Curso no Estado – aulas - CAPE



AQUISIÇÃO DO PORTUGUÊS POR APRENDIZES SURDOS

Maria Cristina da Cunha Pereira

DERDIC-PUCSP

CEPRE-UNICAMP

1. Linguagem e surdez:

Quando se fala em surdez, faz-se importante distinguir linguagem e língua, bem como surdos, filhos de pais surdos e de pais ouvintes.

As crianças surdas, filhas de pais surdas, que são inseridas, desde que nascem na Língua de Sinais, desenvolvem linguagem e língua no contato familiar. Ao menos teoricamente, essas crianças não apresentam nenhuma dificuldade para adquirir a Língua de Sinais, o que acontece de forma muito semelhante a observada em crianças ouvintes e na mesma época.

As crianças surdas, filhas de pais ouvintes, por outro lado, embora, como ressalta Pereira (1989), desenvolvam linguagem na família, a qual consiste de gestos, vocalizações, expressões faciais e corporais, geralmente chegam à idade escolar sem o conhecimento que as outras crianças aprenderam incidentalmente e às vezes formalmente em casa, devido à dificuldade de acesso à língua utilizada pela família. Assim, cabe à escola a tarefa de possibilitar o aprendizado, o que vai exigir a aquisição de uma língua.

Nesta tarefa o professor vai ser orientado pela concepção que ele tem de linguagem e de surdez, bem como pela representação que ele faz das potencialidades cognitivas e lingüísticas do seu aluno surdo.

2. Concepções de linguagem/língua:

A literatura lingüística (Koch, 2001a, 2003; Barros, 2002, entre outros) refere dois concepções mais comuns de linguagem:

como instrumento de comunicação, através do qual um emissor comunica a um receptor uma mensagem. A principal função da linguagem é a transmissão de informações. Nesta concepção, a língua é vista como um código. Em outras palavras, o centro organizador de todos os fatos da língua é o sistema de formas fonéticas, gramaticais e lexicais da língua, independentemente de todo ato de criação individual. A língua está colocada fora do fluxo da comunicação verbal.

como atividade - considera a linguagem como lugar de interação humana, de interlocução, entendida como espaço de produção de linguagem e de constituição de sujeitos. Nesta concepção, a língua não está de antemão pronta, dada como um sistema de que o sujeito se apropriaria para usá-la, mas é (re)construída na atividade de linguagem.

3. Concepções de surdez

Ao longo da história da educação de surdos, constatam-se duas concepções de surdez as quais respondem por diferentes pontos de vista em relação ao sujeito surdo:

Concepção clínico-patológica - A surdez é vista como patologia, como deficiência, e o surdo como deficiente. Sendo uma patologia, deve ser tratada, colocando-se aparelho de amplificação sonora individual, e procedendo-se a treinamento auditivo intensivo. O aproveitamento dos restos auditivos conduziria a uma fala melhor e afastaria o surdo do grupo dos deficientes (Skliar, 1997). Todo um investimento é feito no sentido de diminuir o déficit auditivo.

Nesta concepção de surdez a linguagem oral é vista como imprescindível para o desenvolvimento cognitivo, social, afetivo-emocional e lingüístico do surdo. A educação se converte em terapêutica (reparadora e corretiva) e o objetivo do currículo escolar passa a ser dar ao sujeito o que lhe falta, a audição, e sua conseqüência mais visível, a fala. Além disso, observa-se, como aponta Skliar (1997), um círculo vicioso: o educador parte da idéia de que seus alunos possuem um limite natural em seu processo de conhecimento, o que o leva a planejar aquém da capacidade do aluno; obtém resultados que estão de acordo com esta percepção e atribui o fracasso ao aluno. O aluno, por sua vez, elabora uma identidade deficitária em relação aos ouvintes, o que vai contribuir para os baixos resultados no seu desenvolvimento global. Concebidos como deficientes, não há um investimento por parte dos profissionais e nem mesmo da família e, como resultado, a maior parte dos alunos surdos sai da escola sem quase nada ter aprendido.

Concepção sócio-antropológica - A surdez não é concebida como uma deficiência que impõe inúmeras restrições ao aluno, mas como uma diferença, no sentido de que a falta de audição impõe uma diferença na forma como o indivíduo vai ter acesso às informações do mundo.

A língua de sinais constitui o elemento identificatório dos surdos, e o fato destes se constituírem em comunidade possibilita que compartilhem e conheçam as normas de uso desta língua, já que interagem cotidianamente em um processo comunicativo eficaz e eficiente (Skliar, 2001). Ela não só possibilita o desenvolvimento da potencialidade lingüística dos surdos como também envolve o processamento de todos os mecanismos cognitivos.

A língua de sinais anula a deficiência lingüística, conseqüência da surdez, e permite que os surdos se constituam como membros de uma comunidade lingüística minoritária diferente e não como um desvio da normalidade.

As concepções de surdez podem ser observadas nas diferentes abordagens de exposição à língua a que os surdos têm sido submetidos.

4. Abordagens de exposição à língua

Oralismo – De acordo com esta abordagem, os alunos são expostos unicamente à linguagem oral, sendo os sinais proibidos, pois se acredita que o seu uso iniba a fala. Como pré-requisito para o desenvolvimento da linguagem oral, investe-se no treinamento auditivo, no desenvolvimento de habilidades de leitura oro-facial, bem como na produção da fala.

Comunicação Total – Trata-se de uma filosofia que defende o direito da criança surda de aprender a utilizar todas as formas de comunicação disponíveis para desenvolver a linguagem. Isto inclui gestos realizados pela criança, fala, treinamento auditivo, sinais formais, datilologia, leitura labial, leitura e escrita. Através do acesso ao maior número possível de códigos, pretende-se estimular o desenvolvimento lingüístico das crianças de forma que, em cada momento, elas possam eleger o que lhes permita compreender melhor a informação transmitida. Na prática, a Comunicação Total se tornou um método simultâneo que se caracteriza pelo uso concomitante da fala e da sinalização na ordem da modalidade oral, o que foi chamado, por Schlesinger (1978), de bimodalismo, para diferenciar de bilingüismo, definido como o uso de duas línguas.

