-americano para a publicidade e para as capas das principais revistas do país. HYPERLINK "" Girl at mirror, 1954 – capa de The Saturday Evening Post, 6 mar?o de 1954Rockwell trabalhou durante 47 anos para a revista The Saturday Evening Post e assinou 323 capas neste período. Ele também trabalhou com diversos fotógrafos durante os mais de 40 anos em que usou a imagem da c?mera como matriz do seu desenho e da sua pintura, mas apenas três s?o os responsáveis pela maioria das fotografias de seu arquivo que hoje ultrapassa o número de 18 mil negativos, devidamente catalogados e arquivados no Norman Rockwell Museum, em Stockbridge, Massachusetts, responsável inclusive por manter por tanto tempo o segredo da originalidade do trabalho de Rockwell.Gene Pelham (1909-2004) foi fotógrafo de Rockwell durante 14 anos, quando ele morou em Vermont. Pelham utilizou inicialmente uma c?mera 5X7 polegadas e mais tarde a 4X5 polegadas, e produziu fotografias de excepcional qualidade, já que assumia a fun??o de criativo assistente e ótimo laboratorista. Bill Scovill (1915-1996) foi o primeiro fotógrafo com quem Rockwell trabalhou em Stockbridge. Diferentemente de Pelhman, que também era modelo, Scovill era tecnicamente eficiente e ajudava-o a contratar fotógrafos locais quando viajavam. Ele colaborou na cria??o de 160 ilustra??es e documentou toda a atua??o de Rockwell na dire??o dos personagens no estúdio. Louie Lamone (1918-2007) foi inicialmente contratado para ajudá-lo em sua mudan?a para Stockbridge e aos poucos se tornou seu assistente geral. Lamone trabalhou com Rockwell durante 23 anos, mas come?ou a fotografar somente em 1961, tornando-se primeiro fotógrafo em 1963. Os dois últimos também utilizavam a c?mera 4X5 polegadas e o 35mm para selecionar modelos e loca??es. HYPERLINK "" Seus três fotógrafos: Bill Scovill, Gene Pelham e Louie Lamone (da esquerda para a direita)No início da sua carreira, Rockwell contratava modelos profissionais que, aos poucos, foram sendo substituídos por pessoas que viviam ao seu redor: os amigos e seus filhos, familiares e vizinhos. Isso gerou uma aproxima??o e uma cumplicidade muito grande entre o artista e os leitores das revistas ilustradas – os principais veículos de comunica??o de massa na década de 1930. ? incrível perceber, através das fotografias selecionadas para a exposi??o, sua intensa participa??o na cria??o das imagens e o modo como ele utilizava diferentes artifícios para dar conforto aos seus modelos n?o profissionais. Dizia ele: “eu retrato humanos com cara de humanos”.Outra curiosidade trazida pela exposi??o é que Rockwell sempre procurava se posicionar muito próximo da c?mera fotográfica. Além de estar presente na cena e controlá-la em suas nuances, isso facilitava muito sua transcri??o para o papel, ocasi?o em que ele fazia os pequenos ajustes para eliminar os excessos e valorizar as express?es e os movimentos congelados pela c?mera fotográfica. Esse anúncio – First Trip to the Beauty Shop, de 1972 – é um exemplo típico de como ele soube explorar o uso da fotografia para criar uma iconografia das mais emblemáticas do povo norte-americano. HYPERLINK "" First Trip to the Beauty Shop, 1972Sabemos da rela??o íntima entre a pintura e a fotografia e conhecemos a import?ncia da fotografia nos trabalhos de Delacroix, Ingres, Courbet, Gauguin, Degas, Picasso, entre outros. Norman Rockwell tinha conhecimento de que, já antes do Renascimento, muitos artistas trabalharam diretamente com a camara obscura e isso nunca foi um obstáculo para ele. Seus cenários arranjados lembram as composi??es de Robinson e Rejlander do século XIX ou mesmos as encena??es contempor?neas de Cindy Sherman e Jeff Wall. Rockwell, assim como Rejlander, também finalizava suas imagens a partir de vários fragmentos fotografados separadamente. Enfim, os procedimentos em busca da perfei??o, da meticulosa precis?o, dos ?ngulos necessários para enfatizar os olhares da cena, da ilumina??o correta, evidenciam sua aten??o para a import?ncia da fotografia, essência primeira de sua arte.Norman Rockwell deixou sua obra muito bem documentada e a maioria dos fotógrafos contratados para trabalhos específicos, além dos seus três preferidos, est?o devidamente nomeados. Isso significa que ele assumia a fotografia como parte do seu processo criativo e com certeza muitas delas devem ser de sua própria autoria, mas ainda n?o est?o identificadas. De qualquer modo, é sempre bom lembrar que ele foi um exímio desenhista desde crian?a. Em um dos seus diários de trabalho ele escreveu: “eu desafio qualquer um a me mostrar quando comecei a usar fotografia. Afinal, sempre fui conhecido como o garoto com olhos de c?mera”.Confesso, sempre admirei o trabalho de Norman Rockwell (talvez por ser t?o fotográfico) e conhe?o alguns dos seus principais livros, mas jamais tive com clareza a evidencia fotográfica que mostra esta exposi??o. HYPERLINK "" Circus, 1955 – um dos 81 desenhos de propaganda criados durante 10 anos para a Massachusetts Mutual Life Insegurance Company. Rockwell é o que está em pé na fotografia HYPERLINK "" Leaving the Hospital, 1954 – fotografia produzida para ilustrar uma pe?a publicitáriaA imagem do ano do World Press Photo HYPERLINK "" Revista Time, 19/07/2010Fiquei surpreso com a foto escolhida como “imagem do ano de 2010” pelo World Press Photo: o retrado feito pela sulafricana Jodi Bieber da jovem afeg? Aisha, que teve seu nariz e orelhas decepados pelo marido, com o apoio do Taleban.Lembro bem de quando a imagem circulou pelo mundo no ano passado depois de ser publicada na capa da revista Time. ? desse tipo de cena que você olha com o est?mago e só consegue responder com o silêncio.Foi uma experiência forte, sem dúvida, mas em momento algum senti que estava diante de uma grande fotografia. Ela é boa talvez no sentido de demandar credibilidade e de dar express?o à gravidade do fato. Mas nada muito além disso.Vamos ent?o refletir um pouco mais sobre essa imagem, sobre sua publica??o pela Time, sobre o prêmio recebido. N?o tenho clareza do que penso. Acreditem, vou tentar entender enquanto escrevo.– A imagem exp?e o resultado da violência sem nenhum pudor. Sensacionalismo? A imagem é sem dúvida “apelativa”, no duplo sentido do termo: é um clamor e uma superexposi??o. Difícil saber se uma coisa justifica a outra, isto é, se a necessidade de trazer algo à nossa consciência justifica a carga excessiva colocada sobre nosso olhar. Mas essas duas coisas est?o lá, tanto pior se fosse apenas a segunda.? HYPERLINK "" Como assume o editor, “nossa imagem de capa desta semana é forte, impactante e perturbadora”. N?o é só isso. Sem nenhuma ingenuidade, eles est?o bancando ali uma quase propaganda (de guerra): “o que acontece se deixarmos o Afeganist?o”, diz a chamada, referindo-se à discuss?o sobre o fim da interven??o política e militar dos EUA no país do oriente-médio. A imagem é a resposta.– N?o é apenas a violência que nos perturba. ? sua proximidade. O Afeganist?o continua longe e, em princípio, ainda estamos “diante da dor dos outros” à qual normalmente reagimos com um misto de repulsa e curiosidade. Mas, nesse caso, há algo diferente, um vínculo forte com o ocidente. N?o só porque os EUA est?o no Afegaist?o (esse é o tema da reportagem da Time), ou porque a garota já estava sob a prote??o das tropas americanas, antes de seguir para os EUA. A quest?o é que temos ali uma beleza que também é a nossa, uma mulher que poderia ter qualquer nacionalidade, um rosto que, se n?o estivesse mutilado, n?o apenas despertaria nossa compaix?o, mas também nos seduziria. Há um potencial ocidental nesse rosto que impede sua abordagem como exótico. Diferente de pensar “pobre das mulheres daqueles homens”, é como se a violência tivesse agora atingido uma das nossas. Portanto, o próprio fato envolve uma quest?o de identifica??o com uma imagem.– A foto parece ser pouco elaborada, um retrato numa capa como tantas outras que já vimos. N?o há uma composi??o que se destaca, um enquadramento peculiar, um instante decisivo.? HYPERLINK "" No site de Jodi Bieber, há vários ensaios que demonstram melhor sua competência. Há coisas realmente boas por lá. Mas e a foto desta capa? N?o podemos ser ingênuos: essa simplicidade n?o deixa de ser uma constru??o. A fotografia de aberra??es (pessoas doentes, deformadas, mutiladas…) é quase um gênero histórico que possui sua própria linguagem. ?Mas n?o é o caso. Temos ali um retrato com um leve toque publicitário: um sombreado ao fundo, um torso precisamente colocado entre a frontalidade e o perfil, um olhar de canto de olho mas que enfrenta a c?mera,? um vestuário oriental soft. E claro, aquele rosto que tinha tudo para ser belo. Poderia ser a foto de uma campanha publicitária, de um book de modelo, ou de uma personalidade qualquer que aparece em capas de revista. Nossa perturba??o aumenta exatamente porque essa imagem coloca um conteúdo numa forma que parece n?o lhe pertencer. ? uma estratégia forte e precisa que tem antecedentes: August Sanders, Diane Arbus, Joel-Peter Witkin… Acho que a Time teve consciência desse deslocamento, de que mostravam alguém que passou por uma experiência limite de violência do mesmo modo que mostrariam o ganhador do Oscar ou o investidor do ano. Mas duvido um pouco de que os jurados do prêmio tenham passado por quest?es dessa ordem. Por sua vez,?a fotógrafa diz algo que quase segue nessa dire??o, mas de um modo mais poético: “quis mostrar sua beleza, n?o quis mostrá-la como uma vítima”. Mas n?o podemos ser hipócritas: aos nossos olhos,?sua beleza apenas agrava sua condi??o de vítima, escancara aquilo que foi perdido.– Mesmo que haja grandes trabalhos premiados, sinto que o World Press n?o se preocupa tanto com a originalidade autoral. Já vimos por lá bichinhos, paisagens, também já vimos acidentes e catástrofes, tudo isso em fotos que s?o, no máximo, interessantes e corretas. Isso significa que o prêmio valoriza n?o tanto – ou n?o apenas – a obra, mas a beleza do fato, a import?ncia do fato, a gravidade do fato, e a capacidade do fotógrafo de estar ali quando as coisas acontecem. ? uma concep??o clássica de fotojornalismo, também n?o é a minha preferida, mas tem lá sua legitimidade. Neste caso, n?o parece ser diferente: o prêmio n?o considera apenas a foto, mas também a import?ncia do contexto que ela revela e do qual participa. Mas, mesmo os bichinhos e as catástrofes costumam aparecer no World Press com composi??es mais sofisticadas que essa. ?Normalmente, o público ainda diria: “nossa, que foto!”. Aqui, seria: “nossa, que coisa, que desgra?a, que maldade!” Talvez, simplesmente: nossa!”.? Os par?metros n?o parecem estéticos, imagino que um dos principais ingredientes dessa escolha seja a como??o. Vale explicar. Por como??o, podemos entender um “movimento coletivo”, o desejo de considerar o afeto do público como um componente da comunica??o de massa (como fazem explicitamente os roteiristas de novela quando conduzem a trama em fun??o de uma vontade média). Mas claro, essa como??o n?o é fútil, ao contrário, considera a import?ncia do tema, é politizada no sentido de destacar o papel que a fotografia teve para esse público na compreens?o de uma realidade e na afirma??o de uma causa. De todo modo, se esta hipótese faz sentido, isso significa trocar um papel “formador” que um evento cultural poderia ter por um papel simplesmente “consagrador”.Por um instante, eu mesmo achei que poderia chegar à conclus?o de que o prêmio foi justo ou injusto. Mas n?o é preciso trazer o debate para o campo moral. Se estranhamos a escolha, temos que tentar tirar um sentido disso. Construir um olhar crítico sobre as imagens é muito mais produtivo do que reivindicar uma pretensa objetividade das fotografias, das exposi??es, dos concursos."La cámara oscura", em busca de um olhar que transcende as aparências Zapear a TV a cabo é como a rotina de andar no meio da multid?o. Depois de um longo percurso, nenhuma marca, nenhuma história pra contar. Até que um dia, quando a gente menos espera, ?a gente dobra uma esquina e vê um rosto, uma express?o, um gesto, algo que nos surpreende e que é capaz de produzir uma experiência. ?A TV e, claro, também a internet s?o as metrópoles dos flaneurs pregui?osos.