1a VARA CRIMINAL DA COMARCA DE NILÓPOLIS



SENTENÇA

Trata-se de ação civil pública promovida pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, pela Ilustre Promotora de Justiça em atuação neste Juízo, em face de Município de Maricá, alegando, em síntese, que, de fato, nesta comunidade não existe qualquer instituição adequada à custódia de crianças e adolescentes, sejam menores infratores ou não, subvencionada pelos cofres públicos municipais.

Ressalta a representante do parquet que o Município de Marica carece de tratamento especializado para toxicômanos ou de organização análoga aos “Narcóticos Anônimos”, eis que muitos adolescentes de Marica são usuários de substâncias entorpecentes, sendo de intuitiva necessidade o combate ao maléfico vício em drogas. Salienta ainda que o Conselho Tutelar de Marica encontra-se funcionando de forma precária, em instalações que não resguardam a privacidade e intimidade dos infantes e jovens, posto que são atendidos em sala devassada, com acesso ao público e com parcas condições de higiene. Acrescenta que não existe um veículo do Município que atenda às necessidades de diligências externas por parte do Conselho Tutelar, sendo certo que falha o Município em sua tarefa de pronto e prioritário atendimento à Infância e Adolescência. Requer que seja determinado ao réu, liminarmente, o seguinte:

1- A obrigação de retirar das ruas do Município, no prazo de 30 dias, através de programa de abordagem feita por equipe multidisciplinar, todas as crianças de 0 a 12 anos incompletos, desacompanhados de seus familiares, encaminhando-as para abrigos ou família de origem;

2- A obrigação de retirar todas as crianças na faixa etária de 0a 12 anos incompletos, que se encontrem residindo nas ruas da cidade de Marica, com seus familiares, encaminhando-as, no prazo de 90 dias, a abrigo emergencial;

3- Que providencie, de imediato, condições para abrigar todas as crianças oriundas deste Município e que foram abrigadas em instituições existentes em Comarcas vizinhas, ou que estejam extrapolando as condições de lotação da “Casa Resgate” de Marica.

Manifestação do Município de Marica sobre as liminares requeridas às fls. 24/30, sustentando, em síntese, que todas as medidas liminares requeridas nos autos têm cunho satisfativo, esgotando, mesmo que parcialmente, o objeto da ação. Requer o indeferimento das liminares.

Decisão às fls. 42/51, na qual foi concedido parcialmente o pedido liminar.

Às fls. 56 consta notícia de interposição de Agravo de Instrumento.

Em consulta junto à intranet, verificou-se que foi negado segmento ao Agravo de Instrumento.

Em provas, manifestação do Ministério Público à fl. 74. A parte ré não se manifestou em provas, conforme certidão à fl. 79.

Decisão saneadora às fls. 80/82, na qual foi decretada a revelia do réu e designada audiência de instrução e julgamento.

Na audiência de instrução e julgamento, foram colhidos os depoimentos de 05 testemunhas, conforme ata às fls. 97/108.

Alegações finais do Ministério Público às fls. 192/193.

Alegações finais do Município de Marica às fls. 195/199, acompanhada de documentos.

É O RELATÓRIO. DECIDO.

Trata-se de ação civil pública para cumprimento de obrigação de fazer instaurada pelo Ministério Público do Estado do Rio de janeiro, no ano de 2001, em face do município de Maricá. Inicialmente, a ação civil pública tinha como objetivo principal compelir o referido município a:

1- Liminarmente, retirar das ruas, através de programa de abordagem, todas as crianças de zero a doze anos de idade, acompanhadas e desacompanhadas de seus familiares, encaminhando-os para abrigos ou famílias de origem;

2- Instituir o programa de orientação, apoio e acompanhamento temporários à família, à criança, ao adolescente, com a oitiva do CMDCA e do Conselho Tutelar, destinando a este programa recursos materiais e pessoais para atendimento de, pelo menos, 200 casos por mês;

3- Ampliar, no prazo de 3 meses o programa de cestas básicas para 9.000 atendimentos e a instituir o programa oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente, objetivando atender a pelo menos 1.000 casos mensais, mediante encaminhamentos a serem feitos pela autoridade judiciária, a requerimento do M.P ou do Conselho Tutelar, mediante os requisitos descritos na inicial;

