Nunca pensei que o joranlismo desse tanto trabalho



DANILO SANTOS DE MENEZES

A popular cozinha baiana do dendê

Série de reportagens

Trabalho de conclusão do curso de Comunicação, habilitação em Jornalismo, da Universidade Federal da Bahia.

Orientador: Giovandro Marcus Ferreira

Co-orientadora: Nadja Magalhães Miranda

SALVADOR (BA)

2003

À memória do meu pai, um gourmet, ainda que não se desse conta disso.

A minha mãe e minha irmã.

AGRADECIMENTOS

Ao orientador Giovandro Ferreira, pelo acompanhamento, revisão, dispo-nibilidade e atenção. À co-orientadora Nadja Miranda, pelas sugestões e críticas em momentos importantes.

A Beto, pelo apoio constante. A Eliane Cardoso, pelo carinho. Aos colegas de trabalho do Banco do Brasil e aos colegas do curso de Comunicação, especialmente Amanda, Eliane, Luciana e Tharsila, pelo companheirismo.

A Vivaldo da Costa Lima, que me disponibilizou a sua biblioteca, e de quem me tornei amigo. A Ericivaldo Veiga, pela atenção. A Vânia Rebelo, pelas fotos. A Luciano Robatto, pelas dicas de editoração.

A todos os entrevistados, pela disponibilidade e pelo amor à arte culinária. A Heloísa Sampaio, pelas informações fornecidas. E por suas crônicas gastronômicas, muitas sobre a região cacaueira, de onde também sou nativo.

Comer e comunicar são duas funções animais que o homem faz com mais estilo e variedade que os animais. Há quem diga que sexo também, mas nossa espécie não tem nada parecido com o ‘balé’ sexual de certas aves, pelo que eu conheço. É por isso que o texto sobre comida nos dá tanto prazer. Estamos celebrando a nossa superioridade sobre o hipopótamo e ostentando duas artes que só nós temos no planeta dos bichos, a gastronomia e a linguagem.

Luis Fernando Veríssimo

SUMÁRIO

PARTE I – Memória descritiva e analítica

Apresentação...................................................................................................................6

Escolha do tema...............................................................................................................7

Formato..........................................................................................................................10

Produção.........................................................................................................................14

Conclusão.......................................................................................................................25

Bibliografia.....................................................................................................................28

PARTE II – Série de reportagens

Presença dourada..........................................................................................................31

Tradição e modernidade..............................................................................................35

Dendê popular...............................................................................................................43

Cozinha ambulante.......................................................................................................47

Dendê nosso de toda sexta...........................................................................................50

Gorduras vegetais........................................................................................................53

A banqueteira do dendê...............................................................................................58

Inovações nos pratos.....................................................................................................63

Gourmet do dendê........................................................................................................70

O engenheiro com um pé na cozinha..........................................................................74

PARTE I

Memória descritiva e analítica

APRESENTAÇÃO

A presente memória acompanha a série de reportagens A popular cozinha baiana do dendê, que constitui requisito parcial para conclusão do curso de graduação em Comunicação, habilitação em Jornalismo, da Universidade Federal da Bahia. Este trabalho de reportagem aborda basicamente a presença majestosa do azeite-de-dendê na culinária baiana, e diversos aspectos envolvidos, a exemplo de origens, tradições, utilizações e inovações nos pratos que utilizam esse ingrediente. O olhar sobre a cozinha baiana deu-se a partir de pessoas que estudam, preparam e que apreciam os pratos feitos com azeite-de-dendê.

ESCOLHA DO TEMA

Na época do meu anteprojeto, pensado enquanto cursava a disciplina Elaboração de Projeto em Comunicação, com a professora Maria Carmem Jacob, imaginei abordar a gastronomia, tendo-se em conta o que é veiculado nas colunas de jornais, baianos e de outros Estados. Da gastronomia em geral, o meu interesse passou a enfocar a gastronomia na Bahia, até chegar à culinária e à apreciação dos pratos que são feitos com azeite-de-dendê.

O meu interesse pelo tema parte do prazer de degustar uma boa refeição. Motivado pela fome, eu me dedico eventualmente à preparação de alguns pratos e à peregrinação a restaurantes, em busca de novos sabores. Passando, eventualmente, pela leitura de revistas, jornais e livros sobre culinária e gastronomia. Na Faculdade de Comunicação da UFBA, elaborei um site sobre acarajé, durante a disciplina Oficina de Comunicação Audiovisual, do curso de Jornalismo.

De início, a gastronomia significava “estudo ou observância das leis do estômago”. Hoje está relacionada aos preceitos de comer e beber bem, mais por prazer do que por necessidade, e à arte de preparar iguarias para obter delas o máximo de deleite, tornando-as mais digestivas. Gastronomia, portanto, é a arte de cozinhar e apreciar a boa comida. A arte de cozinhar também é chamada de culinária.

A culinária brasileira é bastante variada, por sua geografia e formação étnica, basicamente indígena, africana e portuguesa. A cozinha baiana é, entre as de todos os Estados, talvez o maior espelho dessa mistura de influências. Os pratos de origem africana são, sem dúvida, os mais famosos da Bahia. Ainda que existam outras heranças importantes, receitas consumidas até com mais freqüência no dia-a-dia dos baianos. Nesse caso, o grande exemplo é a cozinha sertaneja, formada em sua maior parte de pratos de origem portuguesa, com influência da cozinha indígena.

A gastronomia vai além da preparação e degustação de pratos: envolve a crítica e pressupõe conhecimentos teóricos e práticos, que permitem avaliar os resultados obtidos. Isso ficou mais claro para mim ao ler livros e as seções de gastronomia de jornais impressos de outros locais. Análises e matérias com nível de aprofundamento maior do que o encontrado nos jornais da Bahia e de outros Estados brasileiros.

Por aqui existem poucos os profissionais da comunicação que se dedicam à gastronomia. Há pouco espaço dispensado ao assunto, em termos de número de colunas e páginas. Falta esmiuçar, dar mais informações, mais detalhes. Olhando de forma rápida os cadernos de finais de semana, nota-se que o jornal A Tarde resume-se a receitas e um texto curto na coluna Comes e Bebes. O Correio da Bahia vai um pouco adiante, disponibiliza página inteira, trazendo matérias de culinária com referência a datas comemorativas (dia dos pais, das mães, dos namorados), tipos de culinária (natural, light, macrobiótica), de diferentes nacionalidades (chinesa, italiana, francesa), mas todas com textos curtos, cujo foco também acaba recaindo sobre as receitas. Falta contextualizar e imprimir impressões críticas e detalhadas dos resultados dos pratos.

Uma opção mais recente produzida na Bahia é o blog (site) Tara do Prato (taradoprato..br), publicado na internet, produzido pelas jornalistas Heloísa Sampaio e Majorie Moura, com crônicas, receitas e notícias sobre a gastronomia no Estado. Heloísa, ou Helô, é cronista de gastronomia e possui livro publicado sobre o assunto, intitulado Bem comida.

Na bibliografia da cozinha baiana, a maior parte dos títulos é composta de livros de receitas. Entre algumas exceções: o livro A cozinha baiana, do jornalista Darwin Brandão, publicado em 1948, e A cozinha baiana: seu folclore, suas receitas, de Hildergardes Vianna, publicado em 1955. O primeiro é uma grande reportagem, publicada em forma de livro. Mesmo assim, a metade do total de páginas é composta de receitas. O segundo trabalho, da professora e folclorista Hildegardes Vianna, possui anotações valiosas a respeito dos costumes baianos da década de 50. Mas também a maior parte do conteúdo é de receitas.

O antropólogo Vivaldo Costa Lima deu grande colaboração à cultura baiana ao publicar o artigo Etnocenologia e etnoculinária do acarajé. O texto é a mais importante referência em termos de análise do “fenômeno cultural” acarajé. E, por conseqüência, da cozinha baiana atual. O antropólogo promete para breve a publicação de um livro, totalmente dedicado à iguaria. O livro terá o título O acarajé e o sonho.

A tese de doutorado A cozinha baiana do restaurante escola do Senac do Pelourinho - Bahia: mudança de contexto e atores, do antropólogo Ericivaldo Veiga, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) é também um excelente registro da cultura baiana. Mas o foco do trabalho é o restaurante e escola, não é a alimentação.

O engenheiro Guilherme Radel também deu grande colaboração para o registro da cozinha da Bahia. O livro A Cozinha Sertaneja da Bahia, publicado em 2002, também traz muitas receitas e boas observações, ainda que breves, sobre a cozinha do Estado.

A partir da percepção de que há certa lacuna a ser preenchida, sobre a atualização de um assunto que vem despertando o interesse dos leitores, imaginei em dar uma pequena colaboração para o registro histórico-cultural da cozinha do azeite-de-dendê, praticada na Bahia. Pensei em produzir uma série de reportagens, editada na forma de um caderno especial para ser incluído em jornal impresso.

FORMATO - Série de reportagens (grande-reportagem)

Noticiar é tornar público um fato, buscando responder as questões o que, quem, quando, como, onde e por quê. Para diminuir a superficialidade da notícia, fornecendo para o receptor compreensão de maior alcance, surge a modalidade de mensagem jornalística chamada de reportagem, que é a ampliação do relato simples para a dimensão contextual.

A grande-reportagem é o formato que apresenta maior amplitude, possibilitando mergulho nos fatos e em seu contexto, oferecendo a seu autor ou atores, uma dose considerável de liberdade para escapar da fórmula convencional do tratamento da notícia[1].

Segundo Lima, uma das formas de expressão da grande-reportagem é o jornalismo interpretativo, que busca não deixar a audiência desprovida de meios para compreender o seu tempo, as causas e as origens dos fenômenos que presencia, suas conseqüências no futuro. Procura elucidar os aspectos da realidade que não estão muito claros[2].

Para tanto, são necessários alguns ingredientes:

- O contexto do fato nuclear, quando se trata de um tema mais duradouro e que não reflita apenas uma ocorrência menor, isolada;

- Os antecedentes, para resgatar no tempo as origens do problema; o suporte especializado, através de enquete, pesquisa de opinião pública ou entrevistas com especialistas e testemunhas do assunto em questão, para dar a sustentação que evita a informação oca;

- A projeção, visando inferir do presente e do passado os desdobramentos do caso, suas conseqüências possíveis, seu alcance futuro;

- O perfil, que é o lado de humanização da reportagem, que busca emocionar, junto com a elucidação racional.

Tudo isso voltado para uma abordagem multiangular, para uma compreensão da realidade que ultrapassa o enfoque linear, ganhando contornos sistêmicos no esforço de estabelecer relações entre as causas e as conseqüências de um problema contemporâneo.[3]

A reportagem tem as características da predominância da forma narrativa, a humanização do relato, o texto de natureza impressionista e a objetividade dos fatos narrados.[4]

A grande reportagem colabora para o aprofundamento do conhecimento do nosso tempo, diminuindo o aspecto efêmero da mensagem da atualidade praticada pelos canais cotidianos da informação jornalística[5]. É na expectativa de encontrar explicações e informações de ações de bastidores, que o leitor pode motivar-se ao aprofundamento que a série de reportagens se propõe.

A série de reportagens aqui elaborada é basicamente do tipo documental (quote-story), cujo relato é acompanhado de citações que complementam e esclarecem o assunto tratado, ao mesmo tempo em que se apóia em dados que lhe conferem fundamentação. Também foram utilizados o uso de recursos da reportagem de fatos (narração de fatos).[6]

Quanto à função, a série de reportagens tem as finalidades típicas do jornalismo: serve para informar, orientar, explicar.[7]

Costuma faltar ao profissional da comunicação o hábito da pesquisa mais apurada sobre o tema de sua pauta, antes de partir para a coleta que vai gerar a matéria. Ou, em certos casos, falta-lhe o domínio de um instrumental de lógica que lhe possibilite analisar um tema com amplitude, a partir daí podendo estruturar uma pauta abrangente, de alcance. Este trabalho acadêmico de série de reportagens pode vir ajudar suprir essa lacuna.

Quanto ao vínculo com a atualidade, há duas categorias de reportagem. Na primeira, aproveita um fato de repercussão atual, para explorá-lo com maior alcance. Na segunda, não se limita ao rigorosamente atual, trabalhando temas um pouco mais distantes no tempo, de modo que possa, a partir daí, trazer explicações para as origens, no passado, das realidades contemporâneas[8]. A série de reportagens aqui elaborada é coerente com o segundo tipo, ainda que ambas as características estejam interligadas.

A série de reportagens tem a função de informar e orientar em profundidade sobre ocorrências sociais, episódios fatuais, acontecimentos duradouros, situações, idéias, e figuras humanas, de modo que ofereça ao leitor um quadro da contemporaneidade capaz de situá-lo diante de suas múltiplas realidades, de lhe mostrar o sentido, o significado do mundo contemporâneo.[9]

A profundidade pode se dar horizontalmente – sentido extensivo -, verticalmente – sentido intensivo – ou numa mescla de ambos.

O aprofundamento é extensivo, ou horizontal, quando o leitor é brindado com dados, números, informações, detalhes que ampliam quantitativamente sua taxa de conhecimento do tema. O aprofundamento é intensivo, ou vertical, quando o leitor é alimentado de informações que lhe possibilitam aumentar qualitativamente sua taxa de conhecimento. Isto é, existe uma análise multiangular de causas e conseqüências , de efeitos e desdobramentos, de repercussões e implicações. Neste plano, a grande-reportagem, em forma de livro, vincula-se menos à edificação do tangível imediato, do concreto, e mais à tecedura do sutil, do que está por materializar-se.[10]

No primeiro caso, o número e a qualidade dos detalhamentos enriquecem a narrativa para um grau de informação idealmente superior ao dos veículos cotidianos. No segundo, a verticalização solidifica a real compreensão do tema e de sua precisa inserção no contexto contemporâneo.

O jornalismo aprofundado passa pela pesquisa histórica. É a forma de contextualizar. Segundo Lima, o sentido – ou seja, o rumo, a direção – de um acontecimento manifesta-se no tempo presente, como efeito do passado, como evolução para o futuro, e seu significado – o que representa e para quem – só pode ser obtido quando identificadas as relações que estabelece com os demais níveis hierárquicos[11].

PRODUÇÃO

Iniciei a pesquisa em outubro de 2002, após a definição do tema na disciplina Elaboração de Projeto. Por sugestão da professora Heloísa Sampaio, fui em busca do antropólogo Vivaldo da Costa Lima, professor Emérito da UFBA, hoje aposentado. De início, Vivaldo mostrou-se resistente a dar entrevistas. Mas, depois de alguns encontros, pediu uma cópia do meu projeto para ler e me convidou a freqüentar a sua ampla biblioteca de gastronomia. Foi uma grande oportunidade de trabalho.

