Aula: O modernismo na região de Jacobina nos anos 30



A IMPRENSA VERDE-AMARELA NO PIEMONTE DA CHAPADA DIAMANTINA

Adriano Antônio Lima Menezes[1]

Surge, hoje, afinal, dia em que comemoramos, com vivo entusiasmo, a independência do nosso querido Brasil, o “Lidador”, o quinto hebdomadário que sai à luz da publicidade nesta, mais uma vez, secular cidade, onde tive a suprema ventura de nascer e espero em DEUS repousar meu sono. (BARBERINO, Amado, O Lidador, 07 set. 1933, p.1)

Em uma cidade, hoje com mais de 70 mil habitantes e centro de uma micro-região, Jacobina, circulou por uma década, de 1933 a 1943, o jornal O Lidador, que serviu como um veículo tanto para os políticos locais, atrelados ou não ao poder estadual instituído pela revolução de 1930, quanto para os intelectuais de toda a micro-região ainda processo de formação. Nesse meio de comunicação pode-se observar, seja por seu modo de divulgação das notícias, seja por utilizar textos literários de autores de cidades circunvizinhas e textos de diversos intelectuais do país a respeito de suas crenças e ideologias, o desenho da região e uma tentativa de sincronia com a busca de uma identidade cultural nacional tão valorizada pelos modernistas, neste caso mais relacionado aos jovens verde-amarelos do que aos antropófagos, a partir da terceira década do século XX, peculiarizando assim a maneira com que se deu o modernismo no interior da Bahia, cidade de Jacobina, através de contatos literários e socioculturais de intelectuais desta com outras cidades circunvizinhas, peculiarizando um processo de regionalização por seus restritos meios de comunicação em vigor.

A Imprensa Sertaneja

Em sete de setembro de 1933, foi inaugurado na cidade de Jacobina e difundido em uma região hoje classificada geograficamente como Piemonte da Chapada Diamantina na Bahia, um periódico semanal intitulado O Lidador. A data de seu primeiro exemplar, relacionada a uma data-símbolo da relativamente nova nação brasileira, a priori leva seus leitores contemporâneos e pesquisadores do século XXI a cogitar um nacionalismo aí implícito; no entanto, após a obtenção de informações sobre a data de nascimento de seu diretor-proprietário, Nemésio Lima, em sete de setembro de 1905, a data pode ganhar outros significados, mas, em referência a sua ideologia e conflitos políticos, deve-se ponderar mais a favor da primeira, relacionada ao nacionalismo em voga na década de 1930, do que uma interpretação pura e simplesmente biográfica.

Em sua diagramação, a primeira página de seu número 1 foi composta pelo nome do jornal, cujo significado pode ser visto como símbolo de um cidadão em uma sociedade capitalista, seguido de três textos relacionados à imprensa em Jacobina, aos assinantes do jornal Mundo Novo e à transferência do jornal de uma cidade para outra: de Mundo Novo para Jacobina; mais abaixo e ao fim da página temos um texto sobre o primeiro congresso eucarístico no Brasil e a reabertura do cinema jacobinense. Cabe destaque em seu centro ótico[2] o boxe que contém um texto curto, apelativo aos habitantes da cidade de Jacobina e aos assinantes do jornal “Mundo Novo”, da cidade natal de seu proprietário e originária das máquinas tipográficas que chegavam a Jacobina. A notícia sobre o Congresso Eucarístico, realizado no período em Salvador, também está dentro do centro ótico da página, mas é breve, tendo como ênfase apenas os nomes importantes para a época, o Arcebispo metropolitano da Bahia, D. Álvaro da Silva, e o interventor da Bahia, Capitão Juracy Magalhães, além da única fotografia da página: do papa Pio X. Finalmente, dentro daquela que é avaliada em diagramação como zona secundária da página, tem-se mais um boxe, agora com a informação/marketing da nova arte ocidental na época, que ganhava uma nova sala de exibição na cidade: “reaberto o cinema jacobinense”.

Um dos textos a serem analisados neste artigo, “A Imprensa em Jacobina”, assinado pelo comerciante e fundador do primeiro jornal local, A Primavera (1916), Amado Barberino, a princípio, está situado naquela que é considerada como zona primária da página e, por seu conteúdo, pode ser visto como uma exaltação ou uma felicitação do autor ao novo jornal. O outro texto, “No mundo dos poetas”, por sua vez, embora esteja na mesma posição diagramática, foi escrito pelo poeta de Mundo Novo, Eurycles Barretto – nesta época residente na cidade de Morro do Chapéu –, publicado no número 13 d’O Lidador, em 1º. de dezembro de 1933, tem em seu conteúdo uma dedicatória a outro poeta de sua cidade natal e uma crítica indireta aos valores sociais relacionados à estética, a este e outros poetas de todos os tempos.

Ao observar por completo a primeira página do primeiro exemplar do jornal que perdurou até 1943 na cidade, o raciocínio deve ser aberto para se entender melhor seus componentes, a sociedade a quem foi direcionado e o veículo em que foram publicados os textos supracitados. Em seu centro, em uma posição que pode ser interpretada como uma tentativa de chamar a atenção do leitor, um pequeno texto cujo título é Ao povo jacobinense e aos assinantes do “Mundo Novo” desperta imediatamente a curiosidade de qualquer leitor da época ou atual, primeiro por dizer que foram “forçados pelas circunstâncias” a suspender o jornal Mundo Novo; segundo por dizer que, “oportunamente”, será explicado o ocorrido, desviando o discurso para seu aspecto publicitário do jornal e sua gráfica na cidade de Jacobina; e, finalmente, por argumentar ser seu trabalho “pelo engrandecimento da comuna, com independência de ação, servindo à Pátria, a Deus e à Família”, lema do integralismo no Brasil. (O Lidador, 07 set. 1933, p.1)

Analisando o contexto histórico em que houve uma modernização das máquinas e equipamentos da imprensa nos grandes centros urbanos, levando as velhas máquinas para o interior do país na transição do século XIX para o século XX[3], algumas dúvidas aparecem: pode-se interpretar grosso modo a mudança de um jornal de uma cidade menor para outra, maior, como um empreendimento do empresário gráfico Nemésio Lima para obter melhores lucros com a ampliação de seu mercado consumidor, a otimização da produção gráfica e, paralelamente, o desenvolvimento de uma atividade intelectual que ganhou mais valor após a inserção do modernismo em todos os campos da representação do indivíduo brasileiro na primeira metade do século XX? Ou, de modo específico, ao verificar características da época no interior da Bahia, especificamente na cidade de Mundo Novo, pode-se direcionar o raciocínio para a importância e participação política de um jornal em uma cidade dominada por oligarquias rurais na década de 1930, quando havia um maior número de analfabetos entre seus habitantes?