4- Oferecer bolsa-escola para todas as famílias com renda inferior a um salário mínimo e filhos na faixa etária de 07 a 12 anos incompletos;

5- Instituir programa oficial de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos, inclusive em regime ambulatorial e internação, para crianças e adolescentes, de acordo com as especificações constantes da inicial;

6- Fornecer condições de adequado funcionamento do Conselho Tutelar de Maricá;

7- Criar e manter abrigos para crianças e adolescentes com risco pessoal e social, oriundos desta Comarca e abrigados em outros municípios ou que estejam extrapolando as condições da Casa Resgate, providenciando, para tanto, prédio adequado ou criando condições em abrigo já existente, até que seja definitivamente construído abrigo condizente com as necessidades e exigências legais e locais;

8- Criar e ampliar as vagas nas entidades próprias ou conveniadas do município para atendimento de crianças e adolescentes carentes e a apresentar programa com cronograma de execução de abrigos para famílias carentes com crianças e/ou adolescentes, no prazo máximo de três meses, abarcando-se as seguintes modalidades:

a- Abrigos para crianças e adolescentes do sexo masculino e feminino e com abrangência de faixa etária de 08 a 18 anos;

b- Creche para crianças de zero a 08 anos;

c- Casa de Passagem para crianças e adolescentes para resolução de situações emergenciais e provisórias;

Não há questões preliminares a analisar.

Ab initio, cabe lembrar que este juízo é competente para processar e julgar esta demanda, em razão do disposto no artigo 148, inciso IV c/c 209, ambos da lei 8060/90.

Destaque-se que o juízo proferiu decisão (fls. 42/51), na qual deferiu parcialmente a liminar para determinar que o Município de Maricá criasse, no prazo de 30 dias, condições para abrigar as crianças e adolescentes oriundas deste Município, fornecendo, para tanto, local adequado ou equipando provisoriamente o já existente, até que fossem definitivamente construídos os abrigos necessários às faixas etárias correspondentes, sob pena de multa diária no valor de R$ 1.000,00.

Por sua vez, o município de Maricá não apresentou contestação no prazo legal, motivo pelo qual foi decretada a sua revelia, às fls. 80/82, oportunidade em que também foi proferida decisão de saneamento.

Ocorre que, em alegações finais, o Ministério Público somente pugnou pela procedência do pedido contido no item “h” de fl. 15 da inicial, qual seja, o pedido relativo à condenação do município na obrigação de criar e manter abrigos para crianças e adolescentes com risco pessoal e social desta Comarca, a criar e a ampliar as vagas nas entidades próprias ou conveniadas do Município para atendimento de crianças e adolescentes carentes e apresentar programa com cronograma de execução de abrigos para famílias carentes com crianças e/ou adolescentes, no prazo de 03 meses, abarcando-se as seguintes modalidades:

a- Abrigos para crianças e adolescentes do sexo masculino e feminino e com abrangência de faixa etária de 08 a 18 anos;

b-Creche para crianças de zero a 08 anos;

c-Casa de Passagem para crianças e adolescentes para resolução de situações emergenciais e provisórias;

Desta forma, infere-se que houve desistência, ainda que tácita, dos demais pedidos constantes da inicial. Tal afirmativa é corroborada pelo seguinte trecho das alegações finais do parquet: “...Os demais pedidos formulados na inicial, relacionados a determinados tipos de programas assistenciais, demandam dilação probatória e serão apreciados via ação correspondente, não podendo ser causa de postergação da presente demanda, cujo cerne está voltado à criação de abrigos para menores. Quanto a este aspecto, diga-se principal, não há mais provas a produzir, sendo fática a conclusão de que tais instituições inexistem ainda nos dias atuais...Diante do exposto, pugna o Ministério Público do Estado do Rio de janeiro pela procedência do pedido contido no item “h” de fl. 15 da inicial”.

Por tais motivos, entendo que deve ser homologada a desistência mencionada, nos moldes do disposto no artigo 267, inciso VIII do CPC.

Na audiência de instrução e julgamento, foi determinada a expedição de diversos ofícios a instituições, além de ouvidas cinco testemunhas.

