FACULDADE DE LETRAS



José Maria da Cunha Osório Fernandes Basto2? Ciclo de Estudos em Mestrado em Estudos Anglo-Americanos – Variante de Tradu??o Literária Queimando os Nossos Barcos – Nossa Senhora da Desmitologiza??o – Análise e Tradu??o de três Short Stories de Angela Carter2012Orientador: Gualter CunhaCoorientador:Classifica??o: Ciclo de estudos:Disserta??o/relatório/Projeto/IPP: Vers?o definitiva Faculdade de Letras da Universidade do PortoDisserta??o Final de MestradoJosé Maria da Cunha Osório Fernandes BastoQueimando os Nossos Barcos – Nossa Senhora da Desmitologiza??o – Análise e Tradu??o de três Short Stories de Angela Carter114300228600Angela Carter, 1940 - 1992ResumoEsta disserta??o de mestrado trata essencialmente da tradu??o de três short stories de Angela Carter, incluídas na colet?nea “Burning Your Boats” e dos dilemas com que me deparei como tradutor, designadamente, quando o texto de partida reflete a vis?o particular que esta autora tem dos géneros literários, por um lado, e do feminismo, muito em voga na altura em que estas três histórias foram escritas, por o tradutor, “transportei”, de um modo o mais fiel possível, para a língua e cultura portuguesas a fic??o carteriana, tendo sempre presente o papel do tradutor como “ponte” de culturas. Abstract This M. A. dissertation deals in essence with the translation of three short stories by Angela Carter, included in “Burning Your Boats, Angela Carter Collected Stories” and the decisions I faced as a translator, especially when the source text carries Carter’s very particular view of literary genders, on one hand, and feminism, much accepted among the western cultural elite by the time these stories were written, on the other.As a translator, I “transported” to the Portuguese language and culture as faithfully as possible Carter’s fiction, not losing sight of the translator’s role as a “bridge” between cultures.SumárioO tradutor – intermediário de línguas e culturas.Brevíssima justifica??o da escolha destes três contos.Queimando os Nossos Barcos – Nossa Senhora da Desmitologiza??o: análise de três Short Stories de Angela Carter.Conclus?o.Tradu??es.O Tradutor – Intermediário de Línguas e CulturasA tradu??o, qualquer que ela seja, implica a no??o de transporte, movimento, transferência. Aliás, o termo inglês “translation” significa “tradu??o” mas também “transla??o”. Qualquer modelo de comunica??o é, ao mesmo tempo, um modelo de transla??o, de uma transferência, vertical, ou horizontal, de significado.A palavra em grego moderno para “transporte”, “metafora” é equivalente ao latim “translatio” e ambas as palavras significam “levar de um lado para outro” – transporte. Nesta ace??o, metáfora é tradu??o, transporte. A no??o de metáfora inclui a tradu??o, mas a no??o de tradu??o também inclui a metáfora. A tradu??o é uma atividade de cria??o de metáforas, ou seja, de diferen?as. Susan Sontag, no Suplemento Literário do Times de 13 de junho de 2003, afirmou que a tradu??o é o sistema circulatório das literaturas do mundo.Muito do que se escreveu sobre a tradu??o tem a ver com a ética, o respeito pela diferen?a e da medida em que a nossa perce??o do humano resulta enriquecida da consciência da multiplicidade linguística.Os estudos de tradu??o s?o muito recentes, pois datam mais ou menos da década de 70 do séc. XX, altura em que se come?a a reconhecer a import?ncia da tradu??o enquanto fenómeno cultural. Nesta década houve a perce??o da centralidade da tradu??o na história das culturas. Verificou-se isto com, por exemplo, a apreens?o que a civiliza??o romana fez da cultura grega. Nesta ace??o, tradu??o é a passagem de um legado cultural para outro, há um ingrediente de transforma??o na tradu??o. Traduzir um texto literário é traduzir n?o só a literatura de um país, mas engloba também a respetiva cultura, pelo que o tradutor deve ser bilingue e bicultural, pois t?o importante como a língua é a cultura. Se uma obra n?o está traduzida, é como se n?o existisse na cultura de chegada. O tradutor funciona num espa?o de fronteira – a liminaridade. Ao traduzir devemos ser capazes de preservar a coerência textual, ou seja, manter o papel fundamental de uma dada express?o.Traduzir é sempre algo de subjetivo. Cada tradutor tem o seu ideoleto próprio, sendo o tradutor também um escritor. Traduzir é uma atividade central e instrutiva e o tradutor literário tem que se defrontar com a tríade de géneros literários: poesia, drama, prosa.A constru??o destes géneros literários foi informada historicamente por juízos de valor, refratados através de preconceitos de classe, género, na??o e ra?a, e a escrita de mulheres, ou as literaturas pós-coloniais (literaturas africanas, literaturas indianas) s?o exemplos dessa constru??o de géneros literários informados por juízos de valor. A tradu??o teve grande import?ncia na dissemina??o dos vários estilos literários e na informa??o dos vários géneros literários que, de outro modo, ficariam para sempre confinados a uma determinada regi?o geográfica, classe social, género, ou mesmo até, grupo étnico. Traduzir poesia, drama ou prosa – por exemplo, Shakespeare, Blake, Conrad, Melville, Angela Carter, o Cor?o, a Bíblia, os Contos das Mil e Uma Noites, ou até textos mais ideológicos – apresenta desafios próprios, inerentes a cada um dos autores, às obras em causa, bem como ao estilo de quem os vai “transportar” para a língua e cultura de chegada e ainda à época e classe social a que as obras dizem respeito. Horácio, na sua Ars Poetica afirmava que o poeta que recorre à tradu??o deveria evitar uma determinada opera??o, designadamente uma tradu??o palavra por palavra, para escrever poesia distintiva. Aqui a fun??o da tradu??o é construir autoria poética. Schleiermacher (1813:43) preconizava o literalismo “palavra por palavra” em linguagem elevada (n?o coloquial) para produzir um efeito de alteridade (“foreigness”) na tradu??o. Para ele, quanto mais de perto a tradu??o seguir o original, mais estrangeira parecerá ao leitor. As opera??es textuais produziam efeitos cognitivos e serviam fun??es culturais e políticas, que eram descritas e julgadas de acordo com valores que eram literários e nacionalistas, visando ajudar a construir uma língua e literatura alem?s durante as guerras napoleónicas. Embora a Teoria da Tradu??o, tal como a conhecemos hoje, n?o existisse na antiguidade clássica, a verdade é que na época romana, os oradores, como Cícero, Plínio o Jovem e Quintiliano, consideravam a tradu??o como um exercício pedagógico para aqueles que aspiravam ascender à profiss?o de oradores. Os textos que d?o corpo à nossa cultura ocidental foram traduzidos do grego e apropriados pelos romanos. A educa??o romana era bilingue e os alunos eram ensinados tanto em grego como em latim, sendo os exercícios de tradu??o implementados na aprendizagem da língua e no estudo da literatura.As principais tendências em Teoria da Tradu??o encontram-se baseadas nas tradi??es literárias e filosóficas alem?s. Johann Wolfgang von Goethe (1819:64), por exemplo, considerava que havia três tipos, ou épocas de tradu??o: a primeira, dá-nos a conhecer o país estrangeiro, nos nossos próprios termos e a tradu??o em prosa é a que melhor serve este propósito. Neutraliza qualquer arte poética e reduz a águas calmas as ondas exuberantes do entusiasmo poético.No segundo tipo, ou época de tradu??o, segundo ele, o tradutor atreve-se a transportar-se para a situa??o estrangeira, mas, na verdade, apenas se apropria da ideia estrangeira e representa-a como se fosse sua. Chama a esta época parodística (imitativa).Finalmente, há uma terceira época, ou um terceiro tipo de tradu??o, que Goethe considera ser o mais elevado dos três, em que o objetivo é atingir a perfeita identidade com o original, para que um n?o exista em vez do outro, e sim, em lugar do outro. Ezra Pound (1929:86), já no séc. XX, dizia que ou o tradutor faz uma tradu??o interpretativa, ou “recria”. (The Translation Studies Reader).Para John Dryden (1680: 38) a tradu??o pode ser reduzida a estes três títulos: metáfrase, que consiste em verter um autor palavra por palavra, linha por linha, de uma língua para outra; paráfrase, ou tradu??o com latitude, em que o autor é mantido à vista pelo tradutor, para que este n?o se perca. As suas palavras n?o s?o t?o estritamente seguidas como o seu sentido e este pode ser amplificado, mas n?o alterado. O terceiro título é a imita??o, em que o tradutor assume a liberdade, n?o só de variar as palavras e o sentido, mas de os abandonar ou renunciar quando julgar apropriado.Para Friedrich Schleiermacher, há uma considerável latitude que a tradu??o conceptual pode ter. A tradu??o é uma forma de unir homens separados pelas diferentes latitudes e longitudes, por diferentes séculos, por diferentes classes sociais e até por diferentes ideoletos. Temos até de traduzir as nossas próprias palavras, depois de algum tempo.A nossa produ??o discursiva também tem a sua historicidade. Anos depois, já n?o há o mesmo nexo entre o que queremos e o que podemos dizer. Hoje em dia a tradu??o serve para nos podermos entender nos negócios mas, por exemplo, no tempo de Schleiermacher dir-se-ia que a tradu??o serve para transplantar os conhecimentos científicos para outra língua e também para os negócios.Para este autor, diferentemente de Dryden, só há fundamentalmente dois métodos de tradu??o: o tradutor, ou deixa o autor tanto quanto possível em paz e desloca o leitor na sua dire??o, ou deixa o leitor em paz tanto quanto possível e desloca o escritor em sua dire??o.A palavra-chave aqui é “desloca??o”. Aquilo que procurei fazer, nesta ace??o, foi “deslocar”, “transportar” o texto, tal como ele foi escrito por Angela Carter em dire??o ao leitor português, procurando respeitar as suas idiossincrasias linguísticas, mas também culturais e sociais.Para Schleiermacher a tarefa do verdadeiro tradutor é “convocar” o autor estrangeiro à presen?a do leitor e mostrar a obra, tal como ela seria se tivesse sido escrita na língua do leitor. Uma das situa??es com que me deparei ao traduzir Angela Carter foi a inexistência em português de socioletos que correspondessem às mesmas express?es usadas na língua de partida. Estou a lembrar-me, por exemplo, da frase com que come?a o conto “O Filho da Cozinha” – “born in a trunk” é uma express?o que, em minha opini?o, n?o tem uma tradu??o, digamos, metafrásica, pelo que recorri à express?o “nascido em palco”, que se aproxima mais daquilo que a autora quis dizer, do que, por exemplo, “nascido num baú”.Na tradi??o literária e filosófica alem? a tradu??o era vista como uma interpreta??o que necessariamente reconstitui e transforma o texto estrangeiro. Uma tradu??o participa na sobrevida de um texto estrangeiro representando uma interpreta??o informada por uma história da rece??o. Esta informa??o faz mais do que retransmitir mensagens; recria os valores que o texto estrangeiro acumula com o tempo. E desde que as diferen?as linguísticas deste texto estejam assinaladas na língua de chegada (“translating language”), elas acabam por transmitir um conceito filosófico de “língua pura”, uma sensa??o de como as diferen?as “mutuamente exclusivas” entre línguas coexistem com inten??es de comunicar e de referir, que s?o complementares, inten??es essas que s?o descarriladas pelas diferen?as. Para Walter Benjamin (Venuti: 79), a tarefa do tradutor consiste em encontrar esse efeito pretendido (Intention) sobre a língua para a qual está a traduzir que produz nela o eco do original. ? um aspeto da tradu??o que basicamente a diferencia da obra do poeta, porque o esfor?o deste último nunca se dirige à língua como tal, à sua totalidade, mas única e imediatamente a aspetos linguísticos contextuais específicos, enquanto que o trabalho do tradutor se centra na língua na sua globalidade. Para Benjamin, a tradu??o oferece uma vis?o utópica da “harmonia” linguística.Ao contrário de uma obra literária, a tradu??o n?o se encontra no centro da floresta da língua, mas no exterior, virada para ela. Grita para a floresta – mas n?o entra – em dire??o àquele ponto onde o eco pode dar na sua própria língua a reverbera??o da obra na língua estrangeira. O ato de traduzir alarga n?o só as fronteiras culturais, mas também as linguísticas, tornando-se uma for?a revitalizadora e inovadora da língua. Rudolf Pannwitz, citado por Benjamin (1923: 82), criticava os tradutores alem?es do séc. XVIII/XIX, que achava que reverenciavam o uso da sua própria língua, em vez do espírito da obra estrangeira: “the basic error of the translator is that he preserves the state in which his own language happens to be, instead of allowing his language to be powerfully affected by the foreign tongue. Particularly when translating from a language very remote from his own he must go back to the primal elements of language itself and penetrate to the point where work, image and tone converge. He must expand and deepen his language by means of the foreign language.” Isto só é possível se se levar a língua suficientemente a sério.Para Jorge Luis Borges (1935: 96), mais importante do que os modos gerais de traduzir é o tradutor e os seus hábitos literários. A este propósito é mencionada a correspondência entre dois tradutores – Newman e Arnold, na qual se discute dois modos de traduzir: o modo literal, por um lado, e a elimina??o dos detalhes que distraem, por outro. Aquele providencia pequenas surpresas continuamente; o último proporciona o encanto da uniformidade e da seriedade.Mais recentemente, Vladimir Nabokov (1955: 120) postula que quem desejar traduzir uma obra-prima literária para outra língua, só tem apenas que cumprir um dever, reproduzir com absoluta exatid?o o texto completo e nada mais do que o texto; tudo o resto é apenas uma imita??o, uma adapta??o ou uma paródia.Jean-Paul Vinay e Jean Darbelnet (1958/1995: 128) estabelecem sete diferentes métodos ou procedimentos de tradu??o, que podem ser usados isoladamente, ou combinados. Come?am por distinguir dois métodos gerais de tradu??o – tradu??o direta ou literal e tradu??o oblíqua. Em alguns casos, é possível transpor a mensagem na língua de origem elemento por elemento para a língua-alvo, mas noutros, devido a diferen?as estruturais ou metalinguísticas, certos efeitos estilísticos n?o podem ser transpostos para a língua-alvo, sem perturbar a ordem sintática, ou até o léxico. Deparei-me com situa??es deste género em “Nossa Senhora do Massacre”, onde, logo na primeira linha, a express?o “my name is neither here nor there” n?o pode ter uma tradu??o direta. Mais adiante, na página 11 da tradu??o, optei por uma tradu??o mais oblíqua para a express?o “held a parley”, cujo sentido em inglês é um pouco mais lato do que em português, “realizaram conversa??es”, pois, “parley” pressup?e diferen?as de opini?o. Na tradu??o direta distinguem o empréstimo, que ocorre quando o léxico da língua de chegada n?o oferece recursos que permitam a substitui??o por outros já existentes na língua de chegada. Ocorreu-me isto com a express?o “croquembouchar e Mille-feuilleá-la”, bem como com todos os termos franceses ou afrancesados que Angela Carter usa em “O Filho da Cozinha”.A tradu??o literal é um outro tipo de tradu??o direta e foi aquela a que recorri para o corpo da tradu??o destes três contos.A transposi??o é um método oblíquo que envolve a substitui??o de uma classe de palavras por outra. Recorri a este método na tradu??o de “The Fall River Axe Murders”. Logo no segundo parágrafo, o original “Hot, hot, hot”, que é a repeti??o de um adjetivo, foi traduzido para “Calor, calor, calor”, que é a repeti??o de um nome.Um outro método oblíquo a que recorri, para utilizar a terminologia de Vinay e de Darbelnet, foi a modula??o, que consiste na varia??o da forma da mensagem, que se justifica quando, apesar de gramaticalmente correta na língua de chegada, uma express?o resulta desadequada. ? o caso de “flying in the face of nature”, que traduzi para “enfrentar galhardamente a natureza” (página 1 de “Os Assassínios de Fall River”). Outro caso é a express?o “sleep through anything”, que traduzi para “nada faz acordar a rapariga” (página 4).Recorri também à equivalência, que consiste na utiliza??o de uma express?o equivalente, quando dois textos utilizam métodos estilísticos e estruturais completamente diferentes. Em tais casos, este método produz textos equivalentes, como é o caso de “voo-croo”, por exemplo, que traduzi para “crrrruuu-crrruuu”.O último método referido por Vinay e Darbelnet é a adapta??o, de que a express?o “JesusMaryandJoseph” é um exemplo. O seu equivalente em português é “Minha Nossa Senhora!”.Katharina Reiss (1971: 168) define a tradu??o interlinguística como um processo de comunica??o bilingue mediado, normalmente dirigido à produ??o de um texto na língua-alvo que seja funcionalmente equivalente a um texto na língua de origem. Há dois “media”: a língua de origem e a língua-alvo, por um lado, e o tradutor, que se torna um emissor secundário, por outro. Por conseguinte, traduzir é uma comunica??o secundária. O uso de duas línguas naturais mais um tradutor implica que a mensagem se altere durante o processo comunicativo, donde, a comunica??o ideal é uma coisa rara, pois, mesmo quando a comunica??o se faz numa só língua, há sempre diferen?as entre o emissor e o recetor que a perturbam.Para terminar, diria que a tradu??o atingiu hoje em dia um patamar de autoridade institucional que se manifesta na quantidade de programas de estágio para tradutores existente e na quantidade de trabalhos académicos que s?o publicados. Para além disto, a tradu??o assume, no mundo contempor?neo, um papel pacificador, de criador de pontos de contato entre os povos, “transportando” cren?as, conceitos, filosofias e, no caso destas tradu??es, também movimentos literários que, de outro modo, estariam condenados ao isolamento.Gostaria, por último, de citar um artigo de opini?o, publicado num jornal diário que, a meu ver, relaciona a tradu??o com a atualidade que vivemos nesta Europa mergulhada numa profunda crise económica, financeira, mas também de identidade: “O mesmo conceito, expresso com palavras diferentes, em línguas diferentes, gera emo??es diferentes. Na verdade, a indiferen?a da Alemanha perante a dor infligida na Grécia está inscrita na sua língua. Em inglês, como em várias outras línguas europeias, o termo austeridade deriva do grego austeros, que significa duro e severo, enquanto para os alem?es é apenas um plano tecnocrático de poupan?a, um Sparprogramme”. Campanella, Edoardo (2012) “Crise europeia das línguas”. Público, 6 de agosto. Brevíssima Justifica??o da Escolha Destes Três ContosA tradu??o destes três textos para o português colocou-me o desafio de dar a conhecer uma autora que, tendo em conta a sua relativamente curta vida literária, foi das mais profícuas escritoras inglesas da segunda metade do século o disse atrás, traduzir implica o conceito de “metáfora”, “transporte”. Ora, tratando-se de uma autora, ao mesmo tempo feminista e pós-modernista, ainda para mais pertencendo a uma cultura bastante diferente da portuguesa, que é, ainda hoje em dia, profundamente religiosa e que ainda em largos setores da sociedade relega a mulher para a quase subalternidade, o desafio colocado a este “medium” foi o de transportar com a maior fidelidade possível todo o conteúdo literário, mas também o ideológico, tornando-o “apropriável” para um público português.A escolha de Angela Carter para o “transporte” para língua portuguesa (que eu tenha conhecimento, estes contos n?o se encontram traduzidos para o português do Brasil – que é, por enquanto, a outra referência cultural da língua portuguesa), de entre os vários autores com que contactei ao longo deste Mestrado, ficou a dever-se principalmente à leitura e posterior tradu??o de um conto, “The Kiss”, integrado nesta colet?nea (Burning Your Boats, Collected Stories With an Introduction by Salman Rushdie, Vintage Books, London 2006). A sua linguagem pitoresca, mas por vezes crua permitiu-me tomar contacto com uma escrita em que alguns conceitos, designadamente, de mulher, feminilidade, maternidade, comida e, até, espiritualidade, s?o radicalmente diferentes daquilo a que se convencionou chamar “mainstream”. Diria que em Angela Carter nem tudo o que parece é e tudo o que é, é-o de maneiras bastante diferentes.Queimando os Nossos Barcos – Nossa Senhora da Desmitologiza??o: Uma Análise de Três Short Stories de Angela Carter.“So the soul, that drop, that rayOf the clear fountain of eternal day,(Could it within the human flower be seen,)? ? Remembering still its former height,? ? Shuns the sweet leaves, and blossoms green,? ? And, recollecting its own light,Does, in its pure and circling thoughts, expressThe greater heaven in an heaven less.”Parte de um poema de Andrew Marvell, lido por Salman Rushdie no funeral de Angela Carter.Introdu??oGostaria de come?ar com uma curiosidade acerca do nome da escritora que serve de tema a esta disserta??o: Angela Stalker Carter – que nome, para uma autora que, ao longo da sua obra persegue o mito, o desconstrói, desmitologiza e nos arrasta para uma escrita que alguns críticos chamam de pós-modernista, pós-industrial ou ainda enquadram no realismo mágico! Carter nasceu subversiva, afirma Margaret Atwood (1992), citada por Linden Peach (Peach, Linden: 9).Nesta disserta??o procurarei tocar em alguns dos aspetos gerais que mais chamaram a minha aten??o quando li e analisei as obras cuja tradu??o apresento e que se verificam, embora com preponder?ncias variáveis, em cada uma delas.As “short stories” que traduzi foram escolhidas de uma colet?nea publicada postumamente, denominada “Burning Your Boats”, express?o inglesa que significa que, depois de se ter dito ou feito algo, n?o se pode voltar atrás; algo de definitivo. Mais exatamente, escolhi traduzir os contos: “Our Lady of the Massacre”, “The Kitchen Child” e “The Fall River Axe Murders”, pelos quais perpassa esse tom de definitivo que foi, nestes três contos, um ato cometido por, ou sobre as protagonistas, todas mulheres, cada uma vítima do preconceito da sociedade da época em que se situa cada conto. Cada um é, à sua maneira, subversivo relativamente ao estilo literário em voga na época em que foi escrito; iconoclasta, na medida em que destrói certas imagens pré-concebidas, “dessacralizando” o sagrado – veja-se o título da primeira história: “Nossa Senhora do Massacre”; “desmitologizante”, na medida em que questiona os mitos – a própria Carter, numa entrevista a Anna Katsavos diz a certa altura que está a tentar descobrir o significado de certas imagens, ou certas configura??es de imagens na nossa sociedade, na nossa cultura – e questioná-las, subvertendo-as – Katsavos, Anna (1994: 11). Cada conto é revelador de uma imagem da figura materna, por vezes antagónica daquela que é tida como mais convencional – em “Nossa Senhora do Massacre” uma das m?es (há uma m?o-cheia de figuras maternas), a do Lancashire, chega a ser descrita de uma maneira que toca o chamado realismo mágico, pois revela poderes premonitórios, para além de se dedicar a atividades mais ligadas ao ocultismo e à bruxaria na Inglaterra daquele século: “Que as estrelas que consultara em nome da sua filha querida, como gostava de me chamar, lhe garantiam que eu iria numa longa viagem sobre o Oceano para o Novo Mundo e aí daria à luz uma crian?a aben?oada, cujos avós nunca haviam viajado na Arca de Noé. E, das suas leituras, que haviam consumido os seus olhos, concluíra que aqueles ‘filhos vermelhos do deserto’ n?o podiam ser sen?o a Tribo Perdida de Israel, por isso, shalom, ensinou-me ela, além das palavras para “amor” e “fome” e muito mais de que me esqueci, para que pudesse falar com o meu marido quando eu o encontrasse. E se eu n?o fosse uma rapariga sensata, tinha-me dado a volta à cabe?a com todos aqueles disparates, pois teimava que as estrelas previam que eu viria a ser nada menos do que Nossa Senhora dos Homens Vermelhos.”Em cada um destes contos e, por vezes, nos três, há símbolos com que nos deparamos recorrentemente, como é o caso dos relógios: em “Nossa Senhora do Massacre” Sal rouba o relógio a um vereador da c?mara e é castigada e deportada também por isso, mas n?o só; é o despeda?ar do relógio do inglês que, vem a saber-se, é o governador da Virgínia, que atua como mau presságio relativamente aos acontecimentos subsequentes. Em “O Filho da Cozinha” um soufflé de lagosta demora “vinte e cinco minutos em forno médio.” Finalmente, em “Os Assassínios de Fall River”, os vários relógios est?o à beira de dar a última badalada, o último “tac” naquele dia fatídico. Mas existem outros símbolos: a lua e o sangue, símbolos óbvios da sexualidade feminina, mas também da transforma??o em lobo de Lizzie; a comida, que atravessa todos os três contos. O ato de comer funciona também de maneira simbólica nas três histórias, assim como o Sol, a no??o de pecado mortal, os autómatos, Lizzie Borden, só para enumerar alguns dos símbolos presentes.O desejo reprimido é também uma constante, tanto em “Nossa Senhora do Massacre”, em que Sal, quando por fim consegue a sua liberta??o sexual, acaba por ser recapturada e sujeita às conven??es morais da época, como em “O Filho da Cozinha”, em que é óbvia a repress?o sexual a que aquela sociedade sujeita a cozinheira, como ainda, e de um modo mais acentuado, em “Os Assassínios de Fall River”.Procurarei tocar também no tema da comida como ponto aglutinador nestas três short stories, sem esquecer que se pode comer ou ser-se comido(a). “Comida” leva, por exemplo, ao canibalismo, patente em “Nossa Senhora do Massacre” e apenas um bocadinho menos óbvio em “Os Assassínios de Fall River”, mas ausente em “O Filho da Cozinha”.Tentarei abordar as representa??es grotescas do feminino, designadamente, as que nos s?o dadas em “O Filho da Cozinha”, mas principalmente, em “Os Assassínios de Fall River”, já que em “Nossa Senhora do Massacre”, como o tema, penso eu, é uma crítica aos valores europeus colonialistas, a figura feminina é-nos apresentada de uma forma, diria eu, “pré-rafaelita”, no sentido em que as mulheres daquela tribo personificavam a pureza e a bondade.A feminilidade e o aspeto físico das personagens de Angela Carter também refletem o modo como os estereótipos femininos s?o desmitologizados. Veja-se o primeiro retrato físico da cozinheira