A biblioteca do antropólogo possui textos raros da cozinha baiana e grande variedade de títulos da gastronomia internacional. Quanto estava na ativa, como professor da UFBA, Vivaldo tentou implementar um centro de estudos de alimentação. É interessado por gastronomia há muito tempo; e me incentivou a ler com profundidade sobre o assunto. Passei a freqüentar a biblioteca com assiduidade.

A fome foi algo que me acompanhou durante as pesquisas. Por diversas vezes, ao me dedicar às leituras dos belos livros de gastronomia, deparei-me com algo mais do que o apetite pelo conhecimento. Era a fome propriamente dita. Saía da biblioteca do professor Vivaldo literalmente faminto.

A pesquisa histórica e o bom trabalho jornalístico envolvem - ou deveriam envolver - leituras, antes de qualquer entrevista. Por conta disso comprei livros, fui em sebos. Consegui raridades. Tive que fotocopiar textos básicos. Entre eles, a bíblia “História da Alimentação no Brasil”, de 925 páginas, em dois volumes, do historiador Luis da Camara Cascudo. É inacreditável que um livro daquela qualidade e amplitude esteja esgotado e sem perspectiva de republicação.

Também coletei receitas e matérias de jornais. Desde agosto de 2002, venho recolhendo o que é publicado em A Tarde, Correio da Bahia e na Gazeta Mercantil sobre gastronomia.

Pautas e entrevistas

Para iniciar o trabalho, combinei com o professor Giovandro Ferreira de elaborar pautas, o que facilitaria o trabalho. E como elas me foram úteis! Sempre lhes recorria para elaborar as questões, toda vez que ia partir para qualquer entrevista.

A pauta eficiente e completa deve conter itens como a definição precisa do assunto a ser abordado e seus objetivos, a formulação dos problemas e um plano de captação. Esses itens dão conta, entre outras coisas, da localização precisa do assunto a ser abordado e seus objetivos.[12]

A partir do projeto do trabalho, concentrei a ação em três linhas de assuntos para abordar nas entrevistas. A primeira, enfocando as maneiras de comer, verificando costumes alimentícios relacionados às comidas baianas de azeite. O contexto do consumo, os lugares, os comilões.

Na segunda linha, as maneiras de preparar, observando os modos de fazer a comida baiana. A evolução das técnicas, ingredientes e preparo. Novos pratos feitos com o dendê e o seu parceiro inseparável, o leite de coco. A satisfação de quem prepara a comida, o que motiva essas pessoas a trabalhar com gastronomia.

Na terceira linha de entrevistas, abordando as maneiras de divulgar, conversando com pessoas que pensam e divulgam a gastronomia. Jornalistas, escritores, divulgadores, antropólogos. E estes foram fontes excelentes.

Nunca pensei que o jornalismo desse tanto trabalho. Há muitos obstáculos a serem vencidos durante a confecção de uma grande reportagem. Da dificuldade de marcar entrevistas, passando pela demorada transcrição das gravações, indo até a edição do texto. Durante o curso de jornalismo, e de algumas reportagens elaboradas para o jornal Província da Bahia, tive pouco contato com o uso do gravador. Do mesmo modo, em minhas atividades de comunicação no Banco do Brasil, que incluíram confecção de house organ e estágio no Núcleo de Comunicação da superintendência estadual, o gravador foi algo completamente dispensável.

Nas matérias elaboradas para a agência interna de notícias online do Banco do Brasil, um simples telefonema é suficiente para elaborar uma matéria, que consta no máximo de três ou quatro parágrafos. O jornalismo online quase sempre induz à confecção de textos noticiosos curtos. A opção pela reportagem como trabalho de conclusão do curso de Jornalismo foi no justamente no intuito de suprir a carência de experiências em elaborar textos mais aprofundados.

O gravador parece ser uma ferramenta utilizada em casos muito especiais no jornalismo. É necessário um ambiente tranqüilo, com poucos ruídos externos. Depois, um demorado período de transcrição. Por ter pouca experiência com o equipamento, iniciei transcrevendo frase por frase, cada opinião e reação (risos, rispidez,etc.) do entrevistado. Com receio de perder alguma informação, por não saber exatamente o que seria aproveitado. À medida que fui adquirindo mais experiência, já fazia a transcrição junto com a edição do texto, elaborando como se fosse o rascunho da matéria, registrando somente os aspectos que iriam fazer parte das reportagens.

Junto ao trabalho de transcrição, procurei registrar a minha percepção sobre a pessoa que estava sendo entrevistada, sobre o local onde ocorreu a entrevista, o comportamento do entrevistado, seu posicionamento. De forma geral, quem trabalha com gastronomia, parece estar de bem com a vida. Todos dão boas risadas. Parecem saber apreciar o que a vida tem de bom, valorizar as relações entre as pessoas, dedicar-se a agradar aos comensais e – agradando a si mesmos – ouvir elogios.

Os estudiosos (jornalistas, antropólogos e outros) foram fontes indispensáveis ao trabalho. Não somente para fornecer informações e iluminar questões, mas para chamar a atenção sobre os aspectos que mereceriam abordagem aprofundada, e também com suas opiniões, na discussão de temas polêmicos.

Durante as entrevistas, fui anotando tópicos recorrentes e que me pareceram mais significativos, tentando achar “ganchos” para as reportagens. Também durante as entrevistas, os personagens mais interessantes foram se afirmando por conta própria e “exigiram” os seus perfis. Eu apenas registrei.

Em vista da grande quantidade de informações a respeito dos modos de consumir, preparar e servir, o quesito de divulgação foi deixado de lado. Acredito que este é um tópico que pode vir a gerar um outro trabalho, pois envolve aspectos relacionados ao turismo e ao mercado de restaurantes e estabelecimentos comerciais da Bahia. As reportagens deste trabalho recaem sobre aspectos culturais da cozinha e alimentação na Bahia.

Com a boa quantidade de informações obtidas, percebi que a discussão do que é publicado na imprensa baiana sobre gastronomia não ficaria interessante neste trabalho. Poderia caber melhor em algum estudo acadêmico, talvez de natureza comparativa. Não seria o caso da inclusão em um trabalho de reportagem. Por esse motivo não abordei as maneiras de divulgar. Aproveitei, sim, o conhecimento daqueles que divulgam para aprofundar aspectos da cultura.

Durante realização das entrevistas e confecção das reportagens, foi ficando claro para mim que a abordagem da cozinha baiana ficaria restrita aos aspectos de consumo, preparação e apreciação de pratos feitos com o dendê. O que já significa um tema bastante amplo.

O dendê está presente na maior parte da cozinha de origem africana, que é, efetivamente, a mais celebrada e famosa do Estado. Por mais que se saiba da existência e do consumo até mais freqüente de outros pratos, a exemplo das carnes da cozinha sertaneja, a cozinha de origem africana é a que é sempre lembrada como “baiana”.

Na entrevista com o engenheiro e gastrônomo Guilherme Radel, autor de A cozinha sertaneja da Bahia, encontrei um acadêmico de peso (sem trocadilho), conhecedor não só da cozinha sertaneja, mas grande apreciador da cozinha afro-baiana, como ele mesmo designa.

Além de muito simpático, contador de casos, Radel revelou-se um excelente observador e crítico de gastronomia. Também fez observações interessantes a respeito dos assuntos publicados nas colunas de gastronomia dos jornais baianos e nacionais. Ele comentou sobre os jornalistas atuais e antigos, comprovando que o seu interesse vem de longa data.

No livro A Cozinha Sertaneja da Bahia, Radel fez anotações baseadas em sua percepção, leituras, pesquisas e incursões na cozinha. O escritor fala tão alto quanto o pesquisador. Ele não se furta a opinar e escrever sobre vários aspectos da gastronomia. Na investigação de algumas das observações de Radel, surgiram questões que resultaram em algumas reportagens deste trabalho, a exemplo da utilização (para ele) excessiva do leite de coco nas moquecas e do consumo do dendê na sexta-feira.

Vivaldo da Costa Lima não me concedeu entrevistas, mas me forneceu bastante material escrito por ele, que revelam as suas impressões. Foram artigos publicados em livros e anotações de aulas e palestras.

Fiz entrevistas bastante proveitosas com a jornalista Heloísa Sampaio, com o antropólogo Ericivaldo Veiga e com a culinarista Elíbia Portela. Além das entrevistas que se transformaram em perfis, com o cozinheiro Manoel Barbosa, com o geólogo Arno Brichta e a banqueteria Maria Célia Midlej.

A professora Nadja Miranda foi gentil e acessível, ao me dar idéias para direcionar a confecção deste trabalho. Em vista do prazo curto disponível, ela me sugeriu que reduzisse o texto para uma série de reportagens, em lugar do livro-reportagem inicialmente previsto. Também me emprestou livro e outras séries de reportagens de alunos da Facom, que foram muito úteis para visualizar a forma de apresentação deste trabalho. Isso sem contar com idéias para pautas e fontes. Por tantos préstimos, foi incluída como co-orientadora do trabalho.

O estimado orientador Giovandro Ferreira esteve sempre acessível, com boa vontade, e me forneceu liberdade irrestrita para trabalhar. Desde o final de 2002, ele me disponibilizou vários livros e trabalho acadêmico de reportagem, iniciando o acompanhamento de forma atenciosa e tranqüila, mesmo ainda sem estar oficialmente designado como orientador. Sempre ajudou com idéias para textos, fotos e diagramação.

É curioso que as entrevistas com pessoas que cozinham, apreciam e estudam a culinária viram longos bate-papos. As entrevistas duravam no mínimo 40 minutos. Durante a conversa, entravam em cena as reminiscências familiares, os prazeres da degustação, as relações amorosas. É um consenso que cozinhar é dedicar amor. Um prato sai bem feito e saboroso se é feito com atenção, cuidado, entrega e dedicação.

Assim como na elaboração de uma pintura ou de uma música, a dedicação de amor ao trabalho culinário retorna e adquire significado artístico. O ato de cozinhar transforma-se em arte culinária.

Restrições

Um aspecto a ser registrado é a ausência de enfoque sobre a cozinha de azeite que é herança direta africana, dedicada aos orixás do candomblé. Trata-se de assunto complexo, provavelmente abordado com mais propriedade por antropólogos, pois exigiria uma vivência intensa junto às comunidades do candomblé. É uma atividade que não foi proposta no projeto deste trabalho. Detive-me aos costumes das ruas, restaurantes e do dia-a-dia das residências baianas. Na cozinha, digamos, profana. Fiz somente breves referências às tradições religiosas.

Segundo Lima, o antropólogo entrevista um, informante muitas vezes – ao contrário do jornalista-, cria o relacionamento interativo com este, costura aos poucos a teia de padrões e conexões que dão o todo de uma “rede intrincada de significados”[13]. Não foi esta a perspectiva proposta no projeto deste trabalho.

A escrita

No processo de confecção das reportagens, por diversas vezes tive que simplificar a linguagem. Procurei utilizar sentenças em ordem direta e linguagem simples. Procurei levar o pensamento dos estudiosos na forma mais simplificada e direta possível, para facilitar a leitura.

Para auxiliar a elaboração das reportagens, fiz um resumo esquemático, contendo tópicos a serem abordados e as fontes disponíveis. Tive que refazer o resumo várias vezes, pois alguns tópicos mostraram-se mais complexos, exigindo subdivisões, gerando novas reportagens. O resumo foi refeito à medida que o trabalho tomava corpo.

À medida que algumas reportagens foram sendo elaboradas, a busca de profundidade nas informações proporcionou a inclusão de aspectos inicialmente não previstos. Surgiram informações inesperadas. Foi o caso da descoberta da pesquisa feita pela Universidade Estadual da Bahia (UNEB), sobre o acarajé e abará, que comprova que o abará tem mais calorias que o acarajé. Uma constatação que muda o senso geral de que o bolinho frito, o acarajé, teria mais gordura que o abará, que é cozido no vapor.

A princípio, hesitei em publicar receitas. Imaginei que a publicação delas poderia ser taxada como de menor importância frente ao texto jornalístico. Pois, para mim, que não sou cozinheiro, colocar receitas neste trabalho estaria representando apenas copiar um texto de algum livro ou coletar a anotação – ou mesmo a fala - de um entrevistado.

Ao pensar na série de reportagens, imaginei fazer um trabalho com relatos de costumes e contextualização, algo ausente nos livros de receitas. Daí a resistência a incluí-las. Comecei a mudar de idéia ao ler o livro de Luis da Camara Cascudo, História da Alimentação no Brasil. Lá estão várias receitas, fundamentais para ilustrar os costumes descritos. Em certos trechos do livro, ao ler sobre os hábitos da alimentação, o leitor fica curioso para saber o conteúdo dos pratos. E as receitas estão presentes, complementando um trabalho de grande qualidade.

Assim, fui percebendo que as receitas são algo mais do que simples procedimentos culinários para obter pratos. Elas mostram a presença ou ausência de ingredientes e variações em suas quantidades. São diferenças sutis que registram as mudanças nos gostos e as inovações na culinária, com o passar do tempo. Seguem características dos seus locais de origem. Retratam principalmente a disponibilidade dos ingredientes. Em uma região litorânea, por exemplo, haverá grande ocorrência de frutos do mar em seus pratos.

A variação de ingredientes, inclusive, foi algo que motivou a confecção de uma das reportagens. A partir da constatação da importância das receitas, mudei o meu posicionamento e decidi incluí-las no trabalho. Em reunião com o professor Giovandro, a minha opinião foi reforçada. O professor me sugeriu inclusive que a receita poderia vir dentro da reportagem. Mas, ao confeccionar o texto, decidi deixá-las em quadros separados, para facilitar a visualização e a leitura.

Perfis

O perfil pode focalizar apenas alguns momentos da vida da pessoa retratada. É uma narrativa curta tanto na extensão (tamanho do texto) quanto no tempo de validade de algumas informações e interpretações do repórter. (...) É de natureza autoral. Impossível que as experiências pessoais de um repórter não se confundam com a temática que estiver trabalhando.[14]

A narrativa de um perfil não pode prescindir de todos os conceitos e técnicas de reportagem conhecidas, além de recursos literários e outros. Mas ela também está atada ao sentimento de quem participa. (...) Os perfis cumprem um papel importante que é exatamente gerar empatias. Empatia é a preocupação com a experiência do outro, a tendência a tentar sentir o que sentiria se estivesse nas mesmas situações e circunstâncias experimentadas pelo personagem. [15]

Segundo Vilas Boas, os perfis jornalísticos expressam uma trajetória sintética. O perfil é explicitado pela história narrada, com um passado e um presente[16].