Bilingüismo – O bilingüismo propõe o ensino de duas línguas para a criança surda. A primeira é a língua de sinais, que dará o arcabouço para a aprendizagem de uma segunda língua, o português, no caso dos surdos brasileiros. O português pode ser apresentado tanto na modalidade escrita como oral, dependendo do modelo seguido.

O princípio fundamental do Bilingüísmo é oferecer à criança um ambiente lingüístico, onde seus interlocutores se comuniquem com ela de uma forma natural, como acontece com a criança ouvinte através da língua oral. A interação com adultos surdos é importante, não só como modelo para a aquisição lingüística, como para o desenvolvimento de uma identidade social e para o fortalecimento da auto-estima. Adquirida a língua de sinais, ela terá um papel fundamental na aquisição da segunda língua.

5. Implicação da adoção das diferentes concepções de língua(gem) na prática pedagógica:

A adoção de uma ou de outra concepção de língua(gem) tem implicações na prática educativa, tanto com alunos ouvintes como surdos.

Concepção de língua como código - o ensino obedece a uma seqüenciação de conteúdos que se poderia chamar de aditiva: ensina-se a juntar sílabas (ou letras) para formar palavras, a juntar palavras para formar frases e a juntar frases para formar textos. Nesta concepção, o texto é considerado simples produto de codificação de um emissor a ser decodificado pelo leitor/ouvinte, bastando a este, para tanto, o conhecimento do código (Koch, 2001b).

Como refere De Lemos (1998), o professor assume o papel de quem sabe, ensinando a quem não sabe. Como a tarefa do professor é ensinar, ele pode determinar os critérios para eleição das letras que serão ensinadas aos alunos: diferenças visuais ou auditivas. As letras, combinadas em sílabas e vocábulos, obedecem a uma ordem de complexidade hierarquicamente estabelecida.

Esta forma de ensinar a escrita parece se fundamentar na pressuposição de que esta se torna transparente para quem não sabe ler pela simples apresentação ou exposição de relações entre letras e sons, quer sob a forma de sílabas, quer sob a forma de palavras, quer sob a forma de textos” (De Lemos, 1998). Os textos lidos pelos alunos fazem parte do método de alfabetização e têm a função específica de trabalhar prioritariamente a estrutura gráfico-sonora das palavras. Ainda em relação à leitura e à escrita, há uma ênfase na codificação e na decodificação como requisito para o aluno ler e escrever.

Concepção discursiva – enfatiza a produção de discursos como essencial; não se trata mais de aprender uma língua para dela se apropriar, mas de usá-la e, em usando-a, apreendê-la. A tarefa do professor não é corrigir o aluno, visando adequação morfossintática, mas é ser um interlocutor do aluno ou mediador entre o texto e a aprendizagem que vai se concretizando nas atividades de sala de aula. O texto passa a ser considerado o lugar da interação e os interlocutores sujeitos ativos que, dialogicamente, nele se constroem e são construídos (Koch, 2001b).

Em relação ao ensino da leitura e da escrita, a concepção discursiva se fundamenta no reconhecimento de que a criança dispõe de um saber sobre a escrita antes de entrar na escola e de que este saber foi construído na sua participação em práticas sociais em que a escrita ganha sentido (De Lemos, 2001). São os diferentes modos de participação da criança nas práticas discursivas orais (ou em Língua de Sinais, no caso de crianças surdas) que permitem construir uma relação com a escrita enquanto prática discursiva e enquanto objeto.

Cabe lembrar neste ponto que uma mudança na concepção de trabalho com a língua portuguesa está sendo proposta para a educação de crianças ouvintes.

Ao se referir ao ensino da língua a crianças ouvintes, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (1997) afirmam que, se o objetivo é que o aluno aprenda a produzir e a interpretar textos, não é possível tomar como unidade básica de ensino nem a letra, nem a sílaba, nem a palavra, nem a frase que, descontextualizadas, pouco têm a ver com a competência discursiva, que é a questão central. Mais adiante, o documento esclarece que produzir linguagem significa produzir discursos. O discurso, quando produzido, manifesta-se lingüisticamente por meio dos textos.

Nota-se aqui uma proposta de mudança na concepção de língua adotada pela escola. De atividade metalingüística, categorização e sistematização dos elementos lingüísticos, propõe-se que a escola incentive o uso e o contato com diferentes gêneros de textos. Ainda segundo os Parâmetros (op. cit.), as situações didáticas devem centrar-se no uso e na reflexão sobre a língua em situações de produção e de interpretação, como caminho para o aluno tomar consciência e aprimorar o controle sobre a própria produção lingüística.

Dessa perspectiva, a língua é concebida como um sistema histórico e social de signos que possibilita ao homem significar o mundo e a realidade. Aprendê-la é aprender não só as palavras, mas também os seus significados culturais (Parâmetros Curriculares Nacionais, 1997).

Em relação aos surdos, por quase cem anos insistiu-se em que eles aprendessem a língua majoritária (o português, no Brasil) através da audição, visando a sua integração à comunidade de ouvintes. Por ter uma dificuldade real de acesso à linguagem oral, as crianças surdas geralmente chegavam à escola sem uma língua com base na qual pudessem constituir o seu conhecimento.

Considerando a importância da língua para o desenvolvimento dos conteúdos, os professores procediam, então, ao ensino do português, em um processo similar ao utilizado com crianças ouvintes, que chegam à escola com uma língua desenvolvida. Concebidos como desprovidos de qualquer dispositivo interno que possibilitasse a sua aquisição, a língua era ensinada aos alunos surdos passo a passo, através da repetição e memorização das estruturas frasais, esperando-se que os mesmos generalizassem, o que dificilmente acontecia. Começava-se com uma lista de vocábulos que eles tinham que aprender e posteriormente combinar com outros, obedecendo às regras de formação do português, tanto nos níveis fonológico, como morfológico, sintático e semântico.

