Geldof criticado e saudado por quebrar silêncio 'conivente'



Geldof criticado e saudado por quebrar silêncio "conivente"

PUBLICO

08.05.2008

ANA DIAS CORDEIRO

Ao dizer que Angola é "gerida por criminosos", o músico entusiasmou os

que querem ver os problemas angolanos discutidos abertamente.

O Banco Espírito Santo (BES) reagiu antes mesmo do Governo de Angola.

Demarcou-se do músico irlandês Bob Geldof e criticou-o por este ter

dito, num seminário organizado pelo próprio banco e o jornal Expresso,

na terça-feira, que Angola era "gerida por criminosos". Mas isso não

poupou a instituição com importantes interesses económicos em Angola

de ser criticado na edição de ontem do Jornal de Angola por convidar

Geldof, o músico responsável pelo Live Aid (1985) e pelo Live 8 (2005)

para o evento. Em Lisboa, num comunicado, a Embaixada angolana

repudiou as afirmações de Geldof e evocou a possibilidade de processar

o músico. Ontem, fonte daquela embaixada disse ao PÚBLICO que

continuavam "em estudo" as "medidas legais (...) apropriadas" para

"repor a verdade dos factos".

O jornal angolano acusou Geldof de "malcriado" e de "espertalhaço" e

destacou a reacção do BES, em defesa de Angola, que qualificara de

"injuriosas" as suas afirmações. Mas, ao mesmo tempo, deixou um recado

- "O BES tem que ver quem convida para falar de desenvolvimento" - e

acrescentou, com ironia: "Pelos vistos, a sua administração [do BES]

gosta de lidar com criminosos". E sobre Bob Geldof, mas tendo como

alvo o BES, concluiu: "Bob fez mesmo a diferença e comportou-se como

os seus contratadores queriam".

No mesmo artigo, o único jornal diário do país elogiou o esforço do

Governo de Angola para fazer avançar o país "a um ritmo invejável"

(...) "fazendo do caos da guerra uma terra prometida, onde todos têm

uma oportunidade e uma vida decente".

Questões legítimas

A poucos meses das eleições legislativas de Setembro em Angola, as

organizações internacionais de direitos humanos e em defesa da

transparência contactadas ontem pelo PÚBLICO realçaram, pelo

contrário, o que era possível ter sido feito desde o fim da guerra em

2002, e não foi. Lembram que Angola está entre os países mais

corruptos do mundo e em última posição num índice elaborado pela ONG

Save the Children, que avalia as condições sociais da população em

função da riqueza dos países (Wealth and Survival Index). Neste

relatório inédito de Fevereiro deste ano, Angola, "rica em petróleo",

é o país pior classificado no que diz respeito à mortalidade infantil.

"A taxa de mortalidade infantil de 260 para 1000 é 162 vezes superior

àquilo que seria previsível face à dimensão da economia do país". E

não melhorou desde o fim da guerra.

"Tendo em conta estes dados e a enorme discrepância entre uma elite

muito rica e uma vasta maioria ainda a viver na pobreza, é legítimo

levantar questões sobre o destino dado ao dinheiro do petróleo, ",

disse ao PÚBLICO o director da Global Witness, Simon Taylor. A

organização que, em 1999 e 2004, publicou relatórios acusando

personalidades da hierarquia do Estado angolano de corrupção e desvio

de fundos, incluindo o Presidente José Eduardo dos Santos, lamenta "as

oportunidades perdidas" destes últimos seis anos de paz.

A Human Rights Watch não estava ontem disponível para comentar, mas

tem sido uma das organizações mais activas nas denúncias de abusos das

forças de segurança em Cabinda ou dos despejos forçados das populações

dos bairros desfavorecidos dos arredores de Luanda para a construção

de condomínios. Estas situações começaram por ser denunciadas por

associações angolanas - a Mpalabanda, entretanto extinta, para o caso

de Cabinda e a SOS Habitat para os despejos forçados e a violação dos

direitos humanos na perspectiva dos direitos económicos e sociais.