de “O Filho da Cozinha”: “abanou as suas amplas ancas”, ou, mais adiante, “Devido à corpulência da minha m?e, que é imensa, ela é redonda como o “o” em “obesa”, e à grande lealdade e afei??o que o pessoal da cozinha lhe dispensa, a governanta nada sabia da minha iminência”; veja-se, ainda a grotesca que é Abby Durfey Borden, ou a imagem daquelas fotos que Lizzie Borden contempla...Finalmente, há uma quest?o que impregna toda a obra de Carter de um modo mais geral, e estes três contos em particular, que é a quest?o da classe e género e de que modo nos é dado a ver uma feminista (ou antifeminista?) numa certa luta de classes que resultou de uma Inglaterra pós-colonial e no surgimento de uma corrente literária, o pós-modernismo. A luta de classes é mais visível em “Os Assassínios de Fall River”, na maneira como é descrita a massa de trabalhadores que se dirige para as fábricas, com as suas roupas excessivas e odores, no modo como os Borden veem os estranhos – s?o gente “escura”, portugueses, irlandeses ou canadianos – e também no modo como Lizzie (n?o) se integra (nem é integrada completamente) na alta sociedade de Fall River. O conflito de classes também é visível em “O Filho da Cozinha”, na descri??o que o pessoal da casa faz da aristocracia que aparece de vez em quando na altura das ca?adas ao Galo do Mato. Esta história, aliás, ataca com humor mordaz o modo como as mulheres, especialmente se consideradas de um meio inferior, s?o “objetificadas” pelo homem, sendo a “superioridade” masculina ridicularizada na figura patética do conde.Procurarei abordar os tópicos acima mencionados no conjunto das três histórias, vistas estas no contexto mais geral da obra de Angela Carter.Desmitologiza??o e Subvers?oParticularmente interessante é “Os Assassínios de Fall River”, que descreve os últimos dias da família de Lizzie Borden. A história toma a forma de uma bolha de azeite subindo pela água, até que, ao chegar à superfície, rebenta e liberta a tens?o de uma só vez, acabando no momento em que Lizzie Borden acorda, no dia dos assassínios. Vandermeer, Jeff (2011), The Infernal Desire Machines of Angela Carter. Tallahassee, Florida, Cheeky Frawg Books. Em “Nossa Senhora do Massacre”, “O Filho da Cozinha” e “Os Assassínios de Fall River”, Angela Carter abandona um pouco, se n?o totalmente, os mundos fantásticos de “Black Venus” (“A Vénus Negra”) e “American Ghosts and Old World Wonders”. Nestas três obras Carter vira-se para o real, para o retrato, ao invés da narrativa. As melhores pe?as destes últimos livros s?o retratos – da jovem negra Jeanne Duval, de Baudelaire, de Edgar Allan Poe e, em duas histórias, de Lizzie Borden muito antes de ela “pegar num machado”, e da mesma Lizzie no dia dos crimes, um dia descrito com precis?o e aten??o ao pormenor l?nguidos - as consequências das roupas pesadas numa onda de calor, de comer peixe requentado, desempenham ambas um papel. Para lá do hiper-realismo, existe, contudo, um eco de “The Bloody Chamber”, pois o ato de Lizzie é um ato de sangue e, para além disso, está com o período. O seu sangue vital flui, enquanto o anjo da morte aguarda pousado num telhado ali perto. (Mais uma vez, como nas histórias de lobos, fica a ansiar-se por mais, pela romance de Lizzie Borden que n?o poderemos ter.)Na opini?o de Rushdie (Rushdie, Salman Prefácio a Burning Your Boats, Carter, Angela (2006), Collected Stories. London, Vintage Books.), Carter desconstrói e sabota Baudelaire, Poe, Shakespeare onírico, Hollywood. Pega no que conhecemos e, depois de o desmontar, volta a construí-lo no seu estilo picante e cortês; “her words are new and not new, like our own.” Linden Peach (Peach, Linden (1998), Angela Carter. New York, MacMillan Modern Novelists.) afirma que existe uma natureza subversiva e contenciosa na obra de Angela Carter, que é impossível menosprezar, mas tem de se evitar a colagem de etiquetas, tais como, “realismo mágico” à sua escrita n?o-realista e filosófica que explora as “realidades” em que muitos de nós vivemos. Para Linden Peach há necessidade de reconhecer o modo como a obra de Carter desconstrói os processos que produzem as estruturas sociais e os significados partilhados. Isto nota-se, por exemplo, na sua recorrente desmitologiza??o da figura materna e no modo como a manifesta??o do corpo feminino na sua obra perturba a constru??o social das mulheres como Mulher.A Figura MaternaCarter desmitologiza a idealiza??o da figura materna, o que se verifica, por exemplo, em “O Filho da Cozinha”, em “Nossa Senhora do Massacre” e, um pouco também em “Os Assassínios de Fall River”.A obra de Carter inclui regularmente descri??es de mulheres, embora irónicas ou parodísticas que atravessam representa??es míticas convencionais. ? crítica de no??es como o Eterno Feminino, a m?e benevolente ou destruidora (Abby, a madrasta de Lizzie Borden, ou a “m?e” índia algonquina de “Nossa Senhora do Massacre”, que é ambas), a virgem e prostituta, que é o caso da protagonista desta última short story, que come?a a narrativa como virgem, torna-se prostituta involuntariamente, acaba por alcan?ar a reden??o numa terra chamada Virgínia; é destruída pela sua “m?e” adotiva e acaba por ser de novo castigada com a acusa??o de, precisamente, prostitui??o.A Perda da M?e“Nos romances de Carter de 1960, a perda de uma Inglaterra industrializada e imperialista, como a perda de uma m?e para uma crian?a, é experienciada n?o só como a perda de algo. ? experienciada também como a presen?a de algo mais, a presen?a de algo tangível e assustador.” Peach, Linden (1998), “Introduction”, in Peach, Linden, Angela Carter. New York, MacMillan Modern Novelists, 15. (tradu??o minha)Dada a natureza da obra de Carter, adequa-se discutir a sua perce??o da Inglaterra do pós-guerra em termos de psicanálise, diz Linden Peach, em Angela Carter. Todos os seus romances, designadamente, estas três short stories demonstram um interesse, quanto mais n?o seja, cético relativamente à psicanálise e às maneiras como tem influenciado o nosso pensamento acerca de nós próprios, das nossas identidades, da nossa sexualidade e das nossas rela??es com os outros.Angela Carter acaba por fazer colapsar o mundo real dos sentidos e o mundo de fantasia um sobre o outro. Mas há mais uma raz?o para que a sensa??o de perda que Carter experimentou relativamente à Inglaterra do pós-guerra possa ser analisada em termos de experiência que uma crian?a pode ter da perda da sua m?e.Ao mesmo tempo que há uma ausência de m?es na fic??o carteriana, exce??o feita a dois destes três contos, que têm m?es como personagens centrais, há uma série de personagens que experimentam a perda das suas m?es. Há uma liga??o que se estabelece entre a ausência de figuras maternas nos romances de Carter, a predomin?ncia de personagens que perderam as m?es e um contínuo interesse nas primeiras romances pela melancolia.Retratos da Figura Materna nestas Três Short Stories:Em “Nossa Senhora do Massacre”, logo na página 1, encontramos um enquadramento da situa??o inicial de Sal: “o meu pai [...]e a minha m?e [...] morreram os dois de Peste [...] pelos meus nove ou dez anos fizeram-me criada para todo o servi?o de uma velha que vivia na nossa paróquia.” Segue-se uma referência à Bíblia, mais exatamente, ao Génesis. Carter reescreve o mito do ?den e também, penso eu, do Apocalipse, pois a terra para onde Sal vai – e aqui há uma curiosa invers?o do género – na profecia da m?e do Lancashire, chama-se Virgínia, que é comparada ao Paraíso e, quando o mundo acabar, os que merecerem ir?o para o Céu “e o meu querido menino sentar-se-á, sorridente acima de tudo com uma coroa dourada na cabe?a.” No final da história, tal como no Génesis, também Sal é expulsa do Paraíso, por causa do pecado que cometeu.A Queda n?o é só da Virgínia, que é vista como um ?den, mas dos mitos culturais que contribuíram para a opress?o intelectual, emocional e sexual da mulher. Mais tarde, a “m?e” aparece associada a canibalismo, mas para o desmitologizar. Sal reflete sobre o canibalismo dos índios – um mito cultural que lhe fora imposto no Velho Mundo, e que lhe foi desmentido pela sua “m?e” índia – e, num diálogo com um Ministro Anglicano, chega mesmo a comparar a Missa a uma espécie de “refei??o sacramental”. Esta “m?e” índia é uma m?e “Rousseauniana”, boa, quase como um Anjo, embora seja ela quem acaba por expulsar Sal daquele “?den”, acusando-a de trai??o. Aliás, em “Nossa Senhora do Massacre” há muito poucas mulheres referidas positivamente e esta é uma delas – a outra é a m?e que ela deixou no Lancashire e que a preparou, sem o saber verdadeiramente, para a vida entre os índios (a palavra “índio” é mais uma conven??o europeia, mas nesta, Angela Carter n?o toca, curiosamente). No final da história há outra figura materna que aparece, mas penso que representa o próprio preconceito, a Institui??o – é a mulher de um Ministro Anglicano – que, n?o podendo ter filhos, acaba por adotar o filho de Sal e de Nogueira Alta.A tribo entre a qual Sal vive é uma sociedade patriarcal, mas em que as mulheres s?o quem detém o poder real – s?o elas que tratam da agricultura que dá sustento à tribo e os homens dedicam-se a outras “tontices”: “E se é que tenho algo a apontar a esta tribo é que os homens n?o tinham nada a ver com esta agricultura, apesar de ser trabalho pesado, mas iam à pesca no riacho, ou iam perseguir veados, ou metiam-se em dan?as e outras tontices que tais, para fazer crescer o milho.” E acrescenta: : “N?o há mal nenhum nisso e assim eles n?o estorvam.” Vejo aqui um reflexo da inf?ncia de Angela Carter que, quando era crian?a, foi viver com a avó materna, que tinha uma personalidade muito forte e tinha um padr?o de vida matriarcal.Tabus (Desmitologizados)Inicia-se nesta altura da história uma conversa entre m?e e filha que novamente “desmitologiza” o sexo e, de um modo mais geral, a posi??o da mulher nas duas sociedades aqui postas em confronto: vender o sexo era, na Inglaterra daquele século, uma coisa muito mal vista pela sociedade, ao passo que, na Virgínia n?o era preciso uma mulher vender o sexo, pois a liberdade sexual era uma coisa perfeitamente natural. “Quanto a prostituir-me, ficou muito surpreendida de ouvir dizer que os homens ingleses se davam ao trabalho de pagar pelo que eu tinha para vender, pois as índias quando o oferecem, fazem-no de gra?a e, quanto a ter perdido a minha virgindade, ri-se e diz: “se n?o fosses boa, ninguém te tinha querido.” Outro “tabu” que é tocado nesta história é a homossexualidade da “m?e”, (“n?o tendo, diz-me ela com uma piscadela, muito amor pelo sexo deles e sim muita inclina??o pelo seu próprio”) sem que no entanto a autora elabore muito acerca do modo como aquela sociedade índia trata convencionalmente este assunto. Após um diálogo entre Sal e a m?e, em que s?o confrontadas duas formas de casamento, prevalecem a moral e os bons costumes crist?os da monogamia e a “m?e” de Sal, verificando que n?o pode disputar com Nogueira Alta o seu amor, acaba por ceder “e diz que está demasiado velha e teimosa para pensar em casamento e além disso, o meu rapaz está t?o apaixonado por mim, que casará comigo nos meus próprios termos, à maneira inglesa.”Na página 12 da tradu??o que apresento, encontramos uma nova descri??o da figura materna. Agora Sal já n?o é a “Virgem Maria”, mas sim “Maria Madalena, a prostituta arrependida”.Os SímbolosPodemos encontrar um conjunto de características góticas nestas três histórias, como, por exemplo, a presen?a de símbolos, à volta dos quais Angela Carter constrói as respetivas narrativas, designadamente em “Os Assassínios de Fall River”. Um desses símbolos é o anel de Lizzie Borden no dedo do pai: possível incesto escondido debaixo do casaco (uma possível raz?o pela qual ela acaba por matá-lo também). As roupas (o modo como as pessoas se vestem, inadequado para aquele clima) s?o também um símbolo recorrente na história – quer Lizzie, quer os da casa, quer as pessoas que v?o para o trabalho saem à rua “bem embrulhados em roupa interior de flanela, camisas de linho, camisolas interiores e casacos e cal?as de l? grossa e garrotam-se com gravatas, também, acham que é t?o virtuoso estar-se desconfortável”. Aqui as roupas metaforizam o pecado, pois os índios nos dias de calor, tiravam as peles de veado e limitavam-se a sentar-se nos charcos com a água até ao pesco?o, ao contrário do que faziam aqueles “santos autoflageladores”.A existência de chaves, quer no conto “The Bloody Chamber”, integrado nesta colet?nea (e onde servem para guardar segredos), quer na casa dos Borden também é um símbolo de pecado, segredo, morte. Em “The Bloody Chamber” as chaves s?o para coisas proibidas, segredos, mas, em ambas as circunst?ncias, as chaves também envolvem sangue – menstrual e de morte.A comida é também um símbolo e ponto aglutinador nestas três short stories. Por exemplo, toda a a??o de “O Filho da Cozinha” se desenvolve em torno da confe??o de um soufflé de lagosta que se vai repetindo vezes sem conta até ao momento em que o narrador/filho da cozinh(eir)a vier a descobrir quem é o seu pai; os assassínios de Fall River d?o-se porque Abby deseja comer um empad?o feito com os pombos de Lizzie; Abby comete o pecado – literalmente mortal – da gula; em Nossa Senhora do Massacre é também pela comida que nos é dado um retrato dos índios algonquinos. Angela Carter usa o tropo da alimenta??o feminina, um local de rela??es de poder de género – nestas três short stories quem detém o poder s?o as mulheres – juntamente com imagens e metáforas de desempenho para mostrar o modo como as intera??es com as for?as sociais, culturais e físicas do apetite refletem e informam as rela??es sexuais em geral. O apetite pode também ser visto como uma metáfora para o poder. Para Abigail Dennis, em “The Spectacle of Her Gluttony – The Performance of Female Appetite and the Bakhtinian Grotesque in Angela Carter’s ‘Nights at The Circus”, Carter nunca esquece a primazia do corpo e dos seus apetites, qualquer que seja a eleva??o metafísica do seu tema. Do mesmo modo que o poder sexual pode ser manipulado e explorado, o poder de satisfazer os apetites próprios e os dos outros é central nas rela??es de género e s?o muitas vezes uma for?a, tanto destrutiva, como positiva – o apetite desempenha um papel no processo de objetifica??o, particularmente, das mulheres.A Comida como Ponto Aglutinador Um dos temas recorrentes da obra de Angela Carter é o ato de comer carne e, nestas três short stories até podemos dividir os “comedores de carne” em duas categorias, os “devoradores” e os “devorados”. Os devorados s?o sempre personagens femininas.Para Abigail Dennis, a fic??o de Carter exige interpreta??o e análise e os seus textos s?o alegorias que devem ser lidas em tantos níveis quanto nos seja possível (Dennis: 117). A comida tem um papel central, tanto em “O Filho da Cozinha”, como em “Nossa Senhora do Massacre” – embora nesta história já n?o tanto, como em “Os Assassínios de Fall River”. Em duas das histórias, as pessoas gordas representam o grotesco – cómico, no caso de “O Filho da Cozinha”, trágico no caso de “Os Assassínios de Fall River”. Relativamente a “Nossa Senhora do Massacre”, vemos que é (também) pela comida que a protagonista se deixa apaixonar pela tribo índia.Os apetites das várias personagens formam o nexo da respetiva caracteriza??o. Assim, vemos a cozinheira pelo que cozinha, Abby pelo que come (“Abby foi feita para a comida pesada que a fez”), os índios da tribo e Sal, a protagonista (e, já agora, o senhor da casa onde ela está antes de fugir), também pelo que comem.A comida e o comer (‘food and eating’) s?o centrais na no??o Bakhtiana do corpo grotesco. Comer e beber s?o uma das suas mais significantes manifesta??es. O corpo transgride aqui os seus próprios limites. (Abigail 124)O Poder no FemininoUma das quest?es com que me deparei na leitura, análise e tradu??o de “Nossa Senhora do Massacre”, “O Filho da Cozinha” e “Os Assassínios de Fall River” foi de que modo é que as mulheres nestas três histórias exercem o poder, se é que o exercem? Naomi Wolf, citada por Munford, Rebecca (2007), em “The Desecration of the Temple; or Sexuality as Terrorism?” 59, distingue dois tipos de feminismo: feminismo vítima (“victim feminism”) quando a mulher procura o poder através de uma identidade de impotência, enquanto o feminismo de poder (“power feminism”) é insofismavelmente sexual e examina de perto as for?as reunidas contra a mulher, para que ela possa exercer o seu poder mais efetivamente. Wolf relaciona estas categorias de feminismo com duas tradi??es de feminismo. Uma tradi??o é severa, moralmente superior e autonegadora; a outra é livre-pensadora, amante do prazer e autoassertiva (enquadra-se nesta última a protagonista de “Nossa Senhora do Massacre”).Para Naomi Wolf, a escrita de Carter posiciona-se desconfortavelmente em rela??o ao discurso gótico e ao discurso feminista, especialmente porque convergem para a categoria do Gótico Feminino. As heroínas góticas de Carter foram frequentemente censuradas como pouco mais do que objetos de desejos sadisticos masculinos, pelas críticas feministas. As obras mais recentes de Carter apresentam-nos heroínas, digo, protagonistas femininas que dominam, agridem ou exploram sexualmente outrem. Uma dominadora é, por exemplo, a protagonista de “Nossa Senhora do Massacre” e, à sua dimens?o, por assim dizer, a cozinheira de “O Filho da Cozinha”. Uma agressora acaba por ser Lizzie Borden.A Feminilidade e o Aspeto Físico Angela Carter, ao fazer o retrato de Lizzie Borden retransmitiu uma vis?o preconceituosa relativamente ao seu aspeto físico, deixando “em paz” outros habitantes da casa. Berni, Christine (1997), “Taking an Axe to History: The Historical Lizzie Borden and the Postmodern Historiography of Angela Carter”. Clio 27,1 29. A própria polícia n?o só n?o interroga Bridget, como acaba por contratá-la para trabalhar em casa de um dos seus agentes, por ser/ter “uma cara bonita” e ser “simpática”, “tímida”. Seria Bridget considerada mais feminina do que Lizzie?A história que Carter nos conta é, n?o tanto um reconto dos crimes, mas um comentário acerca dos recontos passados. Em vez de criar um mundo ficcional selado, lembra-nos constantemente o seu papel como produtora do passado. Satiriza a necessidade de uma causalidade histórica descomplicada ao demonstrar os modos como classe e género influenciam a produ??o histórica. N?o se preocupa em fazer um relato dos assassínios, isso já nos foi dado a conhecer pelos jornais da época. O que Angela Carter faz é fornecer-nos o seu comentário acerca destes relatos, recriando, à luz das correntes literárias contempor?neas, a história dos acontecimentos daquele dia. Para Christine Berni, através de um conjunto de estratégias narrativas muitas vezes etiquetadas “pós-modernas”, Carter desafia a escrita histórica e ficcional que disfar?a a ideologia através da fidelidade representacional ao real. Para Christine Berni, em “The Fall River Axe Murders”, o que Carter consegue é que a história seja contada como conhecimento e possibilidade e n?o como uma utopia impossível. (Berni 33).O Pós-Modernismo, A Masculinidade e a Opress?o de MulheresPara Andrzej G?siorek (Peach 160), Carter recusa fazer uma escolha entre a fantasia e o racionalismo. Nas suas palavras, “Carter employs a fabulist mode, disrupting targets from within or ridiculing them, but at the same time exposes the limitations of fantasy.” Uma das personagens de Carter, Eve, em “The Passion of the New Eve” afirma, a certa altura: “we start from our conclusions.” Isto, na opini?o de Linden Peach, resume a aproxima??o à escrita de Carter como um todo. Carter refere-se à necessidade de sujeitarmos ao escrutínio as nossas conclus?es e as da nossa sociedade – cren?as, assun??es e preconce??es. Na sua obra ela faz isto de uma maneira aberta, muitas vezes atrevida e às vezes teatral. Carter reconhece que muitos dos princípios tradicionais associados com o realismo e que têm regido a nossa perce??o da realidade têm sido postos em causa. Há um forte reconhecimento, que atravessa toda a sua obra, que identidade, género, história e sexualidade n?o s?o assim t?o essencialistas, fixos e estáveis como somos levados a pensar desde o Iluminismo. Fronteiras e limites s?o percecionados como espa?os significativos, nos quais identidades, sexualidades, histórias, poder socioeconómico e estatuto cultural s?o contestados, negociados ou reafirmados.Uma das mais importantes conclus?es desafiadas ao longo da obra de Carter é o sistema de diferen?as sobre o qual as identidades se baseiam – particularmente como o “homem” tem sido visto como a norma, “mulher” como subordinada e todos os homens percecionados como tendo a mesma rela??o com esta norma. Há uma diferen?a entre sexo biológico e o género culturalmente construído. Há críticos que acusam, por assim dizer, Angela Carter de representar a masculinidade como a norma comportamental. Lizzie Borden e Sal têm características masculinas.Há uma express?o de Angela Carter que resume a sua atitude face às formas de literatura mais convencionais: “I am all for putting new wine in old bottles, especially if the pressure of the new wine makes the old bottles explode.” (Munford 62).A pretens?o dos anos 70 a um “our body our selves” colocou o controlo e a identidade no centro da agenda política do movimento feminista. A arte que se foca nas imagens e aspetos do corpo feminino foi uma tentativa dentro da esfera da cultura de criar um tipo diferente de visibilidade para as mulheres. No caso de “Os Assassínios de Fall River”, referindo-se ao corpo de Lizzie, por exemplo, Carter usa palavras como “her belly in a vice”, “menstrual blood”. Apesar de isto parecer for?ado aos leitores contempor?neos, Carter segue as preocupa??es feministas da sua época para desafiar e trabalhar contra as tradi??es que coisificaram a superfície cosmeticamente acabada do corpo feminino e negaram a matéria abjeta do seu interior.Classe e Género: Uma Feminista na Luta de ClassesPara Christine Berni o caso Borden ilustra a forma como a constru??o da história depende de coisas como classe e género (Berni 30). Em 1892 Fall River, Massachusetts era uma cidade com profundas divis?es de classe.O julgamento dos assassínios de Fall River originou, logo na época, uma disputa entre as várias vis?es da realidade social. Em 1892 definiam-se teorias do comportamento e teorias sociais, questionando-se, designadamente, o papel da mulher. Para o movimento feminista, que surgia na altura, e que Angela Carter parece desconstruir, desmitologizar, o ato de Lizzie n?o é monstruoso, é, sim, um produto de uma circunst?ncia social monstruosa, uma avenida para a liberta??o da opress?o do lar Vitoriano. A história que Angela Carter nos conta é emblemática do modelo feminista. A história de Carter aponta os horrores do espa?o doméstico ao mostrar em detalhe a vida confinante - claustrofóbica da sua heroína solteirona. Para Schofield, citada por Christine Berni, Angela Carter constrói os crimes de Lizzie como se fossem motivados em parte pelo desejo que esta tinha de se libertar dos limites da casa ou do poder patriarcal. Carter diz-nos que Mr Borden “é o dono de todas as mulheres, seja por casamento, nascimento, ou contrato.” Carter subverte a narrativa, pois nunca conta o acontecimento central, os assassínios. O conto termina precisamente no local onde come?a, na manh? do dia fatídico.Carter resiste à teleologia, revelando a impossibilidade de se chegar a uma única e autêntica verdade histórica. Enumera as múltiplas circunst?ncias atenuantes das matan?as de 4 de agosto: o calor sufocante; as opressivas roupagens vitorianas; a casa desconfortável e exígua; o ciclo menstrual de Lizzie, a comida envenenada, a resposta de Lizzie à gula insaciável da madrasta; os “ataques e tudo! ” de Lizzie; o ciúme edipiano da madrasta e “last but not least”, a raiva de Lizzie contra o pai por este lhe ter matado os pombos. As circunst?ncias s?o atenuantes porque, embora Carter fosse uma feminista, apenas nos quis fornecer um retrato “com muito poucas cores” dos acontecimentos.A autora critica a ordem social vigente na altura, mostrando-nos que estamos a ler uma constru??o dos acontecimentos, partilhando o processo de elabora??o da fic??o com o leitor, como faz, por exemplo, quando descreve o que as meninas fazem nos seus quartos: “a dormir a sesta nas suas camas ou a coser bainhas, ou a coser bot?es soltos, ou a escrever cartas, ou contemplando a??es de caridade entre os pobres que a merecessem ou a lan?ar um olhar vago para o espa?o.N?o consigo imaginar que outra coisa poderiam elas fazer.Aquilo que as meninas fazem quando est?o sozinhas é-me inimaginável.” (“Os Assassínios de Fall River”, página 90 do presente volume)As interrup??es do fluxo narrativo de Angela Carter também nos mostram que a história é escrita de acordo com agendas particulares: “Cinco criaturas vivas est?o a dormir numa casa na Second Street, em Fall River. Totalizam dois velhos e três mulheres. O primeiro velho é o dono de todas as mulheres, seja por casamento, nascimento, ou contrato. [...]Tirem John Vinnicum Morse do gui?o. Um velho e duas das suas mulheres dormem na casa em Second Street.” A autora procura aqui desimpedir a narrativa de pormenores que só atrapalhariam, como, por exemplo, a n?o participa??o nos acontecimentos de John Vinnicum Morse, o tio de Lizzie, mas, no entanto, fornece-nos uma pista sobre as rela??es de poder dentro daquela casa. “Tirem-no do gui?o”, vai ela ordenando, como se a história nos estivesse a ser apresentada num palco, em que as personagens, quais marionetas, s?o manipuladas pela nossa idiossincrasia. O casal Borden, por exemplo, é-nos apresentado através de estereótipos e caricaturas.O Desejo ReprimidoPor outro lado, a vida de Lizzie é apresentada como uma quase colagem aos contos de fadas: era uma vez uma órf? cuja vida ficou devastada pela morte da m?e verdadeira, substituída por uma madrasta comicamente má…. E, quando regressa da Europa, regressa a uma casa que faz lembrar o castelo do Barba Azul: “Em casa, de novo; a casa estreita, todos os quartos fechados à chave, como os do castelo do Barba Azul, e a madrasta branca, gorda, que ninguém ama, parada no centro da teia de aranha, n?o se mexeu um milímetro enquanto Lizzie esteve fora, mas engordou.Esta