De um modo geral, o processo de ensino da língua envolvia uma prática estruturada e repetitiva, na qual parecia estar subjacente uma concepção de língua como a soma de pequenas partes cuja combinação dependia do aprendizado de regras que os alunos tinham que dominar para formar vocábulos e frases e depois combinar as frases, compondo um texto. Tratava-se de um aprendizado e não de aquisição de linguagem.

Entre os métodos comumente utilizados para o ensino da língua a alunos surdos, o mais conhecido é o analítico.

O método analítico, originalmente conhecido como método gramatical, tem como objetivo fornecer aos estudantes estruturas de linguagem, oral e escrita, simples e corretas (Moores, 1996). Com base nos princípios do método analítico, muitas propostas foram desenvolvidas, sendo a mais conhecida a Chave de Fitzgerald.

A Chave de Fitzgerald foi desenvolvida por Edith Fitzgerald, uma professora surda, com o objetivo de fornecer às crianças surdas regras por meio das quais pudessem gerar orações corretas no Inglês, bem como encontrar e corrigir os próprios erros nas redações (Fitzgerald, apud Moores, 1996).

A Chave, como é conhecida, foi adaptada às diferentes línguas, foi usada em inúmeros países e tem servido de inspiração para outros métodos de ensino de linguagem a surdos e a crianças que apresentam dificuldades na estruturação frasal.

A Chave é constituída por seis colunas que são colocadas em um cartaz, no qual estão escritas interrogações, indicando as diferentes partes da oração: (a) quem, o que?; (b) verbo, predicado; (c) o que, quem?; (d) onde?; (e) modificadores do verbo principal (para, de, como, quantas vezes?); (f) quando? (Russell et al., 1976). A introdução das interrogativas segue uma ordem de complexidade sintático-semântica, começando com as que se referem ao sujeito, depois ao verbo e, quando os alunos estiverem usando estruturas com sujeito e verbo, serão introduzidos os complementos, um por vez. Os alunos deveriam construir suas orações de acordo com o modelo que estivesse sendo trabalhado, sendo que o mesmo seria exercitado através de exercícios de substituição, objetivando a sua memorização e posterior generalização.

Em relação ao aprendizado das estruturas sintáticas, predominam ainda hoje, na educação de surdos, modelos que têm, como princípio, a organização das palavras em frase. Tendo, como desencadeadores, perguntas (como, por exemplo, onde? O que?, por exemplo), formas geométricas (como triângulo para uma categoria gramatical, quadrado para outra, por exemplo), ou cores (como vermelho para uma categoria gramatical, azul para outra, por exemplo) os alunos devem construir suas orações, não sendo admitidas aquelas mal estruturadas ou incompletas. As estruturas trabalhadas com os alunos obedecem a um critério de complexidade sintática.

Embora, com o uso da Chave, muitos alunos surdos chegassem a utilizar estruturas frasais gramaticalmente corretas, tratava-se, muitas vezes, de frases estereotipadas, usadas de forma mecânica pelos alunos. Faltava criatividade. A maioria dos alunos, no entanto, apresentava frases desestruturadas, nas quais faltavam elementos de ligação, flexões etc.

Concebendo a língua como atividade discursiva, cabe ao professor de surdos o papel de interlocutor na constituição da linguagem pelos alunos. Sua tarefa, como refere Trenche (1995), não se restringe apenas a expor os alunos à língua, fixar seus padrões, exercitar e corrigir sua gramática. Sua participação é de co-autor, de interlocutor efetivo, isto é, de quem assume a responsabilidade de estruturar o discurso do outro. Neste processo, a imagem que o professor tem das possibilidades lingüísticas do aluno surdo desempenha um papel importante e pode ser observada no modo como fala com ele, como interpreta seus comportamentos e nas atividades que propõe.

Inseridos na língua em funcionamento, os alunos vão se constituir como interlocutores, usando-a na interação com colegas e professores. A sistematização da gramática vai se dar mais tarde, quando os alunos já estiverem usando a língua.

6. Aquisição e uso da Língua de Sinais e do Português por surdos

Língua de Sinais

Contrariamente ao que muitos pensam, as Línguas de Sinais não são universais, não expressam apenas conceitos concretos e não são empobrecidas. Por fazerem uso da visão, em vez da audição, elas apresentam uma forma própria de organização.

Parâmetros para formação dos sinais:

configuração de mãos,

localização,

movimento,

orientação das palmas das mãos

traços não-manuais

Organização dos sinais nas estruturas (organização morfossintática):

Organização do discurso:

uso do espaço;

simultaneidade de sinais;

movimento com o corpo

classificadores

expressão facial

Pereira e Nakasato (2001a, 2001b, 2002; Pereira, 2002a, 2003b), entre outros pesquisadores, analisaram o uso da Língua Brasileira de Sinais por crianças surdas, filhas de ouvintes, expostas, desde cedo a esta língua, e constataram o uso não só de sinais e expressões faciais, mas também de recursos como o uso do espaço, o olhar e o movimento do corpo na articulação dos eventos.

Quanto ao uso dos sinais, as crianças estudadas por Pereira e Nakasato (op. cit.) apresentavam uma variedade deles, usados concomitantemente a recursos não-manuais (expressões faciais, movimentos da cabeça e do corpo). Pesquisadores da Língua de Sinais Americana, como Baker e Padden (1978), por exemplo, sugerem que a articulação entre os eventos nas línguas de sinais resulta da combinação de traços manuais e não-manuais.

Além dos sinais produzidos com uma mão, os sujeitos de Pereira e Nakasato apresentavam sinais produzidos com as duas mãos simultaneamente, estabelecendo uma relação entre eles. De acordo com a literatura (cf. Emmorey, 1994), as duas mãos podem representar dois objetos ou uma ação e um objeto simultaneamente e a orientação das mãos pode também representar simultaneamente a orientação dos objetos. A posição das mãos no espaço representa a posição dos objetos um em relação ao outro.