###Num desses dias de sorte, pulando de canal em canal, dei de cara com um filme chamado A c?mera escura. Opa! Bom motivo pra largar o controle remoto. Filme argentino recente (La camara oscura, 2008), escrito e dirigido pela desconhecida Maria Victoria Menis, traz uma produ??o simples, uma história delicada e, como o título promete, uma presen?a forte da fotografia.Uma família judia aporta na Argentina fugindo da persegui??o dos pogroms na Rússia, no final do século XIX. A mulher, que chegou grávida ao país, dá a luz ainda na rampa do navio a Gertrudis, uma menina que dizem ser muito feia. A fotografia aparece em alguns momentos de sua vida mas, sabendo-se feia, ela trata de sempre esconder o rosto.Mesmo crescendo solitária e introspectiva, ela se casa e tem filhos com um colono, que a escolhe como esposa por uma raz?o inusitada (que n?o vou contar). Sua família ocupa bem o seu tempo, mas n?o consegue livrá-la da solid?o.?Certo dia, um retratista francês aparece no vilarejo e é contratado para passar alguns dias na fazenda, fotografando a família e o local. O fotógrafo, como ele mesmo explica, viveu experiências trágicas mas aprendeu com o surrealismo a buscar uma dimens?o mais profunda e sutil da realidade. E é assim que ele é capaz de ver beleza em Gertrudis que, aos poucos, aprende a encarar a c?mera e também a si mesma. Até encontrá-la, o fotógrafo amarga o fato de que, em seu exílio de retratista ambulante, ninguém está preparado para entender suas fotografias experimentais.N?o é um filme difícil, intelectualizado, mas é silencioso, contemplativo e alguns fatos s?o mais intuídos do que vistos. Exige-se do nosso olhar a mesma capacidade imaginativa que o fotógrafo reivindica.Em dois momentos, sem maiores explica??es, a diretora pede licen?a para passear por imagens completamente descoladas da narrativa. Primeiro, uma anima??o que traduz o universo introspectivo da pequena Gertrudis. Depois, num devaneio do fotógrafo, uma série de imagens experimentais que associam elementos do filme com o cinema e a fotografia das vanguardas.De quebra, o filme dá forma a situa??es que hoje só conseguimos imaginar a partir dos relatos históricos. Os fotógrafos europeus que tentavam a vida na América e perambulavam pelas pequenas cidades e fazendas, famílias de origem humilde que buscam no retrato uma confirma??o de sua recente prosperidade, os “caixotes” que come?am a conviver com as primeiras c?meras de pequeno formato, laboratórios improvisados em celeiros. Também vemos ali, didaticamente, como se pode construir um mundo com a fotomontágem, e como funciona uma camara obscura, que no filme se forma acidentalmente, de um modo mais poético do que convincente.Infelizmente, n?o é fácil encontrar o filme. Passou muito rápido pela programa??o de um canal pouco interessante da TV a cabo, n?o me lembro de ter entrado em cartaz, e n?o está disponível em DVD nem mesmo na Argentina.Quem sabe, com um pouco de paciência, conseguimos garimpar e rencontrar em meio à multid?o aquele rosto que gostaríamos de olhar mais detidamente.Sedu??o da ausência: os descaminhos de um tema de pesquisa Na minha pesquisa de pós-doc, discuti os trabalhos de Christian Boltanski e Sophie Calle a partir da seguinte hipótese: muitas vezes, a fotografia seduz n?o tanto pelo que ela mostra, mas pelo que esconde, pela história que? supomos existir e que ela n?o é capaz de contar. Essa pesquisa virou um HYPERLINK "" \t "_blank" artigo, mas n?o foi oportuno contar ali uma das origens dessa intui??o. Esses dias, uma ex-aluna me escreveu pedindo para relembrar o episódio. Decidi compartilhar. HYPERLINK "" Christian Boltanski, Licée Chases, 1986-7.Em 2000, caminhando na regi?o da Av. Paulista, eu achei uma carta escrita a m?o numa folha de caderno: uma mulher respondia a um anúncio de um homem que procurava por sexo sem compromisso. Apesar do assunto, a linguagem era formal, nada erotizada. Ela explicava que morava desde a adolescência com uma família para quem trabalhava. Considerava essas pessoas sua própria família, mas dava a entender que toda sua rotina girava em torno das necessidades deles, e que ela n?o tinha uma vida social própria. Próxima dos 40 anos, ela dizia ter certas curiosidades e, por isso, respondia ao anúncio. Ela falava da fisionomia e do corpo de forma quase contratual, e assumia n?o haver ali nenhuma outra expectativa. Ao final, um nome e um telefone.Essa carta ficou cerca de dois meses pregada numa parede em frente a minha mesa de trabalho. Já n?o havia mais o que reler, mas eu continuava olhando para ela como uma imagem. Como acontece quando lemos um romance, acabei inventando um rosto para aquela personagem, e desenhei a continua??o dessa história de todos os jeitos: rolou, n?o rolou. Foi só aquilo, foi mais que aquilo. Ela desistiu de mandar a carta e jogou fora. O homem recebeu a carta e jogou fora. Considerei até a possibilidade daquilo ser parte da performance de algum artista que inventa e deixa cartas pelas ruas da cidade.E aquele número de telefone? Cheguei a ensaiar algumas estratégias de abordagem. Mas tive um surto de bom-senso. Quantas vezes alguma coisa n?o nos pareceu melhor enquanto exisita como promessa, como fantasia, como utopia? ?Qual história seria capaz de mobilizar em mim o mesmo nível de imagina??o?Uma analogia: quem já n?o se viu cativado por uma foto que encontrou em algum lugar, an?nima, sem nenhuma informa??o ou legenda? Ao contrário, quem já n?o morreu de tédio diante dos relatos eloquentes que acompanham o “slide show” da viagem que um parente compartilha conosco em seu “home theater”?Algo assim permite entender a diferen?a entre a pornografia e o erotismo. A pornografia resolve o desejo e o esgota ao revelar tudo.? Por isso sempre deixa certa frustra??o. O erotismo alimenta o desejo ao sugerir que há mais para ser visto.O valor está no que se vê, mas também no que se esconde, no devir.?O devir, uma espécie de futuro do pretérito contido naquela carta, era muito melhor do que qualquer desfecho que a história pudesse ter. Em vez da resposta certa, preferi guardar as perguntas. Joguei a carta no o tempo, isso me ajudou a entender um valor que algumas fotografias possuem: uma justa medida entre o fato que apresentam e a história que n?o contam,? entre seu poder de referência e seu silêncio, entre seu realismo e a abertura que deixam para o imaginário.Gostava muito do trabalho de Christian Boltanski e de Sophie Calle, e passei a vê-los como artistas que sabem jogar com essa medida. Numa noite de ins?nia, esse episódio, esses artistas e algumas leituras se cruzaram, e nasceu o projeto de Pós-Doc que apresentei à Unicamp, chamado provisoriamente de “Sedu??o da Ausência”. Mas aí come?a a história oficial.Em geral, uma pesquisa acadêmica nasce de escolhas e justificativas bastante metódicas. Mas, uma vez ou outra, eu tive a sorte de ser escolhido por um tema.Viver o novo e compartilhar emo??es Como sempre, a cidade de S?o Paulo oferece muitas op??es para quem gosta e aprecia a fotografia. Seja diletante, artista, estudante, pesquisador, crítico de artes visuais, a oferta é sempre muito grande e diversificada nos espa?os institucionalizados. Neste momento, a Pinacoteca do Estado, exibe Revolu??o na Fotografia, de Aleksander Rodtchenko; o Instituto Moreira Salles, Uma Antologia Pessoal, retrospectiva de Thomaz Farkas; a Caixa Cultural, Olhar-Imaginário, de German Lorca; o Instituto Tomie Ohtake, Relicário, de Vik Muniz; o Centro de Cultura Judaica, Marcados, de Cláudia Andujar (abertura prevista para dia 15 de mar?o); o Museu AfroBrasil, Antífona, de Gal Oppido; o Sesc Belenzinho, Ituporanga, de Caio Reisewitz;? a Fauna Galeria, Mulheres dos Outros, de Eduardo Myulaert; o MIS, Blues, de Klaus Mitteldorf; entre outras mostras que merecem visita??o. HYPERLINK "ário1.jpg" German Lorca, imagem da exposi??o "Olhar Imaginário"Visitar estas exposi??es é sempre um saudável exercício de leitura visual, pois juntas elas oferecem uma vis?o panor?mica de qualidade incomum sobre a fotografia moderna e contempor?nea. Digo isso porque, tanto no aspecto curatorial quanto na quest?o da expografia, s?o perceptíveis as diferen?as em termos de abordagens e escolhas assumidas. Isso é, sem dúvida, muito enriquecedor para quem vê as exposi??es porque, além das informa??es adquiridas via a própria fotografia, você poderá compará-las no tempo e no espa?o.O que nos cabe indagar é porque a produ??o mais jovem, que sabemos que existe, dificilmente encontra espa?os para exibi??o. Há poucos meses, tivemos a inaugura??o da Zipper Galeria, que se assume como o espa?o para este tipo de produ??o, mas cuja primeira iniciativa, paradoxalmente, foi a exposi??o A casa em festa, de Flavia Junqueira, artista já bem conhecida do público paulistano. Além disso, na edi??o da Expo Arte Fotografia de 2009, seu trabalho teve expressiva comercializa??o através de outra galeria.Sabemos o quanto é difícil manter um espa?o para exibi??o, mas alijar do processo a produ??o jovem contempor?nea é n?o querer apostar em alternativas que podem a médio prazo se transformar em solu??es, inclusive econ?micas. Participo como conselheiro de alguns dos mais importantes eventos de fotografia do país e sei o quanto é difícil assumir, mesmo que parcialmente, a exibi??o dessa nova fotografia brasileira. Geralmente, os principais entraves s?o o tempo para pesquisar e o compromisso com os patrocinadores, o que significa, em outras palavras, um retorno antecipado e garantido de mídia espont?nea.Quando escrevo nova fotografia brasileira tenho certeza que muitos compreender?o. Nos diferentes encontros realizados em diferentes centros de produ??o do país, temos acesso aos portfólios e ao jovem fotógrafo – ou seria image maker? Por isso mesmo, sinto que este é o momento de mostrar alguns trabalhos que s?o produzidos nas várias regi?es brasileiras, particularmente aqueles que têm um frescor sintonizado com o contempor?neo. A fotografia numérica, ou digital se quiserem, trouxe novo aprendizado, diferente do convencional. Os jovens que vem investindo nessa produ??o de imagens mostram-se, mesmo desprovidos em parte de um passado muito técnico, histórico e estético, com coragem suficiente para apontar outros caminhos dentro de uma nova e possível sintaxe fotográfica. HYPERLINK "" Breno Rotatori, série Bloco de Notas? interessante percebermos nessas imagens a singularidade das cores que emergem da tecnologia digital. Cores que n?o vemos, mas que a c?mera registra. N?o só isso: temos ainda as texturas diferenciadas, as formas ruidosas, o excesso das luzes que pulsam distintamente e o tratamento da imagem nos ambientes de baixa luminosidade. Esse distanciamento dos procedimentos da fotografia convencional e essa intimidade com os novos ambientes tecnológicos e perceptivos se insinuam como alternativas estéticas. Talvez como outros paradigmas visuais.Já se falou demais sobre a rela??o entre a fotografia analógica (de base química) e a fotografia numérica (de base digital), mas ainda n?o sabemos avaliar sua real contribui??o neste exato momento tecnológico. Seguramente, a idéia de produ??o e cria??o de imagem a partir da perspectiva artificialis está em crise. N?o é somente a crise dos suportes ou a crise de gera??es. ? um novo olhar que se instaura e que procura seu espa?o na atual produ??o das artes visuais.Diante desse abismo inexorável em que nos encontramos e cujo poder de ruptura?desconhecemos quase completamente, cabe nos perguntar quanto tempo ainda será necessário para que o circuito institucionalizado, incluindo aí o mercado, arrisque mais e comece a exibir e refletir sobre a novíssima produ??o fotográfica contempor?nea. Que tal pensarmos mais seriamente em viver em profundidade essa produ??o visual e (re)aprender a compartilhar emo??es?Inhotim: espa?o e experiência Neste carnaval, fui conhecer Inhotim. Eu sabia que encontraria obras importantes de grandes artistas, algumas delas já vistas em outras montagens. A surpresa n?o é a qualidade das obras, mas a experiência.Ali circulam