Em busca de melhor conhecimento sobre a cidade de Mundo Novo, terra natal do empresário e dos poetas, constantes colaboradores do jornal O Lidador, Eurycles Barretto[4], Liberato Barretto e Eulálio Mota, por exemplo, foram necessários os contatos com alguns antigos habitantes locais e familiares de Nemésio Lima para conhecer melhor sua vida, sua produção intelectual e a de seus conterrâneos. Dito de outro modo, verificar se o jornal, avaliado como um meio de representação de novas tendências político-ideológicas do Brasil, desagradou aos velhos coronéis ou aos ocupantes de cargos designados pelo interventor Juracy Magalhães e serviu como aproximação de novos coronéis ainda em busca de projeção no cenário político local e estadual.

Diante de algumas constatações, tais como a postura integralista do diretor proprietário do jornal Mundo Novo, Nemésio Lima, vista em vários números posteriores do jornal O Lidador, pode-se deduzir que a cidade de Jacobina não teria sido apenas um ponto de refúgio para um perseguido político, mas também sua sincronia com o que estava ocorrendo em quase todo o estado, através das alianças do interventor federal Juracy Magalhães e as novas lideranças políticas locais, jovens coronéis, no caso específico de Jacobina, Francisco Rocha Pires, que, posteriormente, tendo a mídia a seu serviço, seriam eleitos para o poder legislativo estadual, assim como as relações ambíguas do então presidente da República, Getúlio Vargas e o integralismo em nível nacional[5].

No texto “A Imprensa de Jacobina” é perceptível um discurso ufanista, a personificação de um ser coletivo chamado Jacobina e sua convocação para enxergar no meio de comunicação um outro, exposto como seu “advogado e grande impulsionador” ou aquele que o levaria “a marchar galhardamente pela estrada ampla do progresso”. Em outras palavras, o jornal O Lidador foi classificado como um símbolo que representaria o “progresso”, a modernidade, na cidade de Jacobina e que por isso deveria ser por ela recebido de braços abertos. Destarte, e como mais uma das justificativas para sua exaltação, pode-se ler ainda na primeira parte do texto a valorização de seu diretor-proprietário, Nemésio Lima, “moço mundonovense”, de “espírito perseverante e inteligente (...), devotado ao trabalho”, ratificando assim seu próprio título. Enfim, além de configurar uma publicidade ou boas referências para o surgimento do referido jornal, tem-se o desejo de “uma longa existência dedicada a bem servir ao público, sem paixões, dentro dos limites da sã moral”, para o mesmo. (BARBERINO, Amado, O Lidador, 07 set. 1933, p.1)

A lendária Jacobina, modernizada (...), ostentando modernos prédios arquitetônicos, coreto, pontes de cimento armado, bela balaustrada ornando o longo cais do rico rio que, em amoroso murmúrio, lhe atravessa o coração, fornecendo energia elétrica para a sua deslumbrante iluminação pública e particular; Jacobina, montanhosa cidade sertaneja, guarnecida de fortalezas naturais, abertos os seus portões à dinamite pela engenharia brasileira. Para entender os longos fios de aço, a fim de passar a locomotiva e pelo espaço os fios elétricos, condutores do pensamento e da palavra (...). (Id.)

Para melhor explicar a importância de um meio de comunicação impresso em sua cidade natal, o autor do texto primeiro tenta juntar dois elementos paradoxais advindos de uma história local mitificada, com referências que o põem em sincronia com todas as contradições sócio-econômicas do Brasil, em um capitalismo antecedente à Segunda Guerra Mundial: natureza e modernidade.

Desse modo são valorizadas as novas tecnologias que chegaram ao interior, destaque para a energia elétrica, concebida como um dos “condutores do pensamento e da palavra”[6]. Além desta, o município de Jacobina tem seu avanço tecnológico visto no texto através de modernos prédios arquitetônicos e da ferrovia como meio de transporte para as pequenas comunidades rurais. A cidade, então, passa a conviver com o som dos automóveis, o “fofonar dos autos”, e não deveria mais ficar apática e “permanecer criminosamente nessa letargia”, no “véu negro do silêncio”. Por conseguinte, é concluída a pequena justificativa para o valor do jornal e direcionada uma abertura textual no que tange à curta “vida dos jornais da velha terra”. (Id.)

Em virtude da vida efêmera dos periódicos que antecederam ao jornal O Lidador em Jacobina – A Primavera (1916), O Centro (1921 e apenas um número), Correio de Jacobina (1921-1927) e O Ideal (1927, que deixou de existir antes de completar um ano de idade) – cabe levar em conta o que disse Beatriz Dornelles (2004), em Jornalismo “comunitário” em cidades do interior, acerca da mídia interiorana no Brasil:

O fenômeno do crescimento da mídia local no Brasil em quantidade e qualidade possui diversas características, resultantes de vários fatores, dentre eles o cultural, o econômico, o político, o ideológico e o educacional (...).

