Ricardo Sallai Viciana - Arnaldo Lemos Filho



Introdução

Como composição da avaliação do quinto módulo da disciplina de Sociologia Geral, neste primeiro semestre, assistiremos ao filme “O Enigma de Kaspar Hauser” (Fig. 1) e buscaremos um possível conceito antropológico de cultura.

O drama “O Enigma de Kaspar Hauser” que recebeu o grande prêmio do júri no festival de Cannes em 1975 e no festival de filmes alemão de 1975 recebeu a Faixa de Ouro nas categorias de edição e design de produção e Faixa de Prata (com uma compensação monetária para execução de um novo filme) narra a história de um garoto que é criado num porão, longe de qualquer contato com outro ser humano, até completar cerca de 18 anos. Sem saber falar, andar ou sua própria identidade, ele é levado para a cidade, onde é objeto de curiosidade e desprezo da população local. Como em seus outros filmes, a preocupação principal de Herzog é a de contar histórias tão fielmente quanto possível. Nas suas próprias palavras “Os meus filmes nascem de uma fascinação muito forte, e eu sei que vi que coisas que outros ainda não viram, que outros não sabem. Isto é o que quero tornar visível para as outras pessoas. É uma necessidade de comunicar. Muito forte e muito viva”.

Fig. 1: Capa do filme.

Capítulo 1: O Enigma de Kaspar Hauser

1. Ficha técnica

Produção: Werner Herzog

Banda Sonora: Tomaso Albinoni, Wolfgang Amadeus Mozart, Johann Pachelbel, Orlando di Lasso

Editora: Martha Lederer, Beate Mainka-Jellinghaus

Design de produção: Henning von Gierke

Adereços: Ann Poppel, Gisela Storch

Companhias de produção: Werner Herzog filmproduktion, Zweites Deutsches Fernsehen

Duração: 110 minutos

País: Alemanha Ocidental

Língua: Alemã

Cor: Cores

1.2 Estrutura Narrativa

O filme inicia-se com a apresentação de Kaspar enquanto vítima. Kaspar Hauser surge acorrentado num cativeiro onde uma figura encapotada lhe dá pão e água. É “o homem”, o único ser humano com quem mantém contato, que o ensina a escrever e falar. Kaspar nunca se deslocava. Só quando “o homem” decide retirá-lo do seu cativeiro é que o vai ensinar a andar. Ainda assim, com muita dificuldade Kaspar vai ser abandonado numa praça pública.

Nesta praça, Kaspar é abordado por outro homem e submetido a um questionário que não podia compreender. Foi objeto de curiosidade e análise por parte das pessoas da cidade e em particular pelo destinatário da carta que transportava: o Capitão da Cavalaria. Apesar de toda a curiosidade que os habitantes da cidade manifestaram, remeteram-no para um estábulo, onde procederam à sua observação.

É então enviado para uma torre onde estão vândalos e vagabundos. A família do guarda começa por ser o berço das suas primeiras relações sociais. Curiosamente, é uma criança, o filho do guarda que lhe dá a primeira lição de língua, segurando à frente de Kaspar um espelho para que possa ver as diferentes partes do corpo que vai enumerando. É também essa mesma família que o ensina a comer com faca e garfo e lhe dá o seu primeiro banho. A filha do guarda procura ensinar-lhe uma poesia, mas as rimas ainda são muito difíceis para Kaspar. Entretanto, os adultos continuam a analisar meticulosamente o estranho Kaspar. O relatório oficial que já havia sido começado no estábulo da Cavalaria evolui, constituindo um orgulho para o seu redator, o escrivão.

Começando a ser um encargo para as autoridades, Kaspar acaba por ser reconhecido como não constituindo uma ameaça. É então enviado para um circo. Aqui, Kaspar continua a ser vítima, mas desta vez de humilhação. É apresentado ao público como um dos enigmas universais. Kaspar foge do circo e é encontrado por Daumer, o professor, escondido numa cabana cheia de abelhas.