Apesar da durabilidade menor (comparados com as biografias em livro), os perfis têm grande relevância como gênero jornalístico, mesmo que meses ou anos depois da publicação do texto o personagem tenha mudado suas opiniões, conceitos, atitudes ou estilos.[17]

O fato de os atos e as reações de uma personagem deixarem transparecer, ainda que de maneira fluida, as suas características, tem enorme importância na estruturação de um perfil. É a possibilidade de descrever uma pessoa contando o que ela faz e como faz, permitindo a incorporação num texto descritivo de trechos narrativos. São recursos consideráveis.[18]

Os perfis presentes nesta série de reportagens não foram escolhidos aleatoriamente. Cada um deles representa um tipo de personagem da gastronomia baiana, que apresenta riqueza de detalhes em seus relatos, ou que apresenta aspectos inusitados, como é o caso de Manoel Barbosa, o cozinheiro que vende comida na rua.

Assim, o perfil de Guilherme Radel é o do estudioso, pesquisador e divulgador da cozinha do Estado. O de Arno Brichta é o do conhecedor, gourmet, apreciador que também prepara pratos. O perfil de Maria Célia é o da especialista em servir refeições.

A confecção de perfis foi para mim um excelente exercício de jornalismo enriquecido com alguns elementos literários. Deste modo, o lead desaparece. O texto pode conter diálogos e há muitas impressões do autor.

O suporte

Logo de início, estava disposto a contratar um profissional para fazer a editoração do trabalho. Mas, apesar da minha pouca experiência no assunto, resolvi enfrentar o desafio, em vista de que poderia ser uma boa aprendizagem. Nesta atividade, contei com sugestões do designer Luciano Robatto. Foi utilizado o programa de editoração Page Maker 6.5

Em minha carreira profissional, até agora, tive oportunidade de fazer trabalhos impressos, house organs, no ambiente empresarial. E nessas ocasiões não havia verba para pagar um profissional de design gráfico. O jornalista tinha que fazer a editoração, muitas vezes utilizando somente editor de texto (Word) ou de apresentação (Power Point). Diante desses fatos, quanto mais conhecimento e experiência o profissional tiver no assunto, melhor qualidade haverá no trabalho final.

A maior parte das fotos foi feita por mim mesmo, com a velha e boa Pentax K1000, companheira de aventuras. Algumas fotos foram cedidas pela fotógrafa Vânia Rebelo, de seu arquivo pessoal. Digitalizadas em scanner, foram tratadas com o programa Adobe Photoshop 6.0.

CONCLUSÃO

A série de reportagens, aqui desenvolvida, aborda diversos aspectos da culinária baiana que utiliza o azeite-de-dendê como peça indispensável. O trabalho procurou elaborar textos com um nível de informações relativamente aprofundado. Para isso recorrendo à pesquisa bibliográfica ampliada e a um maior número de fontes que o utilizado no jornalismo periódico.

Fazer este trabalho foi muito gratificante, foi uma grande experiência. Também acredito ter colaborado para fazer um pequeno mas consistente registro, em forma de reportagem, de alguns aspectos pouco divulgados da cultura baiana no âmbito da culinária e da alimentação.

Ao confeccionar as reportagens, tive muito cuidado com minhas afirmações. Procurei sempre avaliar se o que estava afirmando estava fundamentado em observações ou se eram meramente opinativas.

Uma das críticas mais ouvidas ao jornalismo diário é que os jornalistas são pouco especializados nos assuntos que abordam, que fazem pesquisas muito rápidas para a confecção de matérias e reportagens. Um dos meus objetivos com este trabalho foi o mergulho em um tema que é passado, presente e futuro: a gastronomia. E com este aprofundamento, obter subsídios para elaborar outros trabalhos jornalísticos de qualidade, principalmente neste mesmo assunto.

Outros itens que podem servir para futuros trabalhos de reportagem: a cozinha sertaneja, a herança árabe na cozinha do sul da Bahia, a culinária da Chapada Diamantina, a cozinha dos derivados da mandioca, a cozinha das praias.

A alimentação é necessidade básica do ser humano. E um grande prazer, tanto para quem gosta de preparar quanto para quem consome. A grande maioria dos periódicos tem a sua seção de gastronomia inserida nos cadernos culturais de final de semana. É rara a bibliografia em português que diga algo a respeito do modo e do que escrever nessas seções. Pelo menos, foi o detectado em pesquisas na biblioteca da UFBA, na internet e consultando jornalistas que trabalham com o assunto.

De forma geral, o que se vê nas colunas (ou páginas) de gastronomia são matérias, entrevistas, perfis, reportagens, crônicas, notas, críticas - e receitas. Abordando restaurantes, bares, pratos, chefs famosos, vegetais da época, equipamentos de cozinha, produção de alimentos (a matéria-prima dos pratos), a cozinha das celebridades, lançamento de novos produtos nos mercados, livros de gastronomia, cardápios de datas comemorativas, eventos de gastronomia, hábitos de alimentação, informações nutricionais. Podendo haver o enfoque de aspectos históricos e culturais sobre tudo isso.

Tenho a intenção de ampliar e editar esta série de reportagens posteriormente em formato de livro. Em minhas pesquisas, verifiquei que grande parte dos registros históricos de culinária e alimentação, pelo menos em sua primeira edição, foi feita por meio de livros editados pelo próprio autor, ou por alguma editora local. É o caso dos livros de Manoel Querino, Sodré Vianna, Hildegardes Vianna e de Darwin Brandão, sobre a cozinha baiana. Depois, com a divulgação, alguma grande editora acabou se interessando, a exemplo dos livros de Hildegardes Vianna e Darwin Brandão. O velho e surrado caderno de receitas, quem diria, vira documento da História.

Este trabalho, mais do que um ponto de chegada, é o registro de um percurso. Por conta desta série de reportagens, novas percepções se abriram para mim. Conheci pessoas e tive acesso a livros de valor histórico. Ao pesquisar sobre os pratos que levam dendê, verifiquei que vários outros aspectos da culinária baiana merecem atenção. E que o jornalismo pode colaborar muito no registro desses aspectos. Espero que este trabalho de conclusão de curso, mais do que uma etapa final, ou mesmo um ápice, seja um ponto de partida para novos horizontes.

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PARTE II

Série de reportagens

Presença dourada

O azeite-de-dendê está presente na maior parte dos pratos baianos de origem africana

“Quando estiver quase cozido e só então

juntem o leite de coco e no finzinho

o azeite de dendê, pouco antes de tirar do fogo.

(Ia provar o molho a todo instante,

gosto mais apurado ninguém tinha)

Aí está esse prato fino, requintado, da melhor cozinha,

Quem o fizer pode gabar-se com razão

De ser cozinheira de mão cheia.

Mas, se não tiver competência, é melhor não se meter

Nem todo mundo nasce artista do fogão.”

A receita da moqueca siri mole, feita por Dona Flor, magistralmente registrada pelo escritor Jorge Amado no livro Dona Flor e seus dois maridos, dá provas da grandiosidade e do grau de importância da culinária na vida baiana.

A cozinha é um grande elemento cultural de um povo. Quanto mais dela se conhece, mais se conhece dos costumes de uma população. Na Bahia, o caldeirão cultural que mistura influências portuguesas, africanas e indígenas, está muito bem representado em sua culinária.

No universo de ingredientes dos pratos da cozinha baiana, e sua vertente mais famosa, a cozinha de origem africana, chamada de afro-brasileira ou afro-baiana, emerge a importância do azeite-de-dendê. Mais do que um componente dos pratos, o dendê é uma das marcas mais importantes da cultura baiana.

Extraído do fruto da palmeira Elais Guineensis, de origem africana, o azeite-de-dendê, também chamado simplesmente de dendê, incorporou-se à cultura baiana. As receitas herdadas dos escravos negros transcendem os limites do Estado e passam a fazer papel de pratos típicos do país. As moquecas e o vatapá são conhecidos fora do Brasil como “pratos brasileiros”, ainda que não sejam pratos consumidos por todos os habitantes do país.

A fama é uma amostra da importância da cozinha baiana. A princípio regional, típica somente de um Estado do país, torna-se significativa, talvez a mais representativa, da cozinha brasileira. Em eventos internacionais de gastronomia, as cozinheiras do dendê são sempre convidadas a representar o Brasil.

O óleo dourado do dendê é componente essencial dos pratos da cozinha afro-brasileira. É nele que é frito o acarajé, exalando um aroma que invade os fins de tarde da Bahia. É ele que é adicionado à massa do abará, para fornecer a bela cor amarelada. Do amarelo pálido ao dourado quase vermelho, o dendê alegra olhos e paladares.

O dendê está na base da cozinha baiana de origem africana. “Contam-se nos dedos pratos afro-baianos que não levam azeite-de-dendê”, diz o engenheiro e professor aposentado Guilherme Radel, estudioso de gastronomia, com livro publicado sobre a cozinha baiana. Segundo o antropólogo Vivaldo da Costa Lima, estudioso da cultura baiana, “até mesmo aqueles pratos que não levam ou não ‘pegam’ azeite-de-dendê, estão com ele comprometidos”.

Em Salvador, os pratos feitos com dendê são consumidos em todos os lugares. Nos mercados, nas praças, ruas, nas residências ricas e nas mais modestas, nos restaurantes turísticos. Em datas sagradas e dias comuns, especialmente na sexta-feira. A comida feita com dendê é vistosa, colorida e bela. Tem apelo turístico e é utilizada como principal atrativo gastronômico no Estado. Mesmo assim, o dendê não é unanimidade em todas as regiões da Bahia. “Está presente em Salvador, no Recôncavo Baiano e no litoral do Estado”, diz Guilherme Radel

A jornalista Heloísa Sampaio, gourmet e cronista de gastronomia, chama a cozinha baiana de “culinária do ouro”, em razão da bela cor que os pratos adquirem. Ela lembra que, nos locais onde o dendê é encontrado com facilidade, o ingrediente é utilizado em uma grande quantidade de pratos. “Na Bahia, região do Baixo Sul, ali por Valença, faz-se tudo com dendê. É ingrediente fácil, disponível”, diz.

À primeira vista, para aqueles que visitam a Bahia, parece que o dendê é uma rotina na cozinha baiana. No entanto, os pratos feitos com dendê não são consumidos diariamente. “Na Bahia não se come moqueca, caruru, vatapá ao almoço de todo dia”, escreveu o folclorista Luis da Camara Cascudo, no livro História da Alimentação do Brasil. Para ele, é o que se costuma chamar de “comida de festa”, consumida em ocasiões especiais. “Como acontece quando há hóspedes e convidados para refeições domésticas. Arranja-se um cardápio especial, meticuloso, fora de todo o dia”, escreveu.

O antropólogo Vivaldo da Costa Lima confirma a observação. “Mas a ‘comida de azeite’ não é, para o baiano, a cozinha de todo-dia. É uma comida requintada, de ingredientes nem sempre fáceis de encontrar, demorada no fazer e, portanto, uma comida dispendiosa”, registrou.

As comidas feitas com dendê mais conhecidas são as moquecas, o caruru, vatapá, o acarajé, o abará, xinxim de galinha, farofa, feijão fradinho, bobó de camarão. São os pratos consumidos com mais freqüência nos restaurantes típicos e nas residências baianas.

Elais Guineensis

A palmeira chamada de dendezeiro ou dendê não existia no Brasil. A Elais Guineensis é originária da África Ocidental. Do fruto da palmeira – também chamado de dendê - se extrai o óleo chamado de azeite-de-dendê, ou, simplesmente, dendê. No passado, costumava-se chamá-lo também de azeite de cheiro. Para obtê-lo, é necessário fazer o cozimento dos frutos, espremendo-o em seguida. Depois, separa-se o óleo da água e coloca-se o azeite para cozinhar até fazer evaporar toda a água e restar o líquido oleoso.

É na Bahia, na região que vai de Salvador a Ilhéus, que o dendê é extraído de forma quase artesanal. É cozido em grandes tachos de ferro e depois espremido por uma imensa roda de pedra, puxada por tração animal. É este o chamado azeite de roldão. O azeite-de-dendê, extraído dessa forma é encontrado nas feiras livres, e colocado em garrafas de vidro e arrolhado. Há algumas indústrias modernas de extração do azeite-de-dendê. Nos supermercados, o azeite industrializado é facilmente encontrado.

Os conhecedores dizem que o bom dendê é aquele que fica dividido em duas partes. Uma parte de sólidos, que se deposita no fundo da garrafa, é chamada de “bambá”. A outra parte, conhecida como “flor”, é o óleo propriamente dito, que se solidifica no frio e fica líquido ao ser aquecido.

Tradição e modernidade

Pratos feitos com dendê conservam tradições e ensaiam algumas inovações

Rio de Janeiro, Pernambuco, Minas Gerais e São Paulo são Estados que também receberam escravos negros africanos. Mas somente na Bahia, a herança negra conseguiu notoriedade para sua culinária. Em nenhuma outra região do Brasil, a cozinha conservou as características que possuem os pratos da culinária baiana.

Segundo o folclorista Camara Cascudo, em Salvador ficou uma concentração negra mais homogênea, possibilitando a “defesa das velhas comidas africanas”, mais do que em outros locais. Uma das razões para isso, seria por causa “dos candomblés, do culto jeje-nagô, que a cozinha pôde manter os elementos primários de sua sobrevivência”. O termo candomblé designa grupos religiosos caracterizados por um sistema de crenças em divindades chamadas de santos ou orixás.

Com a chegada da mão de obra escrava no Brasil, a “presença da cozinheira negra na cozinha era considerada indispensável e absolutamente normal”, segundo Camara Cascudo. “À cor e à força da culinária africana, foram acrescidos os elementos indígenas e portugueses, transformando a gastronomia baiana e brasileira, numa expressão única de arte e sabor”.

Os pratos chegaram e foram mantidos com a dedicação dos pratos às tradições religiosas dos escravos. Segundo o antropólogo Vivaldo da Costa Lima, é a cozinha que se formou principalmente com a comida dos africanos dos grupos étnicos nagô e jeje, que predominaram na Bahia do século XIX, e criaram o modelo ritual dos candomblés. “É precisamente nos terreiros de candomblé onde se encontram as iguarias originais africanas”, registrou.

Da dedicação aos orixás do candomblé às mesas da população, os pratos feitos com o azeite-de-dendê são sempre bem recebidos. Há sempre o clima festivo de celebração – e de comilança.