A imprensa local surge com características próprias da cultura interiorana, ou seja, decorrente de uma iniciativa individual, interessada no sucesso econômico do empreendimento, onde se manifestam originalidade e pluralidade de identidades que caracterizam os mais diferentes grupos e sociedades que compõem o Brasil. (DORNELLES, Beatriz, 2004, p. 1)

Diante disso, pode-se entender a visão de um intelectual da cidade de Jacobina ao tentar construir uma breve história da imprensa na cidade: quando falou do primeiro periódico que circulou pela cidade – A Primavera –, ele partiu de sua iniciativa pessoal, refletida em seus sonhos de fazer circular um meio de expressão para suas idéias. Em seguida, já abonado pelo cunho político de uma data particular para a história da Bahia, no dia 2 de julho de 1921 foi publicado O Centro, o segundo jornal a circular na cidade e que teve como principal peculiaridade o fato de ocorrer em um único número; no texto de Amado Barberino, este jornal é apenas citado como uma porta para o outro, que viria a seguir, desta vez montado em oficinas próprias, da chamada Sociedade Centro Progressista: o jornal Correio de Jacobina. Até então este teria sido o jornal com maior tempo de permanência na cidade, de 1921 a 1927, porque o seguinte, intermediário entre este e O Lidador – jornal O Ideal –, permanecera menos de um ano em circulação, em 1927.

Antes de encerrar o olhar sobre o texto em discussão, cabe acrescentar que em outra parte da primeira página do jornal, referente à sua transferência de uma cidade para outra, pode ser vista como um manifesto de apoio ao proprietário do jornal Mundo Novo, sua produção e cumprimentos ao novo jornal, O Lidador, que surgia na cidade de Jacobina. Situado na chamada zona morta da página, seu título – “Sobre a nossa transferência” – parece a priori ser uma tentativa de esclarecimento do referido diretor-proprietário sobre o jornal Mundo Novo. Porém a composição textual é feita com partes de um texto de outro jornal, Correio do Sertão, da cidade de Morro do Chapéu, publicado em 27 de agosto de 1933, sobre o incidente que teria provocado a transferência de uma cidade para outra, deixando para o leitor mais dúvidas do que respostas acerca das reais circunstâncias:

Acabamos de ter conhecimento que o “Mundo Novo”, jornal que se editava na vizinha cidade que lhe deu o nome, acaba de se mudar para a cidade de Jacobina, onde talvez continuará a ser editado com outro nome.

Ignoramos por enquanto o móvel de semelhante transferência que muito nos penaliza.

(...)

Era um jornal que honrava não somente à sua terra, mas a todo o sertão.

(...)

Instrutivo, noticioso, literário, de utilidade incontestável, o “Mundo Novo” sabia cativar e engrandecer a todo sertanejo sensato.

Lamentamos, por conseguinte, semelhante hecatombe para a vizinha e querida cidade de Mundo Novo, a quem enviamos os nossos sinceros pesares, ao mesmo tempo em que mandamos os nossos parabéns à cidade de Jacobina pela aquisição de tão útil quanto proveitosa imprensa. (O Lidador, 07 set. 1933, p. 1)

Tendo como intuito as respostas para as dúvidas abertas através da leitura dos jornais, no livro de Dante de Lima – Mundo Novo: Nossa Terra Nossa Gente – a primeira impressão foi a de que tais dúvidas poderiam ser rapidamente solucionadas. No entanto, após a informação de que jornal Mundo Novo foi fechado “por ato de desastrosa política partidária” (LIMA, Dante, 1988, p. 71) e, mais, depois de breve entrevista com o autor do livro, outros habitantes da cidade de Mundo Novo e familiares de Nemésio Lima, tais dúvidas só tiveram como resposta principal a referência a um atrito ocorrido entre o proprietário do jornal e a autoridade local da época, sem informar suas causas reais. Em busca de outros elementos ou fatos que pudessem elucidar de modo objetivo o que ocorreu, foi possível constatar no livro de Dante de Lima dois outros fatos ocorridos entre o intendente nomeado a partir de 1930 – Dr. Raul Victoria –, que levam à dedução de uma postura crítica ou oposicionista de Nemésio Lima: em 1932, os opositores ao governo instituído, de famílias tradicionais locais, Theodorico José Alves e Bráulio Alves, foram ameaçados de prisão, fato não concretizado, talvez pela importância de sua família na referida comunidade; e, de modo semelhante, é narrado o episódio inusitado de um “soldado que queria fechar Mundo Novo” (LIMA, Dante, p. 80-82), como demonstração da postura autoritária do novo intendente na cidade. Não obstante, o episódio do jornal permaneceu quase em silêncio no livro porque, segundo o autor, posteriormente consultado, não o tinha conhecimento de modo mais objetivo. O que se pôde presumir, grosso modo, após contato com alguns familiares de Nemésio Lima foi de que o jornal “Mundo Novo” teria expressado posições contrárias ao intendente supracitado, que, segundo o livro supracitado, “procurava se impor a qualquer preço” (Ibid., p. 78), chegando a forçar a saída do jornal, suas máquinas, seu proprietário e familiares, para outra cidade.

Para melhor entender o conflito entre Nemésio Lima e o intendente de Mundo Novo, foram utilizadas três fontes: uma de natureza oral, por meio de contatos com habitantes mais velhos, que souberam do fato com certa distância por serem ainda crianças quando ocorreu, e os familiares de Nemésio Lima ainda vivos que tinham mais ou menos cinco anos de vida e conheciam sua história de modo superficial e passional por ter sido contada por seu pai; as outras, escritas, seja no livro onde o autor mostra exemplos de sua coleta de dados através de fotografias de documentos antigos, para contar a história da origem da cidade, os fatos que ocorreram no município até 1988, quando foi publicado e sua pequena antologia dos poetas mundonovenses; seja nos poucos fragmentos encontrados do jornal Mundo Novo, onde não se vê de modo claro uma oposição ao intendente, mas à sua exaltação no número 207, de 26 de fevereiro de 1932, por exemplo; seja no jornal O Lidador, de onde se podem extrair as posições políticas de habitantes da cidade de Mundo Novo, suas relações com o proprietário do jornal etc., formando um quebra-cabeça carregado de complexidades.

Segundo Dante de Lima (1988), em 1932, quando houve o movimento constitucionalista, a cidade de Mundo Novo passou pela “fase mais violenta de sua história política. Se, por um lado, o Dr. Raul procurava se impor a qualquer preço, por outro lado a oposição lhe era ferrenha, liderada, principalmente pelos irmãos Theodorico José Alves e Bráulio Alves” (LIMA, Dante, p. 78), indivíduos que foram perseguidos pelo intendente e que se pode afirmar terem relação de afinidade com o proprietário do jornal O Lidador devido à sua referência na página 4 do primeiro exemplar, na coluna Sociais, onde comenta os visitantes à nova sede da empresa em sua primeira semana de trabalho, com ênfase para o Sr. Theodorico Alves, que se mudara para Jacobina após o conflito com o intendente. Indo mais além, algo também pode ser interpretado como demonstração do autoritarismo do intendente de Mundo Novo ou ausência de ordem na cidade: a notícia da cidade, na mesma página do jornal, contando um espancamento “sem motivo algum que justifique tamanha barbaridade” (O Lidador, 07 set. 1933, p. 4) e não deixando explícito quem o cometeu.