Dentre as declarações das diversas testemunhas ouvidas em juízo, durante a instrução processual, podemos citar as seguintes:

A testemunha Glória Regina Salles de Oliveira, assistente social do juízo, afirmou:

“...encontra-se em exercício no Juízo da Vara de Família, Infância e Juventude da Comarca de Maricá desde agosto de 1998; que desde esta época, sempre sentiu muita dificuldade na colocação de crianças em situações de risco, pois o único abrigo existente na comarca é a Casa Resgate; que muitas vezes as crianças eram colocadas acauteladas dentro do Hospital municipal, à espera de algum parente que pudesse abrigá-las provisoriamente, até seu reingresso na família de origem;...que atualmente a situação permanece a mesma...que a Prefeitura de Maricá não tem abrigo oficial no município; que quando há necessidade de abrigar crianças e não existindo a possibilidade de as mesmas ficarem na Casa Resgate ou na AMAI, o Juízo entra em contato com Comarcas próximas, que, de “boa vontade”, acabam abrigando as crianças e adolescentes; que a colocação das crianças e adolescentes da Comarca de Maricá em outras Comarcas gera problemas, primeiro pela distância, pois muitas famílias não possuem condições financeiras de se locomoverem até o local do abrigo e, depois, porque nós ficamos devendo favores; que esta distância também dificulta a reintegração das crianças às suas famílias, pois muitas vezes se sentem rejeitadas pela ausência de visitas, emocionalmente abaladas com o distanciamento;...que existem inúmeros casos de famílias carentes no Município de Maricá; que existem inúmeros casos de abandono, maus tratos, abuso contra crianças e adolescentes no município de Maricá...que o município criou uma Casa de Passagem, mas a mesma encontra-se desativada”. (Grifos nossos).

A testemunha Odeméria Maria de Oliveira Figueiredo corroborou as afirmações da testemunha Glória, ao assim declarar em juízo, às fls. 101/102:

“...que exerce a função de Conselheira Tutelar no Município de Maricá desde 1999; que na época em que assumiu a função, a maior dificuldade do Conselho Tutelar era a falta de veículo e local para funcionamento e também local destinado ao abrigo das crianças que apareciam;...que existem em Maricá dois abrigos, a AMAI e a Casa Resgate;...que quando surgem problemas para abrigar crianças, “começam a correr”; que o abrigo existente em Saquarema costuma ajudar ao juízo; que primeiramente entram em contato com D. Cecília, da CASA Resgate, e não havendo possibilidade de abrigar a criança ou o adolescente neste local, pedem ajuda ao Juízo da Vara de Família, Infância e Juventude da Comarca de Maricá;...que existem crianças de Maricá abrigadas em Saquarema e em Niterói; que o fato de abrigar crianças de Maricá em outros municípios gera transtornos, como por exemplo, duas crianças que estão abrigadas em Saquarema e a Conselheira Maria do Carmo teve que arrumar carro para deslocar os pais até o local, pois não tinham condições financeiras e a genitora é doente; que a distância prejudica o trabalho de reintegração destas crianças às suas famílias; que existem muitos casos no Município de Maricá de crianças em situação de risco, abandono e miséria, principalmente nas áreas mais afastadas;...que sabe informar que, antes de o Ministério Público ajuizar a presente ação, realizaram diversas reuniões com o MP, Juízo da Vara de Família, Infância e Juventude e representantes da municipalidade, mas não surtiu nenhum efeito;... ”. (Grifos nossos).

Por sua vez, a Sra. Cecília Queiroz Ponce, Diretora da Casa Família Resgate, afirmou o seguinte:

“...que é diretora da Casa Família Resgate; ...que fez um Convênio com o Município para ajuda às crianças deficientes, mas só recebeu 04 parcelas; que necessita de ajuda na parte de alimentação, vestuário, médico, remédios e colégio;...que o único abrigo de que tem conhecimento em Maricá é o seu, não tendo conhecimento da existência de abrigo oficial; ...que quando aparecem crianças para serem abrigadas, a depoente fica em uma situação muito difícil, pois não tem condições de abrigá-las; que mesmo não possuindo condições para abrigar as crianças que aparecem, estas muitas vezes lhe são enviadas, o que lhe causa transtornos terríveis; que por exemplo, a última criança que lhe foi enviada pelo Conselho Tutelar convenceu 03 crianças menores que já estavam no abrigo há muito tempo a fugirem, tendo estas aparecido em Alcântara; que quando não possui condições de abrigar as crianças de Maricá, os Comissários ficam “implorando” para que a depoente as aceite, pois não possuem outro local para colocá-las;...”.

