ASPECTOS JURÍDICOS DA ESCASSEZ DA ÁGUA NO MEIO …



ASPECTOS JURÍDICOS DA ESCASSEZ DA ÁGUA NO MEIO AMBIENTE URBANO

Érica Maria de Almeida Souza

Aluna do Curso de Graduação em Direito da Universidade Salvador.

É notório que a água representa hoje um grande desafio para a humanidade dada sua atual escassez e a perspectiva de que ela se tornará cada vez mais preciosa; a iminente falta de água oferece já hoje motivo de conflitos entre os povos da Terra[1]. O problema, visto com mais apuro técnico, não é a falta de água em si; água em quantidade há bastante no mundo todo, conhecido inclusive como planeta azul devido a prevalência dos espaços aquáticos compondo 71% do todo[2], a preocupação se dá em decorrência da má distribuição e do mau uso dos recursos hídricos; com desperdício e a poluição, milhares de pessoas carecem deste recurso; com o quadro atual de total falta de consciência quanto a raridade da água como bem para uso humano, a ameaça de colapso no seu fornecimento é concreta e próxima.

Nesse contexto, o estudo jurídico da situação da água no espaço urbano tem grandiosa importância pois é no ambiente das cidades onde se concentra a maior parte da população em todo mundo; No caso do Brasil, dois fenômenos ocorridos durante o processo das políticas desenvolvimentistas influenciaram desrespeitando as regras de proteção ao meio ambiente urbano: a rápida industrialização vinda com o pós guerra e a urbanização acelerada que se seguiu; é nas cidades, com o inchaço populacional, onde as pessoas travam as relações de moradia e produção que tanto interferem no meio ambiente. Seja para morar, quando então o espaço natural cede lugar aos tantos condomínios ou conglomerados irregulares, seja para produzir riquezas materiais, quando os bens da natureza são apropriados e transformados, sempre se verificará um enorme impacto dos citadinos no meio ambiente urbano.

A formação da maioria dos municípios ocorreu de maneira desorganizada no Brasil, criando cidades com muitos contrates, típicas do Terceiro Mundo; o resultado vê-se até hoje com as cidades desprovidas de infra-estrutura e serviços urbanos capazes de atender o contigente populacional. Tudo isso reflete sobremaneira no meio ambiente que passa a ser um mero depositário dos estragos feitos pela sociedade desarticulada, não recebendo qualquer atenção quanto a necessidade de sua preservação.

Na relação com a água a conseqüência predatória nas cidades é ainda pior, pois falta à grande maioria da população o conhecimento de que este recurso necessita ser urgentemente preservado. Nas metrópoles com grande concentração industrial, exacerbam-se os problemas hídricos posto que não são dotadas do devido saneamento, assim graves riscos sofrem seus habitantes devido ao alto grau de poluição nas águas que consomem.

Há demandas de água cada vez maiores com o suprimento estando estagnado ou diminuído por conta da poluição. O crescimento nas cidades, ocorrido de forma desorganizada com a ocupação não apropriada do solo, associado com o uso dispendioso dos recursos hídricos tem conduzido a situação de insuficiência de água nos seus múltiplos usos. Degradam a qualidade das águas na cidade os efluentes domésticos e industriais - o despejo de esgotos sanitários e efluentes industriais sem tratamento, a exposição feita de qualquer modo dos resíduos sólidos.

Também concorrem para majorar a gravidade da situação das águas os diversos equívocos em práticas cotidianas nas cidades que fazem apenas impermeabilizar o solo e acelerar o fluxo das águas às partes baixas das cidades, provocando erosões, desabamentos, assoreamento dos rios e córregos e toda sorte de tragédia social e ambiental; essas práticas equivocadas são as canalizações fechadas, o uso abusivo das pavimentações asfálticas, a ocupação irregular das encostas e a destruição das áreas verdes, por exemplo.

Diante dessa situação no âmbito dos municípios, não se pode olvidar do fato de que a quantidade e qualidade das águas de rios, riachos, represas, depende de uma política ambiental circunscrita ao território municipal. No entanto, a partir de uma primeira leitura do dispositivo constitucional relacionado à competência para legislar sobre as águas[3], tem-se a impressão de que está o Município impedido de atuar na política dos recursos hídricos; esse entendimento deve ser terminantemente rechaçado posto já restar consagrado na moderna doutrina o posicionamento de que o Município pode suplementar normas estaduais e federais e ainda produzir norma autônoma quando preenchidos os requisitos de não haver regulação feita pelos os outros entes e o interesse local estiver a demandar[4].

