A INFLAÇÃO RELEVANTE PARA O BANCO CENTRAL



O ÍNDICE DE INFLAÇÃO DO NÚCLEO

Ricardo Braule Pinto

Desde que o Banco Central anunciou que passaria a adotar o sistema de metas inflacionárias iniciou-se a discussão sobre qual seria o indicador da inflação relevante para o BC, isto é, aquele que deve sinalizar os rumos da política monetária. A partir da divulgação dos índices de inflação referentes a outubro/99, em que as fortes altas dos automóveis e do álcool combustível “puxaram” a inflação para cima, intensificou-se a demanda pelo cálculo de um índice de inflação que não seja afetado por variações de preços atípicas, ou seja, que reflita de forma mais adequada a inflação permanente, deixando de lado os movimentos transitórios; o índice que teria tais qualidades têm sido denominado core inflation ou “inflação do núcleo”.

Na ocasião, as sugestões que eram divulgadas na imprensa convergiam para o modelo adotado em outros países: recalcular o índice de preços sem os produtos que, devido a choques de oferta, podem provocar maior instabilidade. Os derivados do petróleo, os sazonais alimentícios e as prestações da casa própria são alguns exemplos de produtos “expurgados” dos índices tradicionais.

Salta aos olhos que esse tipo de modelo envolve questões insolúveis, a saber:

- os produtos serão retirados definitivamente ou somente enquanto durar a “variação atípica”, fruto da “acidentalidade”?

- como identificar uma variação atípica ? por exemplo, é típico do tomate apresentar variações de +30% em um mês e –45% no mês seguinte; assim, a variação atípica teria que ser definida a partir análise da série histórica de cada produto, o que é inviável.

- idealmente o índice deveria se resguardar de “acidentes”: em 1999 houve a quebra da safra do feijão, a maxidesvalorização do real, a disparada do preço do petróleo no mercado internacional, o aumento do IPI dos carros e o aumento do preço do álcool combustível; seria possível identificar, antecipadamente, esses candidatos a “acidentados”?

- qual a representatividade de um indicador do qual são retirados todos os acidentados potenciais, além dos sazonais? como ponderar os produtos restantes?

O grande problema desse tipo de abordagem é que privilegia o expurgo dos produtos, ao invés de “expurgar” as variações. Vale dizer, o indicador de inflação ideal deve levar em conta todos os produtos (relevantes, como se verá adiante) em todos os meses, mas deve adotar um tratamento em que as variações atípicas (para cima ou para baixo) tenham seus efeitos minimizados.

Neste sentido propomos a substituição da média pela mediana das taxas como indicador de inflação para efeito de definição da política monetária.

A mediana, assim como a média, é uma medida que busca refletir o valor central de uma massa de dados. Ou seja, observando-se essas medidas pode-se ter um resumo da distribuição dos dados, sem que seja necessário examiná-los todos. A principal diferença entre elas, e que particularmente nos interessa, é que a mediana é “robusta” aos valores extremos da distribuição de valores, já que ela, por definição, é o valor que divide a série ordenada ao meio, isto é metade dos valores se situam abaixo e metade acima do valor mediano. Exemplificando: suponhamos que os preços dos produtos arroz, feijão, carne, café e automóvel tenham apresentado as seguintes variações em determinado mês: 1%, 3%, 5%, 7% e 9%. A média entre eles é 5% e a mediana também é 5%, pois existem dois valores abaixo de 5% e dois acima de 5%. Se no mês seguinte os aumentos fossem de 1%, 3%, 5%, 7%, e 99% a média subiria para 23%, mas a mediana continuaria sendo 5%. Neste sentido, diz-se que a mediana é robusta, não-contaminável pelos valores extremos: enquanto a média foi “puxada” pelo aumento de 99% no preço dos automóveis, a mediana não se modificou.

Ou seja, quando se usa a mediana deixam de fazer sentido expressões do tipo “no mês de outubro a inflação foi puxada pelos automóveis”; se ela for puxada, significa que os aumentos de preços estão ocorrendo em um grande número de mercados, e isto é o que interessa para as decisões de política monetária, consoante a definição clássica de inflação: alta generalizada e contínua de preços.

