DO COLAPSO À RECONSTRUÇÃO: ESTADOS FALIDOS E AS …



DO COLAPSO À RECONSTRUÇÃO: ESTADOS FALIDOS E AS OPERAÇÕES DE NATION-BUILDING NO PÓS-GUERRA FRIA

Aureo de Toledo Gomes

aureotoledo@

1. INTRODUÇÃO

Durante cerca de 45 anos o sistema internacional viveu sob a égide da bipolaridade, na qual as clivagens ideológicas e de poder existentes entre Estados Unidos da América e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas caracterizavam o ordenamento global. A corrida armamentista e a possibilidade do uso de armas nucleares, a divisão do mundo segundo áreas de influência e a submissão de conflitos de cunho local ao embate entre as superpotências foram fatos marcantes deste momento histórico. Conseqüentemente, instituições internacionais ficaram a mercê da vontade dos EUA e da URSS, gozando de autonomia limitada[1].

O término da Guerra Fria e o esfacelamento da ordem bipolar que vigorara desde o final da Segunda Guerra Mundial transformaram substancialmente as configurações de forças dentro do sistema internacional. Com a derrocada da URSS os Estados Unidos se viram frente a um contexto extremamente diferente, assumindo uma posição, conforme Samuel HUNTIGTON (1999), de superpotência solitária.

A emergência de um novo período na história trouxe consigo uma gama de novos paradigmas que tentavam compreender esta nova realidade, dentre os quais havia desde os mais otimistas, até aqueles que vislumbravam um mundo marcadamente conturbado[2]. Contudo, num primeiro momento a comunidade internacional acreditou estar a frente de um revigoramento da Organização das Nações Unidas, superando assim a paralisia dos anos de Guerra Fria levando à decisões mais efetivas sobre diferente gama de assuntos, desde desenvolvimento econômico e social, passando pela proteção aos direitos humanos e a manutenção da paz e segurança internacional. O rápido consenso atingido pelos membros do Conselho de Segurança frente a decisão unilateral de Saddam Hussein em invadir o Kuwait foi visto por muitos como o exemplo de uma nova era, calcada no multilateralismo e na emergência de um suposto direito cosmopolita.

Segundo Maria Fernandez MORENO (2001:115), uma característica relevante das atividades da ONU no pós-Guerra Fria é o seu envolvimento na articulação e na observação de normas de comportamento para a esfera doméstica dos Estados, visando com isso promover uma ordem internacional estável. Esta mudança pode ser notada na questão das intervenções humanitárias, as quais levaram o Conselho de Segurança e a Assembléia Geral das Nações Unidas a entender violações de direitos humanos, ainda que efetuadas dentro de um território e protegido pelo princípio de não-intervenção em assuntos internos, como ameaças a paz e segurança internacional.

Por conseguinte, reduzindo as limitações previstas pela Carta da ONU, conforme o artigo 2º, parágrafo 7, tais expedientes foram usados muitas vezes no decorrer da década de 90, principalmente em países acusados de desrespeitar os direitos humanos _ no caso da intervenção em Kosovo, _ e para trazer ao poder os líderes democraticamente eleitos _ no caso do Haiti, por exemplo[3]. Dessa forma, ficou aberto o precedente para intervenções em situações de violações maciças dos direitos humanos provocados por regimes repressores ou falidos. Entretanto, muitos críticos argumentam que as intervenções dependiam muito mais dos interesses dos estados, culminando numa seletividade para a ação[4]. Isto explicaria porque alguns países teriam suas violações ignoradas.

Para os Estados Unidos, o pós-Guerra Fria representou o advento de uma era complexa. Ao mesmo tempo em que não havia mais um perigo real e imediato, tal como a URSS, a única superpotência do mundo se viu a frente com a emergência de novas ameaças corporificadas no terrorismo, tráfico internacional de drogas e a proliferação de armas de destruição em massa[5].

Os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, além de evidenciarem a ascensão de grupos terroristas como novas ameaças para a segurança internacional, direcionaram a atenção dos EUA e dos demais países do globo para uma nova problemática dentro das relações internacionais: a questão dos Estados Falidos, os quais não conseguiram consolidar instituições eficientes e perderam, dentro dos limites de determinado território o monopólio do uso legítimo da violência física (WEBER, 2004:60). Na ocasião, o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (I.I.S.S), sediado em Londres afirmou que os EUA têm um novo inimigo definido, que não é nem a velha União Soviética nem uma potencialmente ressurgente China, mas o terrorismo internacional, sobretudo o terrorismo capaz de seqüestrar Estados para operar a partir deles.

Logo, doutrinas de seguranças tradicionais não apresentam os mesmos resultados que outrora obtiveram. As Doutrinas de Contenção e Dissuasão nuclear[6] não são eficazes quando o inimigo é um estado que perdeu qualquer capacidade de controlar seus assuntos internos e que não possui autoridade de facto. Procurando contornar este problema, uma das alternativas que vem sendo discutida são as intervenções em países em colapso, procurando evitar que dentro destes territórios se empreendam violações aos direitos humanos e que não se transformem em santuários para terroristas, como foi o caso do Afeganistão durante o governo do Talibã. Indo mais além, a democratização, no entender dos altos escalões do governo norte-americano, é um elemento de suma importância para a completa erradicação do problema.

Divergindo das principais teorias clássicas que atentavam para o papel dos estados mais poderosos do sistema internacional, Francis FUKUYAMA (2005) argumenta que agora, paradoxalmente, os estados mais fracos ganharam outro relevo. A fraqueza de um Estado torna-se, ao mesmo tempo, uma questão nacional e internacional de grande importância para a segurança global.

2. FALÊNCIA ESTATAL

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Um dos principais debates que emergiram com o final da Guerra Fria e o advento do dito processo de globalização foi acerca do papel do Estado nacional neste novo contexto internacional. Autores como Kenichi OHMAE (1990) argumentavam que o Estado estava com os dias contados e estaríamos inseridos em um mundo sem fronteiras. Ainda que a interdependência econômica e as instituições internacionais fossem capazes de diminuir as opções unilaterais dos Estados[7], o decorrer dos anos evidenciou que, conforme salienta o professor Oliveiros FERREIRA (1998), Os Estados não morreram. Os que têm bases reais de poder, esses ainda contam, interna e externamente. Tal papel preponderante do Estado pode ser evidenciado nas políticas protecionistas que muitas países empregam para proteger suas economias e na postura estadunidense frente à ONU e ao Conselho de Segurança vis-à-vis a invasão do Iraque em 2003.

No entanto, como foi visto com os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, alguns estados, ainda que com bases ínfimas de poder e que possuem pouca capacidade para estabelecer ou modificar as regras do jogo no sistema internacional, poderiam causar grandes estragos. Os ditos Estados Falidos passaram a ser enxergados como potenciais ameaças à segurança internacional uma vez que a partir de seus territórios surgiriam problemas como ascensão de grupos terroristas, proliferação de armas de destruição em massa e as grandes levas de refugiados. Ainda que tais países tenham pouca possibilidade de reverter a distribuição de forças dentro