Em relação ao uso do espaço, as crianças observadas descreviam a disposição das personagens e dos objetos no relato como se as estivessem vendo, o que é referido na literatura sobre língua de sinais como mapeamento espacial (Emmorey, 1993). No mapeamento espacial, as relações estabelecidas entre os sinais correspondem a relações reais entre os objetos descritos. As convenções lingüísticas usadas no mapeamento espacial especificam a posição dos objetos, situando-os de acordo com as relações topográficas que os mesmos mantêm no espaço. Através do mapeamento do espaço, as crianças pareciam ter estabelecido pontos de referência e o movimento das mãos de um ponto para outro era interpretado pelo interlocutor como se referindo à locomoção.

A comparação dos dados obtidos por Pereira e Nakasato (op. cit.) com os de crianças surdas, filhas de pais surdos, permite constatar resultados bem semelhantes.

Trabalhos sobre a aquisição de língua de sinais por crianças surdas, filhas de pais surdos (Bellugi, Van Hoek, Lillo-Martin; O’Grady, 1993), referem que, aos 2;6 anos de idade, as crianças usam só sinais isolados para descrever cada figura, bem como para contar uma história inteira. Entre 2;0 e 3;0 anos, diversas combinações de sinais são observadas, mas sem o estabelecimento ou uso de locais referenciais. Só depois de 5;0 anos as crianças começam a estabelecer locais referenciais e a realizar a concordância verbal utilizando estes locais. Por volta de 6;0 anos, as crianças surdas usam consistentemente a concordância verbal apropriada. Os locais referenciais são estabelecidos e mantidos corretamente.

Português:

Leitura –

Em revisão sobre a literatura a respeito da leitura de surdos, Pereira e Karnopp (2003c) afirmam que a compreensão da leitura é considerada uma tarefa difícil para alunos surdos. Embora não apresentem dificuldades para decodificar os símbolos gráficos, grande parte não consegue atribuir sentido ao que lê. Essa dificuldade parece decorrer, principalmente, da falta de conhecimento da língua usada na escrita, o português, no caso dos surdos brasileiros. A falta de conhecimento pode ser observada tanto em relação ao vocabulário quanto às estruturas sintáticas.

No que se refere ao vocabulário, este é apontado, tanto por professores, como por pesquisadores, e até pelos próprios surdos, como um dos grandes responsáveis pelas dificuldades de leitura dos surdos.

Góes (1996) entrevistou professores e alunos surdos, entre 14 e 26 anos de idade, que freqüentavam ensino supletivo e todos atribuíram as dificuldades dos surdos, na leitura e na escrita, ao domínio insuficiente do vocabulário. Dos depoimentos dos sujeitos de Góes parece subjacente a idéia de que aprender português implica o domínio dos itens lexicais. Embora o vocabulário seja um aspecto importante, o maior ou menor desenvolvimento não caracteriza maior ou menor conhecimento da língua.

Fernandes (1990, 2003) analisou o desempenho, na compreensão e reprodução de textos, de 40 surdos adultos, com diferentes graus de escolaridade, desde a quarta série do ensino fundamental, até o ensino superior completo.

Apesar de diferenças significativas entre os sujeitos, a grande maioria apresentou dificuldades na compreensão das palavras, o que, segundo Fernandes, consistiu em dos principais fatores que impediram a organização conceitual dos textos lidos. Esta dificuldade se manifestou não apenas no não entendimento de palavras lidas, mas ainda na confusão de uma palavra com outra já conhecida, levando à deturpação do significado de uma frase ou mesmo de todo o texto. Para a mesma autora, o que faz do surdo um usuário não-competente em potencial, no aspecto lexical, é que sua exposição ao léxico é muito menor que a de um ouvinte. Isto ocorre não só porque não ouve as palavras, mas porque não as lê, quer por falta de hábito quer pela dificuldade que a leitura, de modo geral, lhe acarreta.

Aos argumentos apresentados por Fernandes, eu acrescentaria que a ênfase no ensino da leitura e da escrita para surdos se dá ao vocábulo. Ensina-se uma lista de vocábulos que, mais tarde, serão combinados para formar frases.

Cárnio (1995), ao pesquisar a importância da leitura e da escrita na vida de adolescentes surdos, constatou que, embora relatassem prazer pela leitura, muitos demonstraram dificuldades acentuadas na compreensão de textos, o que, segundo ela, se deveu provavelmente ao fato de as professoras não realizarem um trabalho de compreensão textual, mas sim vocabular.

O ensino da leitura e da escrita com base em vocábulos é relatado pelos sujeitos de Almeida (2000), a qual estudou a leitura e a reprodução de textos por dois adultos surdos, usuários da Língua de Sinais Brasileira. De acordo com eles, a professora ensinava uma palavra escrita, mostrava a figura correspondente e fazia o sinal. Depois mostrava a figura novamente, o sinal e a escrita da palavra e, por último, quando queria que os alunos lessem, tirava a figura e o sinal e deixava só a forma escrita. No ditado, fazia o sinal e os alunos escreviam o vocábulo correspondente ou ditava as palavras.

Ao analisar a leitura de seus sujeitos, Almeida constatou que eles liam palavra por palavra, o que resultou na não compreensão dos textos. Além disso, apresentaram uso significativo do alfabeto digital, utilizado tanto para acessar o significado das palavras lidas, como para decodifica-las, sem compreensão do significado. Ao ser solicitado que reproduzissem o que leram, ambos construíram um outro texto, relacionado ao cotidiano de cada um, com base em um ou outro vocábulo dos textos originais.

Como referem Paul e Quigley (1994), a dificuldade de vocabulário é influenciada, entre outros fatores, pelo conhecimento anterior, pela habilidade do leitor em usar as pistas contextuais, pelo contexto em que a palavra é usada, pela freqüência em que aparece e pela multiplicidade de significados.

