CAPÍTULO 2: O conceito de tempo

[Pages:60]CAP?TULO 2: O conceito de tempo

Cap. 2: O conceito de tempo

O tempo veste um traje diferente para cada papel que desempenha em nosso pensamento

John Wheeler

A proposta deste cap?tulo ? estruturar as zonas de um perfil epistemol?gico para o conceito de tempo, ou seja, estabelecer as caracter?sticas centrais de cada uma das regi?es da "hierarquia de escolas filos?ficas" bachelardiana para esse conceito. Essa caracteriza??o ? fundamental para que se possa avaliar at? que ponto nosso referencial epistemol?gico permite compreender e interpretar os dados oriundos do contato com os estudantes.

As fontes para tal empreendimento, como discutimos antes, s?o duas: em primeiro lugar, a hist?ria e a filosofia da ci?ncia; em segundo lugar, a literatura da ?rea de pesquisa em ensino de ci?ncias, principalmente no que se refere ?s concep??es dos estudantes sobre o conceito de tempo. Dessa maneira encontra-se dividido o cap?tulo, que numa terceira se??o busca unir essas duas fontes para a caracteriza??o das zonas de nosso futuro perfil.

2.1.) Concep??es sobre o tempo, na hist?ria e filosofia da ci?ncia

Com um conceito extremamente amplo, complexo, e multidisciplinar por natureza, ? preciso ter cuidado: n?o pretendemos resgatar a evolu??o hist?rico-filos?fica do conceito de tempo com profundidade, pois, certamente, seria tarefa extensa e fugiria aos nossos prop?sitos. Tampouco ? nosso objetivo discutir o surgimento das concep??es sobre o tempo em seus contextos hist?ricos, filos?ficos e sociais, o que seria fundamental caso fosse esse um trabalho voltado ? hist?ria da f?sica. Contrapondo-se a uma "hist?ria cr?tica", optamos simplesmente por apresentar um "apanhado" de vis?es sobre a temporalidade.

Tomamos ent?o a liberdade ? parafraseando Bachelard ? de "pegar emprestado" concep??es sobre o tempo desvinculadas do contexto (tanto hist?rico-social como mais propriamente filos?fico) em que tiveram origem. Potencialmente isso empobrece as concep??es expostas e pode dificultar sua plena compreens?o. No entanto, consideramos esse o pre?o inevit?vel a pagar, uma vez que, dada a amplitude do tema em quest?o e o n?mero de pensadores que se debru?aram sobre ele ao longo dos s?culos, a outra op??o seria escrever uma ? impratic?vel no ?mbito dessa proposta de trabalho ? retrospectiva hist?rico-filos?fica do conceito de tempo.

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Assim sendo, o conte?do desta se??o reflete desde o in?cio um recorte particular, que privilegia e enfatiza um conjunto de concep??es, entre outros poss?veis. Procuramos contemplar, por meio desse recorte, as vis?es sobre o tempo que consideramos mais representativas e pertinentes para a caracteriza??o das diferentes regi?es da hierarquia de doutrinas filos?ficas bachelardianas.

Al?m do aspecto hist?rico e filos?fico, abordaremos ainda as caracter?sticas e propriedades do conceito de tempo nas teorias f?sicas. Quanto a esse ponto, optamos por deixar de lado certos aspectos da quest?o temporal, principalmente os pormenores do debate mais atual sobre o conceito de tempo na f?sica, relacionados ? mec?nica qu?ntica e ? cosmologia. Entendemos que essa discuss?o fugiria daquilo que ? necess?rio a uma compreens?o da constru??o desse conceito por alunos dos n?veis de escolaridade que foram objeto desta pesquisa.

Tais esclarecimentos s?o necess?rios, para que se contextualize o uso que faremos aqui do material hist?rico. Partiremos do nosso pr?prio trabalho de mestrado, onde efetuamos uma revis?o hist?rica das concep??es sobre o tempo na f?sica (Martins, 1998); e tamb?m de dois trabalhos posteriores voltados ? mesma tem?tica (Martins & Zanetic, 2002a e b). Esperamos poder contemplar a diversidade de concep??es, tanto no aspecto hist?rico como filos?fico, fornecendo com elas os subs?dios de que precisamos para a nossa caracteriza??o.

Antig?idade e Idade M?dia: algumas importantes vis?es sobre a temporalidade

Plat?o (427-347) A concep??o plat?nica do tempo pode ser encontrada no Timeu, obra em que o

fil?sofo grego apresenta sua cosmogonia. H? ali uma contraposi??o entre aquilo que nunca se transforma e sempre "?", que pode ser apreendido pela raz?o e pela intelig?ncia, e as coisas que sempre mudam e nunca "s?o", a respeito das quais temos somente um conhecimento tempor?rio e imperfeito: a "opini?o"1. Na primeira categoria estariam Deus e as id?ias.