Finalmente, tentando montar o quebra-cabeça, ainda se pode relacionar outro boxe da quarta página, intitulado como Despedida, com a maneira em que se deu tal mudança de cidade, com aparência, em uma primeira leitura, de ser apenas uma desculpa por não ter se despedido de seus amigos e clientes: “assim, deixam, nestas linhas, um adeus à terra e ao povo mundonovenses”. (Id.) Porém, se considerarmos o tamanho da cidade, podemos perceber que o fato de dizer que não teve tempo de despedir-se pessoalmente dá a entender uma saída apressada, como disseram seus familiares, referindo-se ao fato como uma espécie fuga.

Em suma, por meio da junção das informações obtidas com a pesquisa e as da História da Bahia, de Luis Henrique Dias Tavares, onde cita os vinte deputados estaduais aliados de Juracy Magalhães, eleitos para a Assembléia Nacional Constituinte de 1933, dentre os quais Francisco Rocha Pires[7], amigo de Nemésio Lima que, de certa forma, o ajudaria a se estabelecer em Jacobina até a década de 1940, tem-se uma demonstração de sua postura política na cidade. São exemplos o número 49, de 10 de agosto de 1934, quando, ao noticiar a candidatura do Coronel Francisco Rocha Pires, embora afirme a manutenção de “neutralidade política” da “boa imprensa”[8], não podemos assim compreender porque se tem em seguida a afirmação de que “não podemos deixar de aplaudir” este nome para o legislativo estadual (O Lidador, 10 ago. 1933, p. 1); e o número 54, de 14 de setembro de 1934, onde de modo mais aberto faz propaganda eleitoral, convocando o povo jacobinense a lhe dar apoio.

De qualquer maneira, a postura contraditória de Nemésio Lima pode ser vista como uma busca de adequação dos intelectuais do interior da Bahia à política estadual que se formava a partir da terceira década do século XX, junto com as transformações políticas e sócio-culturais que ocorriam na capital do Estado. Por um lado, temos a imprensa como elemento identificador de modernidade, o que já buscavam os intelectuais nos grandes centros urbanos do Brasil. Por outro lado, esta mesma imprensa, em sincronia com o que ocorria de mais novo nas artes brasileiras, colocando-se como centro difusor das mais novas produções literárias de autores locais, alia o radicalismo político da direita nacionalista, fruto do verde-amarelismo[9], com os jovens coronéis em busca de auto-afirmação.

O Mundo dos Poetas

A literatura brasileira na década de 1930 passou por um processo de transformação iniciado na década anterior, sem deixar de introduzir novas visões e renovações, além de alguns autores que podem ser estabelecidos à luz do cânone literário nacional como as representações do modernismo que melhor permaneceram ao gosto do público leitor brasileiro. Estes são poetas que, embora prezassem pelas rupturas estéticas na poesia, também olhavam para os grandes mestres da literatura de língua portuguesa, sem esquecer da busca de uma identidade nacional advinda dos manifestos antropófago e verde-amarelo, lançados no final da década de 1920[10] e espalhados em quase todo o território nacional, em escalas diferentes ou deficientes.

Fora da região central, no plano político e socioeconômico do Brasil, em outras capitais de estados brasileiros, principalmente naqueles de maior área geográfica como é o caso da Bahia, o movimento também ocorreu, com ou sem a ousadia referenciada pela história e pela crítica literária nacional – ficando em alguns casos mais restrito a seus territórios circunvizinhos, e paradoxalmente a ter menor repercussão no interior do seu Estado do que os movimentos trazidos do sudeste brasileiro. O Estado da Bahia pode ser observado como um destes porque, fora das cidades circunvizinhas de Salvador, tem-se logo a dúvida sobre a divulgação da revista considerada pela história da literatura baiana como a melhor representação do modernismo baiano, no seu interior: Arco & Flexa (1928). Em seguida, num Estado tomado por acordos políticos que envolviam oligarquias rurais e interventores[11], vê-se que além de questionável o poder de difusão que podem ter tido as revistas publicadas em Salvador e o pouco interesse das elites rurais conservadoras de valorizar uma população analfabeta, a literatura era sempre colocada à margem da importância em seu sentido geral.

Numa região carregada de acidentes geográficos, voltada para a mineração como fonte de recursos e com as dificuldades relatadas pelo poeta baiano Carvalho Filho em relação à difusão de revistas e jornais que chegavam ou partiam de Salvador nesta época[12], a questão também pode ser feita de uma seguinte forma: quais revistas contemporâneas mais chegaram ao interior, Klaxon, Arco & Flexa ou O Cruzeiro e O Malho, entre outras? Após entrevistas com familiares de um, entre tantos poetas cuja obra só foi possível encontrar em bibliotecas particulares, Eurycles Barretto, a resposta ficou relacionada àquelas revistas de maior valor comercial e repercussão em todo o território nacional, independente de sua tendência no campo das artes: O Cruzeiro e O Malho[13], não invalidando a hipótese desses cidadãos do interior terem mantido qualquer contato com a renovação que ocorria na estética poética dos maiores centros urbanos brasileiros.

Daí porque em busca de conhecer a poesia ou o que se pensava como tal na década de 1930, no Piemonte da Chapada Diamantina, as primeiras fontes encontradas foram os jornais locais e da região[14]. As bibliotecas públicas pouco conservaram seu patrimônio cultural, sempre priorizando a permanência dos livros que faziam parte do cânone literário nacional, quando os tinham; deixando, por isso, como requisito necessário para uma pesquisa histórica, a busca em bibliotecas particulares. Por isso, os jornais foram as primeiras fontes que abriram perspectivas, possibilitaram fazer uma lista de autores, conhecer seus poemas ali publicados e tentar reconhecer possíveis relações com o modernismo brasileiro na década de 1930.