artistas, críticos, estudantes, turistas, gente perdida, de tudo um pouco. Vez ou outra, uns estranham os comportamentos dos outros, mas o espa?o é capaz de satisfazer igualmente a todos. HYPERLINK "" Inhotim: GoogleMapsAssimilamos a ideia de que a arte é uma atividade dotada de autonomia, que se justifica por si mesma. Mas a defesa dessa especificidade tem como efeito colateral um distanciamento entre arte e vida cotidiana. Os estudiosos vêem na arte um objeto que exige uma forma própria de conhecimento, os amadores, uma atividade que exige um tanto de solenidade. Uns como outros sempre chegam armados diante das obras, os primeiros com seus métodos, os segundos, com certa mistifica??o. S?o igualmente duas formas de preconceito.Para quem tem boa-vontade, Inhotim oferece a oportunidade rara de se desarmar. Antes e além das obras, encontramos a paisagem, os jardins, as edifica??es. Claro, jardins e edifica??es que também s?o obras de arte assinadas por nomes importantes, mas que est?o integradas ao espa?o, que s?o o próprio espa?o, e n?o est?o separadas dele por uma moldura, por um pedestal. S?o obras de arte que podem ser vistas enquanto se perambula, que n?o tem o peso dessa “especificidade” e, portanto, que n?o ativam de imediato o olhar analítico ou o olhar deslumbrado que se carrega quando se abandona a rotina para entrar num museu.Inhotim tem o mérito de permitir um pouco de vida em torno das obras, algo que talvez n?o tenha sido planejado desde o início. Parece ser o desdobramento natural de sua origem: um investidor que gosta de arte, bem assessorado e bem acompanhado por gente que entende do assunto, decide colocar obras consagradas no jardim de casa para deleite próprio e de seus convidados. N?o chega a ser uma estratégia curatorial, mas talvez combine os ingredientes necessários para tocar o grande público.A experiência que produz é o contrário da imers?o, que pressup?e abandonar um meio para acomodar-se a outro. As bienais exigem imers?o: passa-se dias vendo, pensando, respirando arte. Lá, n?o. Os mais sistemáticos, que têm em Inhotim muito material para pesquisa, também se perdem um pouco em coisas banais como um recorte da paisagem, a vegeta??o, os animais, um bom café e, mais cedo ou mais tarde, deixam escapar adjetivos nada especializados. Em contrapartida, os mais perdidos, que tinham Inhotim incluído no pacote, certamente aprendem muita coisa quase sem perceber.O ambiente que oferece é o oposto do “cubo branco”, ideal de espa?o que pretende se neutro em torno da obra. Mesmo quando n?o se exige, tudo parece ser tratado como “site specific”. O espa?o sempre aparece, ou porque foi desenhado para a obra, ou porque a obra foi concebida para aquele lugar, ou porque espa?o e obra s?o indistintos.A disponibilidade de espa?o é tamanha, as galerias s?o t?o generosas que quase despertam certo moralismo: “tanto museu improvisando seus puxadinhos, tanta obra sem um peda?o de parede pra ser pendurada…!”. Mas é interessante perceber como essa amplitude muda nossa rela??o como a obra: a possibilidade de chegar perto, de se afatar, circular, atravessar a obra; se for o caso, também de olhar para onde a obra n?o está, vivenciar o ambiente, a arquitetura, para logo depois ser fisgado novamente pela obra. Um exemplo próximo de nós: mesmo que pare?a que já vimos o bastante, é incrível entrar literalmente em alguns trabalhos de Miguel Rio Branco. HYPERLINK "" Pavilh?o Miguel Rio BrancoN?o devemos tratar essa amplitude luxuosa como um ideal de espa?o que deveria substituir o “cubo branco”. Se temos ali um bom laboratório de como a arte pode ser vivenciada por um olhar menos tenso, Inhotim continua sendo um espa?o distante, excepcional, nada cotidiano. Fica a experiência, mas resta saber como ela poderia ser construída também em outros centros culturais, nos espa?os públicos, nas ruas das cidades.Dentro e fora das galerias, há uma legi?o de monitores que integram um belo projeto de forma??o que inclui muitos moradores da modesta cidade de Brumadinho. N?o se pode esperar deles que saibam discutir as obras e os artistas, é natural que precisem de mais tempo. Mesmo assim, é muito bom ouvi-los falar sobre o que aprenderam ali. S?o algumas falas mais institucionais que incomodam. Quando perguntados sobre a história do lugar, eles têm na ponta da língua um discurso sobre “a doa??o daquele patrim?nio à socieade”. N?o que seja fundamental, mas algumas informa??es sobre as personalidades envolvidas no projeto s?o tratadas como tabus para eles. Quando provocados, a resposta vem num estilo atendimento ao consumidor: “n?o tenho essa informa??o, senhor”. Isso apenas ajuda a alimentar algumas fantasias junto ao público.Ao lado das obras, sempre encontramos um pequeno texto. Algo necessário, mas é preciso ter cuidado com o que se pode fazer com dois parágrafos. Depois de uma apresenta??o do artista, um pouco propagandística às vezes, sempre vem uma explica??o suscinta sobre a obra. Tentando dar conta do aspecto conceitual da arte contempor?nea, esse texto sempre corre o risco de antecipar “o que a obra quer dizer”, impondo um jogo poético de palavras, mas sem necessariamente alcan?ar uma conex?o com o que se vê. HYPERLINK "" Cildo Meireles, Desvio para o vermelho, 1967-84 (foto: Pedro Motta)Em Inhotim, essa cole??o formada entre o prazer privado e o conhecimento técnico tem o mérito de resultar num conjunto denso e amigável ao mesmo tempo. Encontramos alguns clássicos da arte contempor?nea, obras que podem render um bom papo-cabe?a, mas que também enchem os olhos: s?o plásticas, monumentais, interativas, lúdicas, revelam histórias curiosas em seus materiais, em sua montagem, em seu modo de funcionamento. N?o vemos ali uma fra??o da arte contempor?nea que se pretende desmaterialziada, anti-estética, avessa a qualquer forma de contempla??o, e que exige mais esfor?o para fazer sentido. Inhotim n?o tem nenhuma obrigra??o de mapear todas possibilidades da arte contempor?nea mas, como um próximo desafio, seria interessante testar esse espa?o amplo e bem cuidado diante de produ??es artísticas menos espetaculares e mais arriscadas. Isso significaria dedicar esse investimento n?o apenas à consagra??o, mas também à constru??o de uma arte contempor?nea.Feitas essas pondera??es, o que fica é uma experiência incrível. Há boas li??es pra se tirar dali. Tem que ir. E como ainda se trata de um espa?o em constru??o, tem que voltar de vez em quando.Viva Farkas! HYPERLINK "écada-de-401.jpeg" Thomaz Farkas, S?o Paulo, década de 40Na última sexta-feira a fotografia brasileira perdeu o seu maior entusiasta: Thomaz Farkas. Também o cinema perdeu a inteligência e a sensibilidade de um dos nomes mais emblemáticos da imagem criativa da segunda metade do século XX. Trabalhamos juntos na Cole??o Pirelli-Masp por 20 anos e em muitas outras oportunidades. Posso afirmar que sua alegria de viver intensamente todos os momentos sempre foi explícita e a imagem, em particular a fotografia, foi uma das suas paix?es mais delirantes.Desde o início dos anos 1940, quando participa do Foto Clube Bandeirante, inaugurado em 1936, sua vida foi pautada pela cria??o e propaga??o da fotografia brasileira. Em 1949 realiza a convite de Pietro M. Bardi a primeira exposi??o de fotografia no Masp. No come?o dos anos setenta publica uma revista mensal que durante anos foi referência para toda uma gera??o de fotógrafos brasileiros e em outubro de 1979 concretiza a Galeria Fotóptica, especializada em fotografia. Tornou-se um empreendedor cultural muito antes da era dos patrocínios e dos burocratas da cultura. Também foi professor da Eca-Usp, presidente da Cinemateca Brasileira e membro do Conselho da Bienal Internacional de S?o Paulo.Ele sempre explicitou sua preferência pela fotografia documental e pelo fotojornalismo. Com sabedoria defendia a fotografia como uma possibilidade de expressar e sintetizar as emo??es humanas. Sua simplicidade de análise significava que independentemente dos procedimentos utilizados, a imagem jamais deveria estar associada a justificativas e explica??es, pois qualquer tipo de verbaliza??o retira da fotografia o seu mistério. “A fotografia emociona ou n?o emociona”, dizia Farkas a partir de sua sofisticada experiência com a imagem.Sabemos hoje que Farkas foi um dos mais criativos fotógrafos da chamada Escola Paulista, mas ao assumir a dire??o da Fotóptica, centrou sua energia num arrojado projeto de fortalecimento da marca durante décadas. Imerso neste mundo do trabalho, sem nunca se desvincular do cinema e da fotografia, seu trabalho fotográfico reaparece somente nos anos noventa e tornado público se insere definitivamente na cronologia da fotografia brasileira. Após exibir, valorizar e publicar centenas de fotógrafos é que timidamente resolveu mostrar sua produ??o.?? Aparentemente um paradoxo, mas na realidade isso evidencia sua personalidade generosa e seu caráter ético inquestionável.Sempre se assumiu como um fotógrafo amador. Amador na essência etimológica mais expressiva – aquele que ama o que faz. Por isso mesmo seu trabalho é admirado e surpreendente. Valorizava a fotografia instintiva, intuitiva, consciente de que “enquadrar é eliminar tudo aquilo que está atrapalhando”. Basta ver seus trabalhos em exposi??o no Instituto Moreira Salles para entender com mais clareza suas idéias. Quando há um formalismo construtivo dominando a imagem, elas s?o pontuadas pela geometria e beleza, equilíbrio e leveza, ou seja, aquilo que ele defendia como sendo uma “vis?o essencial”. Sua fotografia transita pelas linhas diagonais, que geram assimetrias e ordena??es rítmicas vertiginosas. HYPERLINK "" Thomaz Farkas, Rio de Janeiro, 1945.Dentro do movimento da fotografia paulista moderna, tardia diga-se, Thomaz Farkas, ao lado de Geraldo de Barros, Benedito Junqueira Duarte, German Lorca entre outros, produziu uma fotografia provocativa, centrada em parte no questionamento das referências visíveis, buscando descolar a imagem técnica de uma leitura mais imediata. Sua fotografia tornou-se paradigma da melhor fotografia produzida de forma independente nesse período, que desestruturou a tradi??o pictorialista e acadêmica do movimento amador.Farkas com seu ímpeto transformador, seu espírito inquieto e seu olhar apurado colabora para esta nova fotografia que percorre o Brasil e o mundo através dos sal?es e dos concursos promovidos pelos fotoclubes. Mas isso foi insuficiente para o jovem que buscava fazer outra fotografia. Queria n?o apenas exibir-se, mas principalmente trocar idéias, revolucionar o pensamento visual. Essa atitude decorre do acesso que teve aos livros e revistas estrangeiras que circulavam pela empresa familiar, a Fotóptica. Daí as influências perceptíveis das vanguardas históricas, tanto na série surrealista que desenvolveu com os amigos da Escola Politécnica, quanto na série sobre as cidades de S?o Paulo e Rio de Janeiro, quando radicalizou o registro sem grandes interferências no “real”, e articulou novos e inusitados ?ngulos de tomada, cortes e aproxima??es geométricas de toda ordem.Manteve contato com o fotógrafo norte-americano Edward Weston e de alguma forma os trabalhos de Moholy-Nagy, Alexander Rodtchenko, André Kertész foram inspiradores durante o seu percurso. E claro, as fotografias de Robert Capa e Cartier-Bresson, também o fascinava. Nessa mistura fina entre o documental e a experimenta??o é que desenvolveu um trabalho que aos olhos de hoje podemos afirmar que é perturbador justamente porque é múltiplo, vibrante e intenso.A obra fotográfica de Thomaz Farkas tem uma surpreendente coerência interna porque articula uma ordem formal na desordem dos signos cotidianos. Ele produz uma fotografia direta que provoca uma nova maneira de ver, capaz de desorientar os sentidos e nos conduzir a estranhos silêncios. A renova??o é a t?nica do seu trabalho porque além de situar a fotografia no terreno da express?o artística, interroga-a permanentemente. Um diferenciado conjunto visual, carregado de emo??o, que se transformou numa das experiências mais criativas da fotografia brasileira.Encerramento do 2a Seminário de Cinema e Fotografia da Facom-FAAP, 2010Perdemos