Vatapá

O vatapá é uma espécie de creme ou purê, de consistência pastosa, a meio termo entre mole e duro. Pode ser feito de feito de farinha de trigo, farinha de mandioca ou pão dormido. É temperado com cebola, alho, tomate, coentro, cebolinha e gengibre, além de amendoim e castanha. Os dois últimos torrados e moídos. E dendê e leite de coco, é claro. Pode haver um pouco de camarão seco na massa. O vatapá não tem origem africana. É uma invenção brasileira. Representante nacional do esplendor da cozinha baiana.

Os africanos desconhecem a palavra vatapá, segundo Câmara Cascudo. “Na culinária, como em outras manifestações culturais africanas no Brasil, está ocorrendo o fenômeno de torna-viagem. Quitutes africanos voltam à África como se dali não tivessem nascido, voltam brasileiros”. Câmara Cascudo viu na África pratos que, aqui chamados de africanos, são conhecidos por lá como brasileiros.

O vatapá acompanha moquecas e o xinxim de galinha. É servido sempre junto com arroz branco e também caruru. Está sempre presente no tabuleiro dos vendedores de acarajé e abará, que utilizam o vatapá como recheio dos bolinhos de feijão.

Há algumas variações do vatapá, como no caso em que a ele é adicionado bacalhau desfiado. Nesse caso, serve como prato principal. Nos livros de receitas mais antigos, há registros do vatapá feito com galinha. Essa versão é pouco conhecida hoje em dia.

O jornalista Darwin Brandão, que na década de 40 publicou em Salvador o livro A Cozinha Baiana, inspirado no vatapá, afirmou: “Temos portanto aí a comida africana da Bahia, já nacionalizada, resultante da matriz negra com as influências naturais do índio e do português. A mais famosa cozinha do Brasil, a de maior caráter”.

Caruru

O caruru é um prato feito com quiabo cortado e cozido, a que se adicionam os temperos e o azeite-de-dendê. Na Bahia, quando se fala em caruru, pode haver três sentidos. O caruru é o prato, propriamente dito, feito com quiabos e dendê. Pode ser a refeição inteira, também chamada de “caruru completo”, que inclui o caruru junto com vatapá, xinxim de galinha, arroz branco, farofa de dendê, feijão fradinho refogado com dendê, feijão preto, acarajé, abará, banana-da-terra frita, milho branco, pipoca, inhame, rapadura e rolete de cana.

O caruru também pode ser o evento em que a refeição é servida para grande quantidade de pessoas, sempre gratuitamente, pois é ofertado aos comensais como pagamento de alguma promessa. As pessoas costumam dizer: “Vai ter um caruru em tal lugar”. E isso acontece em vários locais, das casas pobres às residências abastadas, passando por associações de trabalhadores, empresas e organizações públicas.

Convencionou-se calcular 10 quiabos por cada prato de caruru, na preparação. As demais porções são proporcionais a este número. Por isso, é costume falar-se em “caruru de 1.000 quiabos”, por exemplo.

A tradição de servir caruru tem origem no candomblé. “Impossível não desejar um convite especial no mês de setembro para comer o banquete feito em homenagem aos santos gêmeos Cosme e Damião, sincretizados com os ibejis orixás”, escreveu Camara Cascudo. Ibejis são orixás, deuses africanos. A data de comemoração de São Cosme e São Damião é 27 de setembro.

O caruru completo é oferecido nessa ocasião e servido em forma especial. Nos lugares mais tradicionais, principalmente com ligação com o candomblé, é servido primeiro às crianças. Depois é que os adultos têm acesso à refeição. Mas o caruru também é servido sem exigências rituais, em eventos comemorativos para grande quantidade de pessoas.

Há uma tradição que recomenda que na panela do caruru sejam colocados quiabos pequenos inteiros. A pessoa que recebeu em seu prato pelo menos um dos quiabos terá por obrigação que dar um caruru completo no ano seguinte, ou pagar uma promessa exigida pelos santos.

Se os carurus são servidos a partir de setembro, por pessoas que pagam as promessas religiosas, em dezembro, em torno do dia 4, data de Santa Bárbara, sincretizada com o orixá Iansã, também há oferta da iguaria, por pagamento de promessas. São as épocas em que os baianos correm atrás dos carurus. Seja preparando ou em busca da chamada “boca-livre”, ou seja, da refeição gratuita.

Um pouco antes da homenagem aos santos de setembro, é servido um grande caruru, que movimenta a cidade de Cachoeira, no Recôncavo Bahiano, durante a festa da Irmandade da Boa Morte, que ocorre no dia 15 de agosto.

Desde 1997, o Sindicato dos Bancários da Bahia promove um caruru, servindo em torno de 1.000 pratos, próximo à sede da associação, na Avenida Sete de Setembro, no centro de Salvador. Setembro é o mês da data-base do acordo salarial dos bancários. De início, o caruru foi servido para “abrir os caminhos” da negociação. Desde então, virou tradição. As refeições são distribuídas gratuitamente, atraindo uma grande fila de comensais.

Há um outro prato, chamado de efó, bem semelhante ao caruru. Só que desta vez, em lugar do quiabo, utiliza-se a erva língua de vaca. O efó não tem a fama, nem é tão freqüente na mesa dos baianos quanto o caruru.

Moquecas

A moqueca, de peixe ou mariscos, é uma espécie de guisado ou ensopado, com cebola, alho, tomate, pimentão, temperos verdes, em que são adicionados azeite-de-dendê e leite de coco. Parece simples de fazer, mas implica em conhecimento e técnicas. É uma criação brasileira, que tem origem no cozimento e na adição de temperos e dendê ao peixe moqueado, seco, preparado pelos índios. Para moquear o peixe, é necessário colocá-lo sobre varas de madeira, e secá-lo a certa distância de um braseiro, que possibilite o cozimento parcial.

Para preparar a moqueca, é ideal utilizar em panela de barro larga e rasa, semelhante a uma caçarola, o que possibilita cozinhar e servir no mesmo recipiente. E levar o prato ainda borbulhante à mesa, causando festa aos olhos e ao olfato. Para logo em seguida agradar ao paladar.

A moqueca é normalmente feita de frutos do mar, mas o baiano costuma também prepará-la com charque, ovos, vegetais ou aproveitando sobras de comida. É o caso do prato “roupa velha”, que utiliza a carne assada do dia anterior. Desfia-se a carne, adiciona-se temperos e azeite-de-dendê. Outro prato conhecido, principalmente na região de Valença, é a moqueca de feijão, feita com sobras de feijoada. (Ver receita no box)

A moqueca existe em outros Estados do país, a exemplo do Espírito Santo. Em lugar do azeite-de-dendê, a moqueca capixaba leva colorau, condimento que tem por base o pó de urucum, que confere cor avermelhada ao prato.

Bobó de camarão

O saboroso resultado de ingrediente caro - o camarão-, unido com a textura suave do purê de aipim, talvez seja o motivo pelo qual o prato alcançou certa distinção de fama e refinamento. É utilizado em almoços e jantares, muitas vezes como prato principal, servido em panelas aquecidas – os rechauds - e acompanhado somente de arroz branco.

O bobó original, proveniente das receitas africanas, era feito com inhame amassado. O inhame é nativo da África. O aipim, também chamado de mandioca doce ou macaxeira, é ingrediente nativo do Brasil. O bobó, da forma como servido atualmente, faz a união do dendê, de origem africana, com o aipim, ingrediente proveniente da herança alimentar indígena.

Xinxim de galinha

É feito de frango temperado com limão, alho e sal, cozido com cebola, tomate, tempero verde e azeite-de-dendê. É semelhante à moqueca, mas leva também camarão seco, amendoim, castanha de caju. O xinxim também pode ser feito de bofe, víscera bovina de cozimento demorado e consistência borachenta.

O xinxim é sempre acompanhado de caruru e vatapá. Dificilmente é encontrado servido como prato único, somente acompanhado de arroz e farofa, como é o caso das moquecas.

Acarajé

É um bolinho de feijão fradinho moído, com cebola, sal, e frito no azeite-de- dendê. É uma unanimidade entre baianos e turistas. O acarajé é preparado e vendidos nas ruas, praças e praias por mulheres vestidas em trajes típicos, chamadas de “baianas”. Atualmente também há alguns homens vendendo. O acarajé tem origem africana, nos terreiros de candomblé. Mas atualmente também há protestantes evangélicos vendendo o petisco em alguns pontos da cidade.

A iguaria deve ser comida ainda quente, quando está crocante. O acarajé bem feito tem crosta dourado-avermelhada e crocante. O interior é branco, o dendê não penetra. Quando mais leve a massa, mais saboroso o petisco.

Também há alguns bares e restaurantes que produzem e vendem o acarajé em grande escala. O cliente senta-se em mesas e, enquanto toma alguma bebida, saboreia o acarajé. Do mesmo modo, nas baianas instaladas nas ruas, calçadas e praias, os clientes compram o acarajé e procuram algum bar das redondezas para apreciar calmamente a iguaria, acompanhada de alguma bebida. Sair para comer acarajé é uma das atividades favoritas dos baianos e turistas de Salvador.

Abará

O abará tem a mesma receita do acarajé, com a adição de azeite-de-dendê e leite de coco à massa. Às vezes também leva camarão seco moído. O abará é envolvido em folha de bananeira e cozido no vapor ou na água fervente. A folha de bananeira é dobrada, dando forma de pirâmide ao embrulho da massa. As baianas típicas já trazem o abará cozido de casa ou terminam de cozinhar na rua, no vapor. A embalagem na folha de bananeira ajuda a conservar a temperatura e dá sabor especial ao quitute.

O abará é menos famoso que o acarajé, mas tem boa vendagem. Além da possui textura mais macia que o acarajé, é especialmente procurado por quem procura evitar as frituras. Para serví-lo, retira-se a folha de bananeira. O abará é partido ao meio e a ele é adicionado o recheio desejado pelo consumidor.

Farofa de dendê

Também chamada de farofa amarela, pela coloração dada pelo dendê. Representa a miscigenação de culturas, pois é a união da mandioca, nativa do Brasil e alimento originalmente dos indígenas, com o azeite-de-dendê, de origem africana. A farofa de dendê significa o entrelaçamento da cultura africana e da indígena.

Para prepará-la, acrescenta-se cebola picada ao dendê. Refoga-se e depois adiciona-se a farinha e o sal a gosto. Mexe-se sem parar para misturar tudo, ficar toda por igual e torrada. Simples e fácil de fazer.

Box

Moqueca de Feijão

(Receita de Guilherme Radel)

Ingredientes

Sobra de feijoada do dia anterior

1 cebola picada

tempero verde (coentro, cebolinha)

4 colheres de camarão seco

sal

1 xícara de azeite-de-dendê

1 tomate em rodelas

1 cebola em rodelas

Preparo

Separe as carnes dos caroços de feijão.

Soque os temperos, com exceção do tomate e da cebola em rodelas, em pouquíssimo sal. Aqueça numa caçarola metade da xícara do azeite-de-dendê.

Refogue os temperos no dendê, mexendo bem. Junte as carnes ao refogado e continue mexendo.

Junte o feijão, ponha água aquecida e continue mexendo. Quando o conjunto ferver, ponha o tomate em rodelas, a cebola em rodelas e o resto do azeite-de- dendê e ponha 1 copo de água aquecida. Tampe a panela e desligue o fogo após 10 minutos.

Dendê popular

Nas ruas e feiras, pratos que levam dendê têm preços para bolsos de vários tamanhos

Na década de 20 do século XX, a Bahia já era conhecida como a Terra do Vatapá. Mas nas feiras e mercados de Salvador, não era comum encontrar nem o vatapá nem o caruru. Os petiscos populares eram o acarajé e o acaçá, um bolinho feito de milho, pouco encontrado hoje em dia. “Via-se feijão mulatinho fervendo e saboreado em pratos de alumínio, com farinha de mandioca, carne ou peixe assado em postas e molho de pimenta”. É o que conta o folclorista e historiador Luiz da Câmara Cascudo, em História da alimentação no Brasil. Segundo o autor, os freqüentadores do Mercado Modelo e da feira de Água de Meninos preferiam “comida portátil”, a qual podiam comer enquanto iam andando.

A feira de Água de Meninos hoje se chama Feira de São Joaquim. Está situada na Cidade Baixa, em Salvador. É lá que fica o bar e restaurante São Joaquim, de propriedade de Antônio Carlos de Souza, 54 anos, ex-funcionário público e há dois anos estabelecido no local. O restaurante está situado em um box da feira, em meio à movimentação dos feirantes e consumidores. O cliente senta-se em uma banqueta alta e almoça no balcão. A chamada “comida baiana”, com azeite-de- dendê, só é encontrada na sexta-feira.

Por comida baiana entende-se ali o prato composto de caruru, vatapá, arroz, feijão fradinho e xinxim de galinha ou moqueca de peixe. Vendido por R$ 5,00, o prato tem grande procura. Nos outros dias da semana, “seu” Antônio Carlos vende galinha assada e cozida, assado de boi e bife. Na sexta e sábado tem mocotó e rabada. O domingo é o dia da feijoada. Engana-se quem pensa que a refeição mais procurada é a que leva dendê. “O prato mais vendido é o mocotó”, conta o dono do restaurante. “Mas o meu preferido é a feijoada”, completa.

As comidas são preparadas no próprio local, por uma cozinheira. No box em que fica o restaurante, há fogão, geladeira e pia com água corrente. Antônio Carlos Souza compra os ingredientes na própria feira. O almoço começa a ser preparado às 7h30 e às 9 já está pronto. A procura pela refeição começa lá pelas 11 da manhã. O restaurante vende em média de 30 a 40 refeições por dia.

A comida feita com azeite também está disponível somente nas sextas-feiras nas panelas de Célia Bacelar, cozinheira e proprietária do restaurante Encontro das Águas, situado em um dos quiosques da Praça Marechal Floriano, no Comércio, em Salvador.

O olhar simpático da baiana negra corpulenta, nascida no bairro da Liberdade, em Salvador, deixa transparecer um tanto de timidez, que fica mais clara com a economia de palavras, durante a entrevista. A concentração durante o preparo, enquanto mexe o vatapá também não deixa a cozinheira livre para conversar à vontade. Célia está no local desde abril de 2003. Ela é ex-funcionária da Embasa e desligou-se em um plano de demissão voluntária.

Entre os restaurantes situados na praça, o de Célia é o único que anuncia “comida baiana”. Mais uma vez, é o caruru completo que está disponível. O prato é composto de caruru, vatapá, arroz branco, feijão fradinho – temperado com camarão, coentro, cebola e dendê - e moqueca de peixe. O prato feito custa R$ 3,50 e o almoço executivo, para duas pessoas, custa 6 reais. Célia conta que o prato mais pedido é a feijoada. “A comida baiana tem boa saída, assim como o sarapatel”.