Por trás dessa definição está a crença de que uma alta de preços só se transforma em inflação se houver excesso de demanda agregada. Ou seja, para o BC o ideal é que fosse produzido um indicador de inflação que contemplasse apenas os aumentos de preços originados por deslocamentos da demanda. Como isso não é possível, busca-se uma medida de inflação que minimize os efeitos dos choques de oferta, e nesse aspecto a mediana tem nítida vantagem sobre a média.

O caso da maxidesvalorização ilustra bem a vantagem da mediana sobre a média como indicador de inflação para o BC. A grande discussão após a liberação do câmbio é se a aceleração do IPCA, no qual se baseiam as metas de inflação, foi devida somente aos produtos derivados de importados (gasolina, pão, etc.) e os tradicionalmente exportados (café, açúcar, carnes, etc.) ou se, apesar do baixo nível de atividade, os aumentos de preços estariam transbordando para outros mercados. Tentar fazer esse tipo de análise através de um índice de preços tradicional é uma tarefa insana, visto que o índice deve ser recalculado a cada mês retirando-se do elenco de produtos aqueles que apresentarem variação de preços “atípica”. Ademais, perde-se o sentido de comparabilidade, uma vez que os tradeables apresentaram comportamento diferenciado ao longo do tempo: como o expurgo de um produto é determinado unicamente pela sua variação, o café seria excluído em fevereiro, o açúcar em setembro, as carnes em outubro, e assim por diante.

Note-se que a média expurgada está longe de pretender medir a inflação do núcleo, pois por essa metodologia tudo pertence ao núcleo, exceto os produtos previamente excluídos. No caso da mediana, embora nenhum produto seja excluído devido à sua variação, constata-se que ela é praticamente igual à média do núcleo da distribuição; núcleo entendido como a metade das observações do miolo da distribuição, ou seja que tem como limite inferior o que em estatística chama-se de quartil 1 (o valor abaixo do qual se situam 25% dos valores da massa de dados) e como limite superior o quartil 3 (o valor abaixo do qual se situam 75% dos valores da massa de dados).

Deve ficar claro que esse indicador de inflação não pretende medir a perda do poder de compra da população, para isso o IPCA deve continuar a ser calculado de acordo com a metodologia consagrada. Sendo assim, e já que para um indicador de inflação permanente o mais importante é captar como está ocorrendo a difusão dos aumentos de preços pelos diversos mercados, parece desejável que os seus componentes sejam considerados igualmente importantes, e a mediana tem mais essa vantagem.

Uma questão delicada na definição do indicador do BC é a escolha dos mercados relevantes. Ora, como o BC atua sobre a demanda, é necessário que os componentes do indicador tenham a possibilidade de variação de preços diante de deslocamentos da demanda, o que pressupõe a existência de comércio no sentido estrito, isto é, de pontos de venda. Então, devem ser excluídos do indicador os produtos e serviços cujos preços não são estabelecidos em função da demanda, além de serem inflexíveis para baixo (combustíveis e tarifas, por exemplo), e aqueles que, embora respondam à demanda, o fazem de forma lenta devido à rigidez dos contratos: aluguéis e mensalidades em geral (escolas, clubes, planos de saúde, etc.). Eventualmente esse conjunto pode puxar o indicador mensal para cima, mas o mais provável é que sirva de amortecedor: já que seus aumentos de preços ocorrem esporadicamente, deve ocorrer um concentração de zeros no miolo da distribuição, de modo que a mediana calculada com esses itens mascara a inflação latente e, consequentemente, retarda a ação do BC. Por fim, é desejável que a inflação do núcleo seja facilmente calculável a partir dos dados originais do índice de preços, condição atendida plenamente pela mediana

Questões operacionais

O primeiro problema é definir o nível de agregação (item ou subitem) a ser considerado na construção do indicador, sempre pensando em associar os componentes a “mercados” que tenham flexibilidade de preços. Se forem considerados todos os subitens, o indicador ficará “dominado” pelos itens que possuem o maior número de subitens Para evitar que isso aconteça subitens como alcatra, patinho, etc, por exemplo, não devem entrar no indicador isoladamente, sendo contemplado apenas o mercado representado pelo item “carnes”. Em outros casos entendemos que os subitens constituem mercados independentes: por exemplo, elegemos sabão em pó e detergente, ao invés do item “artigos de limpeza” (ver relação dos mercados em anexo).