Foi neste sentido a chegada à primeira página do décimo terceiro número de um jornal ainda novo da cidade de Jacobina – O Lidador – em 01/12/1933, e a um texto que tinha como título a expressão No Mundo dos Poetas, assinado por Eurycles Barretto. O título logo poderia sugerir ao leitor que trazia em seu conteúdo uma descrição do que seria o mundo para os poetas, uma visão do que seria um mundo composto de poetas ou ainda um mundo feito, construído, por poetas. Em seguida, ao relevar o contexto histórico de rupturas com os padrões literários dominantes, poder-se-ia até pensar que se tratava de um panfleto literário – como outros da época – sobre a poética de modo geral. Porém, após a primeira leitura do mundo retratado por um poeta desconhecido neste periódico do interior, num momento em que tanto o Estado quanto o país estavam passando por mudanças conjunturais, as palavras ficam sem especificidades para denominá-lo objetivamente.

Em nível formal, primeiro cabe destacar que o autor do texto é um poeta e utiliza a prosa – uma crônica – para sua composição; posteriormente, não se pode afirmar que utilize de novos recursos estilísticos, sendo o texto composto por tópicos em que o autor conta uma história que serve como base para um breve comentário. Em nível temático, recheado com um jeito cômico, característica pessoal do autor que pôde ser confirmada tanto pelos seus familiares quanto por outros habitantes da cidade de Morro do Chapéu que com ele conviveram, a crônica foi carregada de um fundo moral, onde pôs em xeque a humanidade e o tempo em que viviam. Em seu conjunto, não se pode afirmar que o poeta compôs uma crônica inovadora, mas se pode dizer ser um retrato da cultura popular brasileira, escrita por um homem que, diferente de muitos daqueles que participaram das vanguardas literárias nacionais, não teve a mesma formação intelectual e nem conseguiu cursar além do equivalente à 4ª série do curso primário.

Nascido em 1896, na cidade de Mundo Novo (BA), foi quando Eurycles Barretto residiu na cidade de Morro do Chapéu – de 1917 a 1937 – que publicou a maior parte de sua obra: os livros Flores Incultas (1927), Apologia dos meses (1933) e Sertanejas (1935), além de textos diversos para os jornais Correio do Sertão (Morro do Chapéu) e O Lidador (Jacobina), nas décadas de 1930 e 1940. Posteriormente, depois de 1937, quando se mudou para a cidade de Campo Formoso, onde trabalhou como Coletor Federal até sua aposentadoria, em 1957, sua produção bibliográfica ficou relativamente estagnada, devido a circunstâncias diversas, ou cuja publicação ficou restrita a jornais. Depois de aposentado, em 1958, ele foi para o Rio de Janeiro e, em seguida, no início da década de 60, para Brasília, acompanhando seus filhos. Finalmente, em 1974, aos 78 anos incompletos, faleceu em São Paulo, deixando sua produção bibliográfica quase limitada às décadas de 1930 e 1940, salvo o livro Fim de Safra publicado postumamente por seus familiares em 1990.

Para compreender melhor o que o autor do texto denominava como o “mundo dos poetas”, também se fez necessário verificar alguns elementos históricos determinantes tanto para a sua divulgação quanto para a tentativa de reprodução do que seria o mundo cultural no interior da Bahia nas primeiras décadas do século XX. Em outras palavras, pode-se dizer que para uma melhor contextualização deste momento, deve-se ver uma comunidade do interior em busca de identidade – como em todo o país –, onde poucos e variados autores utilizaram o jornal para representar seu pensamento acerca do dia-a-dia, de uma ideologia ou da cultura nacional, tudo trabalhado em uma linguagem fluida que pretendia chegar a um maior público leitor.

Se se pensar precipitadamente que por não ter tido todos os recursos de sua época o poeta não estava apto a fazer um retrato do que seria o mundo dos poetas, quando se penetrar no texto tal hipótese ficaria comprometida porque a verificação de que ele utilizou os recursos da história, pensamentos e citações, faziam parte de seu repertório de conhecimentos, ligando-os à sua realidade local, à sua comunidade e a seus indivíduos. Em outras palavras, ao conferir que se partisse do próprio título a abordagem, quando o autor coloca uma expressão indicativa de lugar antes mesmo do objeto a ser descrito, ele simplesmente daria a entender que o que pretendia delinear era um local ambíguo, real ou abstrato em que viviam os poetas.

O texto é dividido por tópicos (Um beijo num poeta, Satanás de carne e osso e A coroa do poeta) e, antes do primeiro, o autor, justificando a ortografia do texto extraído, fez uma breve introdução aludindo a um certo Almanaque de lembranças luso-brasileiro, de 1862, de onde ele teria extraído os conselhos a seguir, provocando certa ambigüidade quando à sua valorização ou depreciação:

Possuo uma coleção do “Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro”, a partir do ano de 1900, faltando apenas os exemplares de 1915, 1916 e 1918. Junto a ela está um exemplar também, do ano de 1862, que considero o avô da coleção e que me foi oferecido por um amigo dedicado. Nele estão conselhos magníficos, além de muitos dados históricos de relevante importância, alguns dos quais transmito aos leitores d’“O Lidador”, representando lições proveitosas do vovôzinho querido, mas respeitando a sua ortografia, ouviram? (BARRETTO, Eurycles, O Lidador, 01 dez. 1933, p. 1)

Um beijo num poeta, primeiro tópico, conta uma cena do poeta-trovador do século XV, Alain Chartier. A história, extraída do referido almanaque, conta um dia em que a princesa Margarida d’Escócia teria dado um beijo no poeta – destacado na sociedade em que vivia por sua feiúra – quando ele estava adormecido em uma cadeira na corte. Sua atitude de princesa, testemunhada pelos cavalheiros e pelas damas que a acompanhavam, teria provocado um choque em todos, forçando-a a se justificar informando que não tinha beijado aquele que todos viam como um indivíduo feio, mas aquele outro, de cujos lábios “tinham saído tantas palavras douradas”. Apropriando-se da cena extraída, Eurycles Barretto questiona: “E então? Quem é o poeta e que é moço e que não é assim tão feio, há de morrer de todo sem esperança de um beijo... de princesa? Eulálio Mota, por exemplo”. (Id.) Em suma, o autor utiliza esta caracterização alegórica do poeta como referência para outro poeta, seu contemporâneo, e a quem o texto foi dedicado.