Finda a instrução, infere-se que ainda não há qualquer abrigo ou casa de passagem na Comarca de Maricá. Atualmente, a situação é ainda pior. É que a Casa Família Resgate, que já não recebia qualquer verba do Município para manutenção de suas atividades, teve que encerrar o seu estabelecimento de abrigo na Comarca de Maricá (fl. 190). Por sua vez, a Casa de Passagem inaugurada no curso deste processo, a que alude o réu, a fl. 144, foi desativada no ano de 2009, como se nota do documento de fls. 184/185, ao argumento de que o referido “benefício” trazia altos custos para a municipalidade. Apesar das inúmeras reuniões e tentativas de acordo, o município não acenou com qualquer possibilidade neste tocante, como se depreende do teor de fl. 177.

Como já ressaltado, não houve apresentação de contestação. Todavia, o réu, em alegações finais, pugnou pela improcedência do pedido, basicamente ao argumento de que o Município de Maricá está inserido no modelo de gestão denominado “nível de proteção social básica”, que não engloba a obrigação de dispor de abrigo público para crianças e adolescentes com risco pessoal, uma vez que tal incumbência somente alcança os municípios inseridos no perfil de atendimento de alta complexidade. Alega que, em momento algum, houve omissão por parte do Município, posto que o réu sempre promoveu o abrigamento de crianças/adolescentes em situação de risco em instituições filantrópicas existentes na municipalidade ou em outros municípios mais próximos e inseridos no perfil de atendimento de alta complexidade. Sustenta, ainda, o réu, que o Poder Judiciário não pode imiscuir-se na definição de políticas públicas de competência do Poder Executivo. Com o devido respeito, entendo que o réu está equivocado em suas teses. Vejamos:

A constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 227 prega que:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Artigo 6º:

“São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

Por sua vez, o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8069/90), em seus artigos 86 e 98, assim dispõe:

“Artigo 86:

A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (Grifo nosso).

Artigo 88:

São diretrizes da política de atendimento:

I- Municipalização do atendimento;

II- ...

III- Criação e manutenção de programas específicos, observada a descentralização político-administrativa;

IV- Manutenção de fundos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do adolescente”. (Grifo nosso).

Artigo 98:

As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta lei forem ameaçados ou violados:

I- Por ação ou omissão da sociedade ou do Estado.

II- ...

III- ...”.

Artigo 101:

Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:

VII- abrigo em entidade...”.

Partindo de tais premissas, conclui-se que não há, como alega o réu, qualquer invasão na discricionariedade do administrador. Como é de conhecimento geral, há limites à discricionariedade da Administração Pública. Mister se faz cautela quando se adota a expressão “discricionariedade”, pois, não raro, ela é utilizada como escusa para que a Administração Pública deixe de tomar providências positivas e imprescindíveis das quais não deveria se esquivar. Neste diapasão, não se deve olvidar que as políticas públicas fincadas no artigo 227 da Constituição da República são prioritárias e que eventual omissão neste tocante também se consubstancia em um desrespeito à norma constitucional, ainda que por via indireta.

Aliás, neste sentido já se manifestou o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de janeiro:

0000823-25.2008.8.19.0022 (2009.009.01161) - REEXAME NECESSARIO - 1ª Ementa

DES. JESSE TORRES - Julgamento: 13/08/2009 - SEGUNDA CAMARA CIVEL

“CRIANCAS E ADOLESCENTES EM SITUACAO DE RISCO

INSTALACAO E FUNCIONAMENTO DE ABRIGO

OMISSAO DA ADMINISTRACAO

CONTROLE JUDICIAL DE POLITICA PUBLICA

PODER DISCRICIONARIO

LIMITACAO

“APELAÇÃO. Ação civil pública. Controle judicial de política pública com assento na Constituição Federal. A tutela constitucional de políticas públicas impõe obrigações positivas de cuja execução os poderes administrativos não se podem esquivar. A norma da Constituição traça limites à discricionariedade administrativa. Existência de crianças e adolescentes em situação de risco social. Inexistência de abrigo público para dar-lhes acolhida. Prioridade a ser atendida pelo Município, no desempenho das políticas decorrentes do art. 227 da Constituição da República (é dever do Estado "assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão") e no art. 88 do Estatuto da Criança e do Adolescente ("São diretrizes da política de atendimento: I municipalização do atendimento". Pleito, formulado pelo Ministério Público, e sentença, que o acolheu, em sintonia com a orientação do Supremo Tribunal Federal: "A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental' (RTJ 185/794-796, Pleno). Inexistência de apelo voluntário. Confirmação da sentença, retificando-se, em reexame necessário, os valores da multa cominada para o caso de descumprimento da obrigação e da verba honorária”.

Ementário: 45/2009 - N. 7 - 19/11/2009

Precedente Citado : STF AG REG no RE/SP,Rel.Min. Celso de Mello, julgado em 22/11/2005 e ADIN319/DF, Rel. Min. Moreira Alves, julgado em 03/03/1993.

0019617-97.2007.8.19.0000 (2007.002.29635) - AGRAVO DE INSTRUMENTO - 1ª Ementa

DES. RONALDO ROCHA PASSOS - Julgamento: 14/01/2009 - TERCEIRA CAMARA CIVEL

“EMENTA AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LIMINAR DEFERIDA SEM A OITIVA DO REPRESENTANTE JUDICIAL DA PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO. ART. 2º, DA LEI Nº 8437/92. REQUISITO QUE NÃO É ABSOLUTO EM CERTOS CASOS DE NATUREZA GRAVE.Precedentes jurisprudenciais congregam entendimento no sentido de que o art. 2º, da Lei nº 8437/92, não se trata de requisito de observância absoluta, se o caso exige pronta e imediata atuação do Estado e revela risco de dano grave.Na hipótese, foi observado pelo ilustre Juiz processante que se trata de "quatro crianças portadoras de transtorno mental, além de oito adultos, sem referencial familiar [.]", e que o "único estabelecimento do Município que aceita, em sistema de abrigamento, crianças e adolescentes portadores de transtornos mentais é justamente a Ação Cristã Vicente Moretti, sendo certo que as três adolescentes (-) e a criança (-) que hoje permanecem no abrigo foram completamente abandonadas por seus parentes e não possuem qualquer referencial familiar."A leitura do dispositivo do art. 227, da CF e a situação dos seres humanos constatada pelo culto Magistrado são mais do que suficientes para justificar em garantir de amparo legal a liminar ora questionada, logo revelam o fumus boni iuris e o periculum in mora, notadamente porque tais pessoas já se encontram sob a guarda e proteção do Estado e porque é sua obrigação assegurar, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à dignidade, ao respeito, à convivência comunitária etc.Precedentes jurisprudenciais desta Eg. Corte.RECURSO QUE SE NEGA SEGUIMENTO, NA FORMA DO ART. 557, CAPUT, DO CPC.

0000316-80.2003.8.19.0041 (2007.001.27609) - APELACAO - 1ª Ementa

DES. MARILENE MELO ALVES - Julgamento: 24/09/2007 - DECIMA PRIMEIRA CAMARA CIVEL

“Apelação cível. Ação civil pública proposta pelo Ministério Público em face do Município apelante, para que este último promova a criação de abrigo para crianças e adolescentes que se enquadrem nas hipóteses previstas no artigo 98 da Lei 8.069/90. Procedência do pedido, com fixação de prazo de 90 dias para a construção, sob pena de multa diária de R$ 5.000,00. Decisão sub examen que é prenhe de considerações de alto alcance humanitário, cuja pertinência e propriedade em hipótese alguma poderiam ser sequer questionadas. Todavia, aquilo que o juiz impõe deve ser não apenas exeqüível, mas também passível de ser exigido do destinatário, exatamente porque o comando há de fazer-se em conformidade com o ordenamento jurídico. Parcial provimento do recurso, para, mantendo-se a sentença na sua parte fundamental, determinar-se que o prazo fixado é concedido para que a Administração comprove que deflagrou as providência administrativas legalmente impostas e de necessário cumprimento, para que se institua, com os requisitos mínimos de eficácia e padrões mínimos de dignidade, um abrigo para os menores em situação de carência no Município de Paraty, sob pena da multa que reduzo para R$ 500,00 por dia”.