O Deus plat?nico est?, portanto, fora do tempo. ? "eterno", n?o tendo passado, presente nem futuro. Isso porque, sendo perfeito, Deus n?o pode mudar. Sua mudan?a o faria ficar "melhor" ou "pior". No primeiro caso, ele ainda n?o seria perfeito, e no segundo ele deixaria de s?-lo (Martins, 1994, p. 58). Mas, ao colocar "ordem" no "caos" (kosmos ? a palavra grega para ordem), utilizando em sua obra os quatro "elementos fundamentais" (?gua, terra, fogo e ar), Deus criou o universo e o tempo. Esse ?ltimo seria uma esp?cie de "imagem

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m?bil da eternidade", fazendo a liga??o entre o universo criado ? sujeito ? mudan?a ? e seu modelo. Vejamos esse trecho do Timeu, que nos fala da origem do tempo:

"Ora, quando o Pai que o engendrou compreendeu que se movia e vivia, esse Mundo, imagem nascida dos deuses eternos, rejubilou-se e, em sua alegria, refletiu sobre os meios de torn?-lo ainda mais semelhante a seu modelo. E assim como esse modelo resulta ser uma alma imortal, esfor?ou-se, na medida de seu poder, tornar imortal igualmente a esse todo. Ora, ? a subst?ncia da alma-modelo que era eterna, como vimos, e essa eternidade, adapt?-la inteiramente a um Mundo engendrado, era imposs?vel. Por isso, seu autor preocupou-se em fabricar uma certa imita??o m?vel da eternidade, e, organizando todo o C?u, fez, da eternidade una e im?vel, esta imagem eterna que progride segundo a lei dos n?meros, isso a que chamamos o Tempo." (Plat?o, 1981, p. 92)

Enquanto o espa?o, no Timeu, ? a base de toda a mat?ria, e uma estrutura que existe por si, o tempo seria uma caracter?stica da ordem vis?vel das coisas, tendo sido criado junto com o universo e o movimento. Segundo Plat?o, as pr?prias revolu??es da esfera celeste produziam efetivamente o tempo (Whitrow, 1993, pp. 56-57). Um ponto importante e interessante a destacar na vis?o plat?nica ? a maneira como ele associa a id?ia de tempo ? id?ia de mudan?a, enquanto a "eternidade" atemporal ? caracterizada pela imutabilidade.

Arist?teles (384-322) Embora bastante influenciada por Plat?o, a concep??o aristot?lica do tempo ? diferente

em muitos aspectos. Para Arist?teles, se tempo e movimento encontram-se intimamente relacionados, n?o podem ser identificados um com o outro. N?o existe tempo se n?o h? movimento (entendido mais amplamente como mudan?a). No entanto, o movimento pode sofrer varia??es, cessar, ser uniforme ou n?o, mas o pr?prio tempo n?o varia. Por ser regular e eterno, o movimento da esfera celeste ? privilegiado, estabelecendo a medida perfeita desse tempo (mas n?o produz o tempo, como na vis?o plat?nica)2. Mas se o movimento dos c?us "marca" o tempo, este ?ltimo tamb?m marca os demais movimentos, de modo que h? uma depend?ncia rec?proca:

"N?o apenas medimos o movimento pelo tempo, mas tamb?m o tempo pelo movimento, porque eles se definem um ao outro. O tempo marca o movimento, visto que ? seu n?mero, e o movimento marca o tempo." (Apud Whitrow, 1993, p. 57)

Para Arist?teles, se nada mudasse (em nossas mentes, por exemplo) n?o ter?amos consci?ncia do tempo. Essa consci?ncia viria justamente pela percep??o do "antes" e do "depois" na mudan?a, da? que ele compreenda o tempo como o n?mero do movimento com rela??o ao "antes" e "depois".

Um ponto fundamental da concep??o aristot?lica ? o fato do tempo n?o existir sem o esp?rito, respons?vel por fixar sua medida. Enquanto o movimento pode existir fora da alma, o

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"n?mero do movimento" (que ? o tempo) s? pode existir quando h? uma alma que numere, um ser que realize essa numera??o (Piettre, 1997, p. 22). Sem o esp?rito, o tempo (em si) n?o existiria, mas apenas o movimento (que ? seu "substrato"), sem aspecto mensur?vel. Subjacente a essa vis?o encontra-se uma caracter?stica marcante do cosmos aristot?lico: o privil?gio do espa?o, do movimento e da mat?ria, em rela??o ao tempo. Esse ?ltimo ainda aparece como um "coadjuvante" na descri??o dos movimentos (Martins & Zanetic, 2002b).

Arist?teles tamb?m afirma que o tempo ? cont?nuo e infinito. ? cont?nuo porque est? ocupado por um movimento cont?nuo. E o movimento, por sua vez, ? cont?nuo porque se desenvolve atrav?s de um espa?o cont?nuo. Dessa forma, a id?ia de continuidade relaciona-se com o espa?o, com o movimento, e em terceiro lugar, com o tempo. No que diz respeito a esse, podemos distinguir um "antes" e um "depois", ou seja, dois "agoras" com um intervalo (cont?nuo) entre eles. Esses dois "agoras" n?o seriam as menores partes do tempo, segundo Arist?teles, pois o intervalo cont?nuo entre eles pode ser (potencialmente) dividido ao infinito. Do mesmo modo que n?o existe uma "linha m?nima" (os pontos n?o seriam as menores partes de uma linha), n?o existe um "tempo m?nimo" (Ross, 1957, p. 133).