Ao adotar práticas educacionais em que o foco é o vocábulo isolado, a escola leva os alunos a prestarem atenção às palavras individualmente, preocupando-se em entender o significado literal das palavras e não buscando um sentido mais amplo no texto. A preocupação com a compreensão do aluno levava os profissionais a selecionarem as estruturas sintáticas que seriam utilizadas.

O controle das estruturas sintáticas também se dava nos textos. Assim, materiais escritos para leitores ouvintes eram simplificados para leitores surdos, tanto em relação ao léxico como às estruturas sintáticas, e outros novos eram escritos, sempre obedecendo ao critério de simplificação de forma a serem compreendidos pelos alunos.

O desenvolvimento de materiais de leitura sintaticamente controlados especificamente para surdos se fundamentava, segundo Moores (1996), em dois argumentos: o de que existe incompatibilidade entre o conhecimento lingüístico, o inferencial e o experiencial da criança surda e o adotado nos materiais comuns de leitura, e o de que no início do processo os leitores surdos necessitam de ajuda especial para decodificação das palavras.

A crítica ao controle da sintaxe é a de que faz uso de frases separadas do discurso, mais próximo da situação de leitura na vida real. Kretschmer e Kretschmer (1986) ressaltam que os alunos surdos, como os ouvintes, aprendem a sintaxe na medida em que se envolvem em trocas conversacionais, em escritas interativas ou em diálogos autênticos. Acrescentam, ainda, que as crianças, ao adquirirem linguagem, não se detêm no refinamento sintático, mas no uso da sintaxe na interação. Defendem que os programas de desenvolvimento de linguagem deveriam focalizar a conversa e não o domínio das formas sintáticas da língua.

A ênfase no ensino de vocábulos, assim como a simplificação e o controle no uso das estruturas sintáticas, pareciam ter como objetivo facilitar a aquisição da língua por crianças surdas. O princípio da facilitação no ensino da língua parece ter como subjacente a imagem de um interlocutor incapaz de operar na constituição de seu conhecimento de língua.

Lane, Hoffmeister e Bahan (1996), pesquisadores da área da linguagem e da educação de surdos, ressaltam que o conhecimento de cada palavra e de sua classe gramatical não é a base para a compreensão da leitura. Para ler além do nível de decodificação, os alunos surdos devem contar, como os ouvintes, com um conjunto de conhecimentos, que envolve tanto a língua na qual o texto é apresentado, como também conhecimento de mundo. Tal conhecimento ajuda os alunos a criarem expectativas e hipóteses sobre os significados dos textos, a abstraírem significado de passagens de textos e não apenas de vocábulos isolados. Permite também lembrar o que leram, um processo que é ajudado pela integração de informação nova àquilo que já sabem. Para os mesmos autores, o conhecimento que as crianças trazem para os textos inclui histórias que são passadas através das gerações, assim como acontecimentos do dia-a-dia, regras e valores culturais.

Ainda para Lane, Hoffmeister e Bahan, para ler, as crianças surdas, como todas as crianças, necessitam de conhecimento sobre a escrita para encontrar as palavras e as estruturas frasais e para planejar estratégias que possibilitem a compreensão do texto. Necessitam de conhecimento cultural e de mundo de modo que possam recontextualizar a escrita e derivar significado. No entanto, diferentemente de outras crianças, as surdas, particularmente as filhas de pais ouvintes, chegam geralmente à idade escolar sem terem adquirido uma língua.

Pesquisas mais recentes sobre a compreensão de leitura de alunos surdos, submetidos a uma concepção de leitura como atribuição de sentido, apontam para mudanças significativas tanto na relação com a leitura quanto no desempenho.

Friães (1999) analisou a compreensão de leitura de alunos surdos, do Ensino Fundamental de uma escola especial com o objetivo de entender como se dá a compreensão da leitura por estudantes surdos e qual o papel que a restrição do vocabulário tem no desempenho dos mesmos. Numa primeira etapa, ela aplicou um questionário a 100 alunos, visando obter dados sobre seus hábitos de leitura.

Na segunda etapa de seu estudo, Friães (1999) solicitou a 10 estudantes da sétima série do Ensino Fundamental que escolhessem um texto, o qual deveria ser lido e reproduzido oralmente ou através de sinais. Os textos foram escolhidos pelos alunos dentre várias revistas semanais, que estavam dispostas sobre uma mesa. Após a leitura, a pesquisadora pedia que o aluno lhe contasse o que leu, depois do que formulava três questões: Foi difícil? Que dificuldades você teve para entender? O que você fez para resolver essas dificuldades? Todos os sujeitos foram filmados com equipamento de Vídeo-Tape e os dados foram transcritos posteriormente.

Na terceira e última etapa do estudo, Friães repetiu os mesmos procedimentos adotados na segunda etapa com os mesmos alunos que haviam participado da segunda etapa um ano antes e que cursavam nessa época a oitava série do ensino fundamental. Cada aluno escolhia um texto, o reproduzia e, em seguida, lhe eram feitas quatro perguntas: as três já formuladas na segunda etapa e mais uma: Por que você escolheu esse texto? Como na segunda etapa, todos os sujeitos foram filmados com equipamento de Vídeo-Tape.

A análise dos dados da primeira etapa do estudo evidenciou que, segundo os alunos entrevistados, a leitura esteve presente desde cedo em suas casas, todos entraram cedo na escola especial e foram expostos desde cedo a materiais escritos. Em relação à segunda e à terceira etapas, Friães concluiu que, contrariamente à afirmação de que os surdos não entendem o que lêem, todos os sujeitos do estudo demonstraram ter compreendido os textos lidos, mesmo referindo desconhecimento de alguns vocábulos. A pesquisadora atribuiu esses resultados, em primeiro lugar, à preocupação da escola e dos pais em ampliar o conhecimento de mundo, não só através da interlocução com outros parceiros, como do hábito de leitura. Um segundo fator referido por Friães relaciona-se à atitude da família dos alunos que, além de incentivar a leitura e propiciar materiais com diferentes tipos de textos, lia, e neste sentido, funcionava como modelo para os filhos. Como terceiro fator, a pesquisadora cita a concepção de leitura que os alunos parecem ter desenvolvido, não se limitando a decodificar os símbolos gráficos, mas atribuindo sentido aos textos lidos.