Falando ao PÚBLICO a partir de Londres, a investigadora da Amnistia

Internacional para Angola, Muluka-Awne Miti, escusa-se a comentar o

teor das acusações de Geldof contra os dirigentes de Angola, mas

reconhece: "É importante que alguém, seja quem for, levante a questão

dos direitos humanos. Estamos sempre à procura de alguém que o faça

para que o Governo possa ter isso em consideração e tome medidas para

melhorar a situação".

Um dos aspectos que as organizações angolanas e internacionais, que

trabalham na área da transparência das contas públicas e direitos das

populações mais lamentam é o "silêncio" a que se remetem governantes

de Portugal e de outros países europeus, um silêncio "conivente" com

situações "graves" para não comprometer os interesses económicos.

Entre os activistas contactados pelo PÚBLICO, houve quem aplaudisse a

iniciativa de Geldof, considerando-a "absolutamente legítima e

louvável" e comparando o músico irlandês ao actor George Clooney

enquanto figura que "usa a sua notoriedade para fazer activismo

político". O "efeito de surpresa", sendo Bob Geldof alguém que fala

muito sobre África mas falou pela primeira vez de forma tão específica

sobre Angola, também "fez a diferença". Mas também há quem manifeste

reservas por esta ter esta forma "mediática" de "chocar" e "chamar a

atenção" sem "provar coisa nenhuma" contra os dirigentes angolanos. No

âmbito do caso Angolagate, de desvios de fundos públicos nos negócios

de armas durante a guerra ou no pagamento da dívida angolana à Rússia,

o empresário Pierre Falcone, que serviu de intermediário, começará a

ser julgado em França no fim do ano, mas não há dirigentes angolanos

acusados no processo, embora existam referências a pagamentos feitos a

estes por Pierre Falcone.

Difícil de provar

Mas mesmo os mais cépticos relativamente à iniciativa de Bob Geldof

reconhecem que "há muitas coisas a apontar" aos responsáveis angolanos

e ao mesmo tempo "muita dificuldade em prová-las", tendo em conta a

opacidade do sistema e "a sensibilidade às críticas" por parte do

Governo de Luanda.

A própria reacção do BES, demarcando-se imediatamente das declarações

de Geldof, será também "muito sintomática" do "nível de coerção sobre

as autoridades políticas e económicas" de outros países, pois

"demonstra que há medo de represálias". Por fim, há quem ressalve: as

acusações de Geldof são injustas para aqueles que em Angola, dentro do

próprio MPLA ou entre a geração mais jovem de quadros reformistas que

regressam ao país, estão a tentar mudar as coisas no bom sentido.

A "tolerância absoluta" de Portugal

Não se esperava que durante a visita a Angola em Abril de 2006, José

Sócrates evocasse os direitos humanos ou a transparência, mas o que

fez o primeiro-ministro português foi precisamente o contrário:

elogiou as instituições angolanas. E, ao fazê-lo, reforçou o discurso

positivo característico dos Governos portugueses relativamente a um

país para o qual as empresas nacionais olham como importante destino

de investimentos e fonte de crescimento.

Já em 1997, António Guterres fora efusivo sobre as "relações

fraternas" entre os dois países. Em 2003, o então primeiro-ministro de

Portugal Durão Barroso foi recebido pelo Presidente José Eduardo dos

Santos, de quem é amigo, com honras de chefe de Estado, e resolveu a

questão da dívida angolana a Portugal em troca de pouca coisa para o

país, disseram na altura analistas para quem pouco ou nada distinguiu

os Governos do PS e do PSD relativamente às relações com Luanda, nos

últimos anos.

Em 2006, o académico português Ricardo Soares de Oliveira disse ao

PÚBLICO: "Para ter uma política económica em Angola, Portugal não

precisava de ter sido de uma tolerância absoluta" relativamente às

questões de direitos humanos e gestão dos dinheiros públicos. Mas

teve, concluiu. A.D.C.

Mercado em expansão atrai portugueses

Os grandes grupos têm estado a investir em Angola, olhando para uma

economia em expansão e com grande potencial de crescimento. As

exportações para este país mais do que duplicaram nos últimos três anos.