madrasta oprimia-a como um feiti?o.” A madrasta oprime-a como uma maldi??o, e a viagem à Europa n?o passa de uma viagem de ida e volta. Todas as notícias do mundo exterior s?o reduzidas a quadrados para se lhes limpar o rabo.Carter também revela os sistemas de fé que moldam as realidades históricas: o Cristianismo, (os Borden representam dois dos pecados mortais); a Psicanálise (Lizzie lamenta o lugar que Abby tomou nos afetos do pai); o Marxismo (“Moer a cabe?a aos pobres, ora essa.”) e os contos infantis (Jack Spratt, o Castelo do Barba Azul, a madrasta má). A fic??o pós-moderna torna a linha entre a fic??o e a história muito ténue, sugerindo que os relatos históricos s?o meras fic??es mascaradas.Lizzie Borden, Uma “Serial Killer” De certa maneira, podemos considerar “The Fall River Axe Murders” uma narrativa de “serial killer”, já que esta obedece a certas conven??es de género. De acordo com Steffen Hantke, há, em primeiro lugar, que analisar a quest?o do género literário. Hantke, Steffen (1998), “The Kingdom of the Unimaginable: The Construction of Social Space and the Fantasy of Privacy in Serial Killer Narratives”. Literature/Film Quarterly 26 3 178)Ao vermos a descri??o daquela casa em Second Street, como que o fazemos através de uma lente: os olhos da c?mara avan?am com hesita??o dramática. O cuidado encenado serve para nós (leitores) sabermos que este era território perigoso. O que veríamos deixaria uma marca indelével – o risco seria sentirmo-nos aprisionados dentro do pesadelo maléfico de outrem. “Viver numa área de limites estreitos, dentro da qual opera um “serial killer”, na mais absoluta impunidade, é uma experiência virtualmente impossível de explicar ou esquecer.” (Hantke 178 tradu??o minha) Angela Carter, tal como em outras narrativas deste género, como, por exemplo, “O Silêncio dos Inocentes” (Demme, Jonathan, The Silence of The Lambs, Orion Pictures, 1991, 118min), n?o tenta explicar o inexplicável, pois “este apocalipse doméstico deve ser pintado com muito poucas cores e a sua trama profundamente simplificada, para se obter um efeito emblemático máximo.” (Página 88 do presente volume) Seduz-nos o facto de nos ser permitido observar em seguran?a. Sabemos que vemos, n?o com os nossos olhos, mas através do olhar de Angela Carter. A casa de Andrew J. Borden tem espa?os exíguos, que funcionam como metáfora para a mente de Lizzie: “... tanto no andar de cima como no andar de baixo, todos as divis?es d?o umas para as outras, como num labirinto de um pesadelo”. (página 90 do presente volume) ? uma casa sem passagens. N?o há nenhuma parte da casa que n?o tenha sido marcada como território pessoal de um dos ocupantes; é uma casa sem espa?os partilhados, comuns, entre uma divis?o e a seguinte. ? uma casa de privacidades t?o seladas, como se tivessem sido seladas com o lacre de um documento legal.Só se passa para o quarto de Emma pelo de Lizzie. N?o há saída pelo quarto de Emma. ? um beco sem saída.”Esta situa??o também pode ser explorada relativamente à cozinha de “O Filho da Cozinha”: ‘“Pérolas a porcos”, teria dito a minha m?e, à medida que relutantemente ia enviando os vinte e quatro pratos da sua Arte para cima, para a sala de jantar”’. Neste caso, os espa?os est?o dispostos verticalmente – criados em baixo, senhores em cima. A única subida de um membro do pessoal da cozinha é feita por meios mec?nicos (o monta-cargas).Em “Nossa Senhora do Massacre” é, curiosamente, a cozinha, ou antes um utensílio de cozinha que provoca o desencadear da a??o: “Peguei na faca grande de trinchar e cortei-lhe as orelhas, primeiro uma, depois a outra. Que vis?o! Sangrava como um porco na matan?a; grunhe, pragueja, fujo para o jardim com a faca na m?o, a escorrer.” Aqui iniciar-se-á, aliás, uma fuga que só terminará quando Sal for “adotada” por uma índia que vai encontrar a apanhar ervas numa clareira.O ato de matar é sempre uma manifesta??o do poder masculino. Porém, os crimes em “Nossa Senhora do Massacre” e “Os Assassínios de Fall River” s?o cometidos por mulheres que agem sobre vítimas homens. A autora fornece-nos, contudo, uma justifica??o para cada uma das situa??es: Lizzie Borden é levada a matar os pais, tal é a opress?o a que está sujeita e é objetivamente um determinado acontecimento, a chacina dos pombos para uma empada, que está na origem dos crimes; já em “Nossa Senhora do Massacre” é a revolta dos oo colono brancoa do Massacre acontecimento que est central no desenrolar dos acontecimentos.índios contra o colono branco que dá origem à morte, com alguns requintes, do soldado inglês. Aqui, muito embora a morte deste n?o tenha sido exatamente às m?os de Sal, a verdade é que na tribo eram as mulheres quem na realidade detinha o poder. As rela??es de poder entre assassino e vítima em “Os Assassínios de Fall River” seguem um padr?o freudiano e o assassínio acaba por funcionar quase como um incesto, pois é por considerar que há uma interferência na sua rela??o com o pai, que Lizzie acaba por matar a madrasta, de quem passou a sentir ciúmes “depois de uma discuss?o sobre dinheiro após o seu pai ter doado metade de um barrac?o à madrasta cinco anos antes”. Matar reveste-se, assim, de um grande significado sexual; é uma demonstra??o de poder.De acordo com Steffen Hantke, a narrativa de “serial killer” tem dois géneros operativos: o romance gótico e a história de detetives. (Hantke (1998), “the kingdom of the unimaginable”. Literature/film quarterly, 26, 179.O Reino do InimaginávelO espa?o privado é penetrado, invadido (“Era um homem violado.”), sabotado, destruído, n?o pela tecnologia, como, por exemplo em “O Silêncio dos Inocentes”, mas pela narrativa de Angela Carter, que nos vai mostrando o que interessa mostrar e ocultando o que interessa ocultar.O “Reino do Inimaginável” (“The Kingdom of the Unimaginable”) é uma express?o de Angela Carter que se pode aplicar, por exemplo, à cave onde Lizzie Borden vai buscar o machado. Uma cave é subterr?nea, portanto oculta, misteriosa, inimaginável. Descer à cave funciona como uma descida ao Inferno. ?, que nos tenha sido dado a ver, um dos únicos espa?os partilhados da casa – os outros s?o o pombal e a cozinha. ?, portanto, aí que está a génese dos crimes.Uma das características do Romance Gótico que encontramos em “Os Assassínios de Fall River” é a encarcera??o e até a vigil?ncia a que Lizzie está sujeita. (“? uma casa de privacidades t?o seladas, como se tivessem sido seladas com o lacre de um documento legal.”)As divis?es da casa s?o pouco iluminadas, as paredes lembram as de uma cela; até os cheiros fétidos que se v?o sentindo – “carne mal lavada; roupa interior mudada poucas vezes; penicos de quarto; baldes de despejos; retretes mal canalizadas; comida a apodrecer; dentes descuidados; e as ruas n?o s?o mais frescas do que o interior das casas, o omnipresente cheiro forte e ativo de mijo e bosta de cavalo, vertedouros, súbito cheiro a morte velha dos a?ougues, o horror amniótico do peixeiro.” – lembram características dos romances góticos.O Público e o Privado em Os Assassínios de Fall RiverEm “Os Assassínios de Fall River” o espa?o privado protege Lizzie da exposi??o a que estaria sujeita, caso vivesse em “The Hill”, a parte alta da cidade. Também protege o pai e as suas idiossincrasias: “nestled within the larger realm of the public sphere, privacy offers us sanctuary from the pressures and alienation of public life.” (Hantke 187).Mesmo quando sai de Fall River, Lizzie está obrigada a cumprir as rígidas regras sociais daquele ambiente claustrofóbico de cidade de província: “mas foi um caso de olhar sem tocar. Sabiam que n?o podiam sujar as m?os ou ver os vestidos amarrotados pelo mundo”.O leitor torna-se um espeleólogo da alma quando lhe é mostrada a intimidade da casa dos Borden, o “covil do lobo”. Aliás, é uma casa acanhada, desconfortável e isolada “com uns poucos centímetros de pátio de cada lado”. Ao contrário, do lado de fora da casa, o lado público funciona para Lizzie como um local de repress?o e repreens?o: “poucos da classe social deles vivem em Second Street, na parte baixa da cidade, onde o calor se concentra como nevoeiro.” Para Borden, os estranhos, ou lhe assaltam a casa, ou lhe andam a extorquir dinheiro: “Alguém desconhecido entrou pela porta lateral numa altura em que Borden e a mulher tinham ido numa das suas raras viagens juntos; tinha-a carregado para uma carro?a e p?s-se a caminho da quinta que possuía em Swansea para se certificar que o caseiro n?o lhe andava a extorquir dinheiro.” E o assaltante era, tinha que ser, sempre alguém de fora: “N?o suspeitavam sempre exclusivamente dos estranhos de pele escura; às vezes achavam que o culpado poderia muito bem ser um operário acabado de chegar do impertinente Lancashire, lá do outro lado do mar que tinha cometido o crime, pois o senhorio de uma barraca tem poucos amigos entre as classes criminosas.” Até o médico que vai lá a casa é maltratado. Matar é qualquer coisa de masculino. Embora em “Os Assassínios de Fall River” se esteja em presen?a de uma assassina e a vítima seja um homem, na verdade, quem de certa maneira matou Lizzie, foi o próprio pai, ao matar-lhe os pombos. Para Steffen Hantke, matar reveste-se de um alto grau de significa??o sexual. Para Geoffrey Hartmann, citado por Hantke, em “Os Assassínios de Fall River” o espa?o funciona como um evento altamente condensado, supersem?ntico, marcado indelevelmente pelos atos da assassina, Lizzie Borden. O objetivo da narrativa é penetrar o espa?o íntimo habitado por ela. Esta invas?o assume conota??es freudianas, na medida em que nos oferece pistas para a compreens?o do comportamento de Lizzie face à madrasta, face ao pai e face à sociedade de Fall River. De certo modo, há uma produ??o do espa?o, para que possamos demonizar a assassina. Esta demoniza??o da assassina, a polariza??o do conflito entre ela e nós e a insistência na sua alteridade sustentam ambos os lados da ambiguidade estrutural subjacente a toda a fantasia. Todas as semelhan?as entre Lizzie e nós s?o afastadas.O potencial atávico, caótico e antissocial de Lizzie Borden chama a nossa aten??o por ser, ao mesmo tempo, sedutor e repulsor.Carter subverte o conceito burguês de lar, associado com família, seguran?a, estabilidade, que se “traveste” pela a??o de “alguém desconhecido”, primeiro, e pela própria Lizzie mais tarde. Christopher Lasch, citado por Steffen Hantke, afirma que um abrigo num mundo sem cora??o – o conceito burguês de “lar”, associado com família, seguran?a, estabilidade, etc., fica travestido às m?os de um “serial killer”. Angela Carter chega ao ponto de estender esta metáfora ao aspeto psicossexual da privacidade e da domesticidade. A “barriga num torno” de Lizzie, o seu interior mais íntimo, em lugar de gerar vida, expulsa sangue, matéria morta, é a nega??o da fertilidade, da vida.O ambiente é o oposto à fertilidade – nas ruas há um cheiro forte a “carne mal lavada; roupa interior mudada poucas vezes; penicos de quarto; baldes de despejos; retretes mal canalizadas; comida a apodrecer; dentes descuidados; e as ruas n?o s?o mais frescas do que o interior das casas, o omnipresente cheiro forte e ativo de mijo e bosta de cavalo, vertedouros, súbito cheiro a morte velha dos a?ougues”. Em casa todos os espa?os s?o exíguos: é “exígua, desconfortável, pequena e miserável – “despretensiosa”, poder-se-ia dizer, se quisermos bajulá-lo” e “é estreita como um caix?o”. Aliás, parece-se tanto com um caix?o, que Bridget, a cozinheira dorme “com a sua pegajosa camisa de noite de flanela, sob um len?ol fino numa cama de ferro, de costas, como as boas freiras lhe tinham ensinado na sua meninice irlandesa, no caso de morrer durante a noite, para dar menos trabalho ao agente funerário.”? durante uma das crises de Lizzie que “alguém desconhecido” assalta o cofre de Borden com uma tesoura e a “propriedade privada” deste transforma-se em “partes privadas” e o velho Borden sente-se um “homem violado”. Nas palavras de Angela Carter: “N?o consigo dizer-vos o efeito que o assalto teve em Borden. Desconcertou-o completamente; era um homem atordoado. Aquilo violentara-o, até. Era um homem violado. Aquilo levara a sua, até aqui inabalável, confian?a na integridade inerente às coisas.” A partir dessa altura, em vez de continuar a guardar o dinheiro no seu cofre (“block” – atente-se na descri??o deste cofre: “aquele bloco descaracterizado de a?o negro, fazendo lembrar um cepo de talho ou um altar”), Borden diversifica os investimentos e constrói um edifício do tamanho de um quarteir?o (“block”), apenas para, no final da história ficar sem a cabe?a (“block”) e jazer no sofá com o anel que Lizzie lhe dera orbitando o seu dedo mindinho – “n?o se consegue vê-lo, está debaixo da capa”.Mais Símbolos: Relógios, Mecanismos, a MorteComo já referi antes, s?o símbolos centrais nas três histórias que apresento, o relógio e o ato de comer. Mas há outros símbolos: o Sol, que se torna a cada volta do seu vórtice a Roda de Santa Catarina, o mostrador de um relógio, a boca de um Demónio, de um Ogre, uma fornalha, um ?nus, um espelho humilhante que, qual la?o de forca, distorce as caras sem piedade. Os autómatos: para Rikki Ducornet em “A Scatological and Cannibal Clock: Angela Carter’s The Fall River Axe Murders”, os Borden s?o, todos eles, autómatos. Aberra??es da natureza, personificam os pecados mortais e deambulam dentro do espa?o circunscrito de uma casa que lembra o mecanismo de um relógio. Envoltos numa espiral frenética, giram em torno do buraco negro da raiva de Lizzie, num órbita cada vez mais baixa. Para Eric White, em “Insects and Automata in Hoffmann, Balzac, Carter, and del Toro”, o termo “autómatos” refere-se a máquinas intrincadamente idealizadas, concebidas, n?o só para reproduzir o aspeto externo de seres vivos – no caso, seres humanos – mas também para imitar o seu comportamento típico. Nesta conformidade, penso que poderemos considerar Andrew J. Borden como um autómato; veja-se a descri??o da sua maneira de andar, por exemplo: “caminha com a dignidade majestática de uma carro fúnebre” e, mais adiante, “como se as suas pernas n?o tivessem articula??es, nem nos joelhos, nem nos tornozelos.” Os seres humanos s?o reduzidos a um estado robótico por um processo de repress?o psíquica. Pode notar-se isto no estado a que Lizzie Borden é conduzida pelo comportamento misantrópico do pai, mas também ao estado a que Sal, em “Nossa Senhora do Massacre”, é conduzida pelo mecanismo repressor da sociedade inglesa dos séculos XVII/XVIII. Em rela??o a “O Filho da Cozinha”, esta situa??o n?o é t?o óbvia mas, ainda assim, o que é aquela cozinheira, se n?o um autómato, por for?a da press?o que a aristocracia daquela época exerce sobre aquela mulher em particular? Encontrando-se cercada por todos os lados, àquela cozinheira n?o restou alternativa se n?o a repeti??o “ad aeternum” de um soufflé de lagosta, na v? esperan?a de corrigir um erro do passado – “trop de cayenne” e de, quem sabe, se revoltar contra quem lhe fizera um filho daquela maneira t?o pouco ortodoxa. Lizzie é, ela própria, um símbolo, como Santa Catarina: carrega um machado que a oprime; é o oposto da santa, o “lado escuro da lua” (“The lunatic is in my head/the lunatic is in my head/.../there’s someone in my head, but it’s not me”, Brain Damage, Pink Floyd; há um pouco de esquizofrénico em Lizzie, n?o é verdade?); a sua ascens?o n?o leva ao céu, mas ao inferno. Em vez de um halo, Lizzie ostenta um penico. Tal como Santa Catarina, Lizzie sangra, o ciclo menstrual funcionando como um relógio, a sirene da fábrica, o sol, a lua e o penico, s?o todos lembran?as incontornáveis da mortalidade, da nossa efemeridade.Tudo parece um relógio: as crises de Lizzie correspondem aos seus ciclos menstruais, e até os chilreios dos pássaros nas árvores se reduzem aos do mecanismo do relógio da C?mara Municipal.Fall River é uma “wasteland” e, se fizéssemos como Spielberg em “A Lista de Schindler” (Spielberg, Steven, Schindler’s List, Universal Pictures, 1993, 195min), a única coisa a cores seriam as pereiras. Mas mesmo estas, em vez de serem regadas com água, s?o-no com a urina do velho.Mais símbolos: o apetite. Borden e a sua mulher gorda; a casa com a forma de um p?o de forma. Lá dentro, todos est?o amea?ados pelo po?o sem fundo que é a boca de Abby.Forma-se uma trindade diabólica: tempo – calor – comida, cujo “sanctum sanctorum” é um penico que reflete as purgas da refei??o anterior (“os resultados copiosos das suas purgas fazem transbordar os penicos debaixo da cama. Dá para fazer desmaiar um canalizador.”)Um outro símbolo que podemos encontrar em os Assassínios de Fall River é a morte. A morte é a transgress?o final. Mas a morte também está representada naquelas imagens que Carter nos dá do velho Borden: “Ele caminha com a dignidade majestática de um carro fúnebre. Ver o velho Borden dirigir-se rua abaixo na nossa dire??o era ser preenchido por um respeito instintivo pela mortalidade, cujo macilento embaixador ele parecia ser.” E, mais adiante, “Ele é alto e macilento, como um juiz de enforcamento.”Até os objetos pessoais de Abby falam de morte: o pente em osso – que se parece com uma caveira e ao qual até faltam três dentes – e uma peruca que parece um esquilo morto (o esquilo está enrolado, como um feto, mas morto).A lista de objetos roubados inclui “o relógio de ouro da senhora Borden e a corrente, o colar de coral e a pulseira de prata da sua remota inf?ncia, e um ma?o de notas de dólar que o Velho Borden guardava debaixo de umas ceroulas lavadas na terceira gaveta da escrivaninha à esquerda.” O relógio, obviamente, representa o tempo (gaguejando) e o colar, o nó corredi?o do enforcado.Toda a casa respira sono, ou premoni??o da morte: “A casa cheira profundamente a sono, esse odor adocicado e pegajoso. Quieto, tudo quieto; em toda a casa nada se mexe, exceto a mosca zunindo. Quietude nas escadas. Quietude pressionando as persianas. Quietude, quietude mortal no quarto de baixo, onde o Senhor e a Senhora partilham o leito matrimonial.” (página 89 do presente volume) Naquela casa tudo é confinado, exceto o apetite – n?o apenas o apetite de Abby é prodigioso, mas o velho Borden conseguia devorar a cidade de Fall River. Há sempre uma constante confus?o entre boca e ?nus, entre ingerir e digerir, caix?o e casa, bolsos, penicos e relógios. Os Borden s?o “Mr e Mrs Jack Spratt em pessoa, ele alto e macilento, como um juiz de enforcamento, ela, uma redonda bolinha de massa em expans?o. Ele é um sovina, ao passo que ela é uma glutona, uma comedora solitária, o mais inocente dos vícios e no entanto é a sombra ou a paródia do vício dele, pois ele gostaria de engolir o mundo inteiro, ou, se n?o o conseguisse, uma vez que o destino n?o lhe p?s uma mesa suficientemente larga para as suas ambi??es, ele é um Napole?o mudo e inglório, n?o sabe o que é que poderia ter feito, porque nunca teve a oportunidade -- já que n?o tem acesso ao mundo inteiro, gostaria de engolfar a cidade de Fall River.” (página 95 do presente volume)Para introduzir um pouco de humor, podemos dizer que esta é uma história rica em colesterol.A raiva de Lizzie aumenta, porque n?o lhe deixam nada. N?o é uma comedora, mas é comida (verbo) e a raiva que lhe causa o ventre que sangra torna-a sobrenatural. Tem o maxilar de uma guarda de campo de concentra??o e os olhos do Lobo Mau (“Esta mulher, com o queixo de uma funcionária de campo de concentra??o e que olhos …”). ? um lobisomem regido pela lua. Até quase conseguimos ouvi-la uivar: “Nessas ocasi?es, nessas irremediáveis ocasi?es, podia ter erguido o seu focinho para a lua ardente e uivado.”Ainda os relógios: numa edi??o diferente da que foi usada para esta disserta??o, há um relógio na sala que está misteriosamente parado, ou antes, está certo duas vezes por dia. Um relógio parado, de mármore negro, como um mausoléu grego. Talvez esta vers?o, que é a vers?o americana, nos possa fornecer uma pista para o desenlace dos acontecimentos naquela manh? fatídica de 4 de agosto. Nela, Angela Carter demora-se um pouco a descrever o modo como as pessoas se sentavam à mesa, hierarquizadamente, com o patriarca à cabeceira e, recorrendo à mitologia grega – lá está, desmitologizando-a, fornece-nos uma perspetiva do funcionamento das rela??es interpessoais entre Andrew J. Borden e a sua filha mais nova e do funcionamento da mente desta. Há um relógio parado, em mármore preto, fazendo lembrar um mausoléu grego. Borden, qual Zeus, devora Métis, por recear que esta venha a ser mais exaltada do que ele, mas fica com uma dor de cabe?a tal, que acaba por pedir a Vulcano que lha abra, para se libertar. Armada e adulta, Minerva salta para fora da cabe?a do pai. Entra Freud. Lizzie é o produto da cabe?a de Borden. Ao abrir ao meio a cabe?a do pai, Lizzie nasce “armada e adulta”.Voltando à Roda de Santa Catarina, esta era feita de l?minas e aqui vale a pena comparar a lenda da Santa com o que aconteceu a Lizzie. Para resumir, a roda partiu-se com violência tal que acabou tudo num enorme banho de sangue, com cabe?as cortadas e corpos desmembrados, mas “este apocalipse doméstico deve ser pintado com muito poucas cores e a sua trama profundamente simplificada, para se obter um efeito emblemático máximo.”Desmitologiza??oUma das “mitologiza??es” que Angela Carter questiona é a “masculinidade”. Outra é a “femininidade”. “Women tend to be raised with a monolithic notion of "maleness", just as men are raised with the idea of a single and undifferentiated femininity. Stereotyping. Real men, especially when approached by women acting in ways they're not supposed to act, can behave like fifteen-year-old girls in the photo story magazines. This can come as a shock.” Angela Carter, citada por Patricia Juliana Smith, em Smith, Patricia Juliana (1994), “All you need is Love – Angela Carter’s novel of the sixties sex and sensibility”. Review of Contemporary Fiction, 14, 3, 24. Quando questionada sobre o que quer dizer quando está no ramo da desmitologiza??o, e n?o no da remitologiza??o, Angela Carter responde, na já citada entrevista a Anna Katsavos, que está a tentar descobrir o significado de certas imagens, ou certas configura??es de imagens na nossa sociedade, na nossa cultura (e questioná-las, subvertendo-as).Referindo-se a uma personagem de “Nights at the Circus”, Fevvers, criada à imagem de Juliette, de Sade, que era uma mulher que devia ter asas para renovar o mundo, segundo Guilliaume Apollinaire, Angela Carter diz que o que se tem de fazer é mudar as regras e fazer um jogo novo. ? um pouco isso o que faz ao “desmitologizar”. O que Angela Carter faz é tentar responder à quest?o “e se?” “E se a minha m?e tivesse um caso com um homem que eu achava ser o meu tio?” “E se eu descobrisse que o meu namorado tinha mudado de sexo?” N?o interessa tanto discutir ideias e sim o “aqui e agora”. Contos de FadasReferi acima uma colagem aos contos de fadas que se pode verificar em “Os Assassínios de Fall River”. Neste conto, realidade e fantasia est?o constantemente a ultrapassar as respetivas fronteiras, como nos diz Janet L. Langlois (1998), “Andrew Borden’s Little Girl – Fairy-Tale Fragments In Angela Carter’s ‘The Fall River Axe Murders’ And ‘Lizzie’s Tiger” em Marvels & Tales, volume 12 article 12 Issue I Angela Carter and the Literary M?rchen. A liga??o ao conto de fadas come?a logo na rima infantil inicial. Carter transforma a história de Lizzie Borden num conto de fadas (M?rchen), focando-se nos retratos. A imagem inicial de um dia de calor, com a do modo como o Sol brilha, enforma o resto da história, ancorando-a no realismo social (veja-se a descri??o crua dos cheiros das pessoas e da atmosfera). A história é parada e opressiva, como o dia, a casa e as próprias personagens. N?o tem enredo, no sentido em que para antes que a narrativa dos crimes comece. Aliás, penso que Angela Carter se preocupa com os pormenores históricos, transgredindo a fronteira entre o conto de fadas e o real e indo mais ao encontro de uma certa “gramática” do realismo social. Parte do princípio, aceite na época pela classe operária de Fall River, de que foi realmente Lizzie a criminosa, mas preocupa-se em retratar, apesar de “com muito poucas cores” este “apocalipse doméstico” para “se obter um efeito emblemático máximo.” O uso da palavra “emblemático” é, ele próprio, simbólico. Toda a história é um símbolo em si mesma. Símbolo da opress?o da classe operária; símbolo da opress?o da filha pelo pai; símbolo da opress?o feminina por outra mulher (neste sentido, Lizzie é “devorada” pela madrasta), vista pela lente de outra mulher. ? até símbolo dos efeitos perversos de uma das necessidades mais básicas do ser humano, o ato de comer (Lizzie vai-se desumanizando, superhumanizando, licantropomorfizando). Se virmos bem, todas as outras necessidades básicas s?o negadas a Lizzie pelas excentricidades do pai, que é um autêntico misantropo.RetratosMas, voltando aos retratos, há muitos retratos verbais de Lizzie. O primeiro, é construído a partir do pormenor histórico. Num futuro do indicativo, a a??o torna-se estranhamente estática: “Nesta manh? em que, após o pequeno-almo?o e o desempenho de algumas tarefas domésticas, Lizzie Borden irá assassinar os pais, irá, ao levantar-se, enfiar um vestido simples de algod?o - mas, debaixo disso, já p?s um saiote de algod?o, comprido e engomado, mais outro saiote de algod?o curto e engomado; meias-cal?as, meias de l?; uma combina??o e um espartilho de barba de baleia que lhe segurava as vísceras com m?o severa e lhas apertava muito firmemente. Também amarrou um pano de linho grosso entre as pernas porque estava com a menstrua??o.” Logo a seguir recorre ao elemento fantástico para a colocar de acordo com a nossa imagina??o e estabelece um paralelismo com a lenda de Santa Catarina, repetindo a estrofe inicial da rima infantil: “Lizzie Borden com um machado”.Como curiosidade, se consultarmos o Google Earth, vemos que no n? 92 em Second Street, Fall River, Massachusetts funciona agora a Pens?o Lizzie Borden Bed and Breakfast – Angela Carter n?o faria melhor subvers?o!... Para ironizar com uma frase retirada da entrevista acima mencionada, “há alturas em que a realidade se torna demasiado complexa para a Comunica??o Oral” mas a lenda dá-lhe uma forma através da qual impregna o mundo.Jean-Luc Goddard, citado por Janet Langlois (Langlois: 1998), afirma “O Conto de Fadas está para a lenda como a lenda para a história.” Elementos de lenda, de história e de conto de fadas entrecruzam-se constantemente desde o início da narrativa.Carter “desmitologiza” a figura histórica de Lizzie Borden, que foi absolvida e alinha na vis?o da classe operária de Fall River de que mais uma vez uma rica?a se safou.Depois de nos fornecer uma perspetiva sobre a lenda de Lizzie Borden, Angela Carter passa a um segundo nível de narrativa, “porque é que” matou. Ao abordar a quest?o das portas fechadas à chave, somos transportados para um assalto, ocorrido anos antes, mas precursor dos assassínios. O assalto “violou” Andrew Borden, mas a rea??o deste é, no mínimo, curiosa: passou a fechar todas as portas à chave, dando a entender que tinha sido alguém da casa o assaltante – quem sabe, Lizzie, num dos seus ataques na altura do período; ao fim e ao cabo, o assalto deu-se numa altura em que só Lizzie e Emma estavam em casa.Lizzie é uma mulher aprisionada, oprimida pelas chaves, pelas roupas, mas também pelas conven??es sociais, além, claro, de viver numa casa extremamente confinada, apertada, opressora, paralisadora e atrofiadamente pequena.A subtileza está em que Angela Carter, apesar de nos indicar que Lizzie “irá assassinar os pais”, limita-se a tra?ar-nos um retrato de uma mulher da/naquela época lutando para se libertar dos constrangimentos sociais e dos estereótipos de género.Existe uma dupla confus?o com o sangue das vítimas do assassínio e entre a personagem histórica e as personagens de um conto de fadas: “O Barba Azul” ecoa em “Os Assassínios de Fall River”. O ato de Lizzie provoca derramamento de sangue e ela está com a menstrua??o, o seu sangue vital corre, enquanto o anjo da morte aguarda pousado num telhado próximo.Lizzie Borden E A Companhia dos LobosA narradora apresenta-nos Lizzie de duas maneiras distintas: desafiando o leitor a encontrar fotografias antigas de Lizzie, este poderia deparar-se com uma cara (ou focinho?) amarelecida, desbotada e murmurar: ‘“Oh, que grandes olhos tens!”, como o Capuchinho Vermelho disse ao lobo, mas nessa altura uma pessoa até podia nem se deter para pegar nela e olhá-la mais de perto, pois o seu rosto, em si, n?o é dos que chamam a aten??o.”, fazendo-nos supor que, pelo menos aqui, Bela e Monstro habitam o mesmo corpo. A referência, quando se fala no “Capuchinho Vermelho”, é mais à história “A Companhia dos Lobos” (Jordan, Neil, The Company of Wolves, ITC Cannon, 1984, 95min) do que, propriamente ao conto de fadas de Perrault. Num segundo momento, Lizzie contempla-se ao espelho, numa daquelas “ocasi?es em que o tempo se divide ao meio e ent?o vê-se com olhos cegos, clarividentes, como se fosse outra pessoa.