Thomaz Farkas, um amigo carinhoso que vivia sob o signo intenso da paix?o, mas suas li??es (nunca intencionais claro) e suas fotografias estar?o presentes para todo o sempre em nossas memórias. Viva! Viva a fotografia!Colecionador de Olhares Desaparecidos [parte 1] Primeiro Ato HYPERLINK "" Em 2009, passeando pela Feira do Bixiga, em S?o Paulo, num domingo qualquer, me deparei com um estranho amontoado de fragmentos fotográficos. Simplesmente uma cole??o de recortes fotográficos, ou melhor, dezenas de fotografias rasgadas aos peda?os. Sim, quem resolveu jogar fora as fotografias também decidiu rasgá-las como meio de tentar fazer desaparecer suas imagens do passado.Incomodou-me o fato de alguém ter tido a coragem de descartar sua própria história, por pior que seja. Tudo me perturbou: as fotografias rasgadas, os japoneses retratados, aqueles rostos desconhecidos, as roupas, os textos ideogramáticos, quase desenhos nos versos das imagens, enfim, um rico material descartado por alguém sem a mínima sensibilidade nem qualquer perspectiva de memória.Indaguei um pouco sobre a origem do material. Teresa, minha fornecedora, me falou que tem alguns meninos que recolhem material descartado (ou seria lixo reciclável?) “treinados” para de encontrar algo com algum diferencial. Ent?o, apesar de alguém ter rasgado e jogado no lixo, aquele material foi, primeiramente, valorizado por um an?nimo garoto que percebeu algum potencial naqueles fragmentos. Teresa n?o queria ficar com o material, mas precisa da rede de meninos para abastecer o seu negócio, pois a qualquer momento poderá encontrar algum diamante que mudará sua vida. Ela acabou me convencendo da necessidade de ficar com aqueles fragmentos, apesar de parcialmente destruídos.Aquelas fotografias rasgadas “imploraram” e acabaram em meu arquivo. Pensei em aproveitar algumas delas, raras de encontrar disponível por tratar-se de iconografia de um tempo passado e de uma situa??o de intimidade familiar. O material ficou guardado por algumas semanas esperando oportunidade de ser remontado e resignificado.Segundo Ato HYPERLINK "" ? incrível como nós, brasileiros de modo geral, n?o sabemos valorizar os pertences familiares. O que levou a pessoa a se desfazer do material e de maneira t?o violenta e destrutiva? Qual seria o percurso dessas imagens familiares ao longo da sua história? Será que as fotografias que remetem ao início do século pertencem àquela história familiar? Quem seriam estes japoneses retratados em tantas ocasi?es? Quantas famílias est?o envolvidas nas fotografias? Será que existe troca de fotografias entre os familiares do Jap?o e os daqui do Brasil? Qual será o significado daqueles lindos ideogramas nos versos das fotografias? Quantas gera??es estar?o presentes nestas imagens? Como elas migraram para S?o Paulo? Que caminhos percorreram?S?o muitas as perguntas e quase sempre sem respostas, mas estas dúvidas me estimularam e por isso mesmo acabei adquirindo as fotografias abandonadas na lata do lixo da história. As evidências eram apenas aquelas deixadas na própria fotografia, como o nome do fotógrafo, poucas datas, alguns estúdios, as cidades envolvidas, os índices presentes na própria imagem a partir do aculturamento do grupo. ? perceptível que o grupo era conservador pois as roupas e alguns gestos flagrados nos d?o evidências que aconteceu um processo de mesti?agem cultural. Enquanto as primeiras imagens s?o nitidamente “japonesas”, as mais recentes já mostram grupos miscigenados – ocidentais, negros e japoneses.Terceiro Ato HYPERLINK "" Como sou um colecionador de olhares desaparecidos, senti o potencial existente naquela mala abandonada com fotografias rasgadas. Comecei a unir os fragmentos no terceiro ato, como se estivesse numa trama dramática de memória e esquecimento. Por enquanto, s?o imagens quase an?nimas encontradas no lixo por um catador de papel, que as repassou para uma vendedora da Feira do Bixiga, chegando ent?o às minhas m?os. Tudo ainda muito insuficiente para ganhar relev?ncia. De qualquer maneira, o fato de ter percorrido esse estranho caminho – o objetivo inicial do descarte era simplesmente o esquecimento e o apagamento – e ter caído em minhas m?os é uma surpreendente coincidência. Um material perdido resignificado poderá ganhar contornos inimagináveis. Como se apresentou para mim e n?o por acaso, após alguma pesquisa e reflex?o, busquei reencontrar os fios que tecem esta história.Montei aproximadamente 40 fotografias, entre as quais selecionei algumas para a exposi??o Terceiro Ato, agora apresentada no 5? FestFotoPOA – Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre. Passei um tempo montando este quebra-cabe?a, sem fazer emendas definitivas, mas conectando os peda?os para tentar entender o conjunto. Estas fotografias contam uma história que perdeu os seus elos ao longo do caminho e fez alguém descartá-las. Claro, antes disso, precisava desfigurá-las, destrui-las. Mas, perguntas ainda ressoam em minha cabe?a: fotografias rasgadas continuam fotografias? Porque tornar novamente visível aquilo que foi violentamente descartado?Bem, a exposi??o é o resultado parcial dessas inquieta??es. Resignificadas, as fotografias continuam rasgadas só que agora s?o vistas em outro circuito. Assumi a cor e os desenhos entre os peda?os que n?o querem se juntar, mas se transformar em outros ideogramas que clamam por novos significados e por uma nova existência. Que buscam dar evidências de sua import?ncia do ponto de vista técnico e histórico. Vamos compreender esta exposi??o como uma tentativa de recuperar o prestígio destas fotografias abandonadas e como uma colabora??o que busca reconstruir uma memória an?nima t?o importante quanto qualquer memória oficial. Isso é parte de um projeto pessoal mais amplo que é a valoriza??o da fotografia produzida por fotógrafos desconhecidos e por fotógrafos amadores Brasil afora, que n?o foram contemplados, muito menos valorizados ao longo destes 170 anos de história.“Terceiro Ato”. Vídeo feito por Cia de Foto e Galeria ExperiênciaPequeno tratado sobre a destrui??o de imagens HYPERLINK "" Exposi??o "Terceiro Ato", de Rubens Fernandes Junior. FestFotoPoa, 2011Fiquei pensando muito no que leva alguém a rasgar fotografias, como aconteceu com as imagens que Rubens Fernandes encontrou e acolheu em sua cole??o (quem chegou agora, HYPERLINK "" \t "_blank" tem que ler o post anterior). Uma maneira de responder seria pensar às avessas o que leva alguém a produzir imagens. Arbitrariamente, pensei em três possibilidades ligadas ao que poderíamos chamar de “pensamento mágico”, “pensamento simbólico” e “pensamento burocrático”. Em cada um deles, e sucessivamente, existe um nível menor de vinculo entre a representa??o e o mundo, portanto, também um nível menor de afetividade envolvida.?Arquivo pessoal.O pensamento mágico é uma categoria clássica. Nele, existe uma sobreposi??o entre a representa??o e o mundo: pronuncia-se habilmente um nome e aprisiona-se o ser denominado; manipula-se uma pe?a de roupa ou um chuma?o de cabelo para afetar a vida de seu dono; espeta-se um boneco para ferir o corpo verdadeiro. Esse é considerado um modo de pensamento primitivo, mas que se resgata em qualquer tempo a partir de rela??es fetichizadas (enfeiti?adas) que podemos construir com as coisas: quem nunca nunca guardou carinhosamente a foto de alguém que ama, como se cuidasse da pessoa fotografada? Aqui, é fácil imaginar o contrário: quantos já n?o picotaram essa mesma imagem porque essa pessoa n?o merecia o carinho que lhe era dedicado?? HYPERLINK "" Memento Park, Budapeste. Fragmento da estatua de Stalin, destruída em 1956. Atualmente, o parque acolhe as esculturas que foram imediatamente retiradas de todo o país, após a queda do regime comunista em 1989.No pensamento simbólico, guarda-se alguma diferen?a entre a representa??o e o mundo, a primeira é uma via de express?o sobre o segundo. Os crist?os, para n?o se confundirem com as comunidades pag?s (marcadas pelo pensamento mágico), se esfor?aram para afirmar a distin??o entre a imagem de Deus que cultuavam e o próprio Deus que, aí sim, adoravam. Mas aqui está situado um amplo universo de possibilidades, com a implica??o de níveis diversos de afetividade: a alian?a no dedo que afirma o compromisso com alguém, o monumento que lembra um episódio ou personagem da história de um país, a roupa que sugere o pertencimento a uma gera??o. S?o rituais da cultura que garantem a constru??o das identidades individuais e coletivas. Podemos imaginar que, às vezes, essa constru??o exija algumas destrui??es, uma nega??o que é em si simbólica: sumir com a alian?a de um casamento fracassado, recusar um emblema patriótico associado à repress?o política, doar solenemente a roupa que ligava alguém a uma idade que se deseja superar. Mesmo o cristianismo teve que destruir às vezes suas imagens para demarcar sua nega??o ao paganismo idólatra. N?o que seja óbvio, mas podemos pensar que as mesmas imagens que participam de um ritual de memória podem ser convocadas para participar de um ritual de esquecimento.? HYPERLINK "" Queima de livros "anti-germ?nicos", Berlim, 10/05/1933No pensamento burocrático, as representa??es est?o ligadas a seus objetos pela simples for?a de um poder, sem qualque tra?o afetivo. ? assim que o número do PIS representa o trabalhador, um uniforme representa uma escola, um carimbo representa certo direito do cidad?o. Signos como esses podem ser descartados sem qualquer solenidade, porque est?o muito fracamente ligados ao que representam: ninguém sofreria se abolissem o PIS. Mas vejam, para o poder fascista tudo pode ser tratado como quest?o burocrática, a arte, o conhecimento, até mesmo a vida pode ser descartada quando n?o demonstram?utilidade e?adequa??o à ideologia imposta, a única realidade que reconhece. Algumas imagens s?o usualmente tratadas de modo burocrático: a que o seguro fez do seu carro amassado, aquela em que você aparece no casamento da filha da prima que você nem chegou a conhecer, ou todas as fotos que v?o pro lixo com o obsoleto jornal de ontem. Essas imagens s?o destruídas sem qualquer solenidade, culpa ou explica??o.?A partir desse raciocínio, podemos tentar inventar uma história para as fotos rasgadas da cole??o do Rubens.Elas podem ter sido destruídas num surto de fúria, típico de quando um la?o afetivo profundo é rompido: por exemplo, quando alguém se sente traído pelo melhor amigo, quando uma “Capuleto” se casa com um “Montechio”, quando uma esposa é vítima de violência física ou moral por parte do marido. Aqui, o ódio que move a destrui??o das imagens é um sentimento t?o verdadeiro quanto o amor que garantiria sua produ??o e sua preserva??o. Há portanto um sentido. Mas n?o parece ser esse o caso. Uma a??o passional desse tipo está normalmente associada a um ou outro indivíduo específico, n?o a toda uma comunidade, e levaria à sua exclus?o abrupta, a uma destrui??o violenta, n?o ao gesto quase sistemático de rasgar as imagens como vemos aqui.Elas podem ter sido destruídas num ritual íntimo de liberta??o: alguém que, em devo??o ao novo amor decide romper todos os vínculos com os amores antigos; alguém que, tendo cumprido o luto pela morte de um ente querido, deseja smplesmente seguir em frente; alguém que assume definitivamente as raízes com um novo país que n?o aquele em que nasceu. Aqui, o ritual de esquecimento tem um ?nus, mas também um ganho afetivo, perde-se algo para se conquistar algo. Portanto, também tem algum sentido. Como o gesto parece visar toda uma família, ou mais, a toda uma comunidade, poderíamos pensar: será ent?o que alguém da quarta ou quinta gera??o de uma família japonesa teria desejado se libertar dessas raízes para se tornar brasileiro? Difícil imaginar algo assim. Isso só faz sentido quando a história imp?e algum antagonismo: pode haver motivos para um judeu n?o reconhecer sua origem alem?; para um africano ou latino-americano n?o se identificar com a história ligada à violência de seus antepassados colonizadores, para um ucraniano n?o se sentir parte da Uni?o Soviética, coisas assim. Mas a história do Brasil está profundamente vinculada à