Escom: o veículo que articula os interesses do GES/BES em Angola

Em Angola o Grupo Espírito Santo possui negócios importantes em áreas

sensíveis da actividade económica, que vão desde a extracção de

diamantes à saúde e às pescas. Encontram-se não só no universo

económico, mas também no plano político, onde se move ao mais alto

nível, promovendo mesmo entendimentos entre Estados emergentes. Mas

uma parte considerável dos interesses do grupo continua por inventariar.

Para perceber o crescente peso da família Espírito Santo em Angola é

preciso seguir os passos da Escom, empresa que está a ser investigada

em Portugal pelo Ministério Público no caso Portucale (Herdade da

Vargem Fresca, em Benavente, Ribatejo), e que surge envolvida no

negócio das contrapartidas, associado à venda de equipamento militar

às Forças Armadas portuguesas. Criada em 1992, e controlada

maioritariamente pelo GES, tem sede nas ilhas Virgens britânicas, e é

liderada por Hélder Bagtalia (dono de um terço do capital). Esta

off-shore tem como competência actuar como placa giratória dos

diversos interesses do GES, em particular em África, América Latina e

China. Em Angola, por exemplo, desenvolve parcerias com investidores

estrangeiros e locais, privados e estatais, abrangendo sectores vários

como o da indústria mineira, cervejeiro, agrícola, imobiliário e obras

públicas, aviação e pescas.

Um dos projectos mais emblemáticos envolve a sociedade estatal de

exploração de diamantes, Endiama, com investimentos orçados em cerca

de 500 milhões de euros. A Escom acaba de anunciar que vai entrar no

sector petrolífero, isto depois ter comunicado um acordo com o grupo

frutícola sul-americano Chiquita, para plantar bananas na zona de

Benguela, com vista à exportação. A Chiquita tem um terceiro

investidor, a Hipergesta, cuja estrutura accionista é desconhecida. Já

no sector cervejeiro, a off-shore juntou-se à Sagres para construir

três unidades fabris, associada a angolanos. Na construção, ligou-se

aos brasileiros da Camargo Corrêa.

Foi no quadro dos seus múltiplos investimentos em Angola que a Escom

se viu enredada nas críticas que Bob Geldof lançou terça-feira passada

ao Governo de José Eduardo dos Santos, a propósito das desigualdades

sociais existentes neste país. O cantor lembrou que as "casas mais

caras do mundo estão a ser edificadas na baía de Luanda", local

escolhido pela Escom para construir empreendimentos destinados a

estratos sociais elevados, a serem ocupados por escritórios e a

receberem comércio. A constatação de Geldof foi feita quando este

discursava sobre sustentabilidade numa conferência, promovida

precisamente pelo BES.

Ao dar gás à Escom para ser o veículo privilegiado da família Espírito

Santo em Angola, e não o Banco Espírito Santo (BES), o GES defende os

seus interesses, sem ficar agarrado aos constrangimentos que se

colocariam a uma instituição financeira como a encabeçada por Ricardo

Salgado. Mas o BES acaba por sustentar o financiamento dos negócios

participados pela Escom.

Na organização dos vários negócios do GES, a Escom surge ainda a

"facilitar" acordos entre Estados emergentes. Iniciativas que o grupo

classifica como visando a "promoção de relacionamento", e que

geralmente não chegam ao conhecimento do público, mas que rendem

compensações de centenas de milhões de euros. São conhecidos os

contactos articulados pela Escom, envolvendo Angola, o Congo

Brazaville e a República Popular da China. Para além de Angola, a

sociedade presidida por Hélder Bataglia desenvolve projectos na China

e na América Latina, nomeadamente no Brasil. Cristina Ferreira

BPI, BCP, CGD com negócios dependentes de Luanda

Com excepção do BES, todos os restantes grandes bancos portugueses com

interesses em Angola têm processos negociais abertos com as

autoridades, mas sem conclusão à vista. Luanda já deu indicações de

que pretende que os bancos estrangeiros tenham pelo menos 49 por cento

de capitais angolanos. O BPI controla a totalidade do capital do maior

banco angolano, o BFA, e que representa já quase 20 por cento do lucro

consolidado. Fernando Ulrich está a negociar com Luanda a dispersão de

parte do capital do BFA. Já o BCP anunciou por várias vezes ter

concluído um acordo com a Sonangol, envolvendo a venda de acções do

Millennium Angola, e a entrada de gestores angolanos na administração,

mas a parceria continua por concretizar.