No cardápio da sexta-feira, acha-se comida baiana, sarapatel, mocotó, feijoada. “É o dia em que mais se vende”, conta Célia. Nos demais dias, as opções são ensopado de carne, frango assado e carne do sol com pirão de leite.

Ainda há opções mais baratas no Comércio. Por 2 reais é possível comer, também somente nas sextas, um prato de moqueca do marisco chumbinho ou de peixe, acompanhada de arroz e farinha e feijão. A refeição é servida por Manoel Barbosa, 50 anos, aposentado, que instala suas panelas em uma calçada, próximo a um armazém. Entre os clientes do cozinheiro ambulante, estão guardadores de carros, seguranças, trabalhadores de escritórios, operários, até mendigos, que juntam as suas moedas para comprar o “rango”. Na sexta-feira, são duas opções de pratos: feijoada e moqueca.

Comida do sertão

A comida baiana não é barata nem fácil de ser elaborada. É comida mais facilmente encontrada em Salvador, na região do Recôncavo Baiano e nas cidades litorâneas da Bahia. Ao mesmo tempo, é comida refinada, festiva, especial. Não é facilmente encontrada todos os dias nas ruas, à exceção da sexta-feira e dos restaurantes turísticos especializados.

A preferência do consumo popular por outros pratos tem uma explicação para o engenheiro Guilherme Radel, estudioso de gastronomia e autor de livros sobre o assunto. Radel arrisca uma explicação para a preferência de outros pratos, em lugar da comida baiana de dendê, nas feiras, ruas e mercados de Salvador. “O pessoal que trabalha nas feiras de Sete Portas e Água de Meninos é, em grande parte, proveniente do interior do Estado, do sertão. Por isso a preferência é pelo mocotó, pela buchada. A Feira de Sete Portas vende mais caprinos e ovinos do que em qualquer outro lugar”, diz

Radel conta que no Mercado Modelo, na Praça Castro Alves e nas Sete Portas, havia pessoas que vendiam na madrugada, de sábado para domingo, feijoada, sarapatel, mocotó. Comida muito consumida no interior e no sertão, e nem sempre lembrada como comida baiana. “Até recentemente havia também uma Kombi que vendia esses pratos. Abria as portas e vendia nas ruas. Era muito procurada. O pessoal gosta muito da comida do sertão”.

Então, apesar do passar do tempo e das mudanças nos hábitos alimentares, a comida feita com azeite-de-dendê, mais facilmente encontrada, ainda é o acarajé e o abará, junto com os seus acompanhamentos – vatapá, caruru, molho de camarão, salada e molho de pimenta -, consumidos em forma de refeição. De certa forma, ainda é a “comida portátil”, na designação de Câmara Cascudo, feita com azeite-de-dendê, que é consumida nas ruas da Bahia. Sai a preço acessível e já está pronta para o consumo. A “comida portátil” transformou-se em fast-food.

Endereços:

Restaurante Encontro das Águas – Praça Marechal Floriano, Comércio. Próximo ao final da Rua Miguel Calmon.

Restaurante São Joaquim – Feira de São Joaquim, na Avenida Oscar Pontes, Calçada. Logo após o Terminal São Joaquim (ferry-boat).

Cozinha ambulante

O cozinheiro Manoel Barbosa leva as panelas para a rua e serve refeições

No Comércio, em Salvador, o meio-dia vai chegando e eles vão se aproximando. São guardadores de carro, seguranças, operários, trabalhadores daquela região. Até mendigos. Eles vêm provar a comida de Manoel Barbosa, aposentado, 50 anos. Cozinheiro ambulante, camelô de refeições.

No final da avenida Estados Unidos, próximo à rua da Suécia, sob a sombra de uma árvore, na calçada de uma rua de pouco movimento, que serve de estacionamento de carros, uma mesa com cadeiras é colocada. As panelas ficam sobre um fogareiro logo ao lado, alimentado pelo gás de um botijão. Seu Manoel termina de preparar as comidas ali mesmo na rua. É na calçada que o feijão completa o cozimento e fica macio.

Uma lona plástica preta, presa na árvore, ajuda a impedir que as folhas miúdas caiam nos pratos dos clientes. A depender da força e do sentido do vento, a estrutura não tem lá muito sucesso. Alguns clientes são bem vestidos, parecem trabalhar nos escritórios e bancos da região. Antes de provar a comida, tomam uma dose de cachaça, acompanhada de um pedaço de caju. Para abrir o apetite e relaxar das tensões do trabalho. É esse momento de relax que falta nos restaurantes fast-food, de comida a quilo?

Seu Manoel Barbosa mora no conjunto ACM, no bairro de São Marcos, em Salvador. Tem cinco filhos. Ele chega no comércio às 6 horas da manhã. Vem de ônibus, com os ingredientes do almoço em uma sacola. O arroz já vem pronto. É colocado em uma bacia plástica, de onde é servido para os pratos. A bacia tem cara de vários anos de uso.

Na rua, ele termina de preparar a feijoada e a moqueca. É sexta-feira, a moqueca não pode faltar. Naquele dia, o prato com dendê era feito com o marisco que se chama popularmente de chumbinho. Mas também pode ser de peixe. Nesse caso, o cozinheiro ambulante sempre usa corvina. Para fazer a moqueca, ele usa tomate, cebola, limão, coentro, leite de coco e dendê.

No cardápio de Manoel Barbosa, a comida feita com azeite-de-dendê só está presente na sexta-feira. Durante o restante da semana, os pratos servidos são galinha de ensopado e feijoada. Cada prato custa 2 reais. Os comensais sentam-se em torno da mesa, sob a sombra da árvore e iniciam a refeição. Alguns são clientes há muito tempo. “Tenho freguesia de 10, 15 anos”, conta Manoel Barbosa, enquanto lava os pratos.

Para servir os clientes seguintes, os pratos são lavados em uma ou duas bacias com água, já que não há água corrente. Nas últimas lavagens, os últimos clientes têm pratos que saem do enxágüe com uma qualidade, digamos, inferior aos que foram lavados antes. Melhor sorte leva o mendigo que se aproxima. Ele junta as suas moedas, provavelmente ganhas em doação, compra a sua comida e a transporta em sua própria caixa plástica.

Antes de vender refeições na rua, Manoel conta que foi proprietário de barracas, daquelas de metal, que ficam nas calçadas de Salvador, nas quais também servia refeições. Ali mesmo na região do Comércio. “A Prefeitura tirou todas”, reclama. No entanto, ele não explica o motivo. Possivelmente por conta de taxas não pagas.

Quando tinha barraca, ele preparava a comida do mesmo modo, utilizando um fogareiro para terminar de cozinhar o feijão e as moquecas. O arroz sempre vinha pronto de casa, e também colocado em uma bacia plástica. Hoje, deixa alguns dos apetrechos de cozinha em uma garagem que fica ali perto.

Manoel Barbosa trabalhou no SESC (Serviço Social do Comércio) como chefe de cozinha. Mesmo com o emprego fixo, vendia comida na rua. Só que antes tinha uma pessoa para ajudá-lo. No SESC, ele diz que fazia “a pré-preparação dos alimentos, durante a noite, e administrava o pessoal”. Ele trabalhou no prédio que fica no Comércio, na rua Torquato Bahia, e eventualmente na Colônia de Férias, na orla de Salvador. Hoje é aposentado pelo INSS e continua a vender comida na rua.

Ele diz que gosta de trabalhar vendendo comida e chega a fornecer 60 pratos por dia. E afirma, com um sorriso: “Cozinhar é a coisa que mais gosto na vida”. Mas ele deixa escapar que em casa quem cozinha é a patroa. Manoel Barbosa conta que tem 5 filhos. “A venda da comida ajuda a pagar as despesas domésticas, complementando a aposentadoria”, diz. A idade dos filhos varia dos trinta aos onze anos de idade. Se algum deles ajuda no trabalho? A resposta é não. “Estão bem empregados”, justifica. “Um é sargento da polícia, o outro é professor e uma é gerente de uma madeireira”, completa.

Ele diz que gostaria de se estabelecer em um daqueles quiosques da Praça Marechal Floriano, lá no Comércio, mas que para conseguir alugar um deles é preciso “ter conhecimento com algum político”. Enquanto lava pratos na bacia com água, corre para servir o próximo cliente, que já reclama pela refeição.

Dendê nosso de toda sexta

O consumo do dendê na sexta-feira tem origem religiosa

É sexta-feira na Bahia. Os restaurantes e as residências servem os pratos coloridos pelo dendê. Que a Bahia é a terra do vatapá, ninguém duvida. Mas o baiano não come as comidas do azeite dourado todos os dias. Nas feiras populares, nas ruas, nos restaurantes de comida a quilo, praticamente só é possível encontrar os pratos feitos com dendê nas sextas-feiras.

Os restaurantes turísticos – e caros -, que em sua grande maioria servem à la carte, as comidas douradas estão disponíveis em qualquer data. No dia-a-dia dos baianos, estão presentes o acarajé e o abará, que as pessoas comem em pé, nas calçadas, ou sentados em mesas de bares, na cidade ou nas praias.

Na Bahia, nos restaurantes de comida a quilo, o fenômeno da sexta dourada pelo azeite está sempre presente. E os consumidores aguardam ansiosos pela comida baiana, para variar o cardápio do resto semana. Grandes panelas ou recipientes aquecidos, com vatapá, caruru e moquecas são atacados pelos baianos e turistas famintos.

Até quem opta por uma opção mais barata, nos bares ou restaurantes populares, os famosos PFs (pratos feitos), tem direito a escolher, na sexta, pelo menos um prato feito com dendê.

Origem da tradição

O consumo de comida feita com azeite-de-dendê na sexta-feira tem origem distante: a abstinência imposta pela Igreja Católica, desde a Idade Média. Abstinência e jejum são restrições alimentares em datas consideradas sagradas. São homenagens prestadas pelos fiéis.

Abstinência significa evitar o uso da carne de mamíferos, aves e répteis na alimentação. Nas datas em que é instituída, só é permitido o consumo de peixes, mariscos, ovos, massas, pães, cereais, verduras e legumes. O jejum, por sua vez, é mais rigoroso. Implica em fazer uma única refeição diária, e ao longo do dia apenas refeições leves. Ou seja, é possível “beliscar” um lanche leve pela manhã e à noite

Durante a Idade Média, os católicos tinham dias de abstinência e de jejum. “Todas as sextas eram os dias de abstinência. Havia também a abstinência de quaresma, isto é, da Quarta-feira de Cinzas até a Sexta-Feira Santa – chamada de Sexta Maior. Todos os dias deste período eram dias de abstinência. A Sexta-feira Santa é que era o dia de jejum”, explica o gastrônomo Guilherme Radel. Para a religião Católica, a Quaresma simboliza os 40 dias em que Jesus Cristo permaneceu no deserto, que tem uma semelhança simbólica com os 40 anos de travessia do deserto, realizada pelo povo judeu no Antigo Testamento.

A cozinha praticada na Bahia, de origem africana, com base no azeite-de-dendê, utiliza basicamente peixes, mariscos e alimentos de origem vegetal. Os temperos são: pimentão, cebola, tomate, pimentão, coentro, cebolinha, gengibre, limão, amendoim, castanha de caju e pimenta. O camarão seco também é utilizado como tempero. O caruru e o efó têm como base as hortaliças quiabo e língua de vaca, respectivamente.

Pelo tipo de ingredientes, os pratos da cozinha baiana passaram a ser admitidos como alimentos em dia de abstinência. “A partir do século XVIII, com ênfase no século XIX e em decadência a partir do meio do século XX, firmou-se uma tradição do uso dos pratos da culinária afro-baiana”, escreveu o gastrônomo Guilherme Radel. “Fazia-se a abstinência, pois não se comiam carnes. Mas virava um banquete, pela variedade e fartura dos pratos”, completou.

Atualmente, a Igreja Católica é mais enfática na abstinência na Quarta-feira de Cinzas e no jejum atenuado na Sexta-feira Santa. As autoridades católicas costumam liberar para as populações de baixa renda a abstinência na Quarta-feira de Cinzas. E, mais recentemente, até na Sexta-feira Santa, devido ao alto custo do peixe e pela abstenção alimentar, já praticada por estas populações ao longo do ano.

O que se percebe nos dias atuais, entre as classes mais abastadas, é que a restrição ao consumo de carnes acaba virando uma festa. Os pratos da cozinha afro-baiana são servidos em grande quantidade e variedade. O que era para ser abstinência e jejum se transforma em lauta refeição. A Sexta-feira Santa é uma das datas em que se mais come na Bahia a comida feita com azeite-de-dendê.

No restaurante Fora do Comum, que vende comida a quilo, instalado há quatro anos no largo do Rosário, centro de Salvador, na sexta-feira há sempre dois tipos de moqueca: marisco (chumbinho, ostra, siri) e peixe. Além de vatapá, caruru, xinxim de galinha e feijão fradinho, “refogado com dendê, camarão, cebola e temperos”, ensina a proprietária Alaíde Barbosa. O quilo da refeição custa R$10,90.

Desde que iniciou as atividades do restaurante, dona Alaíde serve comida de azeite na sexta-feira. “É tradição na Bahia, o pessoal sempre pede”, conta. “Qualquer dia que tiver moqueca, o prato sai todo. O peixe, principalmente, em qualquer dia é bem-vindo. Os clientes também gostam muito do ensopado, com leite de coco”. Para fazer a moqueca de peixe, a cozinha do restaurante utiliza bacalhau, corvina, vermelho ou arraia..

A tradição da abstinência religiosa na Bahia é mantida, ainda que os baianos não se dêem conta disso, toda sexta-feira, com a presença marcante dos pratos feitos com azeite-de-dendê. Os clientes não percebem que a bela refeição da sexta, há muito tempo atrás, era um costume indicado pela dieta.

Endereço:

Restaurante Fora do Comum – Rua do Rosário, 7 - Mercês. Próximo à Avenida Sete de Setembro, Centro, Salvador.

Gorduras vegetais

Pratos com dendê e leite de coco precisam ser bem feitos para não causar indigestão

O turista chega na Bahia já vai se preparando. A recomendação feita pelos amigos que já visitaram a terra é: “cuidado com o dendê e as pimentas!”. Naqueles pratos belos e coloridos, o azeite de dendê é o principal acusado de ser calórico e – principalmente - indigesto. Alguns acusam o leite de coco, outro ingrediente também de alto teor de gorduras. A junção dos dois, na moqueca, então, nem se fala.