À procura de relações intertextuais com O Mundo dos Poetas, pode-se chegar à República dos Bruzundangas, de Lima Barreto, que utilizara da mesma história, contada no Almanaque de lembranças luso-brasileiro, como meio de satirizar o seu mundo, em 1919. Ambos procuravam retirar do fato o aspecto valorativo do ato de ser poeta, embora Eurycles Barretto visasse à característica cômica quando respondeu ser seu amigo um indivíduo semelhante ao poeta-trovador, principalmente por aquilo que ele já produzira literariamente. Considerando que a intertextualidade “designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que detém o comando do sentido” (JENNY, Laurent, 1979, p. 14), o que pode chamar a atenção a priori é que a relação entre Eurycles Barretto e Lima Barreto, em 1930, é abstrata e gira em torno de um texto utilizado por ambos para exemplificar, criticar ou mesmo carnavalizar com a aparência de um indivíduo. Por outro lado, em ambos o valor de ser poeta está impregnado de conceitos que justifiquem o estilo de ser de cada um em épocas relativamente próximas e em locais distintos.

Diante da lacuna aberta pela referência a Eulálio Mota, foi necessária uma breve pesquisa paralela para identificá-lo, induzindo a verificar no mesmo exemplar do jornal O Lidador uma nota de parabéns por sua recente formatura em farmácia pela Faculdade de Medicina da Bahia: “um dos mais talentosos e esforçados filhos de Mundo Novo”; por conseguinte a observação de que o poeta a quem se referia Eurycles Barretto tivera algumas de suas poesias publicadas no mesmo jornal, como, por exemplo, “Foi tudo um sonho” (MOTA, Eulálio, O Lidador, 20 out. 1933, p. 4).

Logo se pode destacar algo que até então era inusitado: a percepção de haver um mundo de poetas da região em torno do jornal O Lidador, tanto por suas publicações em toda uma década (1933-1943) quanto por sua gráfica que possibilitou a produção de textos e livros de autores locais, almejando seu valor no meio literário baiano. Por reproduzir notas extraídas dos jornais A Tarde e O Imparcial, de Salvador, no exemplar de 10 de novembro de 1933, vem uma reflexão em torno de Eulálio Mota como aquele talvez tenha sido mais lido do que quem escreveu o texto, seja pelo fato de ter ido estudar na capital do Estado, tendo contato mais direto com o modernismo na capital baiana ou simplesmente por ter sobre seu livro, Alma Enferma, um pequeno comentário naquele que viria a ser um de seus maiores jornais:

“Numa pequena brochura, trabalho gráfico da Imprensa Victoria”, o Sr. Eulálio Mota enfeixou várias poesias de sua lavra.

O autor é um contemplativo. Olha a vida através do vidro amarelo de uma resignação piedosa, tocada das máximas renúncias.

A inteligência incontestável do poeta exsurge como emanações sutis de uma flor agreste que se estiola, humildemente, à beira da estrada.

Mas o amor, esse grande mágico, vem, de quando em quando, setear-lhe o coração e dizer-lhe baixinho que a Felicidade é mulher. (O Lidador, 10 nov. 1933, p. 3)

Voltando ao “mundo dos poetas” de Eurycles Barretto, o segundo caso em tópico é o de Pellison, poeta medíocre do século XVII, que também tinha a qualidade de ser muito feio, assim como o poeta referido anteriormente. O título deste tópico é “Satanás de carne e osso”, desenhado de modo irônico, para provocar no leitor curiosidade em saber o que ele, com tal paradoxo, tinha como segunda lição extraída do “vovô” Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro. Segundo ele, Madame Sévigne comentava que Pellison “abusara da permissão, que os homens têm de ser feios”. Certo dia, quando tal figura estava na rua, uma jovem e elegante mulher o chamou para ir a uma casa, ação não rechaçada por ele, e lá o apresentou ao dono da casa, dizendo simplesmente: “assim, feição por feição”, saindo em seguida sem dar satisfação. O poeta, então, nos fala de um enigma: o homem a quem o poeta fora apresentado era um pintor, que tinha a incumbência de pintar um quadro sobre a tentação de Cristo no deserto, proporcionando uma polêmica entre os que pagariam o seu serviço: qual seria a feição do demônio? Levando o homem diante do pintor, a mulher afirma indiretamente que aquele homem, o poeta Pellison, era a imagem do demônio que ela queria ver retratada no quadro: “tal e qual”. O poeta, então, finaliza ironizando: “Puff! Sem comentários” (BARRETTO, Eurycles, O Lidador, 01 dez. 1933, p. 1).

Uma possível invenção da comunidade de leitores para o jornal O Lidador, em dezembro de 1933, ano de sua fundação na cidade de Jacobina, não pode contar necessariamente com toda esta sociedade, a priori por saber que a maioria da população brasileira não sabia ler ou poucos tiveram acesso à escola. Entretanto, ao pesar a leitura através de paradigmas ou formas de leitura para entender “a maneira como os textos puderam ser apreendidos, compreendidos e manipulados” (CHARTIER, Roger. In: HUNT, Lynn (Org.), 2001, p. 227), pode-se deduzir que o público leitor não era feito apenas dos indivíduos que tinham acesso à leitura, mas de uma sociedade que versava sobre o padrão de beleza do corpo e, por extensão, o uso da palavra escrita.

O terceiro tópico que desenhava o mundo dos poetas tinha como título A coroa do poeta. O fato citado ocorre com o poeta Estácio, no século I, num combate de poesia, quando se torna o vencedor e recebe uma coroa de ouro como prêmio do imperador Domiciano. Claudia, a esposa do poeta, ao ouvir o nome de seu marido proclamado pelo arauto, “rompe por entre a turba, corre cheia de entusiasmo e chegando junto do marido (...), apertou-o nos braços, e cobriu-lhe a cabeça de beijos”. Por isso, Eurycles Barretto pergunta se “essa loucura de Claudia”, que o compreendia e que ele amava tanto, não seria um prêmio maior do que aquele que recebera do imperador e responde positivamente. (BARRETTO, Eurycles, O Lidador, 01 dez. 1933, p. 1) Afinal, comparando os prêmios que a vida lhe dava – o amor pela mulher amada e a coroa dada pelo imperador – o sentimentalismo prevalece na visão do autor do texto.