O município de Maricá, em alegações finais, alega que, deve ser respeitada a independência e autonomia dos Poderes constituídos, pelo que não poderia o Poder Judiciário se substituir ao Poder Executivo, fazendo opções administrativas quanto à conveniência e oportunidade da realização de obras ou prestação de serviços.

Afirma também que, se for considerado o nível em que está inserido o referido município, qual seja, proteção social básica, não pode o ente público ser responsabilizado por não dispor de abrigo público para crianças e adolescentes com risco pessoal e social, posto que tal incumbência somente alcança os municípios inseridos no perfil de atendimento de alta complexidade.

Ora, não se trata, como alega o réu, de violação ao comando constitucional de separação dos Poderes supostamente oriunda da indevida interferência do Poder Judiciário na definição de políticas públicas de competência do Poder Executivo. Ao revés. O ente público tem sempre o dever de respeitar as normas constitucionais e, em caso de omissão, cabe, sim, ao Poder Judiciário agir. A adoção do sistema da unidade de jurisdição, concentrada quase que monopolisticamente no Poder Judiciário não deve inibir os órgãos julgadores, pois se assim não fosse, não haveria outra solução para a defesa dos administrados.

Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “Sem a superação do tabu, inúmeras formas de violação indireta da legalidade, os vícios de legalidade, os vícios de finalidade apontados neste trabalho, ficariam irremediavelmente excluídos do controle jurisdicional, o que seria inadmissível no próprio sistema vigente (art. 5º, XXXV, da Constituição)”. A omissão do Estado, que, não raro, deixa de cumprir, imposições ditadas pelo texto constitucional, se consubstancia em comportamento grave. Sendo inerte, o Poder Público também desrespeita, ainda que por via indireta, a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretas, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental...Embora o núcleo de escolhas administrativas que atendam otimamente ao interesse público continue insindicável, os seus limites, não só podem como devem ser contrastados pelo Judiciário...A plena cognição dos fatos é indispensável para que o juiz dela retire o que é sindicável e o que não é sindicável: pois se alguém deve dar a última palavra sobre os limites da discricionariedade, há de ser o Judiciário....

Discricionariedade é a qualidade da competência cometida por lei à Administração Pública para definir, abstrata ou concretamente, o resíduo de legitimidade necessário para integrar a definição de elementos essenciais à prática de atos de execução voltados ao atendimento de um interesse público específico...Aceito, assim, que o respeito à finalidade é matéria de legalidade estrita, chega-se comodamente à conclusão de Caio Tácito de que a discricionariedade não é, realmente, um “cheque em branco”, mas tem limites, além dos quais sua ilegitimidade manifesta-se como ilegalidade. É o que se pretende demonstrar, estabelecendo as hipóteses em que o poder estatal a ser exercitado pela Administração pode ser abusado ou desviado ao arrepio do interesse público, cujo atendimento é sua própria justificação, a pretexto de manejo da discricionariedade.(in Legitimidade e Discricionariedade, Neto, Diogo de Figueiredo Moreira, 4ª Ed., Ed. Forense, Rio de janeiro, 2002).

Quanto à alegação no sentido de que não pode o ente público ser responsabilizado por não dispor de abrigo público para crianças e adolescentes com risco pessoal e social, posto que tal incumbência somente alcança os municípios inseridos no perfil de atendimento de alta complexidade, esta também não merece prosperar. É que a Resolução número 145 de 15/10/2004 do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome- Conselho Nacional de Assistência Social, a qual estabelece a política pública de assistência social e define os níveis de proteção social dos municípios, não pode, em hipótese alguma, se sobrepor ao que determina a nossa Constituição da República, mormente quando se tratam de direitos e garantias fundamentais relacionados a crianças e adolescentes.