O engenheiro e gastrônomo Guilherme Radel defende o azeite de dendê, justificando a sua posição de acordo com um apanhado histórico. Ele conta que a introdução do leite de coco na culinária baiana é relativamente recente, não faz parte da herança africana direta dos escravos. E, para ele, é o leite de coco que tornaria a cozinha baiana indigesta.

“Não se conhece, aliás, nenhum prato africano em que se misturem azeite de dendê e óleo de coco. Quem ler os trabalhos de Manoel Querino e de Sodré Viana vai saber que até o início do século XX não se usou jamais leite de coco em moqueca”, conta no livro A cozinha sertaneja da Bahia. E ele afirma isso com a experiência de quem já visitou vários países da África.

Nos livros da década de 30 e 40, que fazem registro histórico da culinária baiana, a moqueca tradicional é feita com bastante limão, tem base azeda. “Tornou-se enjoativa com a introdução do leite de coco, com o agravante de torná-la laxativa. Característica atribuída ao azeite-de-dendê, que nada tem a ver com isso”, afirma Radel.

Segundo Radel, “a invenção heresíaca de misturar o leite de coco ao azeite-de-dendê para condimentar moquecas é recente, no início da última metade do século XX, com orientação comercial para atender aos turistas”. Para ele, isto é uma “falsificação perpetrada contra a moqueca. A moqueca tornou-se doce”.

O que se nota é que os restaurantes turísticos e os cozinheiros têm reduzido as quantidades de dendê e leite do coco nas comidas. “Quando as pessoas procuram fazer comida para o turista, querem muito brilho, muito dourado. Para isso tem-se que lançar mão de muito dendê. Isso é perigoso, porque, principalmente o turista não está acostumado com este tipo de alimento, às vezes não se sente bem. Aconselho sempre que se use pouco dendê”, prega Elíbia Portela, culinarista baiana, apresentadora de TV e autora de livros de culinária. Segundo Elíbia, antes de ser colocado na comida, o dendê tem que ser aquecido, para poder “queimar a ferrugem”, isto é, reduzir a acidez. Para isso, esquenta-se um pouco, até começar a sair uma leve fumaça. “Aí já se pode pôr no alimento”. É também necessário ferver o leite de coco, por cinco minutos. “Para não fermentar”, ensina.

Para Elíbia, a maior preocupação é divulgar uma comida baiana leve. Que não seja tão gordurosa e carregada no dendê, leite de coco e pimentas. “A pimenta deixa-se à parte. Põe quem quer, quem gosta”, diz. Ou, como costuma-se dizer, “a gosto”.

A banqueteira Maria Célia Midlej, que mora em Itabuna, no sul do Estado, e é dona de um concorrido bufê, também diz usar pouco dendê na preparação dos pratos. “Eu o acho um pouco indigesto”. Ela conta que, de modo geral, as pessoas se queixam mais do dendê que do leite de coco: “Não acho que o leite de coco seja indigesto, pois é utilizado no bolo, no mingau e ninguém se queixa”, afirma. “A comida baiana é tradicional. Não se pode tirar o azeite-de-dendê do caruru, se não vai virar outro prato”.

O cozinheiro Beto Pimentel, dono do restaurante Paraíso Tropical, em Salvador, procura utilizar ingredientes recém extraídos da horta e do pomar em suas receitas. Para compor alguns pratos, o fruto do dendê é despolpado e a polpa é passada por uma peneira. O líquido extraído vai direto para a panela. Para substituir o leite de coco, ele utiliza a água do coco verde, batida com um pouco da polpa. “Eu não podia mais comer dendê em moquecas, que me fazia mal. Deste modo, não tenho mais problemas”, afirma.

Saturação

O dendê é vegetal, portanto não contém colesterol, substância encontrada em produtos de origem animal. Contém gorduras insaturadas, que são saudáveis. O cozimento do dendê é que provoca a saturação, uma reação química que modifica a estrutura da gordura. “A reutilização, na fritura, é que o satura”, afirma a nutricionista Sandra Soares. Por isso, recomenda que deva ser colocado no final da preparação da moqueca, sem ferver.

A nutricionista concorda que o leite de coco natural tenha possibilidade de ser mais prejudicial do que o dendê. “O leite de coco tem que cozinhar, ferver, para não fermentar”, diz. Tem gente que coloca o leite de coco no final da preparação da moqueca, “para dar gosto”. O procedimento não é recomendado por Sandra Soares. “O leite de coco tem que ser colocado no início e deixar cozinhando. O dendê, no final do cozimento”.

Sandra afirma que o óleo do coco natural, contido no leite de coco, extraído da polpa do fruto, não provoca diarréia. Ele tem, sim, propriedades ligeiramente laxativas. “Não é prejudicial, caso haja costume de consumo. Já um turista americano, por exemplo, pode vir a sentir algum desconforto”.

Para diminuir o teor de gordura, algumas cozinheiras misturam leite de vaca e o adicionam em alguns pratos, junto com o leite de coco. Sandra Soares faz ressalvas a este procedimento: “O leite de vaca também tem gordura, mas pode ser adicionado a bolos, por exemplo. Não na moqueca, pois o leite natural, ou desnatado, não dá sabor.”

Propriedades

O azeite-de-dendê e o óleo de coco, contido no leite de coco, têm quantidades variáveis de gorduras saturadas e insaturadas. As gorduras insaturadas são essenciais ao organismo, precisam ser ingeridas. São elas que transportam pelo organismo humano as vitaminas lipossolúveis, que só se dissolvem em gorduras.

O azeite-de-dendê possui 51% de gorduras saturadas, 39% de monoinsaturadas e 10% de gordura insaturada. Já o leite de coco possui 92% de gorduras saturadas, 6% de monoinsaturadas e 2% de insaturadas. O alto teor de gorduras saturadas é que provoca restrição ao uso exagerado do dendê e do óleo de coco.

A gordura saturada na temperatura ambiente é sólida. A porção que se acumula no fundo da garrafa de dendê, comumente chamada de “bambá”, é composta em grande parte de gorduras saturadas, junto com partículas sólidas. Este tipo de gordura não se mistura com o sangue humano, durante o transporte do sistema digestivo para as células. Quando a quantidade ingerida de gorduras saturadas é maior do que o corpo consegue transportar, é que começam as complicações para a saúde. Portanto, mesmo que os óleos vegetais possuam componentes saudáveis, o ideal é não exagerar no consumo.

Pesquisa

Jemima Nascimento dos Santos é estudante do curso de Nutrição da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Bolsista de pesquisa, ela concluiu um trabalho sobre o teor de gordura do acarajé e do abará, que está prestes a ser publicado em uma revista científica. Na análise feita por Jemima, foi detectado que o abará tem uma quantidade de calorias maior do que o do acarajé. A constatação é de certa forma surpreendente, pois há um certo consenso de que as frituras, como é o caso do acarajé, têm maior teor de gordura do que pratos cozidos no vapor, como é o caso do abará.

Na pesquisa de Jemima, acarajés e abarás de 30 baianas de Salvador foram triturados e analisados em laboratório. Foi detectado que o acarajé puro, sem nenhum recheio, tem em média 265 calorias. O abará mostrou-se mais calórico, em média 327 calorias por unidade. A média foi feita entre 60 amostras de cada tipo de bolinho. Quanto mais gordura está presente, maior o número de calorias.

O acarajé e o abará têm receita parecida. Os ingredientes principais de ambos são feijão fradinho e cebola. A razão para o maior teor de gordura é que na massa do abará são adicionados dendê e leite de coco. Além de amendoim e castanha, que também são oleosos. O acarajé não leva esses ingredientes. Ele é somente frito no dendê. O óleo concentra-se na parte externa, na casca dourada produzida pela fritura. Enquanto no abará as substâncias gordurosas estão distribuídas por toda a massa. Por esse motivo, o abará têm textura mais macia que o acarajé. São justamente as substâncias oleosas que dão a maciez. “O acarajé tem mais proteínas e menos gordura do que o abará, portanto é mais nutritivo, mais ‘leve’. O abará é mais calórico”, afirma Jemima.

A banqueteira da região cacaueira

Maria Célia Midlej é conhecida na terra de Jorge Amado pelo preparo de festas e banquetes

“Minha avó, a senhora é muito importante, sabia?”. A pergunta do neto chamou a atenção da professora aposentada, cozinheira e dona de bufê Maria Célia Midlej, natural de Itabuna, no sul da Bahia. Por alguns instantes, ela esperou uma declaração de carinho. “Tem uma foto sua na exposição que está no shopping, das mulheres importantes de Itabuna”, completou o neto logo a seguir. Ela parou e pensou imediatamente, um tanto surpresa: “Logo eu que não gosto de tirar fotos!”.

A exposição fotográfica, de várias mulheres importantes na região, estava coroando o trabalho de Maria Célia Midlej, descendente de libaneses. Ela começou dando aulas de culinária na disciplina “Educação para o lar”, no colégio Polivalente, em Itabuna, após fazer um curso de extensão na Universidade de Viçosa, em Minas Gerais. O colégio tinha uma cozinha completa, onde as alunas aprendiam a cozinhar. Lá e em sua própria casa, pegava as receitas e ia testando. “A receita tem que ser testada”, afirma.

Maria Célia conta que aprendeu a cozinhar com a mãe. “Era uma cozinheira perfeita. Não usava muitos condimentos e fazia comidas árabes”, lembra. Ela se casou em 1960, mas não cozinhava em casa. Tinha uma boa cozinheira para fazer o trabalho. Enquanto isso, dedicava-se a ensinar o trabalho culinário para suas alunas. À medida que os pratos iam sendo feitos, as receitas eram colecionadas. Acabaram por virar apostilas mimeografadas, vendidas para gerar fundos para o colégio. Em 1988, coleção de receitas transformou-se no livro “Meu Caderno de Receitas”.

Mas o que ela sonhava mesmo era ter um bufê. Sonhava em servir jantares e bolos de casamento, iguais aos que via nas festas da cidade. Ela já fazia de graça para os amigos. Fazia docinhos, bolos de noiva e decorava as igrejas para casamentos. E foi também em 1988 que ela iniciou as atividades do bufê Saborearte. O mesmo nome da lendária escola de culinária da personagem Dona Flor (ver box), do famoso livro de Jorge Amado. Assim como Maria Célia, o escritor é filho ilustre da região do cacau.

O bufê é responsável por servir concorridas festas. Ela conta que a comida baiana, feita com dendê, tem ótima aceitação. “O povo adora vatapá, caruru, bobó, as moquecas, acarajé, abará”. Para se dedicar ao bufê, ela pediu demissão de um dos dois empregos como professora. Abandonou o municipal e ficou só trabalhando como professora estadual.

Caderno vira livro

Maria Célia está aposentada, mas continua a dedicar-se às recepções. O Saborearte segue firme. Por sua vez, o livro “Meu Caderno de Receitas” continua a ajudar desde as cozinheiras e cozinheiros novatos até aos experientes, que querem variar o cardápio. As receitas são impressas com letras grandes e espaçamento maior do que o normalmente encontrado nos livros de culinária. “Tudo para facilitar a vida de quem cozinha. “Nas receitas, é tudo seguido, seqüenciado. Os ingredientes e os procedimentos estão bem claros. As comidas são saborosas e os ingredientes fáceis de encontrar. É uma cartilha”, diz Maria Célia.

Logo de ínicio, no lançamento do livro, foram impressos 1.000 exemplares. Depois foram feitas várias reimpressões. O livro já foi utilizado como presente de fim de ano para os clientes de uma empresa da região. Mas ela não tem idéia de quantos exemplares já foram impressos. “Meu marido está cuidando de fazer esse levantamento”, conta.

O livro já está em sua segunda edição, ampliada. Isto é, terceira, se for contada a edição mimeografada. Abrindo a edição, estão presentes as receitas dos pratos da cozinha baiana, feitos com azeite-de-dendê. Também estão lá vários pratos da culinária árabe. Como não podia deixar de ser, para uma descendente de libaneses. No Brasil, ao se falar em culinária árabe, faz-se referência aos pratos de vários países do Oriente Médio, a exemplo de Síria, Líbano e Turquia.

Grandes eventos

“A gente faz uma comida internacional, requintada. Mas o pessoal come mesmo é comida baiana”, conta Maria Célia. Para servir os pratos típicos, o bufê utiliza panelas de barro, de cor preta. Os mariscos ela costuma servir em travessa em forma de conchas. “A comida baiana é muito grande, com muitos pratos. Caruru, vatapá, farofa, fritada, moqueca de peixe, mariscada. Sirvo tudo, em almoço ou jantar baiano”, diz.

Para quem não gosta de dendê, o bufê costuma servir frango ensopado e escabeche de peixe. Este último é feito com o peixe inicialmente frito e depois cozido com tomate, coentro, cebola, pimentão, salsa, folha de louro.

Para utilizar a panela de barro, Maria Célia assinala que é necessário “queimá-la, para tirar o gosto do barro e impermeabilizá-la”. Para isso, coloca-se farinha de mandioca na panela, e queima-se até a farinha ficar preta. “Depois de servir os pratos nas panelas de barro, é preciso lavá-las bem”, recomenda. No caldeirão é servido o feijão, o caruru, o vatapá. Na panela rasa, do tipo frigideira, é servida a moqueca.

“Eu gosto de fazer eventos grandes. Quanto mais comida, mais pratos, eu fico mais feliz. E fico calma, não importa o tamanho do evento”, afirma. E em tom de confissão, ela diz: “Eu gosto mesmo é de comer bife e ensopado”.

Moqueca de jaca

Maria Célia conta que gosta de fazer misturas, coisas novas nos pratos. Para ela, é muito difícil criar um prato novo, o que existe são inovações. “As receitas vão passando de mão em mão. O que a gente faz é acrescentar novos ingredientes. Por exemplo, se coloco páprica em um assado, não estou criando um prato novo. Estou, sim, inovando”

E inovar foi o que ela fez ao testar uma moqueca feita com jaca. “Fui eu que fiz pela primeira vez”. Uma senhora, esposa de um trabalhador rural da região, lhe falou que era muito boa. Ela então testou e fez o prato. A receita acabou ficando famosa. “A moqueca de jaca ganhou o primeiro prêmio de prato típico, representando a cidade de Itajuípe na Feira dos Municípios, ocorrida em Salvador”. Representantes de Itajuípe, que fica próxima a Itabuna, viram a receita em seu livro e lhe pediram autorização para prepará-la.

A receita da moqueca de jaca tornou-se famosa na região cacaueira. “Para fazê-la, a jaca deve estar bem verde”, diz. Retira-se os caroços, corta-se bem miudinho. Acrescenta-se os temperos. “Dá trabalho. O visgo da jaca pega nos dedos”. Confira a receita da moqueca de jaca no box1.