presen?a de seus imigrantes. Reconhecer a origem estrangeira apenas afirmaria uma história tipicamente brasileira. E, como disse o Rubens, aquelas imagens s?o representativas dessa passagem cultural.Tristemente, o que resta é uma raz?o burocrática para o descarte. Os rasgos sistemáticos parecem produzidos por um gesto quase mec?nico exercido sobre algo já desprovido de sentido. Como um escritório que coloca “velhos papéis” na picotadora antes de mandar para reciclagem. Ali, já n?o se reconhecia uma memória, n?o havia uma causa contra a qual lutar ou uma origem da qual se libertar. Já n?o havia sequer uma imagem. N?o há pessoas, apenas formas que comp?em uma idéia vaga e abstrata de família, mais ou menos como a imagem de uma planta representa sua categoria vegetal num livro escolar. O único aspecto ritual que existe na a??o de rasgar deste modo os documentos – sejam os papéis do escritório ou estas fotografias – parece ser a afirma??o da propriedade privada (a privacidade): n?o se dá a terceiros o direito de buscar sentidos naquilo que seu proprietário decretou como insignificante. Portanto, rasgar essas fotos era uma maneira de evitar qualquer outro interesse possível sobre as imagens, evitar que pudessem pertencer a uma cole??o. HYPERLINK "" Exposi??o "Terceiro Ato", de Rubens Fernandes Junior. FestFotoPoa, 2011Mas a memória tem sua reden??o nesse gesto de reapropria??o afetiva de imagens de pessoas an?nimas, feito por este “colecionador de olhares desconhecidos”. ?Contra este gesto afetivo, o gesto de destrui??o das imagens se mostra impotente, porque o que motiva a cole??o n?o tem nada a ver com a possibilidade de ser o novo proprietário de uma antiguidade bem preservada. Tem a ver com um olhar que aprendeu a se alimentar t?o espont?neamente de memórias que o valor material do objeto se torna secundário. ?Sob essa perspectiva, o gesto burocrático e destrutivo apenas torna essas imagens ainda mais carregada de um sentido potencial, porque é uma memória sobrevivente.A constru??o de uma gera??o Gera??o 00 é uma mostra que assume um grande desafio e, claro, alguns riscos: pensar a produ??o fotográfica de um período marcado pela liberdade de procedimentos, pela velocidade das mudan?as, uma década sem um marco inicial e sem um desfecho evidente, vivida por artistas de forma??es e idades muito distintas.Seria pretensioso propor o mapa de um território movedi?o que, se tem uma marca evidente, é a despreocupa??o com suas fronteiras (aquilo que distingue a fotografia de outras linguagens artísticas e, ainda, aquilo que define cada um de seus usos sociais). Mas Eder Chiodetto, curador da exposi??o, é cuidadoso ao dizer que o que pretende é sintetizar n?o propriamente essa produ??o recente, mas suas principais “linhas de for?a”. Sendo assim, n?o cabe julgar o resultado pelos nomes individuais selecionados ou, sequer, por um ou outro tipo de fotografia que ficamos tentados a identificar como hegem?nico.Podemos pensar em instala??o, performance, vídeoarte, foto-filme, infografia, abstracionismo, fotografia construída etc. De algum modo, essas experiências est?o lá devidamente representadas. Mas essas palavras que tentaram dar conta de um universo de experimenta??es surgidas nos últimos trinta, quarenta anos, de um lado,?já revelaram seus limites e, de outro, já se institucionalizaram. Em vez de novas nomenclaturas e categorias unificantes, essa?síntese visa promover uma experiência efetiva com a pluralidade. HYPERLINK "" Guilherme Maranh?o, da série Pluracidades, 2006-2010.A ênfase dada às novas tecnologias poderia apontar para um tipo didático de transgress?o, ainda preocupado demais em expor uma “denúncia” da tradi??o. Mas est?o lá as grandes e as pequenas experimenta??es, da desmontagem mais evidente dos códigos ao gesto sutil de encena??o que perturba a confian?a na imagem. E, cabe dizer, também está lá a “fotografia-fotografia”, colocada na moldura, na parede, est?o lá o documento, a memória, o fotojornalismo, a pesquisa antropológica, velhas coisas que, num certo momento, a fotografia pareceu ter de negar para se afirmar contempor?nea. Exatamente pelo embate que prop?e entre a tradi??o documental e a experimenta??o, a leitura proposta pelo bloco “Documental Imaginário, Novo Fotojornalismo” me pareceu a mais impactante.Se eu tivesse de apontar algo que distingue a produ??o dessa década, arriscaria o seguinte: agora, as liberdades conquistadas nas gera??es anteriores podem ser praticadas sem a necessidade de uma bandeira, sem a elei??o de um inimigo, sem rituais de auto-afirma??o. Essa liberdade significa a “possibilidade” e n?o a “obriga??o” da transgress?o. E é isso que permite a reinven??o do documental nesse campo de experimenta??o, é isso também que sepulta a velha e precária distin??o entre fotojornalismo e fotografia artística.A exposi??o acerta ao dosar bem suas pretens?es: n?o se trata de tentar definir – como tantas vezes se tentou – o que é a fotografia contempor?nea, mas sim de apontar potencialidades (as “linhas de for?a”) que foram consolidadas nessa década, mesmo que n?o necessariamente nela inauguradas. Estranhamos encontrar ali Cláudia Andujar, com uma fotografia de 1976. O texto fala em homenagem, mas também podemos entender essa presen?a como uma espécie de relativiza??o: o reconhecimento de que toda periodiza??o é arbitrária, de que a história é feita sempre de diálogos, sobreposi??es e retornos. Portanto, assim como Cláudia Andujar soube se renovar nas décadas seguintes, todas as novidades propostas por essa nova gera??o têm também seu devido diálogo com a história.A exposi??o possui dois blocos: “Limites, Metalinguagem” e “Documental Imaginário, Novo Fotojornalismo”. Honestamente, eu preferia que n?o houesse esse salto, mas imagino que havia ali limita??es impostas pelo espa?o. Também reconhe?o que essa separa??o ajuda a identificar dois efeitos produzido pela síntese proposta: mesmo que n?o haja homogeneidade, enxergamos dentro dos blocos certas “concentra??es de for?a” (alguns modos peculiares de se debater com o meio), e mesmo que n?o haja contradi??es, a passagem entre os blocos sugere a presen?a de “tens?es de for?as” (entre uma imagem que quer pensar a si mesma e outra que ainda tenta dar conta do mundo diante da c?mera). HYPERLINK "" Alexandre Sequeira, da série Meu Mundo Teu, 2007Vi que essa exposi??o gerou dúvidas que, creio, a própria fotografia pode ajudar a responder.Essa curadoria produz um retrato fiel dessa gera??o? N?o. Mas e a fotografia, ela própria, produz um retrato fiel de alguma coisa? A curadoria também é um recorte que, como tal, assume seus limites, exclui, mas também permite a leitura de um extraquadro. Seria estranho supor que uma obra está ali representando outras de sua categoria. A própria exposi??o nos convida a duvidar da ideia de categorias representativas, e esperamos ter outras oportunidades para ver aquilo de bom ou de ruim que ficou de fora. Mas é preciso reconhecer que a reflex?o que se desprende da exposi??o é sim bastante inclusiva: demarca e estimula a sensibilidade ampla que a produ??o contempor?nea exige. Assim, essa experiência certamente nos ajuda a pensar outros tantos artistas dessa mesma gera??o que n?o foram mostrados. Aliás, muitos deles estavam lá na abertura da exposi??o refor?ando o debate sobre uma experiência que ajudaram a construir.Mais do que identificar, essa curadoria n?o constrói uma idéia de gera??o? Sim. Mas e a fotografia, n?o é ela também uma constru??o? Ao tentar identificar um fen?meno, uma investida conceitual desse porte certamente lhe imp?e um modo de existência. ? ao mesmo tempo uma leitura e uma a??o, isto é, uma curadoria é o sinalizador e o motor dos processos que apresenta. Na prática, Chiodetto já teve um papel importante na proje??o de alguns daqueles nomes e na afirma??o de seus trabalhos. E é evidente que uma exposi??o como essa pode fazer o mesmo com outros artistas menos consagrados. N?o é preciso ver isso com moralismo, temos hoje plena consciência de que o crítico, o curador e o colecionador s?o coautores dos sentidos que, depois, com algumas décadas ou séculos de distanciamento, os historiadores tentar?o alinhavar. Se isso soa algo perigoso, Eder Chiodetto parece ter a devida consciência de que, além das quest?es estéticas obviamente implicadas, esse gesto de poder também exige uma ética. Se as escolhas feitas por um curador s?o sempre arbitrárias, tem sido exemplar o modo como ele se abre ao diálogo, como exp?e seus critérios, como discute suas decis?es nos textos, palestras, aulas, nas visitas guiadas e nas conversas informais.Qualquer um que passar por lá vai lembrar de uma dúzia de nomes que gostaria de ver incluídos. Também pode estranhar uma ou outra presen?a. Mas é impossível n?o reconhecer a for?a do conjunto apresentado. Aguardaremos outras leituras, mas esta gera??o já se revelou privilegiada, pelo que produziu, mas também por merecer uma exposi??o como esta.***Gera??o 00 fica em cartaz no Sesc Belenzinho, em S?o Paulo, até o dia 12/06.A estética dos bancos de imagem Esse é um recado para meus alunos, mas que vale a pena compartilhar. O trabalho final que pe?o a eles envolve sempre a produ??o de uma obra visual com técnica livre a partir um tema que varia a cada semestre. O objetivo é avaliar a capacidade que eles tem de traduzir ou construir uma reflex?o por meio de imagens. ? sempre uma experiência incrível. Mas, nos últimos anos, os bancos de imagem tem facilitado tanto quanto atrapalhado a nossa vida, aliás, atrapalham exatamente pelo modo como pretendem facilitar as coisas.Há dez anos, era raro, mas quando um aluno perguntava se poderia partir de imagens prontas, ?tinha em mente Duchamp, Andy Warhol, e as possibilidades de ressignifica??o implicadas no gesto de apropria??o. Essa era a op??o mais ousada e trabalhosa, significava geralmente um tanto de páginas a mais de reflex?o escrita. Hoje, a pergunta se tornou mais frequente, mas parte de um princípio de economia (eufemismo para pregui?a). Parte também da sensa??o de que tudo já está feito e disponibilizado na internet.Os grandes bancos de imagem poderiam ser importantes fornecedores de matéria-prima para os criadores. Mas o servi?o é mais completo, e aqui mora o problema: eles têm a pretens?o de oferecer um catálogo de pensamentos prontos já traduzidos em imagens. E é assim que muitos, n?o só alunos, mas também professores, editores, jornalistas, publicitários tem a oportunidade de resolver qualquer quest?o com duas ou três palavras-chave nos mecanismos de busca desses servi?os.Apenas pensamentos muito elementares se prestam a esse tipo de redu??o, e apenas imagens estereotipadas podem garantir a legibilidade prometida. Prato cheio para palestras motivacionais, que traduzem raciocínios óbvios e conselhos moralistas em ilustra??es que portam alguma dose de humor ou sentimentalismo. Vou poupar nossos olhares de ilustra??es, mas acho que todos reconhecem esse tipo de imagem: s?o metáforas rasas, tipo “um homem com uma l?mpada na cabe?a”, “um estudante numa corrida de obstáculos”, “um executivo com uma luva de boxe”, “um gadget mostrado como um canivete-sui?o”, coisas assim. S?o imagens pobres, repetitivas, com mensagens didáticas que sempre pressup?e a idiotice do público.Se alguém fizer quest?o de exemplos, pode dar uma olhada numa HYPERLINK "" compila??o de sessenta fotos “completamente inutilizáveis” de bancos de imagem que circulou pela internet. Esses s?o casos extremos do que ocorre quando se tenta arrancar a for?a uma forma visível de um conjunto mal articulado de “palavras-chave”. Podemos imaginar que é a descontextualiza??o que transforma em piada imagens desse tipo. Mas a ausência de contexto é o trunfo dessas imagens, elas pretendem ser versáteis, globalizadas e genéricas.Muitas vezes a arte almeja representar uma experiência universal numa forma particular: um retrato deseja representar um drama humano, uma paisagem deseja representar a for?a da natureza? Os grandes bancos, em contrapartida, substituem esse poder alegórico pela afirma??o de “tipos genéricos”: o pai, a m?e, o filho, o estudante, o executivo, o chefe, a