“Lizzie n?o parece ela, hoje.Nessas ocasi?es, nessas irremediáveis ocasi?es, podia ter erguido o seu focinho para a lua ardente e uivado.” E, mais adiante: “? uma rapariga com a calma do Sarga?os.” Há, portanto, uma imagem dupla de Lizzie, que nem sequer é “Elizabeth”, pois o pai é t?o sovina que lhe ficou com metade do nome (“porquê sobrecarregá-la com o estéril e vistoso prolongamento “Elizabeth”? Sovina em tudo, até lhe colheu metade do nome antes de lho dar.”) Lizzie é, ao mesmo tempo, lobo e pessoa normal: “’Oh, que grandes olhos tens!’, como o Capuchinho Vermelho disse ao lobo, mas nessa altura uma pessoa até podia nem se deter para pegar nela e olhá-la mais de perto, pois o seu rosto, em si, n?o é dos que chamam a aten??o.”O final da narrativa, com a carnificina dos pombos e a transforma??o destes em ingredientes culinários (“Em casa, tudo era sangue e penas.”) até nos mostra uma Angela Carter compreensiva para com o crime de Lizzie e mais consent?nea com a opini?o que o tribunal teve quando a absolveu, na época, apesar de ter vivido ostracizada pela sociedade de Fall River, para quem só poderia ter sido ela a autora de tais crimes hediondos.Apesar de ser de “águas calmas”, o modo como Lizzie dorme é, apesar de tudo, sintomático, pressagiador: os pés est?o sempre a mexer, tem um sono agitado. A morte dos pombos foi despertar o Lobo e é curioso ver como Lobo e Capuchinho Vermelho se fundem numa só personagem. Aliás, nesta casa, sono e morte andam sempre muito perto: “a casa é estreita como um caix?o”; “as pálpebras húmidas de Bridget n?o estremecem com premoni??o, deitada com a sua pegajosa camisa de noite de flanela, sob um len?ol fino numa cama de ferro, de costas, como as boas freiras lhe tinham ensinado na sua meninice irlandesa, no caso de morrer durante a noite, para dar menos trabalho ao agente funerário.” A terceira men??o a sono ou morte ocorre na página 5 da tradu??o que submeto: “A casa cheira profundamente a sono, esse odor adocicado e pegajoso. Quieto, tudo quieto; em toda a casa nada se mexe, exceto a mosca zunindo. Quietude nas escadas. Quietude pressionando as persianas. Quietude, quietude mortal no quarto de baixo, onde o Senhor e a Senhora partilham o leito matrimonial.” Mais à frente, há uma descri??o dos objetos que est?o em cima do toucador que pressagia os acontecimentos: “Em cima do toucador, um pano bordado com miosótis; sobre o pano um pente em osso com três dentes a menos e com cabelos grisalhos ligeiramente enredados, uma escova de cabelo em madeira ebanizada e uma quantidade de panos de renda debaixo de caixinhas de porcelana contendo alfinetes de ama, toucas, etc.. A pequena peruca que Mrs. Borden coloca na cabe?a quase careca durante o dia está enrolada como um esquilo morto.” Há uma certa entropia neste quarto, que só pode ter um fim... Finalmente, “Est?o deitados costas com costas, eles. Podia p?r-se uma espada no espa?o entre o velho e a mulher, entre a espinha do velho, a única coisa rígida que ele alguma vez lhe oferecera e o macio, quente, enorme rabo dela. As purgas flagelavam-nos. As faces evidenciam verde em decomposi??o na claridade do quarto de cortinas cerradas, em que o ar é demasiado espesso até para as moscas se mexerem.” A história come?a a ter a chamada massa crítica e tudo se encaminha para o clímax final. Depois há uma intromiss?o de outro conto de fadas: “A filha mais nova sonha atrás da porta fechada.Vejam a bela adormecida!” – só que n?o é o beijo de um príncipe que a acorda e sim o sangue e as penas dos seus amados pombos que faz despertar nela o Lobo Adormecido que vive dentro dela e no qual ela se transforma.“Os Assassínios de Fall River” é uma história com relativamente pouca conota??o sexual e está mais centrada na din?mica familiar, estando Lizzie constrangida pelas regras vitorianas que lhe s?o impostas, tanto em casa, como em sociedade. Ao contrário do “Capuchinho Vermelho” em “A Companhia dos Lobos”, em que há um cariz marcadamente sexual, ou mesmo até em “Dornr?schen” (A Bela Adormecida), já referido anteriormente, a Lizzie nada acontece, “o tempo passa e nada acontece” e, apesar de acharmos que às vezes pode uivar à lua cheia, vai mantendo sempre um comportamento frio. Afinal de contas, “she is a girl of Sargasso calm”. Parece haver aqui espécie de “Dr. Jekyll e Mr. Hyde”.Voltando às fotografias, ela tem os olhos de uma santa de Nova Inglaterra, mas s?o uns olhos dementes, “pertencentes a alguém que n?o nos ouve, olhos de fanática, poder-se-ia dizer, se n?o se soubesse nada acerca dela.”No final da narrativa, o futuro de Lizzie é deixado ao leitor e aquilo que lemos situa-se integralmente antes daquele milésimo de segundo, já Lizzie ergueu o machado.O Filho Da Cozinha, Uma OperetaRelativamente a “O Filho da Cozinha”, há um outro símbolo, n?o pouco importante, que podemos encontrar, o véu, símbolo do teatro, ou melhor, da opereta, dado o caráter cómico desta história e o facto de por vezes se fazer acompanhar da “banda sonora” “tocada” pelos instrumentos da cozinha . Todo o vocabulário do primeiro parágrafo se relaciona com o teatro, a opereta, para ser mais exato. O que se passa na cozinha é como se fosse um palco. “Born in a trunk” é a express?o original, que se utiliza em teatro para significar que filho de ator sabe representar. A história é-nos apresentada como se estivesse dividida em atos e cenas. Até se corre um véu/pano para proteger a intimidade daquela primeira cena... A gravidez da cozinheira e o nascimento do seu filho, o narrador desta história, s?o apresentados metaforicamente, representando a irrup??o da m?e pelo véu o nascimento do narrador. Outro símbolo que podemos encontrar aqui é o soufflé de lagosta, que representa o conflito interno gerado pela viola??o. Desde o primeiro momento, a cozinheira vai tentar corrigir o que correu mal com o primeiro soufflé, n?o colocando tanta pimenta de Caiena, na v? esperan?a de que as coisas voltassem ao normal, revoltando-se: “Nessa altura, ela berra: “Para o diabo com isto tudo!” Deixando o gui?o, a minha m?e brande a colher de pau como um bast?o e acerta em cheio, trás!, na cabe?a do duque, com uma for?a considerável. O duque cai ao ch?o com um grunhido baixo.”Relógios, de NovoQuando anteriormente falei em símbolos, referi a certa altura a existência de relógios. No caso de “Os Assassínios de Fall River”, vemos e ouvimos os martelos do relógio-despertador de Bridget, a criada irlandesa dos Borden prestes a tocar na campainha ao aproximar das 6.00; ouvimos também o mecanismo do relógio da c?mara municipal, que “range e crepita os prolegómenos da primeira badalada das seis” no alvorecer daquele dia fatídico. Mas, ao contrário de Bridget, cujas “pálpebras húmidas n?o estremecem com premoni??o”, de morte, diria eu, quando Nogueira Alta pega no relógio que Sal tinha tirado ao cativo inglês que a tribo acabara de matar e lhe havia oferecido, quando o relógio come?ou a dar “as doze horas, pois era meio-dia [...] ele assusta-se, deixa-o cair, aquilo parte-se tudo, as rodas dentadas e molas espalham-se pelo ch?o, e o meu marido, pobre selvagem supersticioso que era, apesar de ser o melhor homem do mundo, o meu marido come?ou a tremer como varas verdes e disse que o relógio era “mau remédio” e mau presságio.”Aquele relógio, ao desfazer-se no ch?o, pressagia para os índios toda a destrui??o que estava para vir e Sal n?o conseguiu avisar a tribo sobre a vingan?a que certamente se seguiria, por eles estarem bêbados a comemorar o que pensavam ser uma vitória sobre os brancos.Este acontecimento acaba por ser central na narrativa, pois representa mais um ponto de viragem: morte da m?e natural; morte da “m?e” do Lancashire; mudan?a geográfica para Londres; viola??o (a vários níveis) e transforma??o na “prostituta do Lancashire”; julgamento e deporta??o para a Virgínia por causa do roubo de um relógio; fuga do cativeiro; encontro com a terceira “m?e”, a mulher índia; reden??o e casamento com Nogueira Alta; captura pelos ingleses, devido à vingan?a que se seguirá. Podemos até resumir e estabelecer um paralelo com o Novo Testamento: de Virgem Maria, Sal transforma-se sucessivamente em Madalena, a prostituta; em Madalena, a prostituta arrependida, que até casa com Nogueira Alta (n?o haverá aqui um “Jesus”, que a redime?) se torna m?e, libertando-se do pecado original; Madalena, a condenada pela norma e pela conven??o e, finalmente a mulher revoltada contra essa norma e conven??o: “Passado pouco tempo, a mulher vem ter comigo e diz-me: “Ainda és uma mulher nova, Mary e o Jabez Mather diz que te tomará por esposa, uma vez que a dele morreu de disenteria, mas n?o te fica com a crian?a, por isso, fico eu.” Mas ela jamais terá o meu rapazinho como filho, nem eu tomarei o Jabez Mather por marido, nem qualquer outro homem vivo, antes sentar-me e chorar junto às águas da Babilónia.”Sal acaba, como vimos, por ser apanhada pela história. O que os ingleses fizeram como vingan?a pela captura e posterior morte do governador da Virgínia foi uma autêntica carnificina. Neste conto, a opress?o volta a surgir depois da carnificina, ao contrário de “Os Assassínios de Fall River”, em que, n?o tendo mais por onde fugir, Lizzie Borden desata à machadada para se libertar.Em “Nossa Senhora do Massacre” a carnificina n?o liberta, oprime mais ainda. Podemos até dizer que este conto é um autêntico libelo anticolonial e anti-todas as conven??es sociais vigentes na Europa do séc. XX até aos anos 50, designadamente, no Império Brit?nico.O Mito do Jardim do ?denTodas estas três histórias desafiam o mito da inferioridade feminina em rela??o ao homem. Em “O Filho da Cozinha”, a cozinheira acaba por se superiorizar ao conde; em “Nossa Senhora do Massacre”, Sal tem aquele momento final de revolta em rela??o ao ministro e à mulher deste e Lizzie Borden, de “Os Assassínios de Fall River”, mata o pai (e a madrasta), conseguindo a sua liberta??o com isso.O mito do Jardim do ?den também está presente em duas destas histórias, se calhar nas três. Em “Os Assassínios de Fall River” o Paraíso, como estado inicial, é representado pelas pereiras que, como disse atrás, seriam a única coisa “a cores” em todo o “filme”. Mas lembremo-nos de que a autora é Angela Carter e as pereiras s?o regadas com a urina do Velho Borden... Em “Nossa Senhora do Massacre” o Paraíso prometido pela “m?e” do Lancashire verifica-se realmente na Virgínia, mas é logo manchado de sangue e morte. Há aqui um elemento de Realismo Mágico, pois a velha diz-lhe, no início da narrativa que “Que as estrelas que consultara em nome da sua filha querida, como gostava de me chamar, lhe garantiam que eu iria numa longa viagem sobre o Oceano para o Novo Mundo” e, mais adiante: “os mortos ir?o erguer-se dos seus esquifes e ir?o para o Céu aqueles que o merecerem e o meu querido menino sentar-se-á sorridente acima de tudo com uma coroa dourada na cabe?a.” Como veremos, a coroa, n?o será dourada, e sim de espinhos. O Jardim do ?den vai-se degradando e, no fim da história, o rio que corre na Babilónia já é de sangue. Em “O Filho da Cozinha” o Jardim do ?den é, pois ent?o, a cozinha, “aquele lugar guloso que, se n?o me fez, fez com que eu fosse feito.” ? na cozinha que o narrador passa toda a sua inocência “quente e afastado do perigo, acalmado pelos deliciosos odores e sons apetitosos da prepara??o dos alimentos” e, nas palavras do narrador “arrulhei a inf?ncia por cima da cozinha, como se fosse a sua divindade, lá no alto, no meu minúsculo santuário”. Desmitologiza??o da Figura Paterna Para saber a verdade sobre o seu progenitor, o narrador “filho da cozinha” tem de sair e também aqui se dá uma desmitologiza??o da figura do pai, pois quem encontra é alguém que n?o faz a mínima ideia do que fez à cozinheira por ocasi?o do primeiro soufflé. E, de soufflé em soufflé, chegamos às revela??es finais: a governanta tinha ciúmes da cozinheira – “Ent?o, essa é que era a verdade! A desprezível governanta só transmitiu metade da mensagem!” (página 80 do presente volume) Finalmente, qual opereta, há uma espécie de “da capo” que é, para o narrador, revelador da verdadeira natureza do duque: “Ele aproxima-se, sorrateiro, por detrás dela, o dedo indicador contra os lábios, exprimindo cautela e silêncio”. A repeti??o quase exata do gesto original trai o duque, revelando a sua verdadeira identidade.“?, compreendem, a altura de colocar o tempero. E agora a caiena vai em quantidade suficiente. Nem mais um gr?o. Hurra! Este soufflé vai ficar - aceno com o círculo que fiz com o indicador e o polegar, simulo um beijo.”Conclus?oTraduzir Angela Carter representou um desafio acrescido, dada a complexidade dos seus textos e as correntes literárias em que se insere. O facto de se tratar de uma escritora feminista a escrever sobre mulheres, ainda por cima numa determinada época do séc. XX, em que se acentuavam os movimentos feministas, no meio de grandes convuls?es políticas e sociais, obrigou o tradutor a transportar para a língua de rece??o com a maior fidelidade possível, todos os detalhes de linguagem que possam refletir os aspetos mais marcantes dos textos, designadamente, os que refletem a posi??o particular da autora face a temas como a figura materna, o corpo feminino, a violência no feminino (a mulher como vítima e também agente da violência), a vis?o da sociedade em geral sobre a mulher.Uma das principais dificuldades com que me deparei ao traduzir estes três textos de Angela Carter foi o uso de vocabulário específico de uma determinada zona geográfica (como o Lancashire, por exemplo), de um determinado grupo social, ou de uma determinada profiss?o. Em “Nossa Senhora do Massacre”, fui confrontado com termos índios, como “Algonquino”, “succotash”, por exemplo. Neste texto em particular, a principal dificuldade foi “recriar” em português atual express?es, ideoletos e dialetos, tornando compreensíveis para alguém de cultura e língua portuguesa (tomando como “português” a variante europeia) tais aspetos da língua e cultura inglesas.Em “O Filho da Cozinha”, tive que me confrontar com termos ligados a duas áreas da cultura – o teatro, com as suas express?es próprias e a culinária, em que tive que recorrer até a dicionários de culinária (), para já n?o falar em dicionários de francês. Recordo-me, a esse respeito, da primeira linha do texto de partida: “Born in a trunk, they say when a theatrical sups grease-paint with mother’s milk...”, ou dos inúmeros neologismos baseados em termos culinários franceses que polvilham este texto: “to croquembouche her”, “milly filly her”, por exemplo.Por último, “Os Assassínios de Fall River”. As dificuldades que tive em traduzi-lo dizem respeito ao texto como um todo. N?o é por acaso que, dos três originais que analisei e traduzi, este é o mais documentado e mais analisado pela crítica literária, pois proporciona uma multiplicidade de leituras. Considero que, nos textos de Lizzie Borden (há dois na colet?nea), Angela Carter dá largas ao seu estilo desafiador de conven??es. Por conseguinte, em muitas express?es ou palavras usadas, havia que ter em conta as suas várias possíveis leituras e tradu??es, para que n?o se perdesse o sentido original, sempre sem deixar de ter em mente que se trata de uma autora cuja obra se insere numa certa filosofia feminista. Em suma, tentei respeitar a obra, “pintando-a com muito poucas cores para obter um efeito emblemático máximo.”Tradu??esNota prévia: a vers?o utilizada para estas tradu??es foi Burning Your Boats, Collected Stories With an Introduction by Salman Rushdie, Vintage Books, London 2006.Nossa Senhora do MassacreO meu nome n?o vem ao caso, pois usei vários no Velho Mundo, de que n?o posso falar agora; depois há o meu, digamos assim, nome selvagem, do qual agora nunca falo; e, agora, o que eu me chamo neste lugar, portanto o meu nome n?o fornece indica??o alguma em rela??o à minha pessoa, nem a minha vida em rela??o à minha natureza. Mas vi a luz do dia no condado de Lancashire na Velha Inglaterra, no ano de Nosso Senhor de 16--, o meu pai um pobre caseiro, e a minha m?e e ele morreram os dois de Peste quando eu era uma crian?a pequena, por isso eu e os meus irm?os sobreviventes fomos entregues à paróquia e o que lhes aconteceu n?o sei, mas eu sabia coser e arrumar a casa, e assim, pelos meus nove ou dez anos fizeram-me criada para todo o servi?o de uma velha que vivia na nossa paróquia.Esta velha, ou melhor, senhora, nunca casou e era, como descobri, Católica, embora guardasse isso para si mesma, e já tinha sido bastante mais rica do que agora. Além disso, o pai queria um filho var?o e, como só a teve a ela, ensinou-lhe Latim, Grego, um pouco de Hebreu e deixou-lhe um grande telescópio que ela usava para perscrutar o céu de cima do telhado, apesar de ver muito mal para descortinar alguma coisa, mas quando n?o conseguia ver inventava, pois dizia que a vis?o era má para as coisas deste mundo, mas cristalina para as daquele que há de vir. Muitas vezes também me deixava dar uma espreitadela às estrelas, pois eu era a sua única companhia, e ensinava-me as letras, como podem ver, e ter-me-ia ensinado tudo quanto sabia, se n?o me tivesse, logo que eu fui para o pé dela, previsto o meu futuro, já que o pai tinha deixado as cartas e os instrumentos zodiacais. E tendo-o feito, disse-me que eu n?o iria precisar da língua de Homero em altura alguma da minha vida, mas ensinou-me um pouco de hebreu coloquial, pelas raz?es que se seguem:Que as estrelas que consultara em nome da sua filha querida, como gostava de me chamar, lhe garantiam que eu iria numa longa viagem sobre o Oceano para o Novo Mundo e aí daria à luz uma crian?a aben?oada, cujos avós nunca haviam viajado na Arca de Noé. E, das suas leituras, que haviam consumido os seus olhos, concluíra que aqueles ‘filhos vermelhos do deserto’ n?o podiam ser sen?o a Tribo Perdida de Israel, por isso, shalom, ensinou-me ela, além das palavras para “amor” e “fome” e muito mais de que me esqueci, para que pudesse falar com o meu marido quando eu o encontrasse. E se eu n?o fosse uma rapariga sensata, tinha-me dado a volta à cabe?a com todos aqueles disparates, pois teimava que as estrelas previam que eu viria a ser nada menos do que Nossa Senhora dos Homens Vermelhos.Pois, diz ela, aquele país lá longe, para além do mar, é chamado Virgínia, como a virgem m?e de Deus Todo-Poderoso e os seus rios correm diretamente do ?den, por isso, quando os nativos se converterem à verdadeira religi?o – “de cuja tarefa te encarrego, filha”, e desfia-me um monte de Ave-Marias – quando isso for conseguido, ora, o mundo inteiro irá acabar e os mortos ir?o erguer-se dos seus esquifes e ir?o para o céu aqueles que o merecerem e o meu querido menino sentar-se-á sorridente acima de tudo com uma coroa dourada na cabe?a. A seguir, continuava por ali fora a papaguear em latim e a benzer-se. Mas eu nunca falei a ninguém dos costumes romanos dela, nem das suas observa??es de estrelas, pois, se n?o a enforcassem por heresia, enforcavam-na por ser bruxa, a pobre criatura.Um dia a velha solteirona adormece e nunca mais acorda e os seus primos chegam e levam tudo o que vale mais do que um vintém, mas como n?o conseguem arranjar lugar para mim na casa deles, lá tenho de me arranjar sozinha.Meto na cabe?a ir para Londres, onde me conven?o de que posso fazer fortuna e fa?o-me à estrada, dormindo em celeiros ou ao abrigo das sebes, pois era resistente e levei pouco tempo – cinco dias. Quando chego a Londres roubei o meu primeiro p?o para n?o morrer à fome, o que levou diretamente à minha desgra?a, um cavalheiro que me viu enfiar o p?o no bolso, em vez de gritar “ó da guarda!”, resolve seguir-me pelas ruas, agarra-me o bra?o e pergunta se é a necessidade ou a tendência que me faz ficar com aquilo. Fico furiosa com ele: Necessidade, meu senhor! digo eu e ele diz, uma “leiteira do Lancashire” t?o bonita como eu n?o haveria de ter necessidade de nada enquanto a ele lhe restasse um f?lego no corpo e com estas lisonjas conseguiu convencer-me a ir consigo para um quarto com uma cama numa taberna onde era bastante conhecido. Quando descobre que eu nunca tinha feito aquilo antes, chora; bate no peito envergonhado por me corromper; dá-me cinco soberanos de ouro, a maior quantidade de dinheiro que eu tinha visto até ent?o e sai, diz ele, para a igreja, para pedir perd?o, e foi a última vez que o vi. Por isso, caí na vulgaridade ao meu primeiro erro, que foi afortunado, e a “leiteira do Lancashire” em breve estava metida no negócio como a “prostituta do Lancashire”.Agora, se eu tivesse ficado satisfeita com a prostitui??o honesta, sem dúvida que ainda me vestiria de seda e iria no meu coche ao Cheapside e nunca comeria o p?o amargo do exílio. Mas pode dizer-se que, quando pus os olhos na moeda dele, fiquei como que varada de amor e, apesar da necessidade me ter feito ladra, foi a avareza que me aperfei?oou a arte e a prostitui??o foi a minha “cobertura”, pois os meus clientes, cegos como estavam de lascívia e muitas vezes toldados com o álcool, eram mais fáceis de depenar, vivos, do que gansos, mortos.Foi um relógio em ouro tirado a um vereador da cidade que me levou a Newgate, pois discuti com a minha senhoria sobre a renda e ela levou a queixa dele ao juiz por despeito. Por isso, tal como a velha do Lancashire havia dito, atravessei o Oceano até à Virgínia, só que fui num transporte de condenados. Queimaram-me a m?o para me marcar, como aos condenados, e venderam-me para trabalhar na planta??o durante os sete anos da minha pena, depois dos quais disseram que eu me tornaria de novo uma mulher livre.O meu amo come?ou a gostar de mim, pois eu ainda n?o passava dos dezassete anos de idade e tirou-me dos campos de tabaco para a cozinha dele. Mas o capataz n?o gostou que eu n?o voltasse a provar do seu chicote e come?ou-me a amolar sem piedade que, uma vez que eu tinha sido prostituta em Cheapside, n?o me devia fingir uma mo?a honesta com ele na Virgínia. Atirando-se a mim quando eu estava sozinha em casa, com o meu amo para a igreja, sendo Domingo de manh?, este capataz estendeu uma m?o ao meu peito e a outra por baixo da minha saia, diz que eu vou ao castigo, quer queira, quer n?o. Peguei na faca grande de trinchar e cortei-lhe as orelhas, primeiro uma, depois a outra. Que vis?o! Sangrava como um porco na matan?a; grunhe, pragueja, fujo para o jardim com a faca na m?o, a escorrer.Vendo-me em tal agita??o, o jardineiro, surgindo com um cesto de hortali?a, grita: “Que é isso, Sal?”