Vinculada ao princípio da gestão descentralizada, há a possibilidade, merecedora de incentivo, de os municípios pertencentes a uma mesma bacia hidrográfica consorciarem-se em prol de uma gestão hídrica feita conjuntamente[5]. Um sistema integrado é interessante para os municípios pois eles podem ajustar a administração de acordo com a localidade em que se encontram diante de um corpo de água - assim, aqueles municípios localizados a jusante de um rio, por exemplo, poderão interferir na decisão de construção de obra localizada a montante, obras estas que muitas vezes têm caráter poluidor e degradam o rio desde suas águas nascentes até suas “águas abaixo”[6] . Deve-se considerar também, neste planejamento ordenado dos Municípios, que é interessante evitar-se a concentração das populações urbanas nas localidades a montante dos cursos de água posto que o despejo de dejetos domésticos, efluentes industriais prejudica a capacidade de consumo das populações a jusante. Enfim, nos planos hídricos feitos pelos municípios deve-se atentar para a capacidade física de diluição dos efluentes nos corpos de água ao longo dos anos, cuidando da garantia de abastecimento qualificado e suficiente para todos os grupos populacionais, evitando o tão odioso racionamento hídrico.

Esta atual situação em que a água, já não sendo abundante, oferece oferta aquém da demanda, retira-lhe a característica de bem livre oferecido pela natureza e consequentemente sem valor econômico; ela reveste-se de valor passando a água a ser um bem econômico. O atual quadro de ameaça de escassez, tornou a água um produto caro e competitivo. A água possui valor de uso dada a sua capacidade de proporcionar utilidade ao seu usuário e tem também valor de troca relacionado ao seu poder de comprar outros bens. Enfrenta-se o problema de se saber como determinar o valor da água. Para a doutrina neoclássica, o valor da água está atrelado ao julgamento subjetivo feito por cada usuário. Cada usuário atribuir-lhe-á um valor em decorrência da satisfação de suas necessidades, o qual se reverterá em um preço resultante do equilíbrio entre a oferta e a demanda. Desse modo, quanto mais escassa estiver a água e quanto maior for a valorização subjetiva feita pelo usuário, maior será o seu preço.

Caracterizada como bem econômico em razão de sua escassez, outra classificação advém da sua nota de raridade: será a água um bem público ou privado?[7] A partir da análise de que sua quantidade é cada vez menor e o mínimo disponível está mal distribuído verifica-se que a água tornou-se uma commodity; assim é que ela está deixando de ser um bem público. O bem privado é aquele que esteja intimamente associado ao seu direito de propriedade – a água, uma vez dotada de valor econômico, fica suscetível de ser apropriada, de modo que o seu usuário proprietário tem o direito de excluir qualquer outra pessoa de utilizar o seu bem - esta é a caracterização da água de um manancial utilizada para abastecimento público ou irrigação, por exemplo. Contudo, resta ainda a classificação da água como bem público para os casos em que ela é utilizada por qualquer usuário em conjunto com os demais, no lazer ou esportes. A cobrança acompanhada da conseqüente apropriação da água revela o lado positivo de se considerar a água um bem privado: dessa maneira, os usuários passam a valorizar esse recurso, não subestimando o seu valor.

A questão do saneamento no Brasil

O setor de saneamento sofre um total descrédito por parte das políticas governamentais, carecendo de toda sorte de orçamento e impedindo, por conseqüência, a universalização dos serviços de saneamento com qualidade e equidade para toda população. Nas últimas décadas o que se verificou foi a deterioração dos serviços prestados, agravado com o crescimento vertiginoso da população especialmente nas periferias das grandes cidades[8].

As pessoas excluídas do acesso a serviços de saneamento são sempre aquelas com baixa renda - a água, o esgotamento sanitário, os resíduos sólidos, a drenagem urbana e o controle de vetores compõem um quadro bastante precário. Mesmo aquelas pessoas que têm água encanada não desfrutam de um serviço adequado, ao contrário, sofrem com sua irregularidade e desqualificação. Esta intermitência no abastecimento obriga a população a servir-se de fontes impróprias para consumo humano, arriscando a saúde; ademais, quando há água distribuída, esta muitas vezes não abarca o devido tratamento, como a colocação de flúor, e a comprovada vistoria da Secretaria de Saúde.

Em relação ao esgotamento sanitário, a situação existente entre as famílias mais pobres é de uma barbárie ainda pior. Muitas casas da cidade informal - favelas, invasões - sequer possuem um banheiro, a coleta dos esgotos pela rede pública não lhe confere tratamento e quase todo ele é despejado in natura na água ou no solo em torno dos rios das cidades, tornando os mananciais cada vez mais degradados e a fonte de abastecimento ainda mais escassa.

Aponta-se alguns fatores que determinam esse quadro degradante do saneamento. Na época da ditadura foi criado o Planasa (Plano Nacional de Saneamento); este plano obrigou cada estado a Ter uma companhia de saneamento e somente receberia os recursos financeiros do Governo Federal, com isso os municípios ficaram excluídos destes recursos. Com a Planasa centralizou-se excessivamente o poder decisório ao nível federal; ademais, muito dinheiro foi gasto levianamente.

Observa-se também um profundo distanciamento entre o conceito e a prática do saneamento e a saúde pública; assim o saneamento para constituir-se como bem de consumo afastou-se em demasia dos objetivos sanitários alocados ao campo da saúde.

Outro motivo é a ausência de participação da população, tornando o saneamento algo distante de suas reais necessidades.

Também concorre para manutenção do problema a ausência de tecnologias eficientes; acostumados às ultrapassadas, não se busca aquelas que sejam adequadas à realidade brasileira.