família, a equipe de trabalho, a sociedade, sempre simplificando e limpando a imagem de toda experiência. A representa??o se torna abrangente n?o porque convida à identifica??o com um outro, mas porque imp?e um estereótipo que reduz todo mundo a uma coisa só.A indexa??o das imagens por meio metadados – chaves de interpreta??o que podem ser traduzidas em dados quantificáveis – constituem uma ciência peculiar, com um pé na estética e outro na matemática. Sua miss?o nesse caso é permitir a navega??o por um oceano de imagens que tende à entropia (a dissolu??o de toda diferen?a e, assim, de toda possibilidade de sentido). Mas a pregui?a dá a essa ciência um papel maior do que ela deveria ter: os metadados, que deveriam ser simplifica??es de interpreta??es possíveis, passam a ditar os critérios para a produ??o das imagens. Como ilustra??es de “palavras-chave”, essas fotografias já nascem indexadas, já nascem simplificadas. E assim,?a imagem que deveria ser estética, se torna anestésica, anula a sensibilidade do olhar.N?o há novidade nesse processo, é a lógica da cultura de massa. A história da cultura moderna está invariavelmente marcada por uma tens?o entre “acesso” e “massifica??o”. O que isso significa? Algo simples: a circula??o exige padroniza??o. Isso tem, em princípio, um sentido técnico: a expans?o das redes de informa??o exige a escolha de um protocolo de comunica??o (assim como a expans?o da malha ferroviária exigia a escolha de um tipo único de bitola para os trilhos). Isso parece uma quest?o burocrática, que n?o afeta nossas experiências, nossas viagens. O problema é que a lógica da padrozina??o se torna um dado da cultura: age sobre uma dimens?o técnica, mas também sobre uma dimens?o estética. O que circula e se expande sob esse protocolo deve fazer algum sentido para todos. A maneira corajosa de enfrentar isso é assumir o ganho que, num médio prazo, pode surgir do conflito cultural e do estranhamento. Esse é um belo aprendizado. N?o temos encontrado esse tempo. A maneira mais fácil é estabelecer uma média daquilo que circula. Mas a média, infelizmente, nunca está no meio, está abaixo, espécie de mínimo denominador comum.Este n?o é um discurso contra a forma de comercializa??o estabelecida pelos bancos de imagem, mas contra a pretens?o de construir um mercado global por meio de uma linguagem visual média. A arma contra isso é justamente o pequeno banco de imagem, as cooperativas, os coletivos, os artistas independentes com seus fotologs, experiências que garantem a diversidade e o estranhamento necessários ao exercício efetivo do olhar.NAFOTO – Uma experiência coletiva: 1991–2011 Sábado próximo, dia 7 de maio, a partir das onze horas, na Caixa Cultural Sé, teremos a abertura da exposi??o coletiva dos 20 anos de atividades do NAFOTO – Núcleo dos Amigos da Fotografia. Coletivo de fotografia que se reúne pioneiramente em 1991 para concretizar um sonho: criar no Brasil um evento internacional de fotografia, valorizar e inserir nossa produ??o na cena do circuito cultural mundial.Nos dias 17 e 18 de junho próximo será realizado o Seminário “O NAFOTO e a fotografia brasileira”. Ao final da exposi??o, teremos o lan?amento do catálogo raizonée de todos os eventos do grupo.Um pouco de históriaEm 1990, Fernando Collor sai vitorioso das urnas, numa disputa acirrada em 2? turno pela presidência da República com Luís Inácio da Silva, o Lula. No ano seguinte, logo após a posse, nasce o Plano Collor, que aprofunda a recess?o econ?mica. Mais de 920 mil postos de trabalho s?o fechados, a infla??o chega aos 1200% ao ano. A truculenta interferência na área da cultura desarticula várias institui??es, entre elas o Instituto Nacional da Fotografia, o INFOTO, da Funarte, com sede no Rio de Janeiro, responsável pelas Semanas Nacionais de Fotografia. Todo o meio artístico inicia discuss?es sobre as possibilidades de reagir à difícil situa??o.Em 1991, Stefania Bril, à época diretora da Casa da Fotografia Fuji e crítica de fotografia da revista Irisfoto e do jornal O Estado de S. Paulo, com a experiência adquirida nos pioneiros encontros fotográficos de Campos do Jord?o, volta de Paris entusiasmada com o Mois de la Photo e promove uma proje??o-discuss?o na Casa da Fotografia. Em seguida, o fotógrafo Juvenal Pereira convoca fotógrafos e pessoas ligadas à fotografia para uma reuni?o no mesmo local. Nesse encontro est?o presentes, além de Stefania Bril e Juvenal Pereira, Eduardo Castanho, Eduardo Sim?es, Iat? Cannabrava, Isabel Amado, Marcos Santilli, Nair Benedicto, Rosely Nakagawa e Rubens Fernandes Junior. Ideias s?o lan?adas, discuss?es s?o promovidas, experiências importantes s?o lembradas: o grupo Friends of Photography, da Califórnia, o evento de Arles, na Fran?a, o próprio Mois de la Photo parisiense, as semanas brasileiras promovidas pelo Instituto Nacional da Fotografia (INFOTO) e os debates regionais.Em 1991, é criado o NAFOTO – Núcleo dos Amigos da Fotografia. O designer Ricardo Ohtake desenha o logotipo que se transforma na marca oficial da associa??o. Por motivos particulares, Eduardo Sim?es e Iat? Cannabrava se desligam do grupo original e, por sugest?o de Iat?, à época diretor da Uni?o dos Fotógrafos de S?o Paulo, Fausto Chermont passa a integrar o grupo. ? também decidido que o Mês Internacional da Fotografia será um evento internacional de fotografia, bianual, com o objetivo de democratizar nossa produ??o e torná-la reconhecida no circuito dos eventos similares realizados na Europa e nos Estados Unidos. A composi??o diversificada do grupo, técnica e culturalmente falando, é que permitiu a multiplicidade de atividades desenvolvidas ao longo desses 20 anos. Em maio de 1993, o coletivo realizou o 1? Mês Internacional de Fotografia em S?o Paulo, pautando-se desde sempre pelas idéias de difus?o, interc?mbio de informa??es e a educa??o fotográfica.Da esquerda para a direita: Juvenal Pereira, Isabel Amado, Eduardo Castanho, Marcos Santilli, Stefania Bril, Nair Benedicto, Fausto Chermont, Rubens Fernandes Junior e Eduardo Sim?es (Rosely Nakagawa, ausente no dia). Foto de Mark James.?1991 – 2011 – 20 anos NAFOTOO evento idealizado para a Caixa Cultural Sé sintetiza de alguma forma nossa trajetória ao longo desses 20 anos. Também pretende homenagear e valorizar o fotógrafo brasileiro, parceiro de primeira hora, batalhador e que desde nosso início soube compreender o espírito coletivo que tentamos empreender ao longo dos eventos. Hoje, olhando retrospectivamente, entendemos que em cada uma das oito edi??es do Mês Internacional da Fotografia, nas 286 exposi??es realizadas e centenas de oficinas, palestras e demais atividades, a inten??o sempre foi propagar, ampliar e democratizar a cultura fotográfica.Vinheta do 1? Mês Internacional da Fotografia, dire??o de Luiz Aureliano e Darcy Vieira.Ocuparemos as galerias Florisbela e D. Pedro II, no espa?o térreo, com a fotografia brasileira, e o Octógono, no primeiro andar, com a fotografia latino-americana e européia. Exibiremos cerca de 180 fotografias, além da proje??o de centenas de imagens que participaram dos nossos eventos, fragmentos de vídeos com entrevistas de curadores, historiadores, críticos e fotógrafos brasileiros e estrangeiros, e teremos algumas vitrines com material gráfico, correspondências trocadas e publica??es das diferentes edi??es. O tempo passou e isso já é história.A trajetória do NAFOTO é vencedora: selecionamos e mostramos o melhor dos clássicos franceses e dezenas de exposi??es da fotografia latino-americana, histórica e contempor?nea, criando la?os de amizade e fortalecendo o interc?mbio no continente; apresentamos pioneiramente a fotografia africana e a japonesa; trouxemos Josef Koudelka, Graciela Iturbide, Joel-Peter Witkin, Pablo Ortiz Monastério, Naomi Rosenblum, Keiichi Tahara, Wendy Watriss, Fred Baldwin, Michael Gray, Andreas Müller-Pohle, Luiz Gonzales Palma, Alain Fleischer, Charles-Henry Favrod, Jean-Luc Monterosso, entre muitos outros. Inserimos o Brasil no mapa do circuito internacional das grandes mostras de fotografia, viabilizamos contatos e aproxima??es de muitos fotógrafos brasileiros com institui??es e museus do exterior; e muito mais.Atual diretoria do NAFOTO: Rubens Fernandes Junior e Nair Benedicto (sentados); Monica Caldiron e Fausto Chermont (em pé); Fabiana Figueiredo e Julia Raposo (ausentes da foto). Foto de Penna Prearo.Por tudo isso é que somos gratos a todos àqueles que entenderam e valorizaram o projeto Mês Internacional da Fotografia – fotógrafos, patrocinadores, museus e galerias, institui??es públicas e privadas. Claro que hoje a fotografia ampliou significativamente sua esfera de atua??o e sua presen?a na cena cultural brasileira. Os eventos se multiplicaram, as verbas públicas e privadas aumentaram expressivamente, os espa?os culturais se profissionalizaram. Enfim, nós entendemos que somos parte dessa história.Gera??o 00 O que poderia trazer de novidade uma exposi??o que busca ser uma espécie de retrospectiva e síntese do que foi a primeira década do século XXI para a fotografia brasileira? Aparentemente nada. Mas, convenhamos, n?o dá ficar impassível diante da exuber?ncia desta coletiva. Eder Chiodetto acertou em cheio ao assumir os artistas selecionados como aqueles que, de certa maneira, representam as diferentes possibilidades do fazer fotográfico contempor?neo. Tendências de gêneros e técnicas fotográficas que se fundem para ati?ar a sintaxe, que de tempos em tempos precisam ser sacudidas e renovadas.A produ??o desta última década prova que o caminho ainda é longo e muitas incertezas ainda rondam a nova fotografia. De qualquer modo, o que temos é uma visualidade contagiante, que nos surpreende na maioria das experiências mostradas. Claro, numa precisa avalia??o isolada, alguns dos ensaios podem parecer imaturos, mas o conjunto é poderoso, fluente, desafiador, e nos toca justamente porque a curadoria soube articular criativamente as diferentes propostas.Helga Stein, sem título, 2006O impacto da mostra é total e manifesta o grau de seriedade da pesquisa realizada, pois n?o só é provocativa como evidencia que os artistas selecionados, na maioria das vezes, sabem vivenciar a profundidade do tempo presente. Eles têm suas percep??es treinadas para enfrentar os desafios e as muta??es da contemporaneidade. ? interessante olhar os espa?os exclusivos de cada artista e contrastar sua obra com o entorno e com o conjunto. Vamos encontrar harmonias e disson?ncias entre elas, como se as imagens fossem fragmentos que pulsam em nossas retinas com a finalidade de tornar o caráter efêmero do instante um eterno desconhecido.A op??o curatorial foi avaliar as principais linhas de for?a da fotografia brasileira da última década e optar por dois grandes blocos: “Limites, Metalinguagem” e “Documental Imaginário, Novo Fotojornalismo”. A divis?o sugerida é ampla, mas contempla praticamente as diferentes possibilidades e potencialidades de uma produ??o recente que toma de assalto os principais festivais do Brasil e do exterior; que tem apoio e resson?ncia na crítica internacional; que integra cole??es importantes; que ocupa os espa?os de museus e galerias; e que atua como uma espécie de centro nervoso na produ??o das artes visuais do paío toda mostra coletiva, a Gera??o 00 também é polêmica. Mas vale salientar a coragem com que Eder Chiodetto examina e analisa as tendências. Mesmo consciente de que toda escolha é deliberada e subjetiva, gosto muito da idéia de valorizar o processo criativo e os procedimentos encontrados pelos artistas para concretizar os seus trabalhos. Cada vez mais sinto a import?ncia da imagem centrada no fazer fotográfico e podemos identificar na exposi??o diversas abordagens que tornam as interven??es no processo absolutamente diferenciadas e inovadoras.Jo?o Castilho, Redemunho, 2006Podemos entender esta produ??o técnica contempor?nea, mais esgar?ada e limítrofe, que caminha em várias dire??es e se deixa contaminar por outras mídias, aceitando dialogar com outras linguagens, como fotografia expandida. Na mostra Gera??o 00, percebe-se também as tendências daqueles que se utilizam dos procedimentos fotográficos para