“Bem”, digo eu, “o capataz tentou meter-se agora mesmo comigo e eu arranquei-lhe as orelhas e também lhe devia ter arrancado a pila.”O jardineiro, um negro bem-humorado, ele mesmo escravo e ele mesmo já tendo provado das carícias do chicote do capataz por mais de uma vez, n?o se p?de impedir de rir e diz-me: “Ent?o tens de desaparecer daqui para fora, Sal, e entregar o teu destino nas m?os do ?ndio selvagem, pois isto é um caso para a forca.”Entrega-me o len?o dele com um peda?o do almo?o e uma caixa de pederneira que trazia consigo, que escondo no bolso do avental e mostro à planta??o um belo par de calcanhares, digo-vos eu, adicionando à minha lista de crimes o mais odiento: fuga à servid?o. Sou uma boa caminheira, como podeis julgar da minha caminhada de Lancashire a Londres e, quando a noite chega e me sento para comer o naco de p?o e presunto do jardineiro, já havia mais de quinze milhas entre mim e a planta??o e bem duras, porque o meu amo tinha desobstruído o terreno para plantar tabaco. O meu plano é caminhar até chegar a um sítio onde os ingleses n?o têm domínio, pois ouvi dizer que os espanhóis e os franceses est?o nesta costa também e lá posso exercer o meu mister entre os estrangeiros, pois uma prostituta apenas precisa da pele para montar negócio.Precisais de saber que eu de geografia n?o percebia nada e pensava que da Virgínia à Florida n?o eram mais do que dez ou doze dias de marcha no máximo, pois sabia que era muito longe e n?o conseguia pensar numa dist?ncia maior do que essa, uma vez que a grande vastid?o das Américas me era ent?o desconhecida. Quanto aos índios, pensei eu, bem!, se consigo afastar o capataz com a minha faca, sou demasiado forte para eles, caso os encontre, por isso dormi sob as estrelas, orientei-me pelo sol de manh? e continuei.Bebi água dos riachos e, como era a época das amoras, fiz de um pouco de fruta o meu mata-bicho, mas as minhas entranhas come?aram a revolver-se à hora de almo?o e lancei o olhar à volta em busca de penso mais sólido. Ao ver os ramos cheios de pequenos animais e pássaros desconhecidos para mim, pensei: “como posso eu passar fome se usar o meu engenho?” Por isso, amarrei as cordas dos sapatos de modo a fazer uma pequena armadilha e apanhei uma coisinha pequena, castanha e peluda, parecida com um coelho, mas sem as orelhas, cortei-lhe o pesco?o, esfolei-o e assei-o na ponta da minha faca de trinchar numa fogueira que fiz com a aben?oada caixa de pederneira que o jardineiro me tinha dado. Portanto, só faltava sal e um pouco de p?o.Depois de almo?ar vi como os carvalhos estavam cheios de bolotas nesta altura e pensei que podia esmagá-las entre duas pedras lisas, com um pouco de esfor?o e conseguir assim uma espécie de farinha, como se fazia lá em casa em alturas de necessidade. Pensei na maneira de misturar esta farinha com água, de modo a formar uma massa. Depois podia cozer a massa em bolinhos nas achas da minha fogueira e acompanhar a carne com p?o. E, se quisesse peixe à sexta-feira, como era costume da minha senhora do Lancashire, podia apanhar trutas que eram abundantes no riacho, coisa que todas as raparigas do campo sabem fazer e o que n?o era mais difícil do que roubar carteiras. Também me dava a impress?o que, se secasse as amoras ao sol, mantinham-se doces durante um mês. Ao chegar a este adianto no planeamento da minha dieta, pensei, bem, vou dar-me bem sozinha por aqui, no mato, durante uns tempos, mesmo que tenha que comer carne sem sal! Pois, penso eu, tenho o a?o e o fogo e o clima é suave e a terra fértil; este paraíso terreno certamente alimentar-me-á. Posso construir um abrigo com os ramos e esperar calmamente até que passe a confus?o com o capataz da orelha cortada e depois p?r-me a caminho do sul quando eu muito bem entender. Além do mais, para dizer a verdade, tinha o nariz demasiadamente cheio do fedor da humanidade para apreciar um regresso fugaz a um bordel qualquer na Florida. Mas achei que deveria continuar a viajar mais um pouco, por uma quest?o de seguran?a pelas profundezas da mata, para evitar que alguns batedores me encontrem e me devolvam à forca, que eu muito receava, e posso dizer-vos que tinha mais pavor do homem branco, que conhecia, do que do pele-vermelha, que, na altura, me era desconhecido.Portanto, segui viagem mais um dia, vivendo facilmente do que a terra me dava; e depois um dia mais e nunca ouvi uma voz, a n?o ser a do chilreio dos pássaros; mas, no dia seguinte a esse, ouvi uma mulher a cantar e vi uma dos da tribo selvagem numa clareira e pensei matá-la antes que ela me matasse, mas depois vi que ela n?o tinha armas e estava a apanhar ervas e a colocá-las num belo cesto. Por isso, afastei-me para trás, n?o fosse ela uma serva índia de um colono, apesar de achar que agora caminhava onde ninguém do meu país alguma vez pisara. Mas ela ouve o restolhar da folhagem e salta como se tivesse visto um fantasma de maneira que derruba o cesto e as ervas espalham-se.N?o pensei duas vezes e avancei para a ajudar a apanhar as ervas, como se estivesse de novo em Cheapside a correr para ajudar uma vendedeira de fruta que tivesse deitado abaixo o cesto das ma??s.A mulher vê a marca na minha m?o e resmunga para si mesma como se soubesse o significado daquilo e n?o me fosse temer por isso, ou melhor, n?o me receia por causa disso, mas no entanto n?o gosta do meu ar. Afasta-se apesar de me tirar outra vez o cesto, como que para me deixar na floresta. Mas fico impressionada com o aspeto dela, é uma mulher bela, n?o vermelha, mas maravilhosamente castanha e passou-me pela cabe?a abrir o meu corpete, mostrar-lhe os seios, para ela ver que, apesar de ter uma pele mais branca, podia dar de mamar t?o bem como ela e ela avan?ou e tocou-me no peito.Era uma mulher para aí de meia-idade, vestida apenas com uma saia de pele de veado e resmungou ao ver o meu espartilho -- eu ainda trazia vestidos os meus paramentos ingleses, apesar de esfarrapados -- e fez-me sinal, pensei eu, que barbas de baleia n?o eram a moda entre a na??o índia. Por isso, livrei-me do meu corpete e atirei-o para uns arbustos e assim fiquei a respirar melhor. Ent?o, por gestos, pediu-me que lhe desse a faca grande que eu enfiara no avental.“Agora é que eu estou feita!” pensei eu, mas dou-lha e ela sorri, embora n?o muito, pois estes selvagens n?o mostram os sentimentos t?o bem como nós e pronuncia uma palavra que tomo por “Faca”. Repito, apontando para a faca, mas ela abana a cabe?a e corre o dedo pela l?mina abaixo, por isso digo, a seguir a ela: “Afiada”. Ou uma palavra que podia significar “afiada”. E foi a primeira palavra da língua Algonquina que eu alguma vez disse, embora n?o tivesse sido de modo nenhum a última. Ent?o, ao ver esta velha com uma forma, que eu pudesse ver, que n?o estava marcada por ter dado à luz e lembrando-me da Rainha Virgem, sobre quem a minha senhora me tinha ensinado, ponho-a à prova com: “Shalom”, que ela candidamente repete, mas que vejo que n?o significa nada para ela.Ela faz-me sinal: devo segui-la? Acho que o capataz jamais virá procurar-me entre os peles-vermelhas. Por isso, vou com ela para a cidade índia e foi deste modo, n?o de outro, que fui “levada” por eles, apesar de o Ministro interpretar de outra maneira, que eles me levaram com violência, contra a minha vontade, arrastando-me pelos cabelos e se ele quiser acreditar nisso, ent?o que acredite.A sua cidade asseada e bonita estava construída no interior de uma cerca baixa de madeira, ou pali?ada, as casas feitas de casca de vidoeiro estavam construídas em jardins com trepadeiras com abóboras e o cheiro da carne que cozinhavam perfumava o ar, pois estávamos próximo da hora do almo?o. Estavam a cozinhar o que chamavam “succotash”, com um pote grande sobre uma fogueira ao ar livre, um selvagem nu, agachado à sua frente, com todo vagar ati?ando as chamas com um abanador de vidoeiro. A cidade era rodeada por campos de tabaco e milho muito bem cultivados e por um rio. Mas n?o vi animal algum, nem vacas, nem cavalos, nem galinhas, porque n?o os têm. Leva-me para a sua cabana, onde vive sozinha por causa do seu ofício e dá-me água para me poder lavar e um molho de penas para me secar, pelo que fiquei bastante refrescada.Tinha ouvido dizer que estes índios eram drag?es mortíferos, acostumados a comer a carne de homens mortos, mas as bonitas criancinhas nuas que brincavam na poeira com os seus bonecos, ah!, tais patinhos nunca poderiam ser alimentados a carne canibal! E a minha “m?e” índia, como lhe comecei a chamar, assegurou-me que, apesar dos seus primos do Norte assarem as coxas dos seus cativos e as partilharem cerimonialmente, era como, digamos, uma refei??o sacramental para honrar o morto, devorando-o. Muitas vezes discuti com o Ministro sobre este aspeto, que a refei??o dos Iroqueses n?o passa de uma Missa em estado natural. E o Ministro dirá também que, ou eu vivi tanto tempo com Sat?, que me acostumei aos seus usos, ou que a Missa Romana n?o passa de um festim Iroquês em roupas de cerimónia.No que me diz respeito, entre os índios, só como peixe, ca?a ou aves, cozidos ou assados, além de milho preparado de diversas maneiras, feij?es, sucos da época, etc., sendo esta uma dieta t?o saudável que é muito raro ver um corpo doente entre eles e nunca os vi, nem tremer com paralisia, nem com dores de dentes, nem com os olhos inflamados, nem debilitados com a idade.Estando o tempo agradável, ao princípio corava ao ver a nudez dos selvagens, pois os homens estavam acostumados a andar vestidos com pouco mais do que uma tanga naquela esta??o e as mulheres com apenas um trapo à volta. Mas em breve deixei de dar import?ncia a isso e troquei o meu corpete por um em pele que a minha m?e me deu e também me deu um colar de contas que fazem com conchas, pois dizia que n?o tinha filha para mimar até os bosques lhe enviarem esta, pela qual estava agradecida aos ingleses por a terem abandonado.A bondade desta mulher para comigo n?o tinha fim e eu vivi na cabana com ela, porque ela n?o tinha marido, uma vez que era, por assim dizer, a parteira da tribo e tinha o tempo todo tomado a cuidar de mulheres a parir. E era para fazer po??es para aliviar as dores do parto e as dores das mulheres que ela estava a apanhar ervas no bosque quando eu a vi pela primeira o é que vivem, estes pretensos semidemónios? Os homens têm uma vida fácil, passam toda a vida livremente e sem fazer nada, exceto quando ca?am ou lutam contra os seus inimigos, uma vez que todas as tribos est?o constantemente em guerra umas com as outras, e também com os ingleses; e o Werowance, como lhe chamam, n?o é o chefe ou o governante da aldeia, apesar de os ingleses dizerem que ele o é, mas é o homem que é o primeiro na batalha, por isso é geralmente um homem mais corajoso do que o generais ingleses que comandam os seus soldados da retaguarda.No que me diz respeito, fiquei com a minha m?e índia na cabana dela e aprendi com ela os costumes índios, tais como sentar-me sobre os joelhos no ch?o para comer a minha comida, que estava disposta em cima de um tapete à minha frente, porque eles n?o têm mobiliário. Aprendi a curar e a curtir mantas de pele de veado, de castor e outras peles e a decorá-las com conchas e penas. Tinha comigo uma caixinha de costura no bolso do meu avental e a minha m?e gostava muito das agulhas de metal, assim como da caixa de pederneira, que guardou com satisfa??o, enquanto que achava a minha faca de trinchar uma coisa maravilhosamente útil, uma vez que eles n?o tinham ideia de como se trabalha o metal, apesar de as mulheres fabricarem excelentes potes com o barro do rio e os cozerem muito habilmente numa fogueira ao ar livre, enquanto que n?o se vê nenhum homem com barba, pois eles conseguem barbear-se muito bem com l?minas de pedra.E devo dizer que eles tinham realmente uma ou duas armas, pois, um pouco antes da minha chegada, veio um escocês a trocar armas e álcool em troca de mantas decoradas e, quanto aos efeitos do álcool, n?o digo nada, a n?o ser que os deixa loucos, mas quanto às armas, logo aprenderam a usá-las. Com a época das colheitas a chegar, reuniam o seu milho, uma espécie muito pobre e pequena de milho, no meu modo de ver, as cabe?as apenas um pouco maiores do que o meu polegar e cavávamos buracos no ch?o com dois ou três metros de profundidade e a parte do milho que n?o tínhamos comido secávamos e armazenávamos debaixo da terra. Mas cavar custava muito, uma vez que eles n?o tinham pás, nem enxadas, exceto as que roubavam aos ingleses, por isso, tínhamos de improvisar com paus ou omoplatas de veados. E se é que tenho algo a apontar a esta tribo é que os homens n?o tinham nada a ver com esta agricultura, apesar de ser trabalho pesado, mas iam à pesca no riacho, ou iam perseguir veados, ou metiam-se em dan?as e outras tontices que tais, para fazer crescer o milho.Mas a minha m?e dizia: “N?o há mal nenhum nisso e assim eles n?o estorvam.”Na mudan?a de esta??o, já estava a papaguear na língua índia, como se tivesse nascido a falá-la, apesar de n?o conter nem uma palavrinha de hebreu, por isso acho que a minha senhora do Lancashire se tinha enganado ao dizer que eles eram a tribo perdida de Israel e, quanto a convertê-los à verdadeira religi?o, estava t?o ocupada com uma coisa e outra, que isso nunca me passou pela cabe?a. Quanto à minha cara pálida, lá pelo fim das colheitas, estava t?o castanha como qualquer das deles, e a minha m?e tingiu-me o cabelo claro com uma espécie de tinta escura, por isso ficaram acostumados à minha presen?a no meio deles e ao fim de seis meses pensar-se-ia que aquela a quem eu chamava minha ‘m?e’ era mesmo a minha m?e natural e eu era índia de nascimento, exceto pelos meus olhos azuis, que permaneciam um mistério.Mas apesar de todos os la?os de afeto entre nós, poderia ainda pensar em continuar a minha jornada em dire??o à Florida, como estava a ficar mais frio, tal é o poder dos usos e costumes, n?o tivesse eu pousado os olhos num bravo daquela tribo que n?o tinha mulher e ele pousado os olhos em mim, mas ele nunca diz uma palavra. Dá a impress?o que ele sempre quis fazer o que estava certo comigo. Por isso, foi a minha m?e que me disse finalmente: “Aquele Nogueira Alta que conheces queria que fosses a mulher dele.” Nogueira Alta era o que o nome dele significava e era um nome t?o vulgar entre eles como James ou Matthew eram no Lancashire.E agora, que falo nisso, choro, pois ele era um homem bom.“Como posso eu ser a mulher daquele homem bom, m?e, se eu era uma mulher má na minha própria terra?”“Uma mulher má?” diz ela. “O que é isso?”Ent?o, contei-lhe aquilo que fazia para ganhar a vida em Cheapside e de como era uma ladra por voca??o natural. Quanto a prostituir-me, ficou muito surpreendida de ouvir dizer que os homens ingleses se davam ao trabalho de pagar pelo que eu tinha para vender, pois as índias quando o oferecem, fazem-no de gra?a e, quanto a ter perdido a minha virgindade, ri-se e diz: “se n?o fosses boa, ninguém te tinha querido.” Mas lamenta a minha gatunice, até que, por fim, me diz: “Bem, minha filha, eras capaz de me roubar uma ta?a, ou cintur?o de wampun, ou uma manta, guardá-los para ti e negá-los a mim?”“Como podia eu fazer tal coisa, m?e”, digo eu. “Se eu precisar de alguma coisa, posso usá-la e devolver-ta, como tu fazes com as nossas agulhas e com a caixa de pederneira e com a faca. E o mesmo se passa com fulano e sicrano” -- mencionando os nossos vizinhos. “E para te dizer a verdade, n?o existe nada na aldeia que excite a minha paix?o antiga de avareza, e quanto ao meu jantar, se precisar, posso partilhar de qualquer pote ao lume no país dos índios, como é o uso. Portanto, nem o desejo, nem a necessidade poder?o transformar-me em ladra, aqui.”“Ent?o és uma mulher boa entre os índios, apesar de ti mesma, e penso que vais permanecer assim”, diz ela. “Porque n?o casar com o rapaz?”Ora certos homens da aldeia, como o general e o sacerdote, como o poderia designar, vendo que ele tratava da religi?o, tinham, n?o uma mulher, mas três ou quatro para lhes cultivar os campos e eu n?o gostava disso. Eu tinha que ser a única na casa do meu marido, uma fantasia da minha antiga vida, que n?o podia perder. E ela fica a pensar nisso, apesar de nunca ter sido a mulher de nenhum homem, n?o tendo, diz-me ela com uma piscadela, muito amor pelo sexo deles e sim muita inclina??o pelo seu próprio.“Quanto a nós, somos um povo demasiado recatado e decente para o assunto do matrimónio se meter entre uma mulher e as suas amigas!”, diz ela. “Quanto mais mulheres um homem tiver, melhor é a companhia para elas, mais colos há para as crian?as e mais milho podem semear, por isso, melhor vivem todos juntos.”Mas ainda assim eu disse que seria a sua única mulher ou nunca casaria com ele.“Ouve, minha querida”, disse ela. “N?o me amas?”“De facto”, digo eu. “Com todo o meu cora??o.”“Nesse caso, se o teu querido quiser casar com nós as duas, amavas-me menos por isso?”Mas eu baixei a cabe?a e abstive-me de responder àquilo, com receio que ela pedisse ao meu amado que a levasse também juntamente comigo, pois eu estava t?o apanhada por ele, que n?o conseguia pensar que outra mulher qualquer, por mais decidida que estivesse a tal, ficasse com ele, se tivesse oportunidade. Depois dá-me uma palmada no rabo e exclama: “Ora, filha, vê lá que coisa mais doida é a ciumeira, que pode p?r uma filha contra a própria m?e!”Mas ela condói-se ao ver-me chorar de vergonha e diz que está demasiado velha e teimosa para pensar em casamento e além disso, o meu rapaz está t?o apaixonado por mim, que casará comigo nos meus próprios termos, à maneira inglesa. Eles s?o educados a amar as suas esposas e a deixá-las fazer as coisas como quiserem, independentemente de com quantas casem e se eu quiser o fardo de cultivar um peda?o de milho com apenas as minhas duas m?os, nesse caso, ele n?o interferiria com isso.Casámo-nos na altura em que eles estavam a plantar o milho, que celebram com uma boa dose de cantorias e de dan?as, apesar de sermos nós, as squaws, a vergar as costas para plantar as sementes. A época do aniversário da minha chegada à cidade passou, veio de novo o inverno e, pela primavera já estava bem a caminho de lhe trazer um bravozinho. Foi maravilhoso ver a ternura que o meu marido demonstrava para comigo quando o sol aquecia e me fazia suar, ficar cansada, pesada, irritável, tanto, que muitas vezes desejava estar em Inglaterra de novo; mas ele suportou isso tudo.Ora, por esta altura o general da nossa aldeia reuniu o conselho para decidir o modo como todas as tribos desta parte do território deveriam resolver as suas quest?es e juntar-se num grande exército para mandar os ingleses para o sítio de onde tinham vindo, ao passo que alguns dos outros diziam que deviam, em vez disso, assinar tratados com os ingleses contra as tribos que fossem os seus inimigos naturais e deste modo conseguir mais armas dos ingleses.Mas eu mandei dizer pelo meu marido -- as mulheres n?o iam aos conselhos mas estavam acostumadas a que os maridos transmitissem as suas mensagens -- mandei dizer por ele que seriam precisas todas as tribos de todo o continente para afastar os ingleses, e nesse caso os ingleses só se iriam embora para voltar em números dobrados, t?o desejosos estavam de “povoar a colónia” comigo e com outros pobres diabos como o que eu tinha sido. Por isso, disse-lhes logo que deveriam levantar uma confedera??o grande, guerreira e bem armada de todas as na??es índias e nunca confiar numa palavra do que os ingleses diziam, pois os ingleses seriam todos ladr?es, se pudessem, e eu era a prova viva disso, que apenas deixara de roubar quando já n?o havia mais nada para roubar.Mas n?o fizeram caso de mim e n?o conseguiam p?r-se de acordo sobre a maneira pela qual, caso se vissem obrigados a tal, a guerra deveria ser travada, se um ataque a Annestown à noite, rastejando como ursos, com arcos nas bocas, ou apanhar os ingleses um a um quando estivessem à ca?a ou em lugares isolados, ou enfrentá-los como um exército. Era o que mais lhes agradava, porque era o mais honroso, mas, no meu modo de ver, era p?r a cabe?a na boca do lobo. Enquanto alguns ainda mantinham que os ingleses eram seus amigos, porque eram inimigos do seu inimigo. Acabaram por cair numa discuss?o entre eles e n?o resultou nada daquela conversa toda, o que foi uma grande tristeza para mim, pois estava à espera de bebé e queria uma vida sossegada.Estive a esgravatar com o meu pau agu?ado os pés de feij?o do jardim até ao minuto exato em que se me romperam as águas e deito a correr para o pé da minha m?e e, uma hora mais tarde, julgo eu, pois eles n?o têm como medir o tempo exatamente, já ela estava a lavar o sangue do meu filhinho.Ao meu filhinho chamámos-lhe o que seria na nossa língua Pequena Estrela Cadente e, bem podem rir disso, mas é um que já foi dado a muitos homens de valor. E ele é amarrado na sua pranchazinha, para que possa andar às minhas costas na sua cestinha de vidoeiro e eu estava t?o satisfeita com ele como qualquer mulher estaria. E foi desta maneira que o destino que a velha senhora do Lancashire previra para mim acabou por se realizar porque o pai do meu rapaz nunca descendeu da tribo de Sem, Cam ou Jafé, apesar de a m?e se assemelhar mais a Maria Madalena, ou prostituta arrependida do que a Maria a Virgem, ainda que o Ministro n?o aprove essas coisas, sendo um dissidente, e n?o me deixa falar disso.Mas viria a verificar-se que a coroa do mocinho seria de lágrimas, n?o de ouro.Ora, com a confedera??o dos Algonquinos a desfazer-se, os ataques dos ingleses às aldeias do sul tornavam-se a cada semana mais graves, mas os nossos intrépidos bravos sustiveram-nos durante uns tempos. Os generais desta regi?o realizaram conversa??es sobre se haveríamos de ficar todos e defender as nossas aldeias, ou bater em retirada, quer dizer, pormo-nos a mexer, apanhar as nossas armadilhas e deixar os nossos campos e mudarmo-nos para ocidente, em dire??o a novas pastagens, depois da colheita, que estava próxima. Mas estavam relutantes em fazer isto, pois para oeste estavam os Rechacrianos, uma tribo guerreira que n?o era fácil de transpor. E enviaram um grupo de guerreiros para dar a provar aos ingleses do próprio veneno, para come?ar, mas eu estava cheia de medo que o meu marido n?o regressasse.Pinta o rosto de preto e vermelho, por isso o bebé chorou ao vê-lo e todos saem e todos regressam, com sangue nos machados, e vários escalpes de cabelo amarelo que ele pendura na trave mestra da nossa tenda, além de saques de cafeteiras de cobre, balas e pólvora. E também, oh!, rum.Devo dizer, contudo, quando vi pela primeira vez estes tufos de cabelo ingleses, só senti prazer, apesar de o cabelo deles ser da cor do meu. Mas o Ministro diz que sou uma boa menina e que Deus me perdoará pelos pecados que cometi entre os índios.Quanto à pólvora, Nogueira Alta, o meu marido, contou-me que, quando os ingleses a entregaram ao general, há uns anos, os ingleses disseram-lhe, com uma alegria dissimulada, como é que a havia de enterrar, como sementes de milho, para depois ver as balas a germinar. E os índios ficaram ressentidos desde essa altura, de serem enganados que nem crian?as tontas, quando os ingleses teriam morrido à fome se o Pele Vermelha lhes n?o tivesse ensinado a plantar milho.Trouxeram o prisioneiro amarrado ao barril de pólvora e amea?aram-no de que acenderiam um rastilho lento com as tochas. Deixaram-no no meio da aldeia e maltrataram-no na sua embriaguez, pois transformavam-se em demónios com um pouco de álcool dentro deles, tenho de admitir.“Agora, minha querida”, diz o meu marido, que estava sóbrio como uma pedra, só de medo da minha língua afiada. “Tenho de te pedir para falares com este sujeito na tua língua, para que saibamos se os seus patrícios se lembrar?o finalmente de certas juras e tratados em tempos assinados connosco, ou se querem, na verdade, atirar-nos para os bra?os dos Rechacrianos, com quem n?o estamos em termos amigáveis, o que será pior para nós, apanhados entre os dois.”? primeira, n?o queria fazê-lo pois sentia pena deste inglês, eles eram muito impiedosos com os seus cativos e fizeram um festival cruel com este, com a bebida e tudo. Foi quando me recordei deste sujeito montando o seu cavalo altivo pelo cais fora em Annestown, quando os condenados eram descarregados acorrentados dos por?es do navio e toda a piedade me abandonou.Quando ele ouve o meu inglês, “Louvado seja Deus!”, grita ele, e diz-me logo que eu tenho de entregar as minhas tribos aos brancos em nome de Deus, do Rei de Inglaterra e de um perd?o gratuito atirado quando me vê a m?o. Mas eu mostro-lhe o bebé e ele chama-me todo o tipo de nomes ofensivos, até puta entre os pag?os, por isso eu enfio-lhe um pau afiado na barriga para lhe ensinar as boas-maneiras. Ele grasnou com isso, mas n?o dirá nada sobre os soldados, ou onde é que poder?o estar, mas apenas que as sementes malditas ser?o erradicadas da terra. Desamarraram-no do barril, pois n?o queriam desperdi?ar pólvora boa com ele e penduraram-no sobre a fogueira. Em breve estava morto.Quando vasculhei nos bolsos dele, estavam cheios de moedas e as crian?as todas come?aram a brincar com as moedas de ouro, fazendo-as ricochetear na água do rio. Mas o relógio de ouro dele, dei-lhe corda e ofereci-o ao meu marido em memória daquele que tinha roubado ao vereador.“O que é isto?”, diz ele, na sua inocência. De repente, come?a a dar as doze horas, pois era meio-dia e ele assusta-se, deixa-o cair, aquilo parte-se tudo, as rodas dentadas e molas espalham-se pelo ch?o, e o meu marido, pobre selvagem supersticioso que era, apesar de ser o melhor homem do mundo, o meu marido come?ou a tremer como varas verdes e disse que o relógio era “mau remédio” e mau presságio.Por isso, afastou-se e embebedou-se com os outros. Vasculho a papelada nos bolsos do cavalheiro e descubro que pusemos fim à vida do governador de toda a Virgínia e digo-lhes isso mesmo, cheia de apreens?o, mas eles estavam todos t?o transtornados pelo álcool, que n?o se conseguia falar com eles antes de dormirem para lhes passar a ressaca, mas mesmo antes do nascer-do-sol no dia seguinte os soldados apareceram a cavalo.Queimaram os campos de milho que estavam prontos para a colheita e pegaram fogo à pali?ada que ardeu toda e a nossa cabana ardeu quando a pólvora se incendiou, por isso vi o massacre claramente como se fosse dia. Enfiaram uma bala na cabe?a do meu marido, com ele de pé e confuso, eu tinha-o tirado da cabana logo que ouvi o fogo estalar, mas ele era um homem grande, n?o podiam falhar. E os pobres selvagens, bêbados e sonolentos foram todos ceifados. Peguei no bebé e fui esconder-me no espanta-pardais no milharal, que era uma plataforma sobre pernas com uma pele por cima, e assim escapei.Mas os soldados apanharam a minha m?e quando ela corria para o rio com o cabelo em chamas e ela grita-me ao ver-me fugir: “Sua filha ingrata!” Pensava que eu me estava a preparar para me juntar aos ingleses, o que n?o era assim, de maneira nenhuma. A seguir violaram-na e depois cortaram-lhe a garganta. Tudo acabou rapidamente ao romper da aurora, nada restando sen?o cinzas, cadáveres, a viúva chorando os seus filhos mortos, soldados encostados às armas, satisfeitos com aquela noite de trabalho e com a maneira corajosa como tinham vingado o governador.O bebé desatou a chorar. Um daqueles brutamontes, ao ouvi-lo, aproximou-se, desbastando o milho queimado, rompe até ao espanta-pardais, derruba-o e eu caí de costas, o bebé escorrega-me dos bra?os e abre a cabe?a numa pedra, soltando um grito horrível, mesmo o cora??o mais empedernido teria corrido logo para ele. Mas este soldado assenta o joelho na minha barriga, desaperta as cal?as com a inten??o de me violar, ele ia precisar de ter a for?a de dez homens para me segurar, mas de repente desiste do seu tatear horrível, surpreendido.