Com o objetivo de estudar a relação que surdos adultos têm com a leitura, Fragoso (2000) entrevistou três sujeitos que se diferenciavam bastante quanto à competência no português e na Língua Brasileira de Sinais. Dois dos sujeitos apresentavam dificuldades acentuadas em relação ao uso do português, embora fossem usuários da Língua Brasileira de Sinais. Após a entrevista, apresentou aos sujeitos um texto que eles deveriam ler e reproduzir para a pesquisadora.

Mesmo apresentando dificuldades para compreender o que lia, e referindo ler apenas revistas que contivessem fotos que o auxiliassem na compreensão dos textos, um dos sujeitos relatou recorrer à leitura para aprender novas palavras. Já o segundo sujeito referiu ler para se manter informado, mas afirmou considerar a leitura uma tarefa que exige muito esforço e por si só não é prazerosa. Ainda que sentisse dificuldade para atribuir sentido a todas as palavras, tentava suprir com o contexto, o que lhe possibilitou uma compreensão global do texto. Apenas o terceiro sujeito demonstrou bom conhecimento tanto da Língua Brasileira de Sinais como do Português. Relatou ler muito, conviver em um ambiente familiar que valoriza a leitura e a tem como atividade importante para o desenvolvimento intelectual e cultural, além de prazerosa.

Como conclusão, Fragoso ressalta que o domínio da leitura é possível para a pessoa surda e se apóia fundamentalmente no fato de ela dominar uma língua. Acrescenta, ainda, que não importa a língua na qual o ensino da leitura se baseie, o importante é que exista uma língua adquirida e que a pessoa seja capaz de pensar no funcionamento das duas línguas.

Escrita

Segundo Pereira (2003a), a sintaxe tem sido considerada na literatura um dos aspectos que mais dificuldades acarretam na escrita de crianças e adultos surdos. De um modo geral, os trabalhos relatam que os surdos apresentam dificuldades na estruturação das frases, tanto em relação à ordenação dos vocábulos, como ao uso dos elementos de ligação, das flexões e da concordância, entre outros.

Uma explicação diferente para as dificuldades sintáticas de alunos surdos é oferecida por Fernandes (1990).

Ao analisar a reprodução escrita de histórias por indivíduos surdos, com idade superior a 18 anos e diferentes graus de escolaridade (desde 4ª série do Ensino Fundamental até Terceiro Grau Completo), esta autora observou uso inadequado dos verbos em suas conjugações, tempos e modos; uso inadequado de preposições; omissão de conectivos; omissão de verbos de ligação, falta de domínio e uso restrito de certas estruturas de coordenação e subordinação. Para Fernandes, tais dificuldades não devem ser encaradas como próprias do surdo, mas de um falante que, privado do contato lingüístico, reflete as mesmas dificuldades apresentadas por um ouvinte no trato com outra língua. Para ela, não é a deficiência que provoca o erro e sim a falta de contato constante com a língua Por outro lado, alguns erros cometidos pelos surdos são também comuns em falantes com pouca escolaridade e refletem falhas no processo educativo. Essas constatações levaram Fernandes (1990) a concluir que a falta de domínio do instrumental lingüístico deve ser vinculada à surdez apenas no que diz respeito à impossibilidade de exposição contínua ao meio lingüístico e a falhas no processo de reeducação.

Uma discussão sobre os resultados dos estudos referidos acima deve levar em conta a forma como a língua é concebida no trabalho com alunos surdos.

As crianças surdas, particularmente as de pais ouvintes, comumente chegam à idade escolar sem o conhecimento que as outras crianças aprenderam incidentalmente e às vezes formalmente em casa, devido à dificuldade de acesso à língua utilizada pela família. Assim, cabe à escola a tarefa de possibilitar o aprendizado, o que vai exigir a aquisição de uma língua.

Até recentemente, visando possibilitar o aprendizado da língua majoritária, os profissionais priorizavam o aprendizado de vocábulos isolados e de estruturas frasais, das mais simples para as mais complexas, que eram ensinadas através de exercícios de substituição, visando memorização e posteriormente generalização das regras. Como resultado de tal prática, os alunos apresentavam uso de frases estereotipadas, do tipo SVO, nas quais faltavam os elementos de ligação e as flexões. Assim, embora identificassem significados isolados de palavras, e muitos fossem capazes de usar as estruturas frasais trabalhadas, não conseguiam fazer uso efetivo da língua e, portanto, não se constituíam como sujeitos de linguagem. Em relação à leitura e à escrita, os alunos aprendiam a codificar e decodificar vocábulos e frases que muitas vezes não entendiam.

Importância da Língua de Sinais na Educação de Surdos

Considerando-se que a língua de sinais preenche as mesmas funções que as línguas orais desempenham para os seus usuários, é ela que vai propiciar aos surdos a constituição de conhecimento de mundo e da língua que vai ser usada na escrita, tornando possível a eles entender o significado do que lêem, deixando de ser meros decodificadores da escrita. Assim, a interação se dará através da Língua de Sinais. Através dela deve-se mostrar ao aluno surdo que a língua escrita realmente significa algo. Traduzir diferentes tipos de textos e mensagens escritas na língua de sinais possibilitará à criança entender a razão do texto escrito: comunicar. Segundo Svartholm (1997), os textos, por si só, não comunicam nada para a criança surda. Não há pistas no contexto imediato a partir das quais a criança possa fazer hipóteses sobre o conteúdo do texto. A única forma de assegurar que os textos se tornem significativos para os alunos surdos é interpretá-los através da Língua de Sinais, em um processo semelhante ao observado na aquisição de uma primeira língua.

Em relação à leitura e à escrita, Lane, Hoffmeister e Bahan (1996) enfatizam a importância dos textos como fonte importante de conhecimento e lembram que, quanto mais se lê, maior é a amplitude e a profundidade do que se pode entender. Criticam os materiais de leitura de baixo nível apresentados aos alunos surdos, os quais contribuem em grande parte para as dificuldades de leitura que esses apresentam.