criar imagens de significa??es instáveis – expans?o dos limites da identidade, do corpo, da memória, da materialidade, da paisagem, entre outros.Entre os artistas há aqueles que olham para as referências paradigmáticas da fotografia praticada nas décadas anteriores; outros que se apropriam de um presente tecnológico já descartado para gerar imagens aleatórias e imprecisas; há também aqueles que buscam reencontrar o fio condutor de uma memória coletiva; e outros que investem no presente com um olhar daquilo que poderá ser o futuro. Enfim, diferentes linhas de for?a que provocam deliberadamente nossa imagina??o, como se fossem resultantes de uma espont?nea organiza??o da a??o criativa do artista. Na verdade, s?o experimenta??es distintas que trazem essa capacidade incisiva de difundir visualidades que estimulam nossas percep??es.Claudia Andujar, Urihi-A, 1976A surpresa que fica no meio do caminho, entre os blocos expositivos, é uma imensa tela que reproduz uma fotografia de Claudia Andujar. Apenas uma imagem de grandes dimens?es e 300 quilogramas, suspensa no ar, com incrível leveza. Uma fotografia aérea do espa?o habitacional dos índios Yanomami, cravado na floresta densa, de tom avermelhada, cuja emenda deixa vazar pequenos pontos de luz incorporados pela artista e denominados de “os espíritos da floresta”. Mais uma vez Claudia rompe com maestria o limite entre a fotografia documental e a abstra??o, e viabiliza um universo poético intenso e de rara beleza. Um momento de êxtase que conecta todos os trabalhos e celebra a fotografia como uma das mais expressivas linguagens do nosso tempo.Rodrigo Braga num sentido extra-moral HYPERLINK "ário-20101.png" Rodrigo Braga, Mais for?a que o necessário, 2010Na semana passada, Rodrigo Braga realizou uma palestra sobre seu trabalho em S?o Paulo. Uma fala calma, lúcida, em busca das palavras certas, que destoa da erup??o de formas violentas que encontramos em seu trabalho. Isso foi uma surpresa? N?o propriamente, mas evidenciou certa ansiedade que sua presen?a desperta.A maioria de nós estava ali porque gosta de seu trabalho. Para alguns, gostar engloba também o reconhecimento de uma “verdade”: sabemos que a violência que fere nossos olhos, passou antes pelo corpo dele próprio. Naquele momento, esse mesmo corpo estava presente para expor uma suposta totalidade de sua performance, algo que as fotos n?o d?o conta de mostrar. ? sobre essa expectativa que quero falar.?Existe uma crítica de arte dedicada às obras, existe também uma critica institucional, uma crítica de processo. O que fa?o aqui é algo como uma crítica de recep??o, da rela??o que um público desenvolve com a obra e com o artista. Portanto, em certa medida, trata-se também de uma auto-crítica.Rodrigo Braga é um artista. N?o é um daqueles insanos que, segundo Foucault, o público pagava para ver dentro de jaulas, aos domingos, nos hospitais psiquiátricos da Fran?a. ?E, ali, ele era um artista convidado para uma palestra, n?o para uma performance.?Ele apresentou seu trabalho, falou de seu processo criativo, de sua forma??o, de como pensa a fotografia no contexto da arte contempor?nea. Foi sempre comedido ao apresentar os conceitos em que se apoia, tanto quanto ao revelar o que de biográfico aparece em sua obra. Resistiu o quanto p?de (mas acabou vencido) à curiosidade sobre “o que o artista quer dizer”, e às demandas pelos “causos” dos bastidores. “O trabalho está aí”, lembrou ele algumas vezes, apontando para a proje??o. HYPERLINK "" Rodrigo Braga. Comunh?o, 2006A história da arte nos ensinou a ler nas pistas deixadas pelas obras de gênios como Goya, Van Gogh ou Bispo do Rosário um pouco de suas alucina??es cotidianas. Numa apresenta??o ao vivo de Rodrigo Braga, teríamos a oportunidade de assistir ao filme inteiro do qual seu trabalho seria apenas um trailer, poderíamos enxergar o extraquadro que as molduras acabam recortando. Como ele vive? Onde ele mora? O que ele come? Com quem ele anda? ?Perguntas assim surgem inevitavelmente, afinal, se reconhecemos a sinceridade de suas imagens, tem de haver alguma continuidade entre o que está dentro e o que está fora delas.Rodrigo Braga é um artista e lida com representa??es. Ele usou algumas vezes a express?o trompe l’oeil que, tradicionalmente, se refere à capacidade que algumas pinturas têm de pregar pe?as no olho. Ent?o, trata-se de uma mentira? Mesmo historicamente, é algo mais complexo que isso: nenhuma pintura explorou e ao mesmo tempo exp?s com tanta evidência (e, às vezes, didatismo) os artifícios da representa??o quanto aquela que foi chamada de trompe l’oeil. De modo geral, é uma pena que no??es t?o caras à arte como representa??o, mimesis ou ilus?o se confundam com uma concep??o moral de mentira, totalmente alheia ao juízo estético.O trabalho de Rodrigo Braga dialoga sim com elementos de sua vida: conforme contou, ele cresceu em meio às pesquisas de seus pais biólogos, já experimentou momentos de angustia extrema, às vezes se cansa da rotina da cidade. Tudo isso aparece nas imagens. Mas existe também uma técnica: ele pesquisa seus materiais, escolhe suas loca??es, negocia as condi??es de trabalho, inventa títulos t?o poéticos quanto densos, e dá palestras. O que s?o ent?o aqueles momentos que vemos nas fotografias? Como disse, ele vivencia a for?a da natureza, incorpora os elementos que utiliza, sente prazer e dor. Mas também comp?e o ambiente, dirige a cena, e opera o controle remoto da c?mera. Parece contraditório? S?o coisas que a representa??o estética comporta.Se a arte tem algo de verdadeiro, é exatamente o fato de assumir-se como representa??o. Segundo Nietzsche, o conhecimento – mesmo o da ciência – opera igualmente ilus?es, só que lhes imp?e regras de conduta e, portanto, um sentido moral que permite chamá-las de “verdade”: “as verdades s?o ilus?es das quais se esqueceu que o s?o, metáforas que se tornam gastas e sem for?a sensível”. Tem a ver com uma “obriga??o de mentir segundo uma conven??o sólida, mentir em rebanho, em estilo obrigatório para todos” (Sobre verdade e mentira num sentido extra-moral, 1873). Quando o artista perturba essa ordem, há que se respeitar seu lugar, n?o se pode cobrar dele que transforme em regra de conduta ou em hábito rotineiro a experiência livre que constrói.O maior problema aqui n?o é duvidar, mas acreditar demais. Quando nós, que tanto gostamos de seu trabalho, celebramos essa “verdade (num sentido moral), acabamos nos colocando ao lado daqueles que, também por acreditar demais, reclamam da sujeira, da dor e dos maus-tratos contra os animais.O processo criativo de Rodrigo Braga implica, ao mesmo tempo, constru??o de analogias (metáforas) e transbordamentos (metonímias) daquilo que ele é. N?o daquilo que ele é no dia a dia, mas de suas potências, aquilo que já lhe pertence e que só a arte pode revelar.?N?o se trata de “sublima??o”. Para a psicanálise tradicional, a arte constitui uma forma de canalizar as puls?es para uma via de express?o socialmente aceitável (uma vers?o inconsciente do “eu podia estar matando, podia estar roubando, mas estou fazendo arte”). Suas representa??es n?o fazem esse tipo de concess?o ao “socialmente aceitável”. Leituras psicanalíticas dedicadas às performances já acusaram os artistas de terem perdido essa boa medida da sublima??o, em outras palavras, de terem passado da “representa??o” ao “ato”. De fato, o que Rodrigo Braga faz n?o é encenar aquilo que a sociedade n?o nos permite ser, mas revelar aquilo que invariavelmente também somos: matéria, corpo, carne, fluídos, natureza. HYPERLINK "" Rodrigo Braga, Desejo Eremita, 2009O que ele registra com sua c?mera tem a for?a de um ritual. E a narrativa mais legítima que se desprende dali n?o tem a ver com as histórias reais dos bastidores, nem com suas estratégias de fingimento. Tem a ver com uma mitologia construída pelas próprias imagens. Desejo Eremita n?o é a história de um artista cansado da cidade. ? o mito de um homem que se confronta com a natureza em estado estranho, cru, fétido, viscoso, caótico (nada a ver com natureza doce e redentora dos ecologistas, que plantam árvores para salvar o planeta). Mitos s?o essa forma arcaica, sentida e poderosa de dar conta da realidade, diante da qual nossa moral também vê hoje duas possibilidades: ou os explica conforme as conven??es da ciência ou os despreza como sin?nimo de mentira.A palestra terminou com o vídeo Mentira Repetida: num canto da floresta amaz?nica, Rodrigo Braga liga sua c?mera de vídeo, coloca-se diante dela, e se p?e a gritar repetidas vezes, até perder a voz e quase desfalecer. “Mentira repetida” e um titulo perigoso, porque remete à frase de Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler (“uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”). Ora, a constata??o de Goebbels é precisa, mas desvela tarde demais o método de suas atrocidades. A desgra?a n?o é em si sua afirma??o, mas o fato de ter sido sorrateiramente colocada em prática em nome de uma atitude moralizante: o resgate de uma verdade, de uma ordem, a constru??o de uma evolu??o social.Nada a ver com o que faz Rodrigo Braga, que desvela a ilus?o ao mesmo tempo em que nos convence de seu poder de representa??o: no come?o, o grito é hesitante, porque seu corpo parece n?o encontrar motivo suficiente para se entregar. Mas alguma coisa acontece, ninguém percebe exatamente quando. Em algum momento, o grito falha mas, desta vez, porque sua angústia parece n?o encontrar um corpo com for?a suficiente para lhe dar express?o. Essa obra é o registro de uma expedi??o feita pelo artista, que o leva da civiliza??o a um lugar distante e selvagem que é também ele mesmo (uma varia??o do que Nietzsche chamou de “chegar a ser aquilo que se é”). Sua “mentira repetida” se aproxima daquilo que observa Fernando Pessoa, quando diz em sua autopsicografia que “o poeta é um fingidor” (finge t?o completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente).Ser ou n?o ser fotografia? O percurso das teorias ontológicas Aparentemente, a voca??o mais natural de toda teoria é definir “o que é” seu objeto de análise. Nossos debates acadêmicos se consolidaram colocando uma quest?o dessa ordem: o que define a especificidade da fotografia? Chamamos essa perspectiva teórica de “ontológica”.? Ontologia é, em resumo, o campo da filosofia que se pergunta sobre o “ser das coisas” ou, para dizer mais facilmente, “o que as coisas s?o, em sua essência” (a ontologia clássica fala em “subst?ncia”). Perguntar-se sobre o “ser” da fotografia é buscar aquilo que lhe concede uma identidade singular, aquilo sem que a distingue de outras linguagens, de outras imagens, aquilo sem o que algo n?o pode ser chamado de fotografia.Quase todos os escritos sobre fotografia, desde sua inven??o, resvalam em quest?es semelhantes. Mas foi provavelmente André Bazin quem delineou mais claramente tal abordagem, com um artigo célebre de 1945: “Ontologia da Imagem Fotográfica”. Os anos 60 e 70 viram surgir uma profus?o de trabalhos que seguiam nessa dire??o, boa parte deles, ancorados nas possibilidades de aplica??o das teorias lingüísticas de Saussure a outras formas de express?o (Barthes, Christian Metz, René Lindekens, Umberto Eco) e, um pouco depois, na difus?o do pensamento de Charles Sanders Peirce (Rosalind Krauss, também Eco, e ainda Philippe Dubois e Jean-Marie Schaeffer). A semiologia e a semiótica derivadas desses autores emprestaram ao debate sobre a fotografia um vocabulário mais sistematico, e criaram par?metros para a distin??o dos vários sistemas de signos. HYPERLINK "" A Ilus?o Especular, de A. MAchado; O Ato Fotográfico, de Ph. Dubois; A Imagem Precária, de J.