Box 1 - Moqueca de jaca

Maria Célia Midlej Silva de Araújo

Ingredientes:

1 jaca verde, pequena

3 tomates maduros

1 cebola

1 garrafa (200 ml) de leite de coco

1 garrafa (200 ml) de azeite-de-dendê

alho socado com sal;

tempero verde à vontade;

coentro e cebolinha.

Preparo

Descasque a jaca e corte-as em rodelas finas. Ponha para cozinhar em água e sal. Depois de cozida, escorra e desfie a jaca, dentro de uma vasilha com água fria, e escorra novamente. Ponha os tomates e cebolas, já cortados, para refogar no óleo quente. Coloque a jaca, o leite de coco e o dendê. Deixe cozinhar bem. Por último, coloque o tempero verde. Experimente o sal.

Sirva quente com arroz, farofa ou farinha.

Box 2 – Dona Flor

Florípedes, ou simplesmente Dona Flor, era cozinheira, professora de culinária e proprietária da Escola de Culinária Sabor e Arte, no livro de Jorge Amado. Quituteira prendada, Dona Flor foi casada com o malandro Vadinho, que morre durante o Carnaval de Salvador. Viúva, ela se casa com o farmacêutico Teodoro. No entanto, mesmo depois de morto, Vadinho volta a assediá-la em sonhos e visões, formando um inusitado triângulo amoroso.

Dona Flor é um dos personagens mais conhecidos de Jorge Amado. O livro Dona Flor e seus dois maridos se transformou em filme de grande sucesso no cinema nacional.

Inovações nos pratos

Os pratos com dendê se renovam, com a aceitação de uns e a reprovação de outros

Os cozinheiros, famosos ou não, estão sempre à procura de novas receitas. Da criatividade, uma pitada a mais de um tempero, surgem novos pratos com ingredientes já consagrados. Existem os pratos tradicionais e suas adaptações, devido a maior ou menor facilidade de acesso aos ingredientes.

A cozinha baiana, centrada no uso do azeite-de-dendê, à primeira vista parece não permitir muitas inovações, devido ao sabor forte do dendê. Por outro lado, a mudança nos pratos típicos não é permitida – ou desejada pelos consumidores. Sob o risco de descaracterização ou de transformação em novos pratos.

“O dendê tem sabor muito forte. Ele não é utilizado somente para colorir. Ele dá sabor, se for utilizado, então muda completamente o prato original. Se um suflê for feito com dendê, vai virar um prato baiano”, assinala a culinarista Elíbia Portela. “Não se pode usar o dendê com creme de leite, ou queijo, por exemplo. Não dá”, reforça ela.

O que Elíbia se permite de inovação é fazer alguns procedimentos novos, em pratos tradicionais. Um exemplo é a receita “Moqueca de Peixe à Minha Moda” (confira no box). Elíbia conta que as pessoas se assustam quando ela fala em usar farinha de trigo. “Para fazer a moqueca, o peixe é empanado na farinha antes de ser cozido. A primeira vantagem é que as postas ficam intactas, sem desmanchar. E a segunda é que fica o caldinho mais grosso, que todo mundo adora”. A moqueca de Elíbia também leva um pouco de gengibre.

A cozinheira Dadá, dona de restaurantes em Salvador e famosa pela culinária feita com azeite-de-dendê, não tem receio de ousar. Utiliza bastante leite de coco em suas receitas. E chega a misturar dendê com ingredientes inesperados. Um exemplo é a receita “Bacalhau da Dadá”, que une azeite-de-dendê, leite de coco e creme de leite (veja receita no box). O prato é para quem gosta de novidades.

Tradição do dendê

Para alguns apreciadores dos pratos típicos da cozinha baiana, de origem africanas, essas mudanças não são facilmente, digamos, digeríveis. “Culinária é um dos pilares da cultura de um povo, talvez um dos mais importantes. Se você começa a deteriorar essa cozinha, você perde a base da cultura geral. Não me agrada essa maneira de proceder, de fazer inovações. Você pode fazer um prato novo, baseado em um prato tradicional. Agora não se deve deturpar o caruru, o vatapá, a moqueca, produzindo coisas diferentes. Isso não deve acontecer”, opina Guilherme Radel.

A discussão em torno de modificações nos pratos da cozinha baiana é antiga. No prefácio do livro “Cadernos de Xangô”, publicado em 1939, o autor Jerônimo Sodré Viana já reclamava sobre a “deturpação que estava ocorrendo na concepção da cozinha baiana”. Para lutar contra isso, ele resolveu instalar-se em um terreiro de candomblé para resgatar as receitas originais. Foi o trabalho que resultou no livro, considerado de importância histórica para a cultura baiana.

Na década de 50, segundo registro da folclorista Hildegardes Vianna, o leite de coco já aparece como opcional no cozimento do peixe da moqueca. “Pode-se cozinhá-lo em água ou leite de coco, conforme o gosto”, é o que consta na receita de “Moqueca de peixe miúdo”, na primeira edição do livro A cozinha baiana: seu folclore, suas receitas.

Acarajé e abará

Os acarajés e abarás são iguarias disputadas na Bahia. Nas calçadas, praças e praias as baianas típicas fritam os acarajés, espalhando o cheiro delicioso do dendê, a partir do final da tarde. Para conseguir os petiscos, nas baiana famosas, há filas que o cliente tem que enfrentar. Originalmente, o acarajé e o abará eram acompanhados somente de pimenta. Atualmente, é possível consumi-los acompanhados de molho de camarão, vatapá, caruru e molho de tomate picado, uma espécie de vinagrete.

Alguns estudiosos da cultura baiana atribuem ao turismo a inclusão de outros recheios no acarajé e abará, de acordo com observações das baianas. Ao consumir os bolinhos, os visitantes passaram também a pedir os outros pratos, a exemplo do vatapá e do caruru. A inovação caiu também no gosto dos nativos.

A baiana Maria Emília Bittencourt, do alto de quase 4 décadas de vendas de acarajés e abarás no Quiosque de Amaralina, não acredita que seja uma imposição do turismo. “Eu não sei quem foi que começou a colocar caruru no acarajé. O caruru é um prato. É comida de santo. Acompanha xinxim, moqueca de peixe”, explica. “Mas não foi o turista que pediu. Foi o próprio baiano, que é ‘inventador’ de moda”.

Ela acha que a inovação foi feita por baianas novatas, para atrair os clientes. E reclama da mudança: “Antigamente, o acarajé era um lanche, de fim de tarde. Hoje as pessoas comem como se fosse um almoço. É sabedoria de cliente e besteira de baiana. O freguês pede um prato, de acarajé cortado, com um monte de acompanhamento. A baiana fica no prejuízo”. Maria Emília cobra R$ 1,50 o acarajé, com camarão ele sobe para 2 reais.

Inovações

É a própria baiana que conta as mudanças ocorridas. “Antigamente, o acarajé só levava pimenta, o camarão já vinha dentro do molho”. O molho, a que Maria Emília se refere, é feito com pimenta malagueta, camarão e azeite-de-dendê. Tem cor escura e consistência de pasta. Mas algumas pessoas não gostavam da ardência. “Para agradar o cliente, o camarão foi separado. É daí que vem o molho de camarão”, explica a baiana.

A salada, ou molho vinagrete, segundo Maria Emília, “era para o peixe, para a passarinha frita e para o caranguejo. Acabou também ficando para o acarajé”. A baiana vasculha a memória e lembra que foi a partir de 1986 que as baianas começaram a servir caruru no acarajé, e que o vatapá veio um pouco antes, mas ela não se recorda quando.

“As baianas vêm criando, inventando novos molhos ou, mais recentemente ainda, utilizando antigas comidas de azeite, como o vatapá e o caruru, como molhos recheios do acarajé. Especialistas em culinária clamam contra essas ‘heresias’, mas elas afinal se legitimam com o uso”, segundo o antropólogo Vivaldo da Costa Lima.

O engenheiro e gastrônomo Guilherme Radel não gosta de inovações. “Acarajé com vatapá, caruru, com salada, são deturpações”. Para ele, o uso camarão é novidade, mas não é tão chocante. “O pior é colocar salada dentro do acarajé”. “Se o acarajé é um patrimônio da cultura baiana, ele deve remontar às origens. Perder essas coisas falsas de atualmente”, apregoa. Dizem por aí que são as querelas que mantêm viva a gastronomia. Parece ser uma verdade na culinária baiana.

Box 1

Moqueca de peixe a moda de Elíbia Portela

Ingredientes

1 ½ k de peixe em postas ( garoupa, vermelho, pescada amarela etc. )

Tempero :

1 colher de sobremesa de sal,

1 colher de café de pimenta branca em pó,

1 colher de café de raiz de gengibre ralada,

2 colheres de sopa de coentro picado,

2 colheres de sopa de azeite de oliva,

suco de 1 limão.

Complementos:

2 dentes de alho picados,

3 tomates sem sementes,

2 pimentões,

2 cebolas ( todos cortados em fatias),

½ xícara de chá de cheiros verdes picados ( salsa, coentro e cebolinha verde),

4 colheres de sopa de amendoins e castanha de caju moídos,

½ xícara de chá de camarões secos limpos e reidratados,

1 xícara de chá de leite de coco,

½ xícara de chá de azeite-de-dendê,

1 pimenta de cheiro( opcional),

250g de camarões frescos limpos e temperados com sal, pimenta branca em pó, coentro picado e azeite de oliva.

Preparo

Limpar bem o peixe, retirando as escamas, guelras, olhos, ponta da cauda, etc. Lavar bem com água e suco de limão. Cobrir com leite e reservar por 15 minutos. ( Para perder o cheiro de maresia).

Lave mais uma vez, enxugue com papel absorvente e tempere com o sal, pimenta, gengibre, coentro azeite de oliva e suco de limão. Reservar por 1 hora ( na geladeira).

Ponha umas duas colheres de sopa de azeite de oliva em um tacho, e frite o alho picado. Acrescente a metade do azeite-de-dendê já aquecido.

Arrume as postas de peixe, fatias de tomates,pimentões e cebolas, cheiros verdes, castanha, amendoins , camarões secos, camarões frescos, e o restante do dendê. Se gostar, junte uma pimenta de cheiro inteira. Tampe a panela, e leve ao fogo para que cozinhe até o peixe amaciar .

Box 2

Bacalhau da Dadá

Ingredientes

1kg de bacalhau limpo, tratado e sem sal

5 cebolas grandes

4 tomates

2 mamões verdes

6 bananas da terra

½ litro de leite de coco

2 copos de creme de leite fresco

6 colheres de sopa de salsa picada

3 colheres de sopa de coentro picado

6 colheres de sopa de cebolinha picada

½ colher de sobremesa de sal

1 xícara de chá de azeite de oliva

3 colheres de sopa de dendê

1 vidro de palmitos (grandes e frescos)

Para decoração: 2 cebolas

2 tomates

1 pimentão amarelo e 1 vermelho

1 molho pequeno de coentro, 1 de cebolinha e 1 de salsa

Preparo

Descasque e corte os mamões em cubos e coloque para cozinhar, não deixando ficar nem muito mole nem muito duro. Pique todos os temperos e os machuque, dividindo os temperos em duas partes. Uma parte é colocada numa panela funda, e levada ao fogo com o leite de coco e o azeite de oliva. Junte o bacalhau e o mamão que já está pré-cozido e mexa sem parar. Assim que subir a fervura, acrescente a segunda parte dos temperos, o dendê, o creme de leite e deixe ferver bem. Experimente o sabor e retire do fogo.

Dicas: Quando for servir, coloque camadas de bananas-da-terra (cozidas só em água e cortadas em fatias), e uma camada do bacalhau. Este prato é para ser arrumado no fogo e depois decorado. Sirva com arroz de leite.

Box 3

Acarajé

(receita de Maria Célia Midlej)

Ingredientes

1 kg de feijão fradinho

4 cebolas grandes

sal

dendê

Preparo

Bata no liquidificador o feijão seco, só para quebrar. Ponha de molho em bastante água, por mais ou menos 1 hora e meia, para soltar as cascas e os pontinhos pretos que ficam boiando. Mude sempre a água e vá tirando as cascas e os pontinhos pretos que ficam boiando. Depois de catar toda a casca e os pontinhos pretos, escorra a água.

Bata no liquidificador com as cebolas para fazer a massa. Se precisar, ponha um pouco de água para bater melhor. Coloque o sal. Ponha a massa em uma vasilha e bata bem, com uma colher de pau, para ficar bem macia.

Ponha bastante dendê em uma frigideira para esquentar bem. Com uma colher, vá pegando a massa e pondo para fritar. Depois de frito, vá colocando em uma vasilha forrada com papel absorvente, para eliminar o excesso de dendê.

Sirva quente com um pouco de vatapá e molho de acarajé.

Box 4

Dandá de camarões

(receita de Beto Pimentel, do restaurante Paraíso Tropical, retirada do livro Viagem gastronômica pelo Brasil)

Ingredientes

500 g de camarões limpos

2 xícaras de leite de coco

3 folhas de coentro

1 tomate médio sem sementes picado

1 cebola média picada

5 camarões defumados limpos

1 colher (sopa) de azeite de oliva

1 colher (sopa) de azeite-de-dendê

sal a gosto

100 g de maturi (castanha de caju verde)

100 g de palmito cozido

100 g de aipim (mandioca) cru

Preparo

Ponha os camarões numa panela média e reserve. No liquidificador, bata o leite de coco com o coentro, o tomate, a cebola e os camarões defumados, até obter um creme bem homogêneo.

Derrame o creme sobre os camarões, junte o azeite de oliva e o de dendê e cozinhe, com a panela tampada por 3 minutos. Enquanto isso, bata no liquidificador ou processador o maturi com o palmito, até ficar bem cremoso. Reserve.

Bata o aipim no liquidificador ou processador até ficar muito bem moído.

Acrescente os ingredientes batidos ao camarão e mexa até ficar cozido e cremoso. Sirva em seguida.

Gourmet do dendê

O geólogo Arno Brichta conhece, aprecia e prepara pratos da cozinha baiana

Os pratos da cozinha baiana são como diamantes. “De longe são parecidos, mas a curta distância são diferentes”. Os diamantes, por causa da origem geológica. Os pratos da cozinha baiana, pelo local de origem dos pratos, o que implica em suaves graduações dos ingredientes dos pratos, como o azeite-de-dendê e o leite de coco.

A afirmação, cheia de preciosismos, é - como não poderia deixar de ser - de um geólogo e conhecedor de gastonomia. Ou, como dizem os franceses e o resto do mundo, de um gourmet. Arno Brichta é paulista, professor doutor e pesquisador do Instituto de Geociências da UFBA, cozinheiro eventual e gourmet sempre. Mora há muitos anos na Bahia. A comparação entre diamantes e pratos da cozinha baiana também tem um sentido de riqueza e valor, além da diferenciação devido ao uso de ingredientes.