O mesmo acontece com a CGD, que está em Angola com o Santander, e que

desde há três anos que tem contactos com as autoridades para vender

metade do capital a investidores locais. Fora deste movimento está o

BES, que opera em Angola através de 10 balcões, projectando chegar às

50 agências. Apesar do BPI deter o maior banco, os interesses à volta

do BES são mais relevantes. O Finibanco e o Banco Português de

Negócios (BPN) jogam noutro campeonato. O BPN desenvolve negócios

estratégicos na área petrolífera com o Banco Africano de Investimento

(BAI), controlado pela Sonangol e pela Endiama. E o BAI é accionista

do BPN Brasil. Há ainda o caso de Américo Amorim, que possui um banco,

o BIC Angola, com Isabel dos Santos, grupo que detém o BIC Portugal

dirigido pelo ex-ministro Mira Amaral. C.F.

Soares da Costa, Mota-Engil e Teixeira Duarte

As construtoras portuguesas têm uma longa presença em Angola, onde têm

desenvolvido negócios com grande autonomia e bom relacionamento com o

Estado. A Soares da Costa, a Mota-Engil e a Teixeira Duarte

conseguiram mesmos reaver 50 por cento de dívidas antigas do Estado

angolano, mais do que o negociado pelo antigo primeiro--ministro Durão

Barroso, que apenas recuperou 35 por cento das dívidas de um conjunto

de empresas nacionais.

Angola é o principal mercado da Soares da Costa (SC), representando 41

por cento do seu volume de negócios. Angola, onde constrói

essencialmente edifícios, contribuiu com 228,2 milhões de euros para o

volume de negócios da construtora em 2007, quando o contributo

nacional se ficou por 178,9 milhõs de euros.

A Mota-Engil tem uma presença muito antiga, essencialmente na

construção de estradas. O contributo angolano atingiu os 164,4 milhões

de euros no último exercício.

A Teixeira Duarte tem duas vertentes de negócio em Angola, a

construção, essencialmente edifícios, e a hotelaria. Não foi possível,

em tempo útil, saber qual foi o contributo de Angola para o grupo.

A actividade das construtoras portuguesas tem sido feita sem recurso a

aliança ou parceiros locais. Rosa Soares

Exportações e investimento disparam desde 2004

Aproveitando a explosão económica angolana (apenas possível devido à

subida do preço do petróleo), Portugal tem intensificado as relações

económicas com a antiga colónia. Os números das exportações e do

investimento desde 2004 não deixam margens para dúvidas.

De acordo com o INE, as vendas de Portugal para Angola mais do que

duplicaram entre 2004 e 2007, passando dos 671 para os 1680 milhões

durante este período. No ano passado, a taxa de crescimento das

exportações nacionais para o gigante africano foi de 38,8 por cento e,

nos primeiros dois meses deste ano, a tendência mantém-se com uma taxa

de variação de 30,2 por cento. As máquinas e os aparelhos electrónicos

são os bens que as empresas portuguesas mais vendem para Angola.

Angola ainda só acolhe 4,5 por cento das exportações nacionais

(Espanha representa quase 30 por cento). No entanto, do crescimento de

8,4 por cento das exportações em 2007, 1,4 pontos foram conseguidos

graças a Angola.

As vendas angolanas para Portugal são muito mais reduzidas (~369

milhões de euros) e estão limitadas aos produtos combustíveis. Mas o

crescimento é impressionante, já que, em 2004, o seu valor não

ultrapassava os dois milhões de euros.

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