-M. SchaefferAqui no Brasil, quem quiser passear pelas diferentes respostas que esse debate produziu, pode se concentrar em três livros, todos eles empenhados em revisar as teorias fotográficas a partir de um repertório peirceano: HYPERLINK "" \t "_blank" A Ilus?o Especular (1984), de Arlindo Machado, O Ato Fotográfico (1994), de Philippe Dubois e A Imagem Precária (1996), de Jean-Marie Schaeffer. Barthes poderia entrar aqui no lugar do ent?o barthesiano Dubois, mas é este último quem traduzirá o vocabulário peculiar de A C?mara Clara (editada no país em 1984) nos termos mais recorrentes desse debate.Esses três livros comp?em um panorama bastante didático das posi??es teóricas mais evidentes desse momento. Destacando aquilo que faz da fotografia uma forma codificada de representa??o (um símbolo, no vocabulário peircenao), Arlindo Machado se op?e à posi??o assumida por autores “realistas” como Barthes. Sem negar a existências desses códigos, mas retomando Barthes, Dubois se concentra num aspecto pontual que permite à fotografia operar como “marca do real” (como o índice peirceano). Por fim, considerando parcialmente as conclus?es de Dubois, Schaeffer opta por retomar, mas de modo muito cuidadoso, a velha no??o da fotografia como imagem análoga ao mundo visível (como o ícone peirceano).Se nos anos 80 esse debate ontológico estava restrito ao ambiente acadêmico, ao final dos 90, já encontrávamos fotógrafos em rodas informais de conversa se perguntando se a fotografia era “essencialmente” ícone, índice ou símbolo. Mas essa discuss?o se esgotou antes de esbo?ar qualquer tipo consenso. Assumir uma ou outra posi??o exigia tantas desculpas, que as exce??es se mostravam muito mais interessantes que qualquer identidade prioritária que se quisesse afirmar para a fotografia.Eis que, em algum momento entre o final do século XX e o início do XXI, as abordagens ontológicas se tornaram ran?osas e desinteressantes.De um lado, elas pressup?em uma “fotografia ideal” (ideal no sentido plat?nico, um “fotográfico” em estado puro e definitivo). Esse debate foi muito prazeroso, mas parecia tratar de uma fotografia metafísica, pouco vinculada às din?micas efetivas que essas imagens assumem no mundo. Quando nos colocávamos diante de uma foto, ela pareceria sempre complexa e impura. Foi assim que nos sentimos convidados a pensar essa imagem em sua diversidade, em sua ambivalência, com suas múltiplas formas de significa??o, n?o mais em sua unidade ideal.De outro lado, enquanto ainda nos perguntávamos sobre o que distingue a fotografia de outras imagens, os artistas passaram a ignorar essas fronteiras e a experimentar todo tipo de intera??o. Para dar conta disso, passamos a falar numa imagem híbrida, numa fotografia contaminada, numa fotografia expandida ( HYPERLINK "" \t "_blank" Fotografia Expandida é o titulo da tese de doutorado do meu colega Rubens Fernandes). Instigado por tais possibilidades, muitos pensadores? se interessaram mais pelas brechas que ligam a fotografia a outras formas de express?o, do que por aquilo que lhe define uma identidade exclusiva. Mas é verdade que houve resistências: nos debates entre fotógrafos, ainda hoje, ouvimos acusa??es em tom corporativista: “isso n?o é fotografia!”Como exemplo dessas novas abordagens, podemos tomar o livro Entre-Imagens (1997), de Raymond Bellour e, ainda, os trabalhos posteriores de Arlindo Machado e Philippe Dubois. Alguns poderiam observar que esses autores já n?o est?o mais interessados em fotografia, mas a quest?o é exatamente essa: se n?o buscamos a especificidade das linguagens, podemos muito bem reconhecer a fotografia em suas discuss?es sobre o cinema, ?o vídeo ou a infografia (igualmente tratados como linguagens experimentais e impuras). Essa perspectiva anti-ontológica também é claramente reivindicada por obras mais ou menos recentes, como A fotografia, de André Rouillé (em especial, num capítulo chamado “Miséria Ontológica”).A busca por uma “essência” da fotografia perdeu seu sentido e o redirecionamento de nossas linhas de pesquisa se tornou urgente no final dos anos 90. Mas, resolvidas as tens?es dessa passagem, creio que podemos retirar alguns clássicos de nosso “índex” (a lista de títulos proibidos pela Inquisi??o). N?o se trata apenas de reconhecer a import?ncia histórica desses textos. Pessoalmente, acho que aquele último Barthes e aquele primeiro Arlindo Machado ainda podem nos surpreender. Em nossa rela??o complexa a fotografia, estamos em condi??es de reconhecer em suas teses, contraditórias entre si, din?micas que convivem numa imagem que se demonstrou igualmente complexa. Ainda precisamos do tom politizado de Machado para perceber o que sempre há de ideológico numa fotografia, ainda podemos nos abandonar ao tom afetivo de Barthes quando somos fisgados por uma presen?a que reconhecemos como singular. Pensar qual dessas rela??es é mais verdadeira é mais ou menos como interrogar se somos mais essencialmente um corpo ou um espírito.O maior problema desses textos é que ficamos presos a uma meia dúzia de frases que se tornaram emblemáticas das inten??es ontológicas. ? sempre importante considerar o momento da história do pensamento em que uma resposta foi esbo?ada. Mais importante ainda é aprender a reformular as perguntas que lan?amos aos textos do passado. Sem isso, jamais reconheceremos os clássicos.?O que vemos e o que n?o vemos A fotografia, ainda hoje, tem um poder de atra??o inexplicável. Nem sempre sabemos racionalizar aquilo que nos leva a destacar uma boa imagem entre milhares que vemos semanalmente. Na verdade, pretendo aqui refletir sobre uma fotografia que recentemente circulou pela mídia internacional mostrando a equipe de seguran?a norte-americana, capitaneada pelo presidente Barack Obama e seu vice, Joe Biden, que acompanhava a opera??o dos Seals, no Paquist?o, que culminou com a morte de Bin Laden. De autoria de HYPERLINK "" \t "_blank" Pete Souza,?chefe oficial de fotografia da Casa Branca, e distribuída pelo The New York Times, a imagem registra provavelmente o momento exato em que os soldados americanos invadiam a casa e matava o inimigo.Pete Souza, Casa Branca, maio/2011O que chama minha aten??o é que nada vemos, mas estamos diante de um fato consumado. Os personagens da fotografia “armada” est?o atentos à cena que talvez jamais veremos e, de algum modo, isso me perturba. Além disso, no site da Casa Branca, na legenda dessa fotografia há, paradoxalmente, uma ressalva: “um documento secreto que pode ser visto nesta fotografia foi manipulado”. Ironias a parte, o que realmente eu vejo me inquieta. N?o pelo que efetivamente vejo, mas por aquilo que n?o vejo.Imagens assim parecem ser constituídas de um código específico, de alguma coisa que se destaca, mas que nem sempre é visível. Por que há fotografias que nos chocam pela ausência do referente que concretiza um fato de efeito global? Que poder tem essa imagem que n?o vemos mas que, de algum modo, sabemos que pulsa no interior desta fotografia? O que há exatamente naquilo que n?o vemos numa fotografia, mas que nos deixa, assim como os retratados, estarrecidos? S?o quest?es como estas que me fazem pensar sobre certas evidências da imagem fotográfica.Claro que nem toda fotografia traz essa possibilidade. Mas me interessa refletir sobre como representar um fato através de uma constru??o que evidencia o contexto do visível, mas ao operar na ausência de uma imagem, desencadeia no leitor uma opera??o da mais pura imagina??o. Um espa?o de ausência na imagem visível, mas suficientemente provocativo, capaz de desencadear uma sensa??o que perturba demasiadamente o entendimento quase sempre direto da fotografia documental. Uma forma surpreendente de produzir fotografia que, em última inst?ncia, deve refletir o mundo visível e, nesse caso, reflete algo cujo significado se concretiza nos interstícios da imagem.? impressionante constatar que, quase sempre, n?o é uma fotografia que opera na espetaculariza??o do acontecimento em si, mas concentra nosso olhar e nossa imagina??o justamente naquilo que n?o vemos. ? preciso “criar” uma imagem dentro dessas fotografias, aparentemente performáticas, que traga algo de irrefutável para nos convencer de que vemos algo realmente surpreendente. Encontramos nessas fotografias estranhos personagens olhando para acontecimentos que escapam à percep??o imediata. Uma fotografia construída e quase teatralizada para nos convencer de que o invisível é demasiado importante. Uma fotografia que parece espont?nea, mas que abre um campo de possibilidades interpretativas para o espectador. HYPERLINK "" Vincent Carelli, c. 1980O que se manifesta nessas imagens e dá eloquência a elas é uma “presen?a” quase minimalista de outra imagem que atrai a aten??o dos atores do documento iconográfico. Outro exemplo é o caso desta fotografia realizada no início dos anos 1980, de autoria de Vincent Carelli, fotógrafo e cineasta, na qual vemos um grupo de índios imóveis e catat?nicos diante de uma tela de televis?o. Aqui, entendemos a imagem como o registro de um choque entre culturas. Mas o que estaria exibindo esta tela que n?o vemos? Seria uma imagem qualquer, que assombra os retratados mais pelo aparato tecnológico do que pelo seu eventual conteúdo? HYPERLINK "é-Medeiros-1950.jpeg" José Medeiros, Maracan?, 1950Outra fotografia que me veio à memória foi a de José Medeiros, repórter fotográfico da revista O Cruzeiro. Por ocasi?o da Copa do Mundo de 1950, realizada no Brasil, fomos derrotados no jogo final pelo time do Uruguai. Medeiros construiu o drama da derrota através de fragmentos visuais e pontuou seu ensaio com uma imagem emblemática dos fotógrafos que apontam suas c?meras para uma mesma dire??o. No que consistiria esse olhar coletivo que provoca uma enorme inquietude para o espectador que participa da experiência, mas nada vê?A fotografia, que se tornou um paradigma da paisagem cultural contempor?nea, tem o poder de transformar o cotidiano em coisas extraordinárias. Os exemplos que encontrei para comentar nesta primeira reflex?o sobre o que n?o vemos numa fotografia foram produzidos em épocas diferentes, mas s?o conceitualmente muito parecidos. Claro, apesar de sua ilusória objetividade factual, seus conteúdos se diferenciam, porque a carga visual dramática de cada uma delas é distinta. A primeira é dramática porque pressup?e o exato momento do assassinato de Bin Laden. A segunda é dramática porque evidencia um choque cultural, onde o aparato tecnológico se sobrep?e para desestabilizar a identidade do outro. E finalmente a terceira, de José Medeiros, que narra o drama da derrota do time brasileiro. Fugindo da cena principal, ele flagra os fotógrafos apontando suas c?meras para o que n?o vemos, sugerindo e mistificando algum acontecimento.Em todas as fotografias há uma concentra??o imperativa dos olhares que se fixam numa área que nós, espectadores, somos induzidos a imaginar, um jogo inteligente instituído pelo fotógrafo entre o espetáculo invisível e o espectador. Cabe ao fotógrafo estimular nossa imagina??o, e as imagens aqui comentadas mostram que a representa??o n?o está apenas no espetáculo n?o visto, mas principalmente na intencionalidade do olhar do criador, que real?a significa??es para instigar nossa inteligência.Esta quest?o é recorrente na história das artes visuais. Diego Velázquez, em 1656, em sua clássica tela Las Meninas, potencializa o olhar do espectador e cria a expectativa de olhares indagadores das personagens sobre alguma coisa que n?o vemos. No livro As palavras e as coisas, de Michel Foucault, há um ensaio sobre esta obra, em que podemos observar algumas aproxima??es com estas fotografias aqui comentadas. Ao discutir as inúmeras possibilidades de olhar, esta pintura salienta que “O primeiro olhar lan?ado ao quadro nos ensinou de que é constituído esse espetáculo de olhares.”E conclui: “Talvez haja, neste quadro de Velázquez, como que a representa??o da representa??o clássica e a defini??o do espa?o que ela abre. Com efeito, ela intenta representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens, os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que a fazem nascer. Mas aí, nessa dispers?o que ela reúne e exibe em conjunto, por todas as partes um vazio essencial é imperiosamente indicado: o desaparecimento necessário daquilo que a funda – daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ela n?o passa de semelhan?a. Esse sujeito mesmo – que é o mesmo – foi elidido. E livre, enfim, dessa rela??o que a acorrentava, a representa??o? pode se dar como pura representa??o.” ................
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