O segundo problema são as inconsistências entre o indicador mensal e o anual. Ao contrário do índice de preços tradicional, a acumulação de 12 variações medianas mensais consecutivas é diferente da mediana das variações anuais dos componentes do indicador. A opção que nos parece mais apropriada é tomar a mediana das variações anuais como o parâmetro de avaliação (a meta anual), e olhar a mediana mensal para identificar, de forma rápida, eventuais desvios. Na prática os resultados são muito próximos nos períodos de estabilidade da taxa, mas tendem a divergir quando há aceleração ou desaceleração (no gráfico2, “mediana1” é calculada a partir das taxas acumuladas em doze meses, e “mediana2” é a acumulação de doze medianas mensais)

Resultados – Observando-se o gráfico 1 percebe-se que, exceto no período junho-novembro/98, o IPCA foi superior à taxa mediana dos mercados selecionados, sendo que em alguns meses (abr-jul/96, abr/97, jul/99 e out/99) o IPCA é anormalmente alto, beirando o “limite superior” (terceiro quartil) do núcleo. Assim, confirma-se o que todos suspeitavam: o resultado do IPCA de outubro/99 foi “puxado” por poucos produtos, os aumentos de preços não foram generalizados. Caso diverso ocorreu logo após a desvalorização, quando, ao contrário do que alguns imaginavam, o aumento da taxa de variação de preços em janeiro, fevereiro e março não ficou restrito às commodities de exportação (café, soja, açúcar, etc.) ou aos produtos com grande participação de matéria prima importada, mas sim foi generalizado pelos mercados, embora não tenha sido contínuo.

Para se perceber melhor a tendência, convém tomar os resultados acumulados nos últimos doze meses. Como se pode ver no gráfico 2, entre janeiro/96 e maio/98, a inflação do núcleo é declinante e inferior ao IPCA anual em cerca de 6 pontos de percentagem. A partir daí ela se mantém relativamente estável (entre 0,5% e 1,4%) até dezembro/99, determinando o patamar para o qual o IPCA foi progressivamente se aproximando, até janeiro/99.

Por outro lado, é nítido o movimento ascendente do limite inferior do núcleo (primeiro quartil) desde janeiro/98, o que sugere que a inflação do núcleo caminhava, suavemente, para um novo patamar quando ocorreu a desvalorização do real. Mas em fevereiro/99 começou um forte movimento ascendente que atingiu o pico de 8,85% em janeiro/2000. A questão agora é saber em que patamar se estabilizará a inflação após a adoção do câmbio flutuante.

A tendência mais recente é claramente declinante e, mais importante, a taxa mensal voltou ao “corredor” de variação entre 0 e 0,5%. Se essa trajetória for mantida, estaremos superando uma das maiores angústias trazidas pela liberação do câmbio, já que, apesar de contornados os efeitos imediatos da desvalorização, ainda existia o receio de que a inflação anual acabasse se estabilizando em um patamar relativamente alto. Receio cada vez mais infundado, tendo em vista que a taxa anual (agora livre dos efeitos imediatos da desvalorização cambial, no período janeiro-maio/99), atingiu 4,36% em maio, e deve se estabilizar em torno de 4%, mesmo contabilizando os esperados aumentos das tarifas públicas, que afetam a inflação do núcleo apenas residualmente.

Por fim, vale registrar que os preços dos nossos produtos de exportação (principalmente os manufaturados) depois de uma longa queda, iniciada com a crise asiática, estão começando a subir no mercado externo, o que pode representar um perigo para o comportamento do núcleo da inflação a médio prazo.

GRÁFICO 1

GRÁFICO 2

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