Com efeito, desde a propositura desta demanda, nos idos do ano de 2001, até os dias atuais, não houve alteração fática significativa, eis que ainda não há sequer um estabelecimento destinado ao abrigo de crianças e/ou adolescentes, tampouco Casa de Passagem, sejam eles subvencionados pelos cofres públicos ou não. Aliás, impende salientar que a situação ainda piorou, posto que o único abrigo, mantido até então pela Casa Família Resgate, instituição de iniciativa exclusiva da sociedade civil, nesta comarca, fechou as suas portas no início deste ano. Atualmente, a referida instituição fincou suas bases na cidade de Niterói. A situação é dramática. Com o fim do abrigo mantido pela Casa Resgate nesta comarca, já houve casos de necessidade de abrigamento de crianças em situação de risco, sem qualquer possibilidade de abrigá-las em local próximo às suas referências familiares. A partir daí, iniciou-se a lamentável via crucis. Quando ocorrem situações deste tipo, a equipe técnica da comarca é obrigada a entrar em contato incessante com abrigos localizados em outras comarcas, praticamente implorando por vagas para abrigar crianças/adolescentes oriundos da Comarca de Maricá. Invariavelmente, a resposta é negativa, ao argumento de que as vagas já estão preenchidas e que o problema deve ser solucionado no âmbito municipal. E mais. Infelizmente, apesar da excepcionalidade da medida de abrigamento, nas duas últimas audiências de reavaliação realizadas no estabelecimento até então mantido pela Casa Família Resgate, constatou-se que algumas crianças e adolescentes foram completamente abandonados pela família e não possuem qualquer referência familiar, além de estarem fora da faixa etária pretendida pelos habilitados à adoção, de modo que não há, ao menos por ora, alternativa a não ser o abrigo em entidade. Desta forma, os poucos adolescentes que não foram reintegrados às famílias de origem ou colocados em famílias substitutas, nas duas últimas audiências citadas, tiveram que ser transferidos, quase que compulsoriamente, para a instituição mantida pela Casa Família Resgate, na cidade de Niterói. Ora, se não houver uma resposta enérgica por parte do Estado-Juiz, a situação narrada não vai se alterar, o que aumentará brutalmente o risco a que estão submetidas diversas crianças e adolescentes que não podem contar com o apoio daqueles que mais deveriam lhes proteger, vale dizer, a família e o Estado.

ISTO POSTO, JULGO PROCEDENTE EM PARTE O PEDIDO para condenar o Município de Maricá, ora réu, a:

1- Criar e manter abrigos para crianças e adolescentes com risco pessoal e social desta Comarca;

2- Criar e a ampliar as vagas nas entidades próprias ou conveniadas do Município para atendimento de crianças e adolescentes carentes;

3- Apresentar programa com cronograma de execução de abrigos para famílias carentes com crianças e/ou adolescentes, abarcando-se as seguintes modalidades:

a- Abrigos para crianças e adolescentes do sexo masculino e feminino e com abrangência de faixa etária de 08 a 18 anos;

b-Creche para crianças de zero a 08 anos;

c-Casa de Passagem para crianças e adolescentes para resolução de situações emergenciais e provisórias;

Ressalto que o prazo para cumprimento de cada uma das obrigações será de 90 dias, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00 (mil reais), para a hipótese de descumprimento de cada uma das obrigações ora determinadas, sendo que eventual multa será revertida ao Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Confirmo a liminar concedida na decisão de fls. 42/51.

Homologo a desistência dos demais pedidos, conforme requerido pelo Ministério Público, em suas alegações finais, julgando, neste tocante, o processo extinto sem julgamento de mérito, na forma do artigo 267, VIII do C.P.C.

Sentença submetida ao reexame necessário, nos moldes do disposto no artigo 475, inciso I do C.P.C.

Remetam-se os autos ao Egrégio Tribunal de Justiça, com as homenagens de estilo.

Condeno o réu ao pagamento de eventuais despesas processuais e dos honorários advocatícios, que fixo em R$ 2.000,00 (dois mil reais), obedecendo aos ditames do artigo 20, parágrafo 4º do C.P.C, verba esta que deverá ser revertida para o Fundo Orçamentário Especial do Centro de Estudos Jurídicos da Procuradoria Geral da Justiça do Estado do Rio de janeiro, como requerido pelo Ministério Público, na inicial.

P.R.I.

Maricá, 01 de outubro de 2010.

Juliane Mósso Beyruth de Freitas Guimarães

Juíza de Direito

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download

To fulfill the demand for quickly locating and searching documents.

It is intelligent file search solution for home and business.

Literature Lottery

Related searches