O tempo, para Arist?teles, ? infinito em dois sentidos: do ponto de vista da adi??o, pois n?o pode esgotar-se por nenhuma adi??o de partes, e do ponto de vista da divis?o, ou seja, ? divis?vel ad infinitum. Quanto ao primeiro aspecto, n?o haveria uma exist?ncia "simult?nea" de todo o "infinito temporal", uma vez que cada parte desaparece, embora n?o deixe de haver outras. E, no que se refere ao segundo aspecto, sua divis?o infinita ? apenas potencial, mas n?o real, e vincula-se ? no??o de continuidade discutida acima3.

"O tempo n?o existe como um todo dado infinito, pois n?o est? na natureza de suas partes coexistir; mas, diferente da extens?o, o tempo ? potencialmente infinito desde o ponto de vista da adi??o. O tempo, como a extens?o, ? infinitamente divis?vel, mas n?o infinitamente dividido." (Ross, 1957, p. 126 ? tradu??o nossa)

Plotino (204-270) Representante e um dos fundadores do chamado neoplatonismo, nome dado ao

ressurgimento das id?ias de Plat?o no in?cio da era crist?, Plotino ? considerado o ?ltimo dos grandes fil?sofos da Antig?idade. N?o era crist?o, e em sua filosofia considerava o mundo material um recept?culo para as "formas ideais" impostas pela "alma do mundo" (Whitrow, 1993, p. 77). Essa, por sua vez, seria a respons?vel pelo constante devir e pelas transforma??es do mundo que, separado do "Um" ? princ?pio divino de tudo o que existe ? insere-se na temporalidade. As cont?nuas transforma??es representam a busca do universo

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pelo retorno ao eterno, ao "Um". Estar no tempo ? estar afastado deste princ?pio original, uno e indivis?vel (Piettre, 1997, pp. 27-28).

Plotino op?e-se ? vis?o aristot?lica do tempo como o "n?mero do movimento com rela??o ao antes e depois", e tamb?m no que se refere ? necessidade de um esp?rito que o me?a. Para ele, o tempo mede o movimento no sentido de ser uma medida da dura??o na qual esse movimento ocorre. Nesse sentido, todo movimento acontece no tempo. Plotino parece atribuir uma objetividade maior ao tempo, uma realidade para al?m de sua medida. Diz ele:

"N?o ? necess?rio que se o me?a para que exista; tudo tem a sua dura??o, mesmo que essa dura??o n?o seja medida" (Apud Piettre, 1997, p. 26).

Para Plotino, cujo pensamento influenciou Santo Agostinho e outros te?logos crist?os posteriores, h? tr?s tempos: o presente atual, que na verdade j? pertence ao passado, o presente do passado, que se chama mem?ria, e o presente do futuro, apenas imaginado por nossa esperan?a ou nosso medo (Borges, 1980, p. 95).

Santo Agostinho (354-430) As considera??es sobre o tempo de Santo Agostinho costumam ser bastante lembradas

em trabalhos que tratam desse tema. Agostinho foi seguidor da corrente neoplat?nica, antes de abra?ar o cristianismo em 386. Sua vis?o sobre o tempo, manifesta principalmente nas obras A cidade de Deus e Confiss?es, foi influenciada principalmente por Plat?o e Plotino.

Em suas Confiss?es, Agostinho discorre longamente sobre o tempo, partindo de uma indaga??o de natureza religiosa: "o que estaria fazendo Deus antes da cria??o?". Sua conclus?o ? que o aproxima da vis?o plat?nica ? ? que o pr?prio tempo passou a existir no momento da cria??o, pois n?o h? sentido pensarmos em "antes" onde n?o havia tempo. A partir disso, Agostinho tenta responder "o que ? o tempo?". Para ele, o passado j? n?o existe, e o futuro ainda n?o veio. Mas atribuir realidade ao presente tamb?m n?o soluciona a quest?o, pois ao considerarmos alguns intervalos de tempo (cem anos, um ano, um dia) sempre h?, em qualquer divis?o que se fa?a, um passado que j? n?o ?, e um futuro que ainda ser?. O presente, portanto, n?o tem nenhuma "dura??o":

"Se pudermos conceber um espa?o de tempo que n?o seja suscet?vel de ser subdividido em mais partes, por mais pequeninas que sejam, s? a esse podemos chamar tempo presente. Mas este voa t?o rapidamente do futuro ao passado, que n?o tem nenhuma dura??o. Se a tivesse, dividir-se-ia em passado e futuro. Logo, o tempo presente n?o tem nenhum espa?o." (Agostinho, 1980, p. 219)

Apesar de o presente n?o ter dura??o, Agostinho admite que podemos comparar intervalos de tempo, na m?sica ou na poesia, e dizer, por exemplo, que "uma s?laba tem o

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