“A cozinheira Dadá usa bastante leite do coco nos pratos. Em outros locais, usa-se menos. Em Cachaprego, na Ilha de Itaparica, há uma famosa moqueca de aratu com quiabo, chamada de ‘aratuabo’. Nela, praticamente não se usa o leite de coco. E come-se com feijão e arroz”, precisa ele. “A impressão é que os pratos são todos iguais, mas não são. Há diferenciações. Quando se usa mais dendê, usa-se menos leite de coco”, ensina.

Arno Brichta costuma consumir comida feita com azeite-de-dendê pelo menos uma vez por semana. Geralmente nas sextas-feiras, em restaurantes de comida a quilo. Quando recebe algum hóspede ou chega algum visitante amigo na cidade, ele sempre leva para algum restaurante de comida típica. E ele conhece muita gente, de outros Estados e outros países. Atualmente sempre vai a restaurantes comer moqueca.

O acarajé é outro item que não pode passar despercebido. Brichta mora na Graça, perto do quiosque da baiana Regina. “O vento traz o cheiro. Periodicamente tenho que comer acarajé”, diz. Ele gosta tanto da culinária baiana, que comprou um fogão tipo industrial, de uma boca. E explica a utilização: “A moqueca é muito rápida de cozinhar. Frutos do mar são rápidos de fazer, até mesmo a moqueca de carne desfiada, chamada de roupa velha. O fogão é por causa da panela de barro, que demora de esquentar”. E o fogão é socializado. Participa até do bazar de final de ano da Igreja Luterana, na Federação, em Salvador.

Para Brichta, o dendê não é indigesto. “Não me sinto mal quando o consumo”. Mas ele faz a advertência: “Com se usa muito, o prato fica enjoativo”. Ele adora farofa de dendê. “Para mim, o casamento perfeito é o dendê e a farinha. A junção do elemento negro e o indígena”. Arno também lista a moqueca de siri mole e o vatapá – “bem feito”, ressalta – como os seus pratos prediletos, entre os feitos com azeite-de-dendê.

De gourmet a cozinheiro

Arno Brichta diz que aprendeu a cozinhar “na prisão”. Isso mesmo. Ele foi preso político, durante um ano, na época da ditadura. Na prisão, utilizou os conhecimentos herdados da mãe, gaúcha, descendente de alemães, que gostava de cozinhar. Enquanto esteve preso, Arno cozinhava e também fazia artesanato.

Além da herança culinária familiar e da prisão, outras circunstâncias aproximaram Arno da cozinha. Na época em que o seu casamento foi desfeito, ele teve que cozinhar para os três filhos pequenos, que ficaram sob seus cuidados: Maurício, Laila e Wladimir, de 6, 5 e 3 anos, respectivamente. Wladimir Brichta, ou Wlad, é o famoso ator de novelas da rede Globo. É evidente que se o geólogo não gostasse de cozinhar, teria outras opções de alimentação para a família.

“Cozinhar é um ritual, um saber”, afirma Brichta. “Com o passar do tempo a gente apura o paladar. Gosto de fazer uso ousado de temperos”. Segundo ele, à medida que o tempo passa, a necessidade de grande quantidade de alimentação diminui, em função de menor necessidade de queima de calorias. Por isso “o gosto vai apurando e o aprimoramento vem junto com a alegria de viver”, completa.

Para dar provas de diferenças sutis no paladar, detalha: “O modo diferente de cortar um vegetal dá outro sabor. Existe uma relação com o processamento da comida. Por exemplo, os orientais só cortam os legumes ‘ao comprido’”, ou seja, no sentido longitudinal.

Entre os segredos de preparação, Brichta cita “a escolha dos ingredientes é o principal para fazer bons pratos. Produtos de primeira qualidade. Peixe e camarão fresco, siri bem catado, sem cascas”. O dendê, ele compra em feiras livres. E ensina: “Tem que ter duas partes: o óleo, chamado de flor, e uma parte de sólidos, que se chama bambá”. Arno diz que o dendê bom é aquele prensado a frio. Em processo semelhante à obtenção do azeite de oliva, que é dessa maneira considerado de melhor qualidade.

Para muita gente

Em suas incursões pela cozinha, Arno Brichta adquiriu conhecimento e experiência. Suas moquecas são famosas. O prato preferido do filho Wladimir é a moqueca de arraia, especialmente se preparada pelo pai. No aniversário do ator, este ano, Arno Brichta foi para o Rio de Janeiro, onde mora Wladimir especialmente para preparar o prato. Ele rememora como foi.

“Compramos uns 8 quilos de arraia aqui em Salvador. Transportamos de avião em uma caixa de isopor para o Rio de Janeiro. Também foi o dendê e a farinha”. Detalhe: no trajeto do aeroporto para casa, o líquido do peixe vazou e inundou o carro novo de Wlad. “Foi usada arraia do tipo ‘não-mijona’ (como é conhecida popularmente). Do Rio de Janeiro só entrou tomate, cebola, coentro, cebolinha e pimentão”.

A moqueca foi feita na casa da atriz Drica de Moraes. “Casa com cozinha espaçosa, incrementada e instrumentalizada. Ia ser uma moqueca para umas 40 pessoas”, diz. O número de convidados foi crescendo e o serviço teve que ser reforçado. “Fizemos mais 5 quilos de caçonete. No total, foram servidas umas 50 pessoas. Não sobrou nada, foi tudo embora. A moqueca foi um sucesso”, afirma ele, vitorioso.

O engenheiro com um pé na cozinha

Apaixonado pelo sertão e pelo dendê, o engenheiro Guilherme Radel estuda a cozinha baiana.

O escritório não poderia estar em local mais adequado: em frente ao prédio da Escola Politécnica da UFBA, no bairro da Federação, em Salvador. Faculdade em que ele ensinou por vários anos. Para ter acesso ao escritório, sobe-se dois lances de escadas. Não se trata de um prédio grande. São três andares, sem elevador. Uma porta fechada pela frente, uma campainha e a placa da empresa R&A Engenheiros Consultores. Em um escritório de engenharia para tratar de gastronomia.

A campainha é acionada e soa do outro lado. Alguém investiga através do olho mágico. A porta é aberta. “Pode entrar. Só um instante, que o senhor Radel já vem atender.”, diz a recepcionista.

Alguns minutos depois, o engenheiro Guilherme Radel aparece. É um senhor de 73 anos, simpático e gentil. O escritório de engenharia é quase um labirinto, com muitas divisórias e algumas pessoas trabalhando em computadores e debruçadas sobre pranchetas. O engenheiro conduz a reportagem a uma sala com mesa redonda e inúmeras caixas de arquivos. O ar condicionado é barulhento. A impressão era de que a gravação não ia sair de boa qualidade.

O engenheiro civil e eletricista Guilherme Requião Radel é dono de um currículo extenso. É professor aposentado da Escola Politécnica da UFBA, onde ensinou, de 1965 a 1994, as disciplinas Hidráulica e Obras Hidráulicas. Lecionou também na Escola Técnica Federal da Bahia, de 1961 a 1968. Foi diretor da Embasa (Empresa de Águas e Saneamento da Bahia). Fez inúmeros trabalhos de hidráulica e saneamento em várias cidades do país. Também desenvolveu vários trabalhos no exterior, incluindo Estados Unidos, Uruguai, França, Congo, Iraque, Moçambique, Austrália, Peru e Costa Rica. E continua trabalhando até hoje. Enquanto engenheiro, publicou vários trabalhos técnicos.

Nascido em Salvador, na Península de Itapagipe, Radel sempre passava férias no sertão. Em 1970, tornou-se pecuarista. Comprou fazenda em Ipirá, na Bahia, onde desenvolve criação de bovinos, eqüinos, asininos, caprinos e ovinos. Foi autor de vários trabalhos na área de pecuária, incluindo “A Carne-de-Sol” e “Aprendiz de Fazendeiro”.

Entre tantas atividades, Radel sempre achou um tempinho para apreciar e conhecer mais profundamente a cozinha da Bahia e de outros lugares. Ele também demonstra bastante conhecimento sobre o que se escreve sobre gastronomia nos jornais. Em 2002 lançou o livro “A cozinha sertaneja da Bahia”, um verdadeiro tratado de 723 receitas da culinária praticada no sertão do Estado. Culinária que é herança direta da cozinha portuguesa, adaptada às condições da Bahia, com algumas influências indígenas e africanas. Um assunto até então pouco explorado pelos estudiosos, mas que compõe parte substancial da alimentação no Estado.

Além das receitas e de belas fotografia, o livro traz um apanhado de técnicas de cozinha e anotações importantes sobre aspectos históricos e culturais da cozinha baiana. Radel apresenta-se no livro como grande interessado e conhecedor dos hábitos da alimentação no Estado.

A maior parte das receitas que é praticada no sertão é baseada no uso de carnes, principalmente de bovinos, caprinos e ovinos, mas também é possível encontrar receitas feitas com azeite-de-dendê. Apesar do livro ser a respeito da cozinha sertaneja, há observações importantes sobre os pratos feitos com o azeite dourado.

Durante a pesquisa para o livro, Radel acumulou 1.452 receitas. Eliminou quase 50% do que obteve, para o livro não sair muito caro. “Eu vinha fazendo anotações há quase 20 anos dessas receitas. Cheguei a mais do dobro do que está publicado. Incrível a riqueza da cozinha sertaneja da Bahia.”, diz.

Durante a confecção do livro, Radel preparou vários pratos, alguns dos quais serviram como modelos para as fotos. “Ao longo desses anos venho anotando, pesquisando, testando. No passado, os livros de receitas não vinham com as quantidades. Algumas receitas que adquiri na região com os vizinhos eram desse tipo, então tivemos que fazer experimentações em nossa própria cozinha”, diz.

Família na cozinha

O gosto de Radel pela culinária veio da família. “Minha mãe era excelente cozinheira. Desde cedo eu ficava ao lado dela aprendendo”, recorda. Ele conta costuma ir para a cozinha, na fazenda que possui em Ipirá, em boa companhia. “Vou com a família inteira. Minhas filhas estão ao meu lado, nós brincamos muito com isso”.

A paixão pelo dendê vem de longa data. “Lá em Itapagipe, onde eu morava, havia facilidade incrível de pesca de mariscos. Quando era época de lua cheia, que a maré se espraiava, havia uma abundância de crustáceos e moluscos. E a gente sempre fazia tudo na base do dendê”, recorda.

Outra lembrança significativa é dos seus tempos de juventude. Em Salvador, na extinta Feira do Bonfim, na Praça da Natividade, junto ao mar. “Era uma feira muito importante para a península Itapagipana”, ressalta. “Havia uma barraca de comida baiana. Meu pai alugava um táxi e íamos todos para lá. A gente morava na Ribeira e ia para lá no sábado à noite, íamos saborear comida de dendê. Caruru, vatapá, moqueca de peixe. “Isto na metade da década de 40, metade da década de 50. Eu tinha os meus15 anos”, relembra.

Mesmo com toda a satisfação com o trabalho sobre a cozinha sertaneja, Radel não esconde a paixão com a cozinha baiana, feita com dendê. Ou, como ele faz questão de enfatizar: “cozinha afro-baiana”.

Radel está com outro livro de culinária pronto para ser lançado, aguardando verba para a publicação. Desta vez, é sobre a “cozinha praiana” da Bahia. Isto é, um livro que reúne pratos que são consumidos nas praias, basicamente feitos com frutos do mar. E também mantém, em fase de estudos, um outro livro sobre a cozinha afro-baiana. É só aguardar.

Enquanto isso, o telefone toca. É uma pessoa do Ministério das Relações Exteriores, para acertar detalhes. Algumas receitas de “A cozinha sertaneja da Bahia” serão selecionadas para um livro ou catálogo de divulgação do Brasil no exterior. A cozinha praticada no sertão adquire o seu devido espaço, representando a Bahia, junto com a cozinha de origem africana.

Crônica

Coisas da Bahia

O final de semana se aproxima, é sexta-feira à tarde, a noite inicia. Baianos e turistas dirigem-se à hora feliz: direto à cerveja e ao popular acarajé. As baianas Dinha e Cira, no Rio Vermelho, recebem os clientes, as filas começam a ser formar. Ponto para os barzinhos ao redor, que acolhem os consumidores em suas mesas. Para cervejas, refrigerantes e drinques, meros coadjuvantes da magia do acarajé e abará.

Inteiros, para comer com guardanapo, ou cortados no prato, acompanhados de vatapá, molho de camarão, salada de tomate picado, molho de pimenta e até caruru, os acarajés e abarás servem de refeição completa, ou de tira-gosto a preço acessível. Ao mesmo preço, ou mais em conta que batatas fritas, carne-de-sol, filezinho ou caldos. Os clientes encaram filas demoradas para conseguir os petiscos democráticos. Para distrair, há sempre um pedinte requisitando ajuda para comprar o seu almoço ou jantar – o próprio acarajé.

O acarajé e o abará são ícones da cozinha baiana. Quem imagina em São Paulo, em plena Avenida Paulista, uma senhora trajando trajes típicos e calmamente fritando bolinhos de feijão? Em Salvador, na avenida Sete de Setembro, existem baianas estão por lá há mais de 30 anos. Trabalhando diariamente, fazem da venda de comida o sustento para suas famílias. Em papel típico de filhas de Iansã, orixá a quem o acarajé é normalmente dedicado.

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[1] LIMA, Edvaldo. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1993, p. 24.

[2] Op. cit., p.25

[3] LIMA, Edvaldo. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1993, p.26

[4] SODRÉ, Muniz; FERRARI, Maria Helena. Técnica de reportagem: notas sobre a narrativa jornalística. São Paulo: Summus Editorial, 1986, p. 15.

[5] LIMA, Edvaldo. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1993, p. 16.

[6] op. cit., p. 28.

7 LIMA, Edvaldo. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1993, p.30

[7] op. cit., p.34

[8] op. cit., p.37

[9] LIMA, Edvaldo. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1993, p.37

[10] op. cit., p.239

[11] LIMA, Edvaldo. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1993, p.73.

[12] LIMA, Edvaldo. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1993, p.252.

[13] VILAS BOAS, Sérgio. Perfis: e como escrevê-los. São Paulo: Summus, 2003, p. 13.

[14] op. cit., p. 14

[15] op. cit., p. 19

[16] VILAS BOAS, Sérgio. Perfis: e como escrevê-los. São Paulo: Summus, 2003, p. 21-22

[17] op. cit., p. 29

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