Por fim, enquanto houver tamanha burocratização, toda boa iniciativa será desestimulada diante das dificuldades de implementação; associe-se a isso as instalações de obras e infra –estrutura decadentes.

REFERÊNCIAIS

AGUA: O Desafio do Terceiro Milênio. Brasília: Câmara dos Deputados. Coordenação de Publicações, 2000.

Academia Brasileira de Ciências. Águas Doces no Brasil: Capital Ecológico, Uso e Conservação. São Paulo: Escrituras, 1999.

BENEDITO, Nair. Pode Ser a Gota D’água. Disponível em: < shs..br/reportagens/agua>. Acesso em 10 set. 2005.

______. Constituição (1988). Vade Mecum Acadêmico de Direito. 2 ed. São Paulo: Rideel, 2005.

______. Lei 9.433 (1997). Coletânea de Legislação Ambiental. Porto Alegre, RS: Procuradoria Geral de Justiça, 2003.

CESAR NETO, Julio Cerqueira. Política de Recursos Hídricos: Instrumento de Mudança. São Paulo: Pioneira, 1988.

CABRAL, J. Bernardo; Brasil. Congresso. Recursos Hídricos e Desenvolvimento Sustentável IV. Brasília: Senado Federal, 2002.

GUERRA, Liana. Água para Todos, Ciência e Meio Ambiente. Disponível em : .br). Acesso em: 01 jul. 2005.

GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito de Águas e Meio Ambiente. São Paulo: Ícone, 1993.

JUNIOR, Rosalvo de Oliveira. O Ordenamento Territorial do Brasil no Contexto da Política Nacional dos Recursos Hídricos. Disponível em: < .br>. Acesso em 01 ago. 2005.

ROCHA, Julio Cesar de Sa da. Função Ambiental da Cidade: Direito do Meio Ambiente Urbano Ecologicamente Equilibrado. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999.

SÓCRATES, Jodete Rios; GROSTEIN, Marta Dora; TANAKA, Marta Maria Soban. A Cidade Invade as Águas: Qual a Questão dos Mananciais? São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Saraiva, 1985.

SEMINÁRIO ÁGUAS; 1993 out. 18-20; SALVADOR, BA. Águas: Mananciais e Usos, Saneamento e Saúde, Política e Legislação. Salvador: Goethe - Institut (ICBA), Secretaria Municipal do Meio Ambiente, 1994.

VIEIRA, Edmar Augusto. A Tormenta das Águas em Solo Urbano: Uma Tragédia Anunciada. Disponível em: < .br>. Acesso em 30 set. 2005.

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[1] Veja-se o exemplo de Israel: paralelamente à retomada das negociações de paz relativas ao Oriente Próximo, ocorreram negociações sobre a utilização das escassas reservas de água de Israel e de países vizinhos.

[2] Segundo o Greenpeace (organização não governamental) que coletou dados junto à ONU (Organização das Nações Unidas) apenas 2,4% da água existente no Planeta é doce. E dessa porcentagem, 8% estão no Brasil.

[3] Art. 22, inciso IV da Constituição Federal: “Compete privativamente à União legislar sobre: IV – águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão;” (BRASIL. Constituição (1988). Vade Mecum Acadêmico de Direito. 2 ed. São Paulo: Rideel, 2005).

[4] Ademais a própria Lei 9.433/97 no art. 31 do capítulo destinado à ação do poder público, assim dispôs: “Na implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, os poderes executivos do Distrito Federal e dos municípios promoverão a integração das políticas locais de saneamento básico, de uso, ocupação e conservação do solo e meio ambiente com as políticas federais e estaduais de recursos hídricos”. (BRASIL. Lei 9.433 (1997). Coletânea de legislação ambiental. Porto Alegre, RS: Procuradoria Geral de Justiça, 2003).

[5] Não existe obrigatoriedade legal para este consórcio ficando ele ao critério de escolha dos Municípios.

35 As expressões “a jusante” e “a montante” significam respectivamente: rio ou talvegue abaixo para onde correm as águas e o sentido de vale acima, de lado da nascente ou de onde vem as águas do rio.

[6] A princípio, e a despeito da análise posterior, a água bruta no Brasil é, sob o ponto de vista do direito, um bem público, qualquer que seja sua utilização.

[7] Segundo Marcos Tadeu Abicalil, da Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano da Presidência da República, o Brasil atende 77% dos domicílios com água e 47,2% com esgotos (dados de 2000) Se considerado os domicílios com fossas sépticas, a cobertura de esgotamento sanitário chega a 62,2%. O déficit de atendimento, portanto, é de 9,9 milhões de domicílios para abastecimento de água e 23,6 milhões para esgotos ( ou 16,6 milhões se considerados os municípios com fossas sépticas). Ele diz: “ Nos contextos de urbanização e industrialização aceleradas a ausência de tratamento adequado dos resíduos constitui a principal causa de degradação ambiental e a poluição das águas limita os usos múltiplos dos recursos hídricos, repercutindo negativamente na economia das regiões afetadas.” (ABICALIL, Marcos Tadeu. Estado das Águas no Brasil 2001-2002).

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