Um intervalo de tempo se passa e Kaspar se emociona com a música tocada num piano. Neste momento ele se sente velho e considera a vida muito difícil para ele próprio, e termina comparando os homens com lobos.

Após outro lapso de tempo, Kaspar manifesta admiração pela altura da torre onde esteve preso e diz que o homem que a construiu devia ser muito alto. Ele acha que, uma vez que o quarto só tem alguns passos de largura, quando estava dentro dele, só via quarto (fosse qual fosse a direção em que olhava). Agora que tem a torre à sua frente e a considera tão grande, não percebe porque esta desaparece quando se volta de costas. Conclui então que o quarto tem que ser maior que a torre.

Em seguida, Kasper está a tomar chá com os clérigos. Estes procuram averiguar se Kaspar teria pensado, no seu tempo de cativeiro, em alguma entidade superior (Deus). Kaspar não entende a possibilidade da criação a partir do nada, e questiona a necessidade de acreditar na fé.

Outra cena interessante é a no jardim enquanto apanham maças. Kaspar considera que as maças têm vida própria e que devem descansar. Outro momento é o impasse entre Kaspar e o professor de lógica. Após a apresentação do problema, o personagem consegue uma solução muito mais simples, porém não é aceita pelo professor.

A vida social de Kaspar atinge seu auge na festa de um Lorde inglês. Mas, mais uma vez, Kaspar é apresentado como a atração da festa. Perguntam-lhe como foi a sua vida no tempo de cativeiro. Kaspar responde prontamente: “Melhor que cá fora”.

Kaspar é atacado pelo “homem”. Apesar de o ver aproximar-se, Kaspar não reage gritando ou protegendo-se. Limita-se a deixar que “o homem” o golpeie várias vezes na cabeça. Mais ainda, uma vez ferido, Kaspar não pede ajuda. Procura abrigo no porão da casa – aproximando-se de seu cativeiro original. O professor e sua mulher o descobrem e ajudam-no. No seu leito Kaspar descreve: “Eu vi o mar. Eu vi uma montanha, e muita gente. Estavam todos subindo a montanha... como uma procissão. Havia muita neblina. Eu não conseguia enxergar claramente. E lá em cima, estava a morte”.

No segundo atentado, após ser apunhalado, Kaspar corre ao encontro de Daumer e ainda consegue mostrar-lhe o lugar onde tudo se passou, bem como contar-lhe que “o homem” lhe deixou um saco. O saco continha mais um intrigante bilhete. Dizia apenas que Kaspar o podia identificar e que, “para lhe poupar trabalho” lhes diria como se chamava. Este segundo atentado deixa apenas uma coisa bem clara: a origem de Kaspar era um assunto demasiado perigoso para se poder correr o risco de ser descoberta. A única forma de manter o segredo era a sua morte.

No leito de morte, Kaspar disse apenas que tinha uma história, mas apenas sabia o começo. Conta que via uma caravana no deserto, guiada por um velho cego. Num determinado momento todos se consideram perdidos, mas o cego diz que o que está à frente não são montanhas e que devem continuar caminhando para o norte. Assim alcançam a cidade.

No necrotério é feita uma autópsia ao corpo de Kaspar. Analisado o seu cérebro, encontram anormalidades anatômicas que julgam ser a explicação para este homem estranho.

1.3 Teses

Durante todo o filme podemos perceber diversas teses muito bem abordadas pelo diretor. Dentre elas podemos citar:

1. Crítica à igreja

2. Crítica à sociedade

3. Origem da natureza humana

4. Necessidade de explicações científicas

5. Variabilidade social

6. Evolução humana

7. Determinismo social

8. Consciência coletiva

9. Dualidade humana

10. Ação social

11. Dominação social

12. Despreocupação com a vida humana

Esta história foi representada no filme de Werner Herzog, "Jeder für sich und Gott gegen alle", que traduzido para a língua portuguesa é "Cada um por si e Deus contra todos”.