Confrontando os dois casos dos poetas citados anteriormente com o terceiro, percebemos que neste último o problema da beleza física não tem a mesma ênfase. Tem-se nas primeiras imagens o estranhamento já trazido desde o início da sociedade moderna, que valorizava literariamente o feio e levava ao leitor uma busca de identidade com os personagens[15]. O estranhamento aparecia de modo sarcástico e colocava a sociedade em contradição com seus valores estéticos. No terceiro tópico, porém, o que se pode pensar é ser o lirismo romântico que aí está delineado, ao relevar a importância do sentimento na busca do poeta.

Os casos demonstrativos para o mundo dos poetas são encerrados pela alusão ao suicídio de outro poeta: trata-se de Hermes Fontes (1888-1930) que, segundo a referência, morreu “à míngua desse mesmo afeto de Claudia para com Estácio”: o amor. Agora, com relação à vida de um poeta simbolista, desenhado como mais um exemplo de sentimentalismo, pode-se falar em lástimas românticas quando Eurycles Barretto concluiu seu texto com o lamento: “Pobre humanidade!” (Id.); o autor leva o leitor a deduzir ser algo fora do contexto, em pleno século XX, a morte do poeta sergipano Hermes Fontes preso ao sentimento amoroso.

Pensar apenas estilisticamente um modernismo no Piemonte da Chapada Diamantina seria desconsiderar os elementos supracitados e também a revolução cultural pregada pelas diversas correntes deste movimento no Brasil, que tinha como elemento catalisador a valorização da palavra impressa através da mídia jornalística no interior do Brasil. O mundo dos poetas da região, destarte, pode ser visto melhor através do elemento gráfico, unificador desses e de outros textos, de escritores que ficaram à margem da história da literatura baiana, mas foram conhecidos por seus contemporâneos, por sua comunidade de leitores ou leitores de outras localidades circunvizinhas, fundamentais para sua existência. O jornal O Lidador; portanto, foi o mundo de uma pequena cidade baiana em 1933, em uma comunidade rural dominada por uma elite latifundiária e conservadora, que, neste ínterim, entrava em contato com as idéias advindas de 1930; e o mundo de um poeta que conheceu as inovações formais de seus contemporâneos, mas não ousou utilizá-las em seus textos, principalmente porque buscava uma maior aproximação com o gosto dominante de seu público leitor.

Afinal, para falar em modernismo no interior da Bahia, na década de 1930, pondere-se mais o verde-amarelismo como sua base porque deixava o experimentalismo e as rupturas formais, aproximando-se mais da simplicidade das comunidades interioranas, tradicionais e conservadoras. Não é que esta tendência não tenha inovado, mas, através da tolerância, do convívio do novo com o velho, defendeu mudanças através de outros recursos, conforme se pode ver em fragmento do Manifesto Nhengaçu Verde-Amarelo: “Aceitamos todas as instituições conservadoras, pois é dentro delas mesmo que faremos a inevitável renovação do Brasil, como o fez, através de quatro séculos, a alma de nossa gente, através de todas as expressões históricas” (PICCHIA, Menotti Del et al. In: SHWARTZ, J. (Org.), 1995, p. 152). O poeta Eurycles Barretto não prega a ruptura formal ou política como os antropófagos; pelo contrário, justifica o uso da ortografia padrão e procura trabalhar no texto imagens que dialogam com as do seu leitor, tornando-o mais fluido. É esta fluidez que propicia sua aproximação com o leitor que, por sua vez, pode sentir no texto a busca de valorização do ato de ser poeta numa sociedade que deixa a arte e seus criadores sem valor ou motivo para a existência.

O jornal O Lidador e sua gráfica

Tendo como foco principal o jornal O Lidador do período, tanto pelos diversos textos escritos a favor do integralismo[16], tendo como base a idéia de que “afirmação do homem de nossa terra dar-se-á, em definitivo, quando as cidades cosmopolitas forem invadidas pelo Espírito Nacional” (VASCONCELOS Gilberto, 1979, p. 21), outro fator contribuiu para identificar melhor o jornal de Jacobina: além de textos de autores locais, o jornal publicou textos de Menotti del Picchia, entre os quais um escrito para o jornal O Lidador, onde o autor defende os jornais e “Os jornalistas do interior”, considerados como “heróis obscuros”, propondo como solução a formação de uma Federação dos Jornalistas do Interior (O Lidador, 07 set. 1935, p. 9), além de textos de Ulpiano Del Picchia (O Lidador, 18 dez. 1938, p. 4 e 19 mar. 1939, p. 4), ou os poemas de Nicanor Carvalho que tem como título “Avante!” (01 fev. 1935, p.2), dedicado a Nocola Rosica, morto pelos comunistas em Bauru (SP) e Guilherme de Almeida, participante da Revolução Constitucionalista de 1932 que lhe valeu o exílio na Europa (O Lidador, 07 set. 1935, p. 9).

O hibridismo cultural brasileiro, então, pode ser visto na década de 1930, no interior da Bahia, por diversos aspectos: seja pelas relações entre o diretor-proprietário do jornal e a poesia brasileira no período; seja por suas relações com políticos locais, especificamente em Jacobina; seja pelo movimento integralista e seu manifesto Nhengaçu Verde-Amarelo, que por sua vez aproximaria os intelectuais s intelectuais verde-amarelos da mídia através de textos publicados em suas páginas; sem desconsiderar uma breve história da imprensa local e sua importância para a sociedade, no texto “A Imprensa em Jacobina”, impresso no primeiro número do jornal O Lidador; ou finalmente por disponibilizar para a cidade e região uma gráfica que, posteriormente, publicaria documentos culturais, jornais e livros de autores locais, em sincronia com os grandes centros urbanos brasileiros.