Ao se referir ao ensino da língua sueca para crianças surdas, Svartholm propõe que, no trabalho com a segunda língua, a atenção deva estar voltada para a apresentação às crianças surdas de tantos textos possíveis, por meio de narrações repetidas e traduções, parando apenas quando for necessário dar explicações e fazer comparações entre as duas línguas. Segundo a autora, para desenvolver as habilidades lingüísticas, nem as lições de gramática, nem as orações curtas e simples, bem como o vocabulário restrito, podem cumprir a tarefa.

Ao discutir a questão da leitura e da escrita em crianças surdas, Lane, Hoffmeister e Bahan (1996) referem que, como todas as crianças, também as surdas necessitam de conhecimento de mundo de modo que possam recontextualizar o escrito e daí derivar sentido, necessitam de conhecimento sobre a escrita para que possam encontrar as palavras, as estruturas das orações assim como para criar estratégias que lhes permitam compreender os textos lidos. Criticam a escola por ela adotar práticas educacionais onde o foco é o vocábulo isolado, o que leva os alunos a prestarem atenção às palavras individualmente, preocupando-se em entender o significado literal das palavras e não buscando um sentido mais amplo no texto.

Assim como Svartholm, também Lane, Hoffmeister e Bahan (1996) enfatizam a importância dos textos como fonte importante de conhecimento e lembram que, quanto mais se lê, maior a amplitude e a profundidade do que se pode entender e criticam os materiais de leitura de baixo nível apresentados aos alunos surdos, os quais contribuem em grande parte para as dificuldades de leitura apresentadas por estudantes surdos.

Os efeitos da Língua Brasileira de Sinais no letramento de estudantes surdos foram observados por Pereira e Souza (1999) que analisaram amostras da escrita de dois estudantes surdos, com idades e tempo de escolaridade diferentes, ambos usuários da Língua de Sinais Brasileira e com linguagem oral pouco desenvolvida. Ao reproduzirem, por escrito, uma piada que lhes havia sido contada por um interlocutor fluente na língua de sinais, ficou evidenciado que as hipóteses lingüísticas, construídas em sinais, serviram como base para que os sujeitos conferissem sentido às construções do português, em um processo similar ao que ocorre no aprendizado de segunda língua. Neste processo, foi fundamental a intervenção de um interlocutor bilingüe, que participou como intérprete e co-autor na construção de conhecimento nas duas línguas.

A adoção da língua de sinais na educação de surdos deve ser acompanhada, segundo Pereira (2000, 2002c), de uma mudança na concepção de sujeito e de língua. O surdo deve ser representado como alguém que tem as mesmas possibilidades de adquirir uma língua como o tem os ouvintes. Devido à perda auditiva que apresenta, é a Língua de Sinais, uma língua visual-gestual, a que vai possibilitar que indivíduos surdos sejam inseridos no funcionamento lingüístico-discursivo da língua e possam se constituir como autores de seu dizer e não como meros repetidores de padrões lingüísticos aprendidos.

Ao analisar a aquisição da leitura e da escrita por crianças surdas, da Educação Infantil, de uma escola especial[1], Pereira (2002b) enfatiza a necessidade das mesmas serem inseridas em atividades que envolvam a escrita, assim como a importância da Língua de Sinais nesse processo.

Desde que entram na escola, as crianças são inseridas em atividades discursivas, como diálogos (conversas) e relatos (de histórias, de final de semana, de passeios etc.). Os livros de histórias são portadores de textos privilegiados devido ao interesse que despertam nas crianças. Tanto o instrutor surdo como o professor desenvolvem atividades de contar história através da língua de sinais, e é geralmente nesta situação que as crianças iniciam seus relatos, primeiramente através da incorporação de fragmentos do relato do adulto ou dos colegas e depois constituindo o seu próprio texto. Além dos livros de histórias, outros portadores de textos são utilizados, como parlendas, receitas, cantigas infantis, versinhos, entre outros.

Embora a escrita esteja presente todo o tempo nas salas de aula, instituímos neste ano momentos específicos para a leitura, nos quais todos lêem, inclusive as professoras. O objetivo é propiciar a postura de leitor nos alunos, já que muitos não têm este modelo em casa. Cada aluno escolhe um ou mais livros para ler e a única regra é não incomodar os outros.

Os efeitos desta prática têm sido animadores. As crianças, mesmo as mais agitadas, se envolvem, ainda que por pouco tempo, na atividade. Algumas apenas folheiam os livros, enquanto outras nomeiam figuras e outras, ainda, ensaiam relatos da história, o que acontece com os livros mais conhecidos. Assim como acontece com as crianças ouvintes, alguns livros são eleitos como os favoritos e sempre que possível são lidos pelas crianças.

As crianças são incentivadas a levar livros para casa, bem como dispõem de livros nas salas e, às vezes, enquanto esperam os colegas terminarem uma atividade, pegam um para “ler”.

Através de perguntas, as professoras, desde as primeiras classes, incentivam as crianças a produzirem pequenos relatos, os quais são escritos pela professora, em português, na lousa. A professora faz, assim, o papel de escriba, escrevendo em português os relatos que as crianças apresentam em língua de sinais.

Cada professora faz uso de estratégias adequadas ao interesse e nível de desenvolvimento dos alunos, no entanto, o que é comum a todas é que não se trabalha com vocábulos ou frases descontextualizados e nem se pede para os alunos copiarem. Incentiva-se o registro no papel e nesta atividade observam-se as primeiras formas que se assemelham a vocábulos e pequenos textos.

À guisa de ilustração do efeito que os textos escritos fazem nos alunos da Educação Infantil do IESP, é apresentada abaixo a produção escrita de Ricardo, uma criança de 6;0 anos de idade.