1.4 Palavras-chave em relação às teses

O filme ao mostrar a situação social vigente aproxima-se de questões sociológicas importantes. Nestas questões algumas expressões são fundamentais:

1. abuso de autoridade

2. violência social

3. desestruturação da sociedade

4. igreja e religião

5. moral e costumes

6. preconceito

7. solidão

8. educação e influência educacional

9. visões pessoais

10. fato social

11. convívio social

1.5 Frases e cenas que explicam as teses

A cena inicial que mostra Kaspar no seu cativeiro e sem condições de andar (Fig. 2) mostra a despreocupação com a própria vida humana e a necessidade de convívio social.

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Fig. 2: A cena que mostra o cativeiro.

A cena de Kaspar abandonado na praça (Fig. 3) determina a entrada dele na sociedade e o início de muitos outros problemas.

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Fig. 3: Imagem de seu abandono.

Ao ser analisado concluem que “este indivíduo tem o intelecto num estado de confusão tal que, com um inquérito policial, não vamos a lado nenhum”.

Kaspar recebe suas primeiras aulas (Fig. 4) de língua de uma criança, os únicos que o olhavam com pureza.

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Fig. 4: Aula de língua.

Após estes momentos, é levado para um circo (Fig. 5) a fim de render algum dinheiro e entreter o público – um dos enigmas universais.

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Fig. 5: O circo e a humilhação.

Durante seu progresso de aprendizado, retorna ao seu cativeiro e não consegue entender as dimensões e suas proporções – comenta sobre o tamanho de uma sala quando se está dentro e fora dela (Fig. 6).

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Fig. 6: Discussão sobre proporções.

Uma cena interessante é a discussão sobre a fé e a possibilidade da criação, por Deus, de tudo a partir do nada (Fig.7).

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Fig. 7: Discussão sobre fé.

A resposta ao professor de lógica, após a apresentação de um problema foi sublime e simples, porém não aceita pelos padrões – sua solução alternativa era: “pergunto ao homem se ele é uma rã. O homem mentiroso iria responder que sim, mas um homem que só falasse a verdade diria não”.

Após o primeiro atentado, Kaspar descreve: “Eu vi o mar. Eu vi uma montanha, e muita gente. Estavam todos subindo a montanha... como uma procissão. Havia muita neblina. Eu não conseguia enxergar claramente. E lá em cima, estava a morte” (Fig. 8).

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Fig. 8: Visão da morte por Kaspar.

No leito de morte, Kaspar conta sua história, apenas sabia o começo (Fig. 9). “Vejo uma caravana grande que vem do deserto, através da areia... E esta caravana é conduzida por um velho berbere. Este velho é cego. A caravana para, porque alguns pensam que se enganaram, porque vêm montanhas à sua frente. Eles medem com o compasso e não sabem como continuar. Então, o guia cego pega numa mão cheia de areia, prova-a como se fosse comida. `Meus filhos´, diz o cego, vocês estão enganados, isto aqui à nossa frente não são montanhas. É unicamente a vossa imaginação. Vamos continuar para norte.´ Sim, e depois seguem, sem hesitação e chegam à cidade. E é aí que começa a história. Mas como continua a história nessa cidade, eu não sei... Agradeço por me terem ouvido. Agora, estou cansado”.

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Fig. 9: História contada por Kaspar.

1.6 Análise Sociológica

Hauser enfrenta com perplexidade as convenções sociais, os dogmas religiosos, as certezas científicas, vendo tudo com olhos virgens e puros e, portanto, desabituados a enxergar como normal o que assim foi estabelecido. Daí surgem momentos geniais, como seu embate com o professor de lógica, com os clérigos, a discussão sobre a vida das maçãs, o circo de aberrações.

Neste filme, conseguimos perceber muito bem a tese de Durkheim, na qual o comportamento dos indivíduos é socialmente determinado e a educação é o fator essencial na conformação do indivíduo aos padrões morais e sociais de uma sociedade. A educação é então um fato social, que se impõe aos indivíduos. Em todos os momentos, tentam educar e aproximar Kaspar das regras sociais.

Percebemos, ainda, o conceito de consciência coletiva, que determina um conjunto de crenças e de sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade, formando um sistema determinado que tem sua vida própria. É objetiva (não vem de uma só pessoa), é exterior (é o que a sociedade pensa), e age de uma forma coercitiva. É de certo modo, a moral vigente da sociedade. É essa consciência coletiva que passa a determinar o comportamento de Kaspar.

O comportamento (e talvez sua origem) de Kaspar pode ser visto como um fato patológico, ou seja, um fenômeno que não é encontrado na sociedade de forma generalizada e pode colocar em risco a integração social. Talvez seja esse o motivo do próprio assassinato de Kaspar.

Paralelamente, podemos avaliar o comportamento social do filme. Percebemos claramente a ação tradicional, que é assentada no costume, em práticas aprendidas e transmitidas pelas diferentes instituições. Percebemos, ainda, momentos de ação afetiva, baseada em sentimentos e emoções – o próprio comportamento de Kaspar. Além, é claro, de ações racionais voltadas para fins, determinadas por expectativas, condições ou meios para alcançar fins próprios, racionalmente perseguidos.

Kaspar, durante todo o filme, passa por um processo de dominação, onde, segundo Weber, alguns indivíduos detém a capacidade de dirigir a sociedade. Conforme sua teoria, podemos perceber a dominação tradicional, presente nas casas nobres e na própria posição social feminina; a dominação carismática, muito evidente na figura do lorde inglês; e a dominação racional-legal, presente nas instituições oficiais e na burocracia da figura do escrivão.

Conclusão

Este filme ilustra magistralmente a socialização, não é uma decorrência biológica da espécie, mas conseqüência de um longo processo de aprendizado com o grupo social.

Mesmo tendo aprendido a andar, falar e escrever e apesar de haver internalizado símbolos de comportamentos, Kaspar Hauser nunca seria considerado um "igual" pela comunidade de Nuremberg, pois sua história de vida estava inevitavelmente marcada pelo estigma da rejeição.

Esta história foi representada no filme de Werner Herzog, "Jeder für sich und Gott gegen alle", que traduzido para a língua portuguesa é "Cada um por si e Deus contra todos”.

O titulo traduzido literalmente merece algumas considerações. Pode ser dividido em:

“Cada um por si” – a idéia de individualidade, onde a natureza de cada um deve ser respeitada, por se tratar de um processo de formação histórico e único. Essa construção pode ser, muitas vezes, influenciada, ajudada, ou guiada por outros; mas é um caminho a ser percorrido só.

“Deus contra todos” – nessa estrada da construção de nosso “eu interior” travamos uma batalha continua contra Deus, pois foi este que nos colocou aqui, e é o único que não tem que passar pelas mesmas condições.

Assim, podemos entender Kaspar como um personagem que desempenha o papel da humanidade. Entregue a si mesmo e sujeito à oposição que Deus oferece.

Referências Bibliográficas

LEMOS FILHO, Arnaldo. Sociologia Geral e do Direito. Editora Alínea 2004. Campinas.

NAGIB, Lúcia. Werner Herzog: o cinema como realidade. São Paulo: Estação Liberdade, 1991.

SABOYA, M. C. L. (2001). The Mystery of Kaspar Hauser (1812?-1833): A Psychosocial Approach. Psicologia USP, 12 (2), 105-116.

E-Pipoca. O Enigma de Kaspar Hauser (1974) - e-Pipoca. Disponível em e-.br. Acesso em 13/06/08.

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