Enfim, a proposta de observar um modernismo na região de Jacobina na década de 1930 não é restringir-se a este ou aquele poeta, mas trabalhar principalmente o crescimento ou o estudo do desenvolvimento de um movimento cultural pela mídia escrita na região nas primeiras décadas do século XX – especificamente o jornal O Lidador, iniciado em 1933 –, que possibilita publicações de livros de autores ainda desconhecidos do cânone literário baiano e brasileiro, além de sua relação com as vanguardas que abriram novas perspectivas para a arte poética brasileira. Foi através desse meio de comunicação que alguns poetas, que sequer publicaram livros, puderam divulgar suas poesias, desde as mais conservadoras às mais inovadoras no campo da forma, num período que as histórias literárias chamam modernista.

BIBLIOGRAFIA

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BARRETTO, Eurycles. No mundo dos Poetas. O Lidador, Jacobina (BA), 10 nov. 1933, p. 1.

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VASCONCELOS, Gilberto. A Ideologia Curupira: análise do discurso integralista. São Paulo: Editora Brasiliense, 1979.

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[1] Mestre em Literatura e Diversidade Cultural e professor de Literatura Brasileira da Uneb, Campus IV, Jacobina.

[2] Conforme classificação proposta em Diagramação: o planejamento visual gráfico na comunicação impressa, por Rafael Souza Silva, p. 46-49.

[3] Nelson Werneck Sodré, analisando a transformação da imprensa em empresa nos grandes centros urbanos, afirma que “o equipamento dos jornais acompanhava a etapa empresarial; os velhos equipamentos eram encontrados ou vendidos a folhas do interior”. (SODRÉ, Nelson Werneck 1999, p. 251-389)

[4] Pesquisa em fase conclusiva na Universidade do Estado da Bahia, Campus IV, Jacobina (BA) intitulada “Eurycles Barretto: a poesia da Chapada Diamantina nos anos 30”.

[5] A ambigüidade está na aliança de Vargas com os integralistas por estes serem considerados como uma ameaça ao seu governo.

[6] Peter Burke, no capítulo “Do vapor à eletricidade”, do livro Uma História Social da Mídia, afirma que “quando a miniaturização de circuitos elétricos estava começando a transformar todos os aspectos tecnológicos, ele não estava sozinho ao prever um novo avanço social e técnico radial. (...)”. (BURKE, Peter, 2006, p. 125)

[7] Cf. TAVARES, Luis Henrique Dias, 2001, p. 394.

[8] Faz-se com esta expressão uma alusão ao texto “A boa imprensa”, de Eurycles Barretto, publicado no jornal Mundo Novo, número 252, de 06 de fevereiro de 1933, onde o autor cita Ruy Barbosa como referência ao ideal da imprensa na República: “A imprensa é a vista da nação. Por ela é que a nação acompanha o que lhe passa perto e ao longe (...)”; algo que pode ser contraposto à postura autoritária do intendente Raul Victoria. (Mundo Novo, 06 fev. 1933, p. 1)

[9] Pode-se considerar a ligação com o ideal “verde-amarelo”, de Plínio Salgado e outros do Manifesto Nhengaçu Verde-amarelo, de 17 de maio de 1929 , por causa da ligação de Nemésio Lima com o integralismo, presente em diversas páginas do jornal, assim como textos de Menotti Del Picchia, “Heróis obscuros”, sobre o jornalismo no interior do país, (O Lidador, 07 set. 1935), e “Não estraguemos o Brasil”, (O Lidador, 17 mai 1936), sobre os partidos políticos, por exemplo.

[10] Manifestos Antropófago e Nhengaçu Verde-Amarelo, 1928 e 1929, respectivamente.

[11] Segundo Cid Teixeira, “não havia em 1930, na Bahia, uma estrutura de pensamento revolucionário. (...) Há um retorno às bases no interior, um contato direto com o coronel, dono dos votos, e um esquecimento dos intermediários e dos políticos de cúpula. É esta base que vai lastrear a vigência juracisista de 1931, quando ele prepara a Constituinte baiana, até 1937, quando deixa o governo” (TEIXEIRA, Cid. In: LINS, Wilson et al, 1988, p. 49-55).

[12] “Só por intermédio de jornais, chegados via marítima com atraso de mais de um mês, podíamos ter noção precisa do que, com o propósito de renovar em seu conteúdo e em seu continente toda e qualquer manifestação artística – e, em primeiro nível, a literária –, pretendiam os escritores do Sul. Era a nossa liberdade de criação. O movimento literário que a Semana de Arte Moderna originou, a rigor permanece – e, na Bahia, se apresentou com um perfil de hostilidade compreensível”. (SANTANA, Valdomiro, 1986, p. 24-25)

[13] Os filhos do poeta Eurycles Barretto entrevistados em 2005 comentaram que o pai tinha quase toda a série da revista O Cruzeiro e exemplares da revista O Malho, que eles se desfizeram algum tempo após sua morte.

[14] O projeto de pesquisa é Eurycles Barretto: a poesia da Chapada Diamantina nos anos 30, e os jornais são A Primavera, Correio de Jacobina, O Ideal e O Lidador, de Jacobina (de 1916 a 1943), e Correio do Sertão (1917 e ainda em atividade), de Morro do Chapéu.

[15] Segundo Homi Bhabha, em O Local da Cultura, a lógica da inversão que, na idade moderna revela o oculto, gira em torno de uma negação e é a base das revelações e reinscrições profundas do momento de estranhamento. “O estudo da literatura mundial poderia ser o estudo do modo pelo qual as culturas se reconhecem através de suas projeções de ‘alteridade’. (...) O centro de tal estudo não seria nem a soberania de culturas nacionais nem o universalismo da cultura humana, mas um foco sobre aqueles ‘deslocamentos sociais e culturais anômalos’” representados em suas ficções estranhas. (p. 31-33)

[16] São vários os textos publicados no jornal O Lidador: “O Integralismo vencerá” e “Integralismo: o destino misterioso de Plínio Salgado”, entre outros (MOTA, Eulálio, O Lidador, 29 dez. 1933, p.1 e 18 jan. 1935, p. 4).

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