“Capit?o!” diz ele. “Veja aqui! Está aqui uma squaw de olhos azuis, como eu nunca vi antes!”Com o punho, agarra-me pelos cabelos e arrasta-me até onde o capit?o destes bons soldados está a lavar as m?os ensanguentadas numa bacia de água fresquinha, enquanto os homens dele procuram as wampun e as mantas como troféus de guerra. Pergunta-me pelo nome e se eu falo inglês; depois, holandês; depois francês; tenta em espanhol, mas eu n?o digo nada, exceto, na língua algonquina: “Eu sou a viúva de Nogueira Alta.” Mas ele n?o consegue entender aquilo.Descobriram por fim eu n?o era de facto uma mulher de sangue índio com um truque, pois um deles foi buscar o meu bebé onde o tinham deixado a berrar no milharal e apontou-lhe a faca, como se fosse espetar a l?mina afiada no meu pequerrucho.“N?o fa?as isso!” Gritei eu, enquanto os outros me afastavam dele, sen?o eu arrancava-lhe os olhos com as minhas próprias m?os. O que eles riram, quando a “squaw” de penas no cabelo gritou com o sotaque do Lancashire. Depois o capit?o vê a minha m?o queimada e chama-me “fugitiva” e diz que haverá um pre?o sobre a minha cabe?a e acima da recompensa pelos índios. E tro?a de mim, dizendo que me marcará a face com um “F” de “fugitiva” quando chegarmos a Annestown, para que n?o possa prostituir-me com os índios, nem com mais ninguém. Mas tudo o que eu quero é que me empreste o len?o, ensopado em água, para limpar a ferida na testa do meu bebé e ele, finalmente, foi condescendente com isso.Foi quando voltei a pegar no bebé e lhe dei de mamar, pois tinha fome, e depois segui com os soldados, porque n?o tinha escolha, a minha m?e e o meu marido mortos e, para dizer a verdade, o meu ?nimo destro?ado. E as poucas “squaws” que foram deixadas vivas, a quem eu costumava chamar “irm?s”, seguiam atrás de nós, pois os soldados queriam mulheres e as mulheres queriam p?o e n?o ficou um bravo vivo naquela parte do Novo Mundo, a que agora podíamos chamar “um belo jardim ressequido de gente”. E no rio que regava este paraíso terrestre corria sangue.As squaws culpavam-me, que lhes tinha trazido má sorte e cruelmente devolviam-me a simpatia delas. Quanto a mim, o meu desgosto estava misturado com o medo, por causa da memória do capataz a quem eu tinha cortado as orelhas, que isto tudo vá acabar numa queda num buraco sem fundo, quando eu regressar ao tribunal.Chegámos a um lugar com poucas casas onde tinham acabado de construir uma igreja e: “Eis aqui um peda?o de carne arrancado a Satanás”, diz o que me fez viúva ao Ministro, que me manda agradecer a Deus ter sido salva dos selvagens e pedir ao Senhor meu Deus perd?o por me desviar do Seu caminho. Eu apanhei a deixa e ajoelhei-me, pois vi que o arrependimento era a moda por estes lados e, quanto mais disso eu mostrar, melhor será para mim. E quando me perguntam o nome, eu dou-lhes o nome da minha velha senhora do Lancashire, que é Mary e mantenho isso, por isso vivo como se fosse o fantasma dela e todas as suas profecias se realizam, exceto que na verdade eu era Nossa Senhora do Massacre e acho até que o meu filho mesti?o terá a marca de Caim pois a cicatriz por cima do olho esquerdo nunca desaparece.A mulher do Ministro saiu da cozinha com um velho robe dela e diz para eu tapar os seios, por pudor, mas a crian?a chora e n?o se acalma. Contudo, ela é decente e também o Ministro, como os seus atos provam agora, pois n?o deixaram os soldados levar-me para Annestown com eles e ofereceram ao capit?o uma boa soma em dinheiro para que me deixasse com eles, por causa do meu bebé inocente. O capit?o titubeia e o Ministro junta mais um guinéu. O garboso soldado embolsa o ouro e todos partem a galope e o Ministro quis dar ao meu filho um nome bíblico qualquer, Isaac, Ismael, ou coisa que o valha. “Ele já n?o tem um nome bom?” digo eu. Mas o Ministro diz: “Pequena Estrela Cadente” n?o é nome para um Crist?o”, e um Crist?o batizado tem o meu rapaz de ser para a sua alma ser admitida na congrega??o dos aben?oados, apesar de que o pobrezinho nunca encontrará o pai lá. E quando é que esses mortos se erguer?o e ser?o vingados? Mas quanto a mim, n?o o irei chamar pelo nome que o Ministro lhe deu; nem lhe falo sem ser na língua índia, quando mais ninguém está por perto.Passados uns tempos apareceu uma história de como, dois anos ou mais antes, os índios chegaram à socapa a uma planta??o a norte, assassinaram um capataz e roubaram uma escrava da casa. O jardineiro viu-os a arrastá-la pelo seu cabelo amarelo. Penso cá para mim, que o jardineiro deve ter acertado umas contas, que tenha boa sorte, e se escolherem pensar que fui for?ada ao cativeiro, ent?o têm a minha autoriza??o para tal, desde que me deixem ficar sossegada, o que, porque o Ministro tem um forte desejo de salvar a minha alma e a mulher dele gosta do meu pequerrucho, já que eles n?o têm filhos, acaba por acontecer, pois pagaram uma boa quantia para nos manter afastados da justi?a. E eu bem valho esse dinheiro, fa?o todo o trabalho pesado, acarto água, corto a lenha.E assim eu lavava o ch?o do Ministro, fazia o jantar, lavava as roupas e, por mais que o Ministro jurasse que tinham vindo para edificar a Cidade de Deus no Novo Mundo, eu continuava a ser uma reles criada, como tinha sido no Lancashire e n?o havia oportunidades para uma prostituta na Comunidade dos Santos, se eu conseguisse encontrar no meu cora??o o mais leve desejo de voltar ao meu antigo ofício. Mas isso eu n?o poderia fazer; os índios haviam-me condenado a ser uma mulher boa de uma vez por todas.Passado pouco tempo, a mulher vem ter comigo e diz-me: “Ainda és uma mulher nova, Mary e o Jabez Mather diz que te tomará por esposa, uma vez que a dele morreu de disenteria, mas n?o te fica com a crian?a, por isso, fico eu.” Mas ela jamais terá o meu rapazinho como filho, nem eu tomarei o Jabez Mather por marido, nem qualquer outro homem vivo, antes sentar-me e chorar junto às águas da Babilónia.O Menino da Cozinha“Nascido em palco”, é costume dizer-se quando um ator bebe a maquilhagem com o leite materno e, se houver um equivalente culinário para isto, ent?o certamente eu mere?o-o, pois n?o fui eu concebido enquanto um soufflé subia? Um soufflé de lagosta, excelente escolha, vinte e cinco minutos em forno médio.E o primeiro soufflé que na vida dela como cozinheira a minha m?e foi chamada a fazer, encomendado por um duque francês convidado do Senhor e da Madame, a minha m?e ficou contente como um sino por ter de lho preparar, uma vez que apenas uns poucos gr?-finos se dignavam vir a nossa casa, nem mesmo durante as duas semanas da Grande Ca?ada ao Galo do Mato , altura em que os empoados se agrupavam em manadas para apanhar o prémio com penas que vinha dos céus. Nessa altura é que n?o. Os seus palatos eram como a sola dos sapatos. “Pérolas a porcos”, teria dito a minha m?e, à medida que relutantemente ia enviando os vinte e quatro pratos da sua Arte para cima, para a sala de jantar, sendo que porcos exibiriam mais gourmandise. Digo-vos que a casa de campo inglesa, sim, é que é o sítio para se empanturrar, mas apenas quando o Senhor e a Madame n?o est?o chez lui. ? o pessoal que mantém o nível.A Madame n?o toca em nada, a n?o ser ostras e uvas em gelo três vezes ao dia, devido ao requinte da sua sensibilidade, enquanto o Senhor fica em jejum e só uma costeleta picante ao sol-posto, tendo ficado com a língua queimada pelo caril quando governava um peda?o de Poonah. (Acho que aqueles indianos punham a comida dele picante por despeito. Ah! A vingan?a do cozinheiro, quando lhe dá para isso – é terrível!) Quanto aos Ca?adores do Galo do Mato, tudo o que queriam eram sanduíches para aperitivo, sanduíches para entradas, seguidas de sanduíches, sanduíches e sanduíches e os seus frasquinhos de tiracolo reabastecidos, ah pois, goela abaixo com o líquido ?mbar vá-se lá saber a que é que sabe?Ora ent?o, a minha m?e teve uma trabalheira enorme com a elabora??o deste seu primeiríssimo soufflé de lagosta, ao mandar o mo?o que amolava as facas na sua bicicleta à praia, a milhas de dist?ncia para arranjar o animal propriamente dito e depois cozê-lo vivo e ele a espernear desesperadamente a tentar sair da panela, etc., etc., etc., por isso a minha m?e andava numa roda-viva antes mesmo de separar as gemas.Ent?o, mesmo na altura em que ela se inclinou sobre o fog?o para misturar a farinha com a manteiga, um par de m?os apertou-a com for?a à volta da cintura. Pensando à primeira que n?o passava de uma brincadeira brejeira, abanou as suas amplas ancas para o afastar ao mesmo tempo que colocava as gemas de ovo na pasta. Mas, quando adicionou a lagosta cortada aos cubos, muito direitinho, sentiu aquelas m?os desviarem-se mais para cima.Foi quando deixou cair demasiada pimenta de Caiena. Lamentou isso sempre. E à medida que incorporava o conteúdo da ta?a de claras batidas em castelo, sabe-se lá o que é que estava a passar pela cabe?a dele, mas a coisa foi tal que ela atirou com tudo para o prato branco com abandono e: “Para o inferno com isto!”Lá vai o soufflé para o forno e a porta do forno bate ruidosamente.Corro um véu.“Mas, m?e!” Suplicava-lhe muitas vezes. “Quem era aquele homem?”“Valha-me Deus, filho”, diz ela. “Nem me lembrei de perguntar. Estava t?o preocupada que a pancada que tinha dado à porta do forno fizesse baixar o soufflé.”Mas n?o. O soufflé cresceu como um bal?o e logo que o seu topo dourado bateu altivo contra a porta do forno, ela irrompeu pelo véu que eu tinha discretamente corrido sobre esta cena de paix?o e emergiu alisando o avental, a fim de extrair o exemplar prato entre ohs e ahs do pessoal da cozinha reunido, alguns quarenta e cinco em número.Mas n?o foi assim t?o exemplar. A cozinheira encontrou um rival no comensal. A governanta traz-lhe ela própria o prato. Atira-lho para a mesa. ‘Ele disse: “trop de cayenne”, e rapou-o do prato para a lareira’, anuncia com um sorriso afetado. Ela é um modelo de requinte e é sempre muito picuinhas com os agás aspirados. Tem solu?os. Ela até aspira o agá em “hic”.A minha m?e chora de vergonha.“O que precisamos aqui é de um chefe -- hic -- congtinental para melhorar le ton,” amea?a a governanta, dirigindo à minha m?e um olhar fulminante ao sair pela porta fora, pois a minha m?e é uma rapariga simples do Yorkshire, por muita magia que tenha nos seus dedos, contudo, n?o há espa?o para duas abelhas mestras nesta colmeia, a governanta detesta-a. E a governanta é perpetuamente picada pela fantasia da importa??o de um Carême ou um Soyer com bigodes que pare?am chapeleiras para a croquembouchar e Mille-feuilleá-la, como está na moda.“Pois n?o é o Alberlin, chef em casa dos queridos Devonshire; e Crépin na da Duquesa de Sutherland. E há também Labalme, em casa do Duque de Beaufort, n?o é verdade?, e a Rainha, benza-a Deus, tem o Ménager dela… ao passo que nós temos que aturar essa vaca gorda que fala com um acentuado sotaque do Yorkshire, nunca tira os chinelos…”Concebido numa mesa de cozinha, nascido no ch?o da cozinha, nenhum sino repicou a dar-me as boas vindas, mas, de um modo muito mais adequado, a minha chegada foi anunciada por um bang! bang! bang! em cada frigideira do lugar, uma verdadeira carga de artilharia de tímpanos de fundo de cobre da cozinha; e o alegre ra-ta-ta contínuo de conchas de sopa contra as tampas dos pratos; e até os próprios c?es que faziam rolar os espetos come?aram a ladrar: “au-au!”Sendo, como se pode facilmente calcular, uns bons três meses para lá de outubro, encontrando-se o Senhor e Madame em Londres, a governanta mantém um belo estilo sozinha, sentada no seu quartinho, desfrutando do melhor Bohea de uma chávena de porcelana de Meissen, ao que adiciona um cuidadoso toque de rum tirado das garrafas fechadas a cadeado, para o qual nos seus amplos tempos ociosos forjara uma chave. A criadita da governanta, que ela mantém para lhe fazer recados, levar as coisas e lamber as botas, a encher a chávena de chá com rum da Jamaica, fica tudo num pandemónio no andar de baixo, como se uma orquestra chinesa tivesse come?ado a tocar os seus xilofones e idiofones, num galope ruidoso.“Que raio é que aquela - hic - plebeda cozinha estará a preparar?” declama a governanta em tons senhoriais e adocicados, dando à orelha da criada um pux?o rápido e cruel, para lhe extrair a bisbilhotice.“Oh, Madamissima!”, titubeou a pobre criatura. “? apenas o bebé da cozinheira!”“O bebé da cozinheira?”Devido à corpulência da minha m?e, que é imensa, ela é redonda como o “o” em “obesa”, e à grande lealdade e afei??o que o pessoal da cozinha lhe dispensa, a governanta nada sabia da minha iminência, mas no meio da crescente zanga, também contente por ouvir isso, uma vez que achava que tinha divisado uma maneira de aliviar a minha m?e do seu posto devido a esta chegada n?o solicitada e depois moer o juízo ao Senhor e à Madame para contratar um cavalheiro solícito e de cabelo com brilhantina para chaudfroid e gêllée e bajulá-la. Lá desce ela imediatamente pelas escadas, uma progress?o majestática, mas n?o muito estável, devido ao rum com um nico de chá que bebe o dia todo, com a criada a correr à sua frente para lhe escancarar a porta.Que espetáculo está à espera dela! Bem poderia ter sido desenhado por Rafael se ele tivesse estado em Yorkshire na altura. A minha m?e, rodeada por sorrisos, entronizada num saco de batatas, com o filho ao peito, muito bem aconchegado num pano para pudim acabado de ferver e toda a brigada da cozinha disposta à sua volta em atitudes de adora??o, cada uma brandindo um utensílio com o qual produziam um matraquear alegre de conchas de sopa, a primeira can??o de embalar deste vosso criado.Enfim, a minha can??o de embalar em breve se dissipou numas ocasionais palmas e tímbales, enquanto a governanta lan?a o seu mais frio olhar.“O que é - hic - isto?”“Um belo rapaz!”, murmura a minha m?e, plantando um repenicado beijo na testa macia que pressionava o seu peito aconchegante.“Já lá para fora!” berra a governanta. “Hic”, acrescenta.Mas que banzé e clamor ela provoca com aquela exigência, como se tivesse lan?ado uma bomba para uma loja de ferragens, pois todos os presentes (exceto eu e a minha m?e) atacam os seus instrumentos improvisados com renovado vigor entoando em uníssono:“O filho da cozinha! O filho da cozinha! N?o p?es lá fora o filho da cozinha!”E isto é a verdade, verdadinha, quem mais poderia eu reclamar como meu progenitor, se n?o aquele lugar guloso que, se n?o me fez, fez com que eu fosse feito? Nem uma criada de copa, nem um mo?o das hortali?as se conseguiam lembrar de quem ou o quê visitara a minha m?e naquela manh? do soufflé, com cada m?o da cozinha chamada a cortar sandwiches, mas alguma forma gorda parece ter assombrado o lugar, sido atraída para a cozinha, como um fantasma para a escurid?o; aquele duque gourmet n?o teria um criado gourmet? Contudo, os seus contornos derretiam como gelatina com o calor do fog?o.“O filho da cozinha!”A brigada da cozinha fez um barulho tal que a governanta se retirou para se recompor com mais um gole de rum no seu quartinho privado, pois, diante de um motim entre as panelas, descobriu pouca coragem no seu espírito e enfiou-se no seu canto, amuada.Os meus primeiros brinquedos foram passadores, batedeiras e tampas de tachos. Tomava banho na terrina em que a sopa de tartaruga era servida. N?o se comeu salm?o até eu come?ar a gatinhar, pois, para minha alcofa, que mais se n?o o tacho de cobre para o salm?o? E este tacho era guardado lá em cima, na prateleira da chaminé, para eu poder dormitar aconchegado e quente afastado do perigo, acalmado pelos deliciosos odores e sons apetitosos da prepara??o dos alimentos e aí arrulhei a inf?ncia por cima da cozinha, como se fosse a sua divindade, lá no alto, no meu minúsculo santuário.E será que n?o há mesmo algo de divino numa grande cozinha? Aquelas abóbadas de pedra enegrecida pela fuligem, lá no alto, por cima de mim, onde baloi?am os presuntos e cabos de cebolas e feixes de ervas secas, fazendo lembrar os estandartes de regimentos desfraldados nas naves das igrejas antigas. As lajes frias e ressonantes impecavelmente esfregadas de joelhos por devotos duas vezes ao dia. O brilho resplandecente de fileira após fileira de recipientes de metal, balan?ando suspensos de ganchos ou repousando nas suas prateleiras até serem necessários com o ar de outros tantos cálices aguardando a celebra??o do sacramento da comida. E o fog?o arranjado como um altar, sim, um altar, ante o qual a minha m?e se inclinava, em perpétua homenagem, uma linha de suor sobre o seu lábio superior e o lume a brilhar-lhe nas faces.Aos três anos, ela deu-me farinha e banha e eu imediatamente inventei a massa quebrada. Sendo eu demasiado pequeno para manejar o rolo, ela coloca-me aos ombros para a ver a espalhar a massa na bancada de mármore e depois pousa-me para ser eu a pisar as tarteletes, lágrimas marotas de alegria pela minha precocidade a escorrer-lhe pela cara abaixo, deixa-me lambuzar-me com a compota de ameixa e lamber a colher como recompensa. Aos três anos e meio já conseguia fazer pasteis folhados e depois disso, ninguém me segurava. Empoleira-me em cima de um banco alto para eu conseguir mexer o molho, embrulha-me no seu avental, que me dá a volta, a volta, a volta, três vezes, enrola-o na cintura, para eu n?o trope?ar nele e cair de cabe?a no meu próprio molho holandês. Por isso, transformo-me em seu acólito.Ler e escrever foram coisas que aprendi facilmente. Aprendi as letras como se segue: A de aspargos, asperges au beurre fondue (apesar de nunca, por causa da minha m?e, com sauce b?tarde); B de boeuf, bife de lombo, assado, principalmente, com um pudim do Yorkshire patrioticamente irrompendo por baixo dele no escorredor; C de cenoura, carrottes, choufleur, camembert, e por aí adiante, até Zabaglione, apesar de eu muitas vezes duvidar do uso que X possa ter, já que n?o aparece em nenhum alfabeto de cozinheiro.E estou t?o ligado a esta cozinha como a cro?te a um p?té ou a maionese a um oeuf. Primeiro, ponho-me em cima do banco para chegar às minhas frigideiras; depois em cima de um balde virado ao contrário; depois em pé. O tempo passa.A vida nesta remota mans?o corre como um regato tranquilo, apenas entrando em turbulência uma vez por ano e nessa altura apenas por duas semanas, mas é confus?o suficiente, a Ca?ada ao Galo do Mato, quando eles todos descem da cidade para nos azucrinar os ouvidos.Apesar do Senhor e da Madame acreditarem que a visita deles é a verdadeira e única raz?o de todos e cada um de nós existirmos, o clímax anual das nossas existências, quando o seu pessoal que, no que lhes diz respeito, está em hiberna??o o resto do ano, acorda para a vida como a Bela Adormecida quando o príncipe lhe aparece, na verdade, damo-nos t?o bem sem eles durante os outros onze meses e meio, que a chegada de Suas Eminências é uma interrup??o crónica da nossa rotina. Passamos a suada quinzena da sua presen?a com a mesma má-vontade de um fidalgo for?ado pelas circunst?ncias a aceitar hóspedes em sua casa e, quanto à haute cuisine, é para esquecer; sanduíches, sanduíches, sanduíches, só querem sanduíches.E nunca mais, em altura alguma, um pedido especial para um soufflé, de lagosta ou de outra coisa qualquer. A minha m?e parecia uma galinha tonta com a chegada da Ca?ada ao Galo, sempre irritadi?a, ausente e, mesmo que n?o viesse pedido nenhum, mesmo assim, todos os anos, preparava na mesma o seu soufflé de lagosta, mandava o mo?o amolador buscar a lagosta, cozia-a viva, batia os ovos, fazia a a?orda, etc., etc., etc., como se a elabora??o da coisa fosse um ritual mágico que erguesse dos confins do passado o grande ponto de interroga??o de cujos quadris o seu filho tinha surgido, para que, talvez, pudesse dar uma boa olhadela à cara dele, desta vez. Ou ent?o, talvez houvesse uma outra raz?o qualquer. Mas ela nunca se pronunciou. Na devida altura, ela construía o mais delicado, o mais saboroso soufflé que lagosta alguma tinha embelezado, mas ninguém chegava para o comer e ninguém dos da cozinha tinha coragem. Por isso, quinze vezes ao todo, aquele soufflé foi parar às galinhas.Até que, num belo dia de outubro, com a neblina a subir pela charneca, como o vapor de um consommé, os galos do mato a comer, quais condenados, as últimas suculentas refei??es, a vigília da minha m?e foi finalmente recompensada. Os da casa chegam e com a chegada deles ouvimos também um lamento débil, nostálgico, de um acorde?o, na altura em que uma barouche fechada surge apressada no caminho, toda adornada com o lys de France.Ao ouvir a notícia, a minha m?e treme, fica enjoada, tem que se sentar um pouco na banca de mármore dos pastéis, enquanto eu, oh, me preparo para conhecer o meu autor, pois chegara à idade em que um rapaz mais se interroga sobre o seu pai.Mas o que é isto? Quem trota pela cozinha adentro para pegar na caixa de gelo que o duque pediu para as garrafas que trouxe consigo n?o é sen?o um rapaz imberbe da sua idade ou menos! E apesar de a minha m?e tentar questioná-lo sobre o paradeiro de outro hipotético criado que outrora tivesse sido capaz de lhe fazer tremer a m?o, de tal modo que perdeu o controle da caiena, ele queixa-se que n?o consegue entender o seu sotaque do Yorkshire, abana a cabe?a e faz gestos de incompreens?o. Ent?o, pela terceira vez em toda a sua vida, a minha m?e chorou.Primeiro, chorou de vergonha por ter estragado um prato. Depois, chorou de alegria ao ver o seu filho amassar a massa. E agora chora de ausência.Mas mesmo assim manda o amolador buscar lagosta, pois ela obriga-se a preparar o seu ritual de outono, quanto mais n?o seja como uma vigília pela esperan?a, como se estivesse a preparar carnes assadas para um funeral. E, para resolver sozinho o assunto, eu uso o método mais rápido, o monta-cargas, lá de cima para inquirir pessoalmente este duque acerca do paradeiro dos seus empregados.O duque, relaxando antes do jantar, abrindo uma ou duas garrafas, está embrulhado no seu smoking de veludo pespontado, como os casacos que se colocam nos c?es de ra?a pura, aquecendo os seus pés empantufados (couro de Marrocos) diante da flamejante lareira e cantando can??es para si mesmo na sua língua nativa. E nunca vi homem mais gordo; bem podia dar à minha m?e uns quantos quilos que n?o sentiria a diferen?a. Redondo como o “o” de “rotundo”. Se foi apanhado de surpresa pela apari??o deste jovem chef vindo da cozinha, é demasiado gentleman para o demonstrar com um salto ou gesto brusco e pergunta, o que é que ele pode fazer por mim?, muito bem pronunciado e, no meu melhor francês culinário, o meu petit poi de fran?aise, balbucio:“O valet de chambre que vos acompanhava (garni de) aqueles anos todos passados da vossa última visita -”“Ah! Jean-Jacques!”, concorda ele prontamente. “Le pauvre,” acrescenta.Semicerra os olhos com tristeza, olhando melancolicamente para o seu museau.“Une crise de foie. Hélas, il est mort.”Fico pálido como uma endívia. Sendo ele um perfeito cavalheiro, oferece-me uma retemperadora ta?a do seu espumante trazido lá da sua própria adega. Ele n?o confia nos gostos incinerados do Dono da casa e o espumante faz-me crescer pelos no peito à medida que escorre pela garganta abaixo. Estimulado por outra garrafa, na qual o duque se me junta com aquela afabilidade fácil e democrática que é a marca de todos os verdadeiros aristocratas, ponho-o a par daquilo que acho serem as circunst?ncias da minha conce??o, como o seu defunto criado cortejou e conquistou a minha m?e no decurso da confe??o de um soufflé de lagosta.“Recordo-me bem desse soufflé”, diz o duque. O melhor que já alguma vez comi. Enviei os meus cumprimentos ao chefe pela concierge. Só acrescentei o conselho de um gourmet verdadeiramente exigeant para que da próxima vez tivesse mais cuidado com a caiena.”Ent?o, essa é que era a verdade! A desprezível governanta só transmitiu metade da mensagem!? ent?o que eu relaciono a comovente história de como em todas as ca?adas ao galo que se seguiram, a minha m?e arranja um soufflé de lagosta, em memória (acho eu) de Jean-Jacques, e partilhamos outra garrafa de espumante em memória do falecido, até que o duque, exibindo toda a emo??o de uma sensibilidade ternurenta, diz, com uma lágrima masculina:“Já lhe digo o que é que vou fazer, meu jovem, enquanto a sua maman está mais uma vez a preparar-me este famoso soufflé de lagosta, eu próprio em homenagem ao meu ex-criado, irei até lá abaixo -”“Meu senhor!”, gaguejo. “Sois muito bondoso!”Sem demora apresso-me em dire??o à cozinha para encontrar a minha m?e mesmo a come?ar o béchamel. Instantes depois, enquanto a manteiga derrete como o cora??o do duque derreteu quando lhe contei a história dela, a porta da cozinha abre-se subrepticiamente e em bicos de pés, entra Ele Mesmo. Nunca houvera um casal mais bem feito um para o outro, em matéria de tamanho, devo dizer. O batalh?o da cozinha vira todo as cabe?as para o lado, em forma de respeito para com este momento rom?ntico, mas eu próprio, o seu arquiteto, n?o consigo resistir a uma espreitadela.Ele aproxima-se, sorrateiro, por detrás dela, o dedo indicador contra os lábios, exprimindo cautela e silêncio, e estende o seu bra?o e, lentamente, lentamente, lentamente, com infinita delicadeza e tato, deixa a m?o aventurar-se até ao flanco dela. Poderia ter sido uma mosca a pousar no traseiro dela. Mexe uma nádega, qual égua no campo, indiferente, adiciona a farinha. O próprio duque estremece um pouco. Uma express?o como a de uma crian?a numa loja de doces atravessa-lhe o seu rosto Bourbonesco. Tenta espreitar por cima do ombro dela, para ver o que é que ela prepara com a sua batterie de cuisine, mas o seu embonpoint atravessa-se-lhe no caminho.Talvez seja para a fazer chegar-se para o lado, ou ent?o é um tributo genuíno aos seus vastos encantos, mas agora com imensa, se n?o gigantesca gra?a, espica?a-a com o dedo.A minha m?e esbo?a um suspiro, suficientemente forte para espalhar as claras já batidas, mas, como grande artista que é, n?o treme uma única vez ao misturar as gemas. E quando as m?os do duque se desviam por ela acima, nem a mais ínfima agita??o perturba a colher.?, compreendem, a altura de colocar o tempero. E agora a caiena vai em quantidade suficiente. Nem mais um gr?o. Hurra! Este soufflé vai ficar - aceno com o círculo que fiz com o indicador e o polegar, simulo um beijo.As claras de ovos s?o vertidas para a a?orda, os movimentos da colher s?o rápidos e ligeiros, como os de um pássaro numa armadilha. Vira tudo para o prato do soufflé.Ele agita-se.Nessa altura, ela berra: “Para o diabo com isto tudo!” Abandonando o gui?o o gui?o, a minha m?e brande a colher de pau como um bast?o e acerta em cheio, trás!, na cabe?a do duque, com uma for?a considerável. O duque cai ao ch?o com um grunhido baixo.“Toma lá”, ordena ao seu corpo estendido. E depois fecha o soufflé rapidamente no forno.“Como te atreveste!”, grito.“Querias que ele estragasse o meu soufflé? N?o foi por pouco, da outra vez?O amolador e eu colocamos o duque sobre a bancada de mármore, damos-lhe uma palmada na cara, molhamos-lhe as têmporas com o pano do forno embebido em Chablis gelado. Finalmente pestaneja e vem a si.“Quelle femme”, murmura.A minha m?e, agachada sobre o fog?o, cronómetro em punho, n?o lhe presta aten??o.“Receava que lhe estragásseis o soufflé”, explico, tomado pelo embara?o.“Que dedica??o!”O homem parece assombrado. Olha a minha m?e fixamente como se nunca se fartasse de a fitar. Saltando da bancada de mármore com a agilidade que um homem do seu tamanho lhe permite, desliza pela cozinha e cai de joelhos aos pés dela.“Pe?o-lhe, imploro-lhe -”Mas a minha m?e só tem olhos para o forno.“Ora cá está ele!” Abrindo a porta decididamente, ela apresenta a verdadeira joia dos soufflés, que estende as suas asas de arcanjo sobre toda a cozinha, ao agitar-se no prato, ao qual apenas a for?a da gravidade o confina. Todos os presentes (uns quarenta e sete em número - a brigada da cozinha acrescentada de mim mesmo, mais o duque) aplaudem e aclamam.A governanta fica louca como o diabo quando a minha m?e parte na barouche fechada para a muito real e francesa cozinha do duque, mas conforta-se com a no??o de que agora pode persuadir o Senhor e a Madame a procurarem-lhe um chefe fino tipo um Soyer ou um Carême, que enrolem os bigodes em sua dire??o e a gateau Saint-Honoréiem pelo seu aniversário e a mimoseiem com n?o pouco frequentes babas au rhum. Mas - sou o filho único da cozinha de minha m?e e tomo agora posse da minha heran?a; além do mais, como pode a governanta queixar-se? N?o sou eu o mais novo chef francês (nascido no Yorkshire) de toda esta terra?N?o sou eu o enteado do duque?Os Assassínios de Fall RiverLizzie Borden com um machadoDeixou o pai em tal estadoQue quando viu a sua m?eDeu-lhe com ele também.Rima infantilManh? cedo do dia quatro de agosto de 1892, em Fall River, Massachusetts.Calor, calor, calor … de manh? muito cedo, antes da sirene da fábrica mas, mesmo a esta hora, tudo cintila e estremece sob o ataque de um sol branco e furioso, já alto no ar imóvel.Os seus habitantes nunca lidaram bem com estes ver?os quentes e húmidos -- pois é a humidade, mais do que o calor que os torna intoleráveis; o clima pega-se como uma febre baixa que n?o se consegue sacudir. Os índios, que viveram aqui primeiro, tinham o bom-senso de tirar as suas peles de veado quando vinha o tempo quente e de se sentarem nos charcos com a água até ao pesco?o, ao contrário dos descendentes dos industriosos santos autoflageladores que importaram por grosso a ética protestante para uma terra feita para a sesta e se mostram orgulhosos, orgulhosos! de enfrentar galhardamente a natureza. Na maioria das latitudes com ver?os assim, tudo abranda, pois. Fica-se o dia todo na penumbra, atrás de persianas corridas e portadas fechadas; usa-se roupas suficientemente largas para provocar a nossa própria brisa para nos arrefecermos nas raras ocasi?es em que nos mexemos. Mas a derradeira década do último século encontra-nos no ponto alto do trabalho árduo, por cá; em breve tudo estará numa azáfama, os homens sair?o para a fornalha da manh? bem embrulhados em roupa interior de flanela, camisas de linho, camisolas interiores e casacos e cal?as de l? grossa e garrotam-se com gravatas, também, acham que é t?o virtuoso estar-se desconfortável.E hoje é o pino de uma onda de calor; de manh? t?o cedo e o mercúrio já tocou nos trinta graus e n?o mostra sinal de abrandar na sua subida desenfreada.No que respeita às roupas, as mulheres apenas aparentavam safar-se mais ligeiramente. Nesta manh? em que, após o pequeno-almo?o e o desempenho de algumas tarefas domésticas, Lizzie Borden irá assassinar os pais, irá, ao levantar-se, enfiar um vestido simples de algod?o - mas, debaixo disso, já p?s um saiote de algod?o, comprido e engomado, mais outro saiote de algod?o curto e engomado; meias-cal?as, meias de l?; uma combina??o e um espartilho de barba de baleia que lhe segurava as vísceras com m?o severa e lhas apertava muito firmemente. Também amarrou um pano de linho grosso entre as pernas porque estava com a menstrua??o. Com estas vestimentas todas, perturbada e enjoada como estava, neste calor demencial, a barriga num torno, aquecerá um ferro de engomar num fog?o e passará len?os com o ferro aquecido até ser altura de descer para a pilha de lenha da cave para apanhar o machado com o qual a nossa imagina??o a equipa sempre - “Lizzie Borden com um machado” - do mesmo modo que estamos sempre a ver S. Catarina rodando na sua roda, o emblema da sua paix?o.Em breve, em tantas roupas como as que Miss Lizzie usa, apesar de menos finas, Bridget, a criada, ensopará de querosene uma folha do jornal da noite passada abolada com um ou dois paus de acendalha. Quando o fogo pegar, cozinhará o pequeno-almo?o; o fogo far-lhe-á sufocante companhia quando ela estiver a lavar a lou?a depois.Num fato de sarja que, só de olhar, seria o suficiente para causar arrepios de calor, o Velho Borden perambulará pela cidade transpirante, fu?ando por dinheiro como um porco à procura de trufas, até que regressará a casa ao meio da manh?, para o seu encontro urgente com o destino.Mas aqui ainda ninguém está a pé, afinal é de manh? cedo, antes da sirene da fábrica, uma calmaria perfeita de tempo quente, um céu já branco, a luz sem sombra da Nova Inglaterra é como um castigo de Deus, e o mar, branco, e o rio, branco.Se esquecemos no geral os desconfortos físicos das roupas opressivas do passado causadoras de comich?es e os efeitos corrosivos do perpétuo desconforto físico para os nervos, ent?o esquecemos piedosamente também os cheiros do passado, os odores domésticos – carne mal lavada; roupa interior mudada poucas vezes; penicos de quarto; baldes de despejos; retretes mal canalizadas; comida a apodrecer; dentes descuidados; e as ruas n?o s?o mais frescas do que o interior das casas, o omnipresente cheiro forte e ativo de mijo e bosta de cavalo, vertedouros, súbito cheiro a morte velha dos a?ougues, o horror amniótico do peixeiro.O leitor encharcaria o len?o com água de colónia e apertá-lo-ia contra o nariz. Salpicar-se-ia com violeta de Parma para que o fedor de carne em decomposi??o que transportava sempre consigo fosse sobreposto pelo do embalsamador. O leitor odiaria o ar que respirava.Cinco criaturas vivas est?o a dormir numa casa na Second Street, em Fall River. Totalizam dois velhos e três mulheres. O primeiro velho é o dono de todas as mulheres, seja por casamento, nascimento, ou contrato. A sua casa é estreita como um caix?o e foi dessa maneira que constituiu a fortuna dele – era agente funerário, mas recentemente ramificou-se em várias dire??es e todos os seus ramos deram fruto da espécie fiscalmente mais gratificante.Mas ao olhar para a sua casa, nunca se pensaria que ele é um homem bem sucedido e próspero. A casa é exígua, desconfortável, pequena e miserável – “despretensiosa”, poder-se-ia dizer, se quisermos bajulá-lo – enquanto a própria Second Street viu dias melhores há algum tempo. A casa dos Borden – veja-se ‘Andrew J. Borden’ a letras desenhadas na placa de metal ao lado da porta – fica isolada com uns poucos centímetros de pátio de cada lado. ? esquerda fica um estábulo, que já n?o é usado desde que ele vendeu o cavalo. Nas traseiras crescem algumas pereiras, carregadas nesta época.Nesta manh? em particular, quis a sorte que apenas uma das duas irm?s Borden dormisse em casa do pai. Emma Lenora, a filha mais velha, pegou em si mesma e foi para New Bedford, ali perto, durante uns dias, para apanhar a brisa marítima, e assim escapará ao massacre.Poucos da classe social deles ficam em Fall River nos sufocantes meses de junho, julho e agosto, mas também poucos da classe social deles vivem em Second Street, na parte baixa da cidade, onde o calor se concentra como nevoeiro. Lizzie também foi convidada para fora, para uma casa de ver?o, junto ao mar, para se juntar a um grupo de alegres raparigas mas, como que propositadamente para flagelar a carne, como se coisas importantes a retivessem nesta cidade ressequida, como se uma fada malévola a tivesse amaldi?oado em Second Street, n?o foi.O outro velho é uma espécie de parente dos Borden. O lugar dele n?o é este, encontra-se de visita, de passagem, é um espectador acidental, é irrelevante.Tirem-no do gui?o.Apesar de a sua presen?a na casa fatídica ser historicamente incontestável, este apocalipse doméstico deve ser pintado com muito poucas cores e a sua trama profundamente simplificada, para se obter um efeito emblemático máximo.Tirem John Vinnicum Morse do gui?o. Um velho e duas das suas mulheres dormem na casa em Second Street.O relógio da C?mara Municipal range e crepita os prolegómenos da primeira badalada das seis e o despertador de Bridget dá um salto solidário e faz clique, ao mesmo tempo que o ponteiro dos minutos se aproxima da hora o martelinho inclina-se para trás, prestes a atingir a camp?nula no cimo do relógio, mas as pálpebras húmidas de Bridget n?o estremecem com premoni??o, deitada com a sua pegajosa camisa de noite de flanela, sob um len?ol fino numa cama de ferro, de costas, como as boas freiras lhe tinham ensinado na sua meninice irlandesa, no caso de morrer durante a noite, para dar menos trabalho ao agente funerário.? uma boa rapariga no geral, apesar de o seu feitio ser incerto às vezes e nessas alturas, às vezes dará respostas impertinentes à senhora e será for?ada a confessar o pecado da impaciência ao padre. Dominada pelo calor e náusea – todos em casa ir?o acordar hoje enjoados – regressará a esta pequena cama mais tarde nessa manh?. Enquanto se recolhe para uns momentos de descanso, no andar de cima, o andar de baixo estará feito num autêntico inferno.Um rosário de contas de vidro castanhas, uma pagela a cores representando a Virgem, trazida de uma loja portuguesa, uma fotografia desbotada da sua solene m?e em Donegal– estas coisas est?o pousadas ou encostadas na prateleira do fog?o de sala que, por mais rigoroso que seja o inverno em Massachusetts, nunca viu um pau aceso. Uma arca de lat?o amassada aos pés da cama contém todos os bens mundanos de Bridget.Há uma cadeira ao lado da cama com, sobre ela, um casti?al, fósforos, o despertador que ecoa pelo quarto com um clangor diádico metálico, pois é uma piada entre Bridget e a sua patroa que nada, nada faz acordar a rapariga, e por isso precisa do despertador, assim como de todas as sirenes da fábrica que est?o prestes a ecoar, neste mesmo segundo, prestes a ecoar…Um lavatório rachado de madeira suporta o jarro e a bacia que ela nunca utiliza; n?o vai acartar água para o terceiro andar, só para se lavar, ou vai? Só se n?o houver água suficiente na banca da cozinha.O Velho Borden n?o vê a necessidade de banhos. N?o acredita na imers?o total. Perder os seus óleos naturais seria roubar ao seu corpo.Um espelho sem moldura reflete às ondas um prato para sab?o empoeirado e rachado contendo uma quantidade de alfinetes de cabelo pretos de metal.Em ret?ngulos brilhantes das persianas de papel movem-se as bonitas sombras das pereiras.Apesar de Bridget ter deixado uma frincha aberta, na v? esperan?a de persuadir uma corrente de ar a entrar no quarto, todo o calor gasto do dia anterior se acumulou apertado no seu sót?o. Uma crosta de cali?a gasta cai como caspa do teto, onde uma mosca zumbe monotonamente.A casa cheira profundamente a sono, esse odor adocicado e pegajoso. Quieto, tudo quieto; em toda a casa nada se mexe, exceto a mosca zunindo. Quietude nas escadas. Quietude pressionando as persianas. Quietude, quietude mortal no quarto de baixo, onde o Senhor e a Senhora partilham o leito matrimonial.Se os cortinados estivessem abertos ou a luz acesa, podiam observar-se melhor as diferen?as entre este quarto e a austeridade do quarto da criada. Temos aqui uma carpete salpicada de flores vigorosas, mesmo que a carpete seja de uma variedade barata e alegre; há flores de cerejeira malváceas, ocres e ásperas no papel de parede, mesmo apesar de o papel de parede já ser antigo na altura em que os Borden vieram viver para cá. Um toucador com outro espelho que deforma; n?o há espelho nesta casa que n?o pegue na nossa cara e a distor?a. Em cima do toucador, um pano bordado com miosótis; sobre o pano um pente em osso com três dentes a menos e com cabelos grisalhos ligeiramente enredados, uma escova de cabelo em madeira ebanizada e uma quantidade de panos de renda debaixo de caixinhas de porcelana contendo alfinetes de ama, toucas, etc.. A pequena peruca que Mrs. Borden coloca na cabe?a quase careca durante o dia está enrolada como um esquilo morto. Mas n?o há vestígios da ocupa??o masculina deste quarto por Borden, porque ele tem o seu próprio quarto de vestir, atrás daquela porta à esquerda… E ent?o a outra porta, a que fica ao lado dessa?Dá para as escadas das traseiras. E ainda aquela outra porta, parcialmente escondida atrás da cabeceira da pesada cama de mogno?Se n?o estivesse bem trancada, levar-nos-ia até ao quarto de Miss Lizzie.Uma peculiaridade desta casa é a quantidade de portas que os quartos contêm e, uma outra peculiaridade, como todas estas portas est?o sempre trancadas. Uma casa cheia de portas trancadas que apenas d?o para outros quartos com outras portas trancadas, pois, tanto no andar de cima como no andar de baixo, todos as divis?es d?o umas para as outras, como num labirinto de um pesadelo. ? uma casa sem passagens. N?o há nenhuma parte da casa que n?o tenha sido marcada como território pessoal de um dos ocupantes; é uma casa sem espa?os partilhados, comuns, entre uma divis?o e a seguinte. ? uma casa de privacidades t?o seladas, como se tivessem sido seladas com o lacre de um documento legal.Só se passa para o quarto de Emma pelo de Lizzie. N?o há saída pelo quarto de Emma. ? um beco sem saída.O hábito dos Borden de trancar todas as portas, dentro e fora, vem de uma altura, há alguns anos, pouco antes de Bridget vir trabalhar para eles, em que a casa foi assaltada. Alguém desconhecido entrou pela porta lateral numa altura em que Borden e a mulher tinham ido numa das suas raras viagens juntos; tinha-a carregado para uma carro?a e p?s-se a caminho da quinta que possuía em Swansea para se certificar que o caseiro n?o lhe andava a extorquir dinheiro. As meninas ficaram em casa nos seus quartos, a dormir a sesta nas suas camas ou a coser bainhas, ou a coser bot?es soltos, ou a escrever cartas, ou contemplando a??es de caridade entre os pobres que a merecessem ou a lan?ar um olhar vago para o espa?o.N?o consigo imaginar que outra coisa poderiam elas fazer.Aquilo que as meninas fazem quando est?o sozinhas é-me inimaginável.Emma é de longe mais misteriosa do que Lizzie, pois sabemos muito menos acerca dela. ? um espa?o em branco. N?o tem vida. A porta do seu quarto dá apenas para a porta do quarto da irm?.“Meninas” é, claro, um termo de cortesia. Emma está nos seus quarenta e tais, Lizzie nos seus trintas, mas n?o casaram e por isso vivem em casa do pai, onde permanecem numa inf?ncia imaginária, retardada.Enquanto o senhor e a senhora estavam fora e as meninas a dormir ou ocupadas com outra coisa qualquer, alguém desconhecido subiu sorrateiramente pelas escadas das traseiras para o quarto matrimonial e embolsou o relógio de ouro da senhora Borden e a corrente, o colar de coral e a pulseira de prata da sua remota inf?ncia, e um ma?o de notas de dólar que o Velho Borden guardava debaixo de umas ceroulas lavadas na terceira gaveta da escrivaninha à esquerda. O intruso tentou for?ar a fechadura do cofre, aquele bloco descaracterizado de a?o negro, fazendo lembrar um cepo de talho ou um altar posicionado mesmo junto da cama do lado do Velho Borden, mas teria sido preciso um pé de cabra para penetrar adequadamente no cofre e o intruso tentou com uma tesoura das unhas que estava mesmo à m?o em cima do armário, por isso aquilo n?o resultou.Ent?o o intruso mijou e cagou em cima da coberta da cama dos Borden, empurrou para o ch?o tudo o que estava em cima do armário, escaqueirando tudo, esgueirou-se para o quarto de vestir do Velho Borden para aí assaltar mal-intencionadamente o seu casaco fúnebre que estava pendurado na escurid?o de naftalina do armário com a mesmíssima tesoura das unhas que tinha sido usada no cofre (a tesoura agora estava feita em dois e foi abandonada no ch?o do armário), retirou-se para a cozinha, escaqueirou o pote da farinha e o pote do mela?o e a seguir garatujou uma obscenidade ou duas na janela da sala de visitas com a barra de sab?o que vivia ao lado da banca da copa.Que confus?o! Lizzie ficou a olhar com uma vaga surpresa para a janela da sala de visitas, ouviu o ruído suave da portada aberta a bater impassivelmente, apesar de n?o correr brisa nenhuma. Que fazia ela, em pé apenas de espartilho no meio da sala de estar? Como tinha ela chegado ali? Ter-se-ia ela escapulido pelas escadas abaixo quando ouviu a portada ranger? N?o sabia. N?o conseguia lembrar-se.Tudo o que aconteceu foi: de repente aqui está ela, na sala de visitas com uma barra de sab?o na m?o.Teve uma sensa??o de vazio e só depois come?ou a gritar e a berrar.“Socorro! Fomos assaltadas! Socorro!”Emma desceu e reconfortou-a como a irm? mais velha tinha reconfortado a mais nova desde bebé. Foi Emma que limpou da carpete da sala de estar a farinha e o mela?o que Lizzie inadvertidamente trouxera da cozinha agarrados aos pés descal?os no seu transe de son?mbula. Mas, das joias e das notas de dólar, nem um vestígio se encontrou.N?o consigo dizer-vos o efeito que o assalto teve em Borden. Desconcertou-o completamente; era um homem atordoado. Aquilo violentara-o, até. Era um homem violado. Aquilo levara a sua, até aqui inabalável, confian?a na integridade inerente às coisas.O assalto mexeu tanto com eles que a família quebrou o seu habitual silêncio para o discutir. Deitaram as culpas aos portugueses, obviamente, mas também às vezes aos canadianos. Se a sua raiva foi constante e n?o diminuiu com o tempo, ela era dirigida de acordo com as suas disposi??es, apesar de apontarem sempre o dedo da suspeita aos estrangeiros e recém-chegados que viviam nas repugnantes muralhas do alojamento da companhia, a uns poucos quarteir?es imundos de dist?ncia. N?o suspeitavam sempre exclusivamente dos estranhos de pele escura; às vezes achavam que o culpado poderia muito bem ser um operário acabado de chegar do impertinente Lancashire, lá do outro lado do mar que tinha cometido o crime, pois o senhorio de uma barraca tem poucos amigos entre as classes criminosas.Contudo, a possibilidade de ter sido um poltergeist ocorre a Mrs Borden, apesar de n?o conhecer a palavra; sabe, contudo, que a sua enteada mais nova é estranha e conseguia fazer os pratos saltar, só por maldade, caso quisesse. Mas o velho adora a filha. Talvez seja ent?o, depois do choque do assalto, que decide que ela precisa de uma mudan?a de cena, uma dose de ar marítimo, uma longa viagem, pois foi depois do assalto que a enviou à Europa em viagem.Depois do assalto, a porta da frente e a porta do lado eram sempre fechadas com três voltas, mesmo se um dos habitantes da casa só saísse para ir ao quintal para apanhar um cesto de peras do ch?o, na época das peras, ou se a criada saísse para pendurar uma roupa, ou se o Velho Borden saísse depois do jantar para urinar debaixo de uma árvore.Era desta época que datava o costume de fechar à chave por dentro todas as portas dos quartos quando se estava dentro ou por fora quando se estava fora. O Velho Borden fechava a porta do quarto dele de manh?, quando saía, e punha a chave à vista de todos na prateleira da cozinha.O assalto despertou o Velho Borden para a natureza evanescente da propriedade privada. A partir dessa altura levou a cabo uma orgia de investimentos. Daí em diante passou a investir os seus ganhos em imobiliário, pois quem é que enriquece com um edifício de escritórios?Uma quantidade de contratos cessou em simult?neo precisamente nesta altura numa determinada rua da baixa da cidade e Borden apanhou-os a todos. Tornou-se dono do quarteir?o. Deitou-o abaixo. Planeou o edifício Borden, um edifício de lojas e escritórios, de tijolo vermelho escuro, pedra escurecida com pormenores de ferro forjado, do qual, para a posteridade podia obter uma bela colheita de rendas intransmissíveis, e este monumento, tal como o de Ozymandias sobreviver-lhe-á por muito tempo - e ainda existe, sólido e atraente, o Edifício Andrew Borden, em South Main Street.Nada mal, para o filho de uma pessoa que vendia peixe porta-a-porta, h??Pois, apesar de “Borden” ser um nome antigo em Nova Inglaterra e de o cl? Borden entre si possuir a maior parte de Fall River, os nossos Borden, o Velho Borden, estes Bordens, n?o surgiram de um ramo rico da família. Havia Bordens e Bordens e este era o filho de um homem que vendia peixe fresco num cesto de vime de casa em casa em casa. A parcimónia do Velho Borden era alimentada pela necessidade, mas aprendera a prosperar na propriedade, porque a poupan?a tem um significado diferente para os pobres; n?o lhes dá prazer, é uma necessidade real para eles. Alguém já ouviu falar de um sovina sem dinheiro?Taciturno e delgado, este “self-made man” é homem de poucos prazeres. A sua voca??o é acumular capital.Qual é o seu passatempo?Moer a cabe?a aos pobres, ora essa. No princípio, Andrew Borden era um agente funerário, e a morte, reconhecendo um cúmplice, deu-se bem com ele. Na cidade dos teares, poucos chegavam a velho; as criancinhas que trabalhavam nas fábricas morriam com especial frequência. Quando era armador, n?o! - n?o era verdade que ele cortava os pés aos cadáveres para que coubessem em muitos dos caix?es comprados barato como excedentes da Guerra Civil! Isso era um boato posto a circular pelos seus inimigos!Com os lucros dos caix?es, comprou um ou dois apartamentos para alugar e acrescentou novos lucros com os vivos. Comprou participa??es nas fábricas. Depois, investiu num banco ou dois, até que agora lucra com o próprio dinheiro, que é a forma mais pura de lucro.Execu??es de hipotecas e a??es de despejo s?o o seu “p?o-nosso de cada dia”. N?o há nada de que ele goste mais do que de uma pequena usura. Já está a caminho do seu primeiro milh?o.? noite, para poupar o petróleo fica sentado às escuras. Rega as pereiras com a sua urina; no poupar é que está o ganho. Logo que os jornais diários s?o lidos, corta-os em quadrados geométricos e guarda-os na latrina da cave, para que todos possam limpar os seus rabos a eles. Lamenta que se percam os despojos org?nicos levados pela água do autoclismo. Gostaria de cobrar renda às próprias baratas da cozinha. Porém, n?o engordou com tudo isto; a chama pura da sua paix?o escorreu-lhe da carne, a sua pele cola-se-lhe aos ossos por pura parcimónia. Talvez seja da sua primeira profiss?o que ele adquiriu a pose, pois caminha com a dignidade majestática de um carro fúnebre.Ver o Velho Borden dirigir-se rua abaixo na nossa dire??o era ser preenchido por um respeito instintivo pela mortalidade, cujo macilento embaixador ele parecia ser. E também nos fazia pensar acerca da vitória sobre a natureza que era o facto de, quando nos erguemos, andarmos sobre duas pernas em vez de quatro, para come?ar! Pois ele mantinha-se ereto com um propósito de tal maneira pesado, que era uma lembran?a perpétua para todos os que testemunhavam o seu caminhar de como n?o era natural estar-se ereto, que é um triunfo da vontade sobre a gravidade, em si mesma, uma transcendência do espírito sobre a matéria.A sua espinha é como uma vara de ferro, forjada, n?o nasceu assim, impossível imaginar aquela espinha do Velho Borden enrolada no ventre como o C grande do feto; caminha como se as suas pernas n?o tivessem articula??es nem nos joelhos nem nos tornozelos, de modo que os seus pés batem na terra fazendo-a vibrar, como um bailio bate pesadamente a uma porta.Usa uma barba branca à volta do queixo naquele tempo já fora de moda. Parece que roeu os lábios. Está em paz com o seu deus, pois usou os seus talentos conforme mandam as Escrituras.Mas n?o se pense que ele n?o tem pontos fracos. Como o Velho Lear, o seu cora??o e, mais do que isso, o seu livro de cheques, é facilmente manipulável pelas m?os da sua filha mais nova. No dedo mindinho - n?o se consegue vê-lo, está debaixo da capa - usa um anel em ouro, n?o um anel de casamento, mas um anel de liceu, uma bijuteria singular para um sovina fabulosamente misantropo. A sua filha mais nova oferecera-lho quando acabou a escola e pediu-lhe que o usasse, sempre, e ele usa-o sempre e usá-lo-á até à cova, para onde ela o vai mandar mais tarde, na manh? deste dia combustível.Dorme completamente vestido com uma camisa de noite de flanela sobre a roupa interior de mangas compridas, e um gorro de flanela, e de costas voltadas para a sua mulher de há trinta anos, tal como as dela para ele.S?o Mr e Mrs Jack Spratt em pessoa, ele alto e macilento, como um juiz de enforcamento, ela, uma redonda bolinha de massa em expans?o. Ele é um sovina, ao passo que ela é uma glutona, uma comedora solitária, o mais inocente dos vícios e no entanto é a sombra ou a paródia do vício dele, pois ele gostaria de engolir o mundo inteiro, ou, se n?o o conseguisse, uma vez que o destino n?o lhe p?s uma mesa suficientemente larga para as suas ambi??es, ele é um Napole?o mudo e inglório, n?o sabe o que é que poderia ter feito, porque nunca teve a oportunidade -- já que n?o tem acesso ao mundo inteiro, gostaria de engolfar a cidade de Fall River. Mas ela, bem, ela empanturra-se docemente, continuamente, n?o é?; está sempre a mordiscar qualquer coisa, a ruminar, talvez.N?o é que ela extraia muito prazer disso, n?o é nenhuma gourmet, meditando eternamente acerca da requintada diferen?a entre uma maionese apaladada com algumas gotas de vinagre de Orle?es, ou só com uma espremedela de sumo fresco de lim?o. N?o, Abby nunca teve aspira??es t?o altas, nem nunca pensaria tê-las, mesmo que tivesse escolha; contenta-se com a simples gula e renega todos os requintes da sensualidade da satisfa??o. Dado que n?o aprecia nada do que mete à boca, sabe que a sua incessante gula n?o constitui pecado.Cá est?o eles na cama juntos, encarna??es vivas de dois dos Sete Pecados Mortais, mas ele sabe que a sua avareza n?o é ofensa, porque nunca gasta dinheiro nenhum e ela sabe que n?o é gulosa porque a comida que engole às pazadas lhe causa indigest?o.Dá emprego a uma cozinheira irlandesa e as m?os rudes mas ágeis de Bridget na cozinha preenchem cada critério de Abby. P?o, carne, couves, batatas – Abby foi feita para a comida pesada que a fez. Bridget atira alegremente para cima da mesa com os pratos cozidos, peixe cozido, papas de milho, pudim índio, queques de milho, bolachas.Mas aquelas bolachas… ah!, aí tocamos na pequena fraqueza de Abby. Bolachas de mela?o, bolachas de aveia, bolachas de passas. Mas quando deita a m?o a um quadradinho de chocolate húmido, nessa altura sente uma sensa??o confusa de quase ter ido longe de mais, de que o pecado poderia estar mesmo ao virar da esquina, se o seu est?mago n?o palpitasse imediatamente como uma consciência culpada. A sua camisa de noite de flanela tem o mesmo corte que a camisa de noite dele, à exce??o da renda descaída à volta da gola. Abby pesa noventa quilos. Mede um metro e cinquenta. A cama afunda para o lado dela. ? a cama em que a primeira mulher dele morreu.A noite passada medicaram-se com óleo de castor, devido a uma indisposi??o que os mantivera acordados e a vomitar toda a noite anterior; os resultados copiosos das suas purgas fazem transbordar os penicos debaixo da cama. Dá para fazer desmaiar um canalizador.Est?o deitados costas com costas, eles. Podia p?r-se uma espada no espa?o entre o velho e a mulher, entre a espinha do velho, a única coisa rígida que ele alguma vez lhe oferecera e o macio, quente, enorme rabo dela. As purgas flagelavam-nos. As faces evidenciam verde em decomposi??o na claridade do quarto de cortinas cerradas, em que o ar é demasiado espesso até para as moscas se mexerem.A filha mais nova sonha atrás da porta fechada.Vejam a bela adormecida!Atirou o len?ol para trás e a janela está completamente aberta mas n?o há brisa, lá fora, esta manh?, que agite deliciosamente o cortinado. O sol brilhante inunda as persianas, de modo que a luz cor de linho nos mostra o modo como Lizzie foi para a cama, como se esperasse dar uma rece??o, numa camisa de noite linda, franzida, de musselina branca apanhada, com faixas de cetim cor de rosa pastel entretecidas nos ilhós da renda, ou n?o sejam os “marotos anos noventa” em todo o lado, menos na tristonha Fall River? N?o significar?o os resplandecentes barcos a vapor da Companhia Fall River o luxo desperdi?ado dos Anos Dourados, com os seus interiores em mogno e os candelabros no teto? Mas n?o partem de Fall River, para onde, para qualquer lado, em que seja a Belle Epoque? Em Nova Iorque, Paris, Londres, saltam rolhas de Champanhe, em Monte Carlo a banca está falida, as mulheres caem de costas, num merengue estaladi?o de saias, por divers?o e dinheiro, mas n?o em Fall River. Oh, n?o. Por isso, na imutável privacidade do seu quarto, para seu próprio prazer, Lizzie veste-se com uma camisa de noite linda de menina rica, apesar de viver numa casa humilde, porque ela também é uma menina rica.Mas ela é vulgar. A bainha da camisa de noite está enrodilhada acima dos joelhos, porque ela se mexe muito a dormir. O cabelo leve, seco e avermelhado, estalando com a eletricidade estática cai solto da tran?a noturna, encaracola-se e prende-se na almofada quadrada a que se agarra enquanto se estende sobre o est?mago, tendo pousado o queixo na fronha engomada para se arrefecer durante a noite.Lizzie n?o era um diminutivo afetuoso e sim o nome com que tinha sido batizada. Uma vez que ficaria sempre conhecida por “Lizzie”, pensava o pai, porquê sobrecarregá-la com o estéril e vistoso prolongamento “Elizabeth”? Sovina em tudo, até lhe colheu metade do nome antes de lho dar. Por isso ficou “Lizzie”, cru e sem adornos e ela é uma crian?a sem m?e, órf? desde os dois anos, a coitadinha.Agora tem trinta e dois e contudo a memória daquela m?e de quem n?o se lembra permanece uma fonte duradoura de desgosto: “Se a m?e fosse viva, tudo teria sido diferente.”Como? Porquê? Diferente de que modo? N?o teria conseguido responder a isso, perdida na nostalgia de um amor desconhecido. Porém, como poderia ela ter sido melhor amada do que pela irm?, Emma, que desperdi?ava os tesouros reprimidos do cora??o de uma solteirona de Nova Inglaterra naquela coisinha? Talvez de um modo diferente, porque a sua m?e natural, a primeira Mrs. Borden, sujeita, como era, a súbitos ataques de raiva, violenta e inexplicável poderia, ela mesma, ter dado com o machado no Velho Borden? Mas Lizzie ama o seu pai. Nisso todos est?o de acordo. Lizzie adora o pai que a adora e que, depois que a m?e morreu, tomou para si outra mulher. Os pés dela agitam-se um pouco, como os de um c?o a sonhar com coelhos. O seu sono é leve e pouco satisfatório, cheio de terrores vagos e amea?as indeterminadas, a que n?o consegue atribuir nem nome, nem forma, depois de acordar. O sono abre dentro de si uma casa caótica. Mas só sabe que dorme mal e esta última e sufocante noite também foi agitada pela náusea vaga e pelas afli??es da sua dor feminina; o seu quarto está acre com o odor metálico a sangue menstrual.Ontem ao fim da tarde esgueirou-se de casa para visitar uma amiga. Lizzie encontrava-se agitada; estava sempre a mexer nervosamente no franzido da frente do seu vestido.“Tenho medo … de que alguém … vá fazer alguma coisa”, dizia Lizzie.“Mrs. Borden …” e aqui Lizzie baixava a voz e os seus olhos olhavam para todo o lado do quarto, exceto para Miss Russell … “Mrs. Borden -- oh! será que vai acreditar nisto? Mrs. Borden acha que alguém nos anda a tentar envenenar!”Costumava chamar “m?e” à madrasta, como era seu dever mas, depois de uma discuss?o sobre dinheiro após o seu pai ter doado metade de um barrac?o à madrasta cinco anos antes, Lizzie falava sempre, com escrupulosidade fria, de “Mrs. Borden” quando era for?ada a falar dela e chamava-lhe “Mrs. Borden” à frente dela, também.“A noite passada, Mrs. Borden e o pai, coitadinho, passaram t?o mal! Ouvia-os, do outro lado da parede. E eu, também n?o tenho estado lá muito bem o dia todo, sinto-me t?o esquisita. Mesmo t?o … esquisita.”Pois havia aqueles ataques de sonambulismo. Desde crian?a, aguentava aqueles “ataques peculiares”, como se chamava naquela época e naquele lugar àqueles estranhos lapsos de comportamento, transes inesperados e involuntários, momentos de ausência. Aquelas alturas em que a mente se desliga. Miss Russell apressou-se a descobrir uma explica??o dentro da lógica. Embara?ava-a mencionar os “ataques peculiares”. Todos sabiam que n?o havia nada de estranho com as meninas Borden.“Qualquer coisa que comeu? Deve ter sido qualquer coisa que comeu. O que é que foi o jantar de ontem?”, perguntou solícita a boa Miss Russell.“Espadarte aquecido. Comêmo-lo quente ao almo?o, mas n?o consegui comer muito. Depois a Bridget aqueceu os restos para o jantar, mas eu só consegui engolir uma garfada. Mrs. Borden acabou com os restos e rapou o prato com o p?o. Achou apetitoso, mas depois vomitou a noite toda.” (Nota de presun??o aqui.)“Oh, Lizzie! Com todo este calor, com este calor abrasador! Peixe requentado! Sabe muito bem como o peixe se estraga com este calor! A Bridget nunca vos deveria ter dado peixe requentado!”Também era a altura difícil do mês para Lizzie; a sua amiga conseguia detetar isso, devido a uma express?o pálida, vítrea no seu rosto. Contudo, a sua educa??o impedia-a de mencionar isso. Mas como poderia Lizzie ter metido na cabe?a que todos lá em casa estavam debaixo do cerco de for?as malignas externas?“Tem havido amea?as”, continuou Lizzie implacavelmente, com os olhos fixados nas pontas dos dedos nervosos. “compreende, há tantas pessoas que n?o gostam do pai.”Isto n?o se pode negar. Miss Russel permaneceu em silêncio, por educa??o.“Mrs. Borden estava t?o enjoada, que chamou o médico lá a casa e o Pai insultou-o e berrou com ele e disse-lhe que n?o iria pagar a conta do médico enquanto tivéssemos o bom e velho óleo de castor em casa. Berrou com o médico e todos os vizinhos ouviram e eu fiquei t?o envergonhada. Há um homem, compreende…” e aqui ela baixou a cabe?a, enquanto as suas pestanas pequenas e pálidas batiam nas ma??s do rosto… “ o tal homem, um negro, com um ar, sim, de morte no seu rosto, Miss Russel, um negro que tenho visto fora da casa a horas invulgares e inesperadas, de manh? cedo, a altas horas da noite, sempre que n?o consigo dormir nesta sombra medonha, se levanto a persiana e espreito lá o vejo nas sombras das pereiras, no pátio, um negro… talvez deite veneno no leite, de manh?, depois de o leiteiro encher a lata. Talvez envenene o gelo, quando o homem do gelo chega.”“Há quanto tempo é que ele a persegue?” perguntou Miss Russel, adequadamente perturbada.“Desde… o assalto,” disse Lizzie e subitamente olhou Miss Russel mesmo na cara com uma espécie de triunfo. Que grandes eram os seus olhos; proeminentes, contudo velados. E os seus dedos bem tratados continuaram a beliscar na parte da frente do vestido, como se estivesse a tentar descoser o franzido.Miss Russel sabia, ela sabia que este negro era um produto da imagina??o de Lizzie. Perdeu rapidamente a paciência com a rapariga; negros do lado de fora da janela do seu quarto, francamente! Contudo, foi simpática e procurou maneiras de a tranquilizar.“Mas a Bridget já anda para aí a cirandar à hora em que o leiteiro e o homem do gelo aparecem e a rua toda também já está com bastante movimento; quem é que iria atrever-se a deitar veneno no leite ou no balde do gelo à vista de metade da rua? Oh, Lizzie, é este ver?o horrível, o calor, o calor intolerável, que nos p?s doentes a todos, que nos torna irascíveis e nervosos, que nos p?e doentes. ? t?o fácil imaginar coisas com este tempo, que estraga a comida e nos p?e macaquinhos no sót?o… pensava que tinha planeado ir para fora, Lizzie, para a beira-mar. N?o estava a planear tirar umas feriazinhas, à beira-mar? Oh, vá! O ar do mar vai afastar essas tolices!”Lizzie nem acena, nem mexe a cabe?a mas continua a puxar o franzido. Pois será que n?o tem coisas importantes a tratar em Fall River? Naquela mesma manh? n?o tinha ela própria ido à drogaria para tentar comprar ácido prússico? Mas como pode ela dizer à boa Miss Russel que se debate com a imperiosa necessidade de permanecer em Fall River e assassinar os seus pais?Foi à drogaria na esquina da Main Street para comprar ácido prússico, mas ninguém lho vendia, por isso veio para casa de m?os a abanar. Será que toda aquela conversa de veneno na casa dos vómitos a levou a pensar em veneno? A autópsia virá a revelar a inexistência de veneno nos est?magos dos pais. N?o tentou envenená-los. Apenas tencionava envenená-los. Mas n?o tinha conseguido comprar veneno. O uso de veneno tinha-lhe sido negado; por isso, que pode ela estar a planear, agora?“E este negro, prosseguiu ela, virada para a contrariada Miss Russel, “oh! Vi a lua cintilar num machado!”Quando acorda, nunca consegue lembrar-se dos seus sonhos; apenas que dormira mal.O quarto dela é um quarto agradável, de dimens?es n?o pouco generosas, tendo em vista a casa ser t?o apequenada. Além da cama e da cómoda, há um sofá e uma secretária; é o quarto dela e também a sua sala de estar e o seu escritório, pois a secretária está repleta de livros de contabilidade das várias organiza??es de caridade com que ocupa o seu vasto tempo livre. A Miss?o Fruto e Flor, sob cujos auspícios visita os velhos indigentes no hospital e lhes leva presentes; a Uni?o Feminina de Temperan?a Crist?, para quem angaria assinaturas para peti??es contra a Bebida do Diabo; Empenho Crist?o, seja lá o que isso for - é a época dourada das boas obras e ela atira-se vigorosamente para os comités. Que fariam de si as filhas dos ricos, se os pobres deixassem de existir?Há o Fundo para o Jantar de A??o de Gra?as dos Ardinas; e a Associa??o Bebedouros de Cavalos; e a Associa??o para a Convers?o dos chineses - n?o há nenhuma classe, nem espécie que esteja fora do alcance da sua impiedosa caridade.Escrivaninha; toucador; armário; cama; sofá. Passa os seus dias neste quarto, movimentando-se entre cada uma destas desinteressantes pe?as de mobília, numa ronda circunscrita, imutável, planetária. Ama a sua privacidade, ama o seu quarto, onde se fecha por dentro o dia todo. Numa prateleira, um ou dois livros: Os Heróis da Miss?o, O Romance do Comércio, O Que Katy Fez. Nas paredes, fotografias emolduradas de amigas de liceu, com dedicatórias sentimentais e, enfiado numa das molduras, um postal com uma gravura de um gatinho preto espreitando por uma ferradura. Uma aguarela representando uma paisagem marinha de Cape Cod, executada com uma pungente incompetência amadora. Uma ou duas fotos monocromáticas de obras de arte, uma madonna de Della Robbia e a Mona Lisa, que comprou nos Uffizi e no Louvre, respetivamente quando foi à Europa.A Europa!Ent?o n?o se lembram do que Katy fez depois? a heroína do conto juvenil apanhou o vapor para a velha e nevoeirenta Londres, para a elegante e fascinante Paris, para as ensolaradas e antigas Roma e Floren?a, a heroína do conto juvenil vê a Europa revelar-se diante de si, como se fosse uma elegante série de diapositivos de Lanterna Mágica que se projetassem numa tela gigante. Tudo está presente e tudo é irreal. A Torre de Londres; clique. Notre Dame; clique. A Capela Sistina; clique. A seguir as luzes apagam-se e ela volta a ficar na escurid?o.Desta viagem apenas reteve a mais circunspecta das lembran?as, aquela madonna, aquela Mona Lisa, reprodu??es de objetos de arte consagrados por uma aprova??o universal de gosto. Se regressou com um saco cheio de recorda??es carimbado “Para Nunca Mais Esquecer”, arrumou-o debaixo da cama na qual sonhara com o mundo antes de partir para o ver, e na qual, novamente em casa, continuara a sonhar, tendo-se o sonho transformado, n?o em experiência vivida, mas em memória, que é apenas outro tipo de sonho.Melancolicamente: “Quando estive em Floren?a …”Mas nessa altura, com prazer, corrige-se: “Quando estivemos em Floren?a …”Porque uma boa, se n?o a maior, parte do prazer que a viagem lhe deu, deriva de ter partido de Fall River com um seleto grupo de filhas de ricos e respeitáveis industriais. Uma vez fora de Second Street, podia movimentar-se confortavelmente no segmento da sociedade de Fall River ao qual pertencia por direito de nome antigo e dinheiro novo, mas do qual, quando estava em casa, as abundantes excentricidades pessoais do pai a excluíam. Partilhando quartos, partilhando sal?es, partilhando beliches, as raparigas viajavam num alegre grupo, que já trazia consigo o seu próprio fado, pois elas eram as raparigas que n?o iriam casar, agora, e qualquer prazer que poderiam extrair da variedade e excita??o da viagem era contrariado à cabe?a pela consciência de que estavam a consumir o que poderia ser o seu bolo de casamento, a esgotar aquilo que deveria ter sido, se tivessem tido alguma sorte, os seus dotes de casamento.Todas as raparigas à beira dos trinta, privilegiadas por sair e ver o mundo antes de se acomodarem às magras condi??es das solteironas de Nova Inglaterra; mas foi um caso de olhar sem tocar. Sabiam que n?o podiam sujar as m?os ou ver os vestidos amarrotados pelo mundo, ao mesmo tempo que a sua dedicada companhia de viagem tinha uma certa qualidade inabalável, determinada, enquanto elas iam galhardamente tirando o melhor partido do segundo melhor partido.Foi uma viagem amarga, de certo modo, amarga; e foi uma viagem de ida e volta, acabou no mesmo lugar amargo de onde tinha partido. Em casa, de novo; a casa estreita, todos os quartos fechados à chave, como os do castelo do Barba Azul, e a madrasta branca, gorda, que ninguém ama, parada no centro da teia de aranha, n?o se mexeu um milímetro enquanto Lizzie esteve fora, mas engordou.Esta madrasta oprimia-a como um feiti?o.Os dias abrem os seus espa?os exíguos para outros espa?os exíguos e móveis velhos e nunca há nada a esperar, nada.Quando o velho Borden desenterrou da sua bolsa o dinheiro para a viagem de Lizzie à Europa, o olho de Deus na pir?mide piscou ao ver a luz do dia, mas n?o há extravag?ncia em demasia para a filha mais nova do avarento, que é a mais imprevisível de sua casae, segundo parece, pode ter tudo o que quer, e brincar com os dólares de prata do pai, se lhe apetecer. Ele paga-lhe todas as contas da costureira logo na altura, e como ela adora vestir-se bem! ? viciada em frivolidades. Dá-lhe por semana para os alfinetes o mesmo que a cozinheira recebe por mês e Lizzie dá o que n?o gasta em adornos pessoais aos pobres que o mere?am. Ele era capaz de dar à sua Lizzie tudo, tudo no mundo que viva sob o símbolo verde do dólar.Ela queria ter um animal de estima??o, um gatinho ou um cachorrinho, adora animais pequenos e pássaros também, coitadinhos. Empilha o comedouro para pássaros durante o inverno. Costumava ter pombos no estábulo abandonado, daqueles que parecem volantes de badminton e fazem “crrrruuu-crrruuu” suavemente como uma nuvem.As fotos que restam de Lizzie Borden mostram um rosto que é difícil de contemplar como se n?o se soubesse nada acerca dela; os acontecimentos que se seguiriam projetam a sua sombra no seu rosto, ou ent?o vê-se as sombras que esses acontecimentos projetaram - algo terrível, agourento neste rosto, com o seu queixo retangular, sobressaído e aqueles olhos perturbados dos santos de Nova Inglaterra, olhos pertencentes a alguém que n?o nos ouve, olhos de fanática, poder-se-ia dizer, se n?o se soubesse nada acerca dela. Se se estivesse a vasculhar uma caixa de fotografias antigas numa loja de velharias e se encontrasse este rosto amarelecido e desvanecido por cima dos colarinhos esganados dos anos 90, poder-se-ia murmurar ao vê-la: “Oh, que grandes olhos tens!”, como o Capuchinho Vermelho disse ao lobo, mas nessa altura uma pessoa até podia nem se deter para pegar nela e olhá-la mais de perto, pois o seu rosto, em si, n?o é dos que chamam a aten??o.Mas assim que o rosto ganha nome, assim que se a reconhece, quando se sabe quem ela é e o que foi que ela fez, o rosto fica como que o de uma possuída, e agora persegue-nos, olha-se para ele uma e outra vez, destila mistério.Esta mulher, com o queixo de uma funcionária de campo de concentra??o e que olhos … Na sua velhice usava lunetas e, na verdade, a chama de fúria desapareceu daqueles olhos, ou ent?o foi desviada pelos óculos, se é que na verdade era uma chama de fúria, em primeiro lugar, pois n?o esconderemos todos nós em algum lado fotografias que nos fazem parecer assassinos furiosos? E, naquelas fotografias antigas da sua juventude ela parece mais alguém em solid?o extrema do que uma assassina furiosa, ignorando aquela c?mara em cuja dire??o sorri obscuramente, tanto que n?o seria surpresa nenhuma se se viesse a descobrir que é cega.Há um espelho em cima da cómoda, no qual às vezes contempla aquelas ocasi?es em que o tempo se divide ao meio e ent?o vê-se com olhos cegos, clarividentes, como se fosse outra pessoa.“Lizzie n?o parece ela, hoje.”Nessas ocasi?es, nessas irremediáveis ocasi?es, podia ter erguido o seu focinho para a lua ardente e uivado.Noutras ocasi?es observa-se penteando o cabelo e experimentando roupas. O espelho que deforma reflete-a com a ondulante fidelidade da água. Veste vestidos e depois despe-os. Contempla-se no seu corpete. Acama o cabelo. Mede-se com a fita métrica. Estica a fita. Acama o cabelo. Experimenta um chapéu, um chapeuzinho chique de palha de abas estreitas. Fura-o com um alfinete de chapéu. Puxa o véu para baixo. Puxa-o para cima. Tira o chapéu. Espeta o alfinete no chapéu com uma for?a que n?o sabia que possuía.O tempo passa e nada acontece.Delineia os contornos do seu rosto com uma m?o incerta, como se estivesse a pensar em desatar as amarras da alma, mas n?o é tempo para fazer isso, ainda: n?o está pronta para ser vista, ainda.? uma rapariga com a calma do Sarga?os.Costumava ter os pombos na parte de cima do estábulo abandonado e alimentava-os com milho nas palmas das m?os. Gostava de sentir o suave arranhar dos seus bicos. Murmuravam “crrrruuu-crrruuu” com infinita ternura. Mudava-lhes a água todos os dias e limpava-lhes a porcaria leprosa mas o Velho Borden come?ou a implicar com o seu arrulhar, aquilo dava-lhe cabo dos nervos, quem haveria de pensar que ele tinha nervos, mas ele inventou-os, mexiam-lhe com eles, uma tarde pegou na machadinha da lenha na cave e cortou-lhes rente as cabe?as, sim, senhor.Abby gostaria dos pombos para uma empada mas Bridget a criada bateu o pé, além do mais: o quê?! Fazer uma empada com as amadas rolas de Miss Lizzie? Minha Nossa Senhora!!!, exclamou ela com ímpeto característico, como podem estar a pensar nisso! Miss Lizzy é t?o picuinhas, com os seus ataques e tudo! (A criada é a única da casa com juízo, essa é que é a verdade.) Lizzie regressou da Miss?o Fruto e Flor, para quem tinha estado a ler um trecho das Escrituras a uma idosa num lar de pobres. “Deus a aben?oe, Miss Lizzie.” Em casa, tudo era sangue e penas.Esta n?o é de choros, n?o está na natureza dela, é de águas calmas, mas quando mexem com ela, muda de cor, o rosto ruboresce, torna-se sombrio, irado, raiado de vermelho. O velho adora a filha, para cá da idolatria, dá-lhe tudo o que deseja, mas mesmo assim matou-lhe os pombos quando à mulher lhe apeteceu devorá-los.? assim que ela vê a coisa. ? assim que ela compreende a coisa. Agora n?o suporta ver a madrasta a comer. Cada mastigadela que a mulher dá parece fazer “crrrruuu-crrruuu.”O Velho Borden limpou a machadinha e voltou a colocá-la na cave, ao lado da pilha de o rubor a desaparecer-lhe da cara, Lizzie desceu para inspecionar o instrumento de destrui??o. Pegou nele e examinou-o na m?o.Isso foi umas semanas antes, no come?o da primavera.As m?os e pés estremecem durante o sono; os nervos e músculos deste mecanismo complicado n?o relaxam, n?o querem relaxar, toda ela é estreme??es, toda ela é tens?o, está tensa como as cordas de uma harpa eólica, da qual as incertas correntes de ar extraem melodias que n?o s?o as nossas melodias.? primeira badalada do relógio da C?mara Municipal, soa a primeira sirene das fábricas e na badalada seguinte, mais outra, e outra, a Metacomet, a American, a Mechanics, até todas as fábricas da cidade entoarem alto o hino comum de chamamento e as vielas ardentes onde o pessoal das fábricas vive ficarem escuras com a turba apressada: vamos! depressa! para o tear, para a bobina, para a roca, para o fuso, para a tinturaria, como se fossem para locais de culto, homens e mulheres também e crian?as, as ruas ficam escuras, o céu fica escuro com a chaminés a expelirem fumo, o clangor, o barulho, o chocalhar das fábricas come?a.O relógio de Bridget salta e estremece na sua cadeira, prestes a soar o seu próprio alarme. O dia deles, o dia fatal dos Borden estremece prestes a come?ar.Lá fora, no alto, no já escaldante ar, vejam! o anjo da morte está pousado no telhado.BibliografiaBenjamin, Walter. (1923),“The Task of Translator” The Translation Studies Reader second edition. Ed. Lawrence Venuti. New York: Routledge. 79-72.Berni, Christine (1997), “Taking an axe to history: The Historical Lizzie Borden and The Postmodern Historiography of Angela Carter”. Clio, 27.Blodgett, Harriet (2004), “Mimesis and Metaphor: Food Imagery in International Twentieth-Century Women’s Writing”. Papers on Language and Literature, 40 (3), 260.Borges, Jorge Luis. (1935),“The Translators of The One Thousand and One Nights” The Translation Studies Reader second edition. Ed. Lawrence Venuti. New York: Routledge. 96.Dennis, Abigail (2012), “The Spectacle of her Gluttony: The Performance of Female Appetite and the Bakhtinian Grotesque in Angela Carter’s Nights at the Circus”. 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PAGEREF _Toc218311645 \h 15Introdu??o PAGEREF _Toc218311646 \h 16Desmitologiza??o e Subvers?o PAGEREF _Toc218311647 \h 19A Figura Materna PAGEREF _Toc218311648 \h 20A Perda da M?e PAGEREF _Toc218311649 \h 21Retratos da Figura Materna nestas Três Short Stories: PAGEREF _Toc218311650 \h 22Tabus (Desmitologizados) PAGEREF _Toc218311651 \h 23Os Símbolos PAGEREF _Toc218311652 \h 24A Comida como Ponto Aglutinador PAGEREF _Toc218311653 \h 25O Poder no Feminino PAGEREF _Toc218311654 \h 26A Feminilidade e o Aspeto Físico PAGEREF _Toc218311655 \h 26O Pós-Modernismo, A Masculinidade e a Opress?o de Mulheres PAGEREF _Toc218311656 \h 27Classe e Género: Uma Feminista na Luta de Classes PAGEREF _Toc218311657 \h 28O Desejo Reprimido PAGEREF _Toc218311658 \h 30Lizzie Borden, Uma “Serial Killer” PAGEREF _Toc218311659 \h 31O Reino do Inimaginável PAGEREF _Toc218311660 \h 33O Público e o Privado em Os Assassínios de Fall River PAGEREF _Toc218311661 \h 33Mais Símbolos: Relógios, Mecanismos, a Morte PAGEREF _Toc218311662 \h 36Desmitologiza??o PAGEREF _Toc218311663 \h 39Contos de Fadas PAGEREF _Toc218311664 \h 40Retratos PAGEREF _Toc218311665 \h 41Lizzie Borden E A Companhia dos Lobos PAGEREF _Toc218311666 \h 42O Filho Da Cozinha, Uma Opereta PAGEREF _Toc218311667 \h 45Relógios, de Novo PAGEREF _Toc218311668 \h 45O Mito do Jardim do ?den PAGEREF _Toc218311669 \h 47Desmitologiza??o da Figura Paterna PAGEREF _Toc218311670 \h 47Conclus?o PAGEREF _Toc218311671 \h 49Tradu??es PAGEREF _Toc218311672 \h 51Nossa Senhora do Massacre PAGEREF _Toc218311673 \h 52O Menino da Cozinha PAGEREF _Toc218311674 \h 70Os Assassínios de Fall River PAGEREF _Toc218311675 \h 83Bibliografia PAGEREF _Toc218311676 \h 106Sítios e páginas de internet PAGEREF _Toc218311677 \h 109 ................
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