Antecedendo a visita ao Zoológico, atividade que os alunos vivenciam todos os anos, a professora recordou com as crianças os nomes dos animais de que lembravam. Os nomes mais lembrados foram leão, tigre, tartaruga e os não lembrados foram veado e esquilo, por exemplo.

A professora realizou joguinhos variados que envolviam os nomes dos animais, como jogo da memória, associação entre o nome e a figura do animal e as crianças procuraram em revistas figuras dos animais que mais gostam; de animais domésticos e selvagens; com pena e sem pena; os lugares em que os animais vivem, o que comem, entre outras coisas.

Após a ida ao Zoológico, a professora propôs aos alunos escreverem um texto. Através de perguntas da professora, as crianças foram construindo o texto em língua de sinais, assim como também acrescentaram alguns fatos que observaram no passeio. A professora escreveu na lousa o seguinte texto:

Passeio ao Zoológico

Nós fomos ao zoológico de ônibus.

Lá nós vimos os patos e os cisnes no lago.

Os macacos brincando na árvore.

Não vimos o gorila.

Vimos o hipopótamo descendo pra água.

A girafa na sua casa alta.

Vimos também o leão, a onça, o tigre, o jacaré, a cobra, o rinoceronte, a tartaruga, a foca, o urso, a zebra e o elefante.

Este texto foi digitado, reproduzido em xerox, distribuído para as crianças que o levaram para casa. No retorno à escola, o texto foi lido e, após trabalhar a compreensão de alguns vocábulos escritos, o texto foi retirado e a professora propôs que as crianças escrevessem sobre o passeio. Abaixo está o texto escrito por Ricardo.

Quando as crianças acabavam de escrever, a professora pedia a cada uma que lesse o seu texto. A leitura de Ricardo, em sinais, foi a seguinte: passeio zoológico nós ônibus lá pato cisne água lago macaco árvore brinca hipopótamo água girafa alta casa leão onça tigre veado tartaruga foca elefante.

A atribuição de sentido ao seu texto revela que Ricardo entendeu o que escreveu e não simplesmente memorizou o que a professora escreveu na lousa.

Ao ler o seu texto, a criança atribui sentido ao que escreveu em um processo bastante semelhante ao vivenciado por crianças ouvintes. No entanto, o faz através da língua de sinais.

O efeito deste e de outros textos apresentados à criança podem ser observados na disposição das palavras no papel e no espaço entre cada uma. A forma de alguns vocábulos, como leão e onça, por exemplo, animais preferidos por todas as crianças da sala, parece ter sido incorporada por Ricardo, assim como as letras iniciais de passeio, ônibus, hipopótamo, girafa, tigre, por exemplo. O uso por Ricardo do vocábulo veado, que não aparece no texto da professora, parece ser efeito de outros textos que circularam na sala sobre os animais.

Com estes dados é possível observar que, quando envolvidas em atividades em que a escrita está presente, as crianças surdas vão constituindo seu conhecimento de escrita, em um processo muito semelhante ao observado em crianças ouvintes. Para isto é preciso que vivenciem práticas em que a leitura e a escrita estejam inseridas, como contar história, relatar eventos vivenciados, entre outros.

Diferentemente das crianças ouvintes, no entanto, estas práticas vão se desenvolver através da língua de sinais. É ela que vai propiciar às crianças surdas atribuir sentido ao que lêem e escrevem.

A importância da língua de sinais para a escrita de crianças surdas é apontada por Svartholm (1997) para quem traduzir textos e mensagens escritas de diferentes tipos na língua de sinais é uma base importante para a aprendizagem da língua escrita.

É fundamental também que se ofereçam textos de boa qualidade aos alunos surdos. Lane, Hoffmeister e Bahan (1996) criticam os materiais de leitura de baixo nível apresentados aos alunos surdos, os quais contribuem em grande parte para as dificuldades de leitura que estes apresentam.

A atribuição de material empobrecido para os alunos surdos lerem decorre, a meu ver, da imagem que o professor tem do seu aluno. Muitos professores resistem ou mesmo se negam a dar livros para que os alunos surdos leiam, afirmando que estes têm muita dificuldade e que não gostam de ler. Por outro lado, por não terem acesso a materiais escritos ricos e diversificados, os alunos surdos vão tendo cada vez mais dificuldade para ler e se tornam completamente desinteressados pela leitura. Conseqüentemente não gostam de escrever e muitos se sentem incapacitados para fazê-lo.

Em relação à escrita, a imagem de incapacidade do surdo pode ser observada nas cópias que os mesmos são solicitados a fazer como forma de escrever. O efeito desta prática no aluno é o desinteresse e a falta de confiança no seu potencial.

Conclusões

Embora a literatura mais antiga atribua aos surdos dificuldades acentuadas, tanto na compreensão como na produção de textos, trabalhos mais recentes têm mostrado que:

expostos à Língua de Sinais desde cedo, as crianças surdas vão constituindo seu conhecimento de mundo, o que lhes vai possibilitar desenvolver conteúdo;

além da Língua de Sinais, as crianças surdas devem ser inseridas desde cedo em atividades que envolvam a escrita;

no trabalho com o português, devem-se privilegiar as atividades discursivas;

os alunos devem ser expostos a materiais escritos de qualidade, para que desenvolvam conhecimento de mundo e de língua (vocabulário, estruturas frasais);

a produção escrita de surdos se assemelha em muito a de aprendizes de Língua Portuguesa como segunda língua;

a surdez não impossibilita a aquisição da Língua Portuguesa pelos surdos.

MARIA CRISTINA DA CUNHA PEREIRA é Doutora em Lingüística, Professora titular da PUCSP, Lingüista do IESP-DERDIC-PUCSP e Docente pesquisadora do CEPRE-UNICAMP.

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[1] O IESP/DERDIC é uma escola, vinculada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que oferece escolaridade para crianças e adolescentes surdos, desde o programa de atendimento a bebês surdos, até à oitava série do Ensino Fundamental, incluindo Educação Infantil e Ensino Fundamental Alternativo, dirigido a adolescentes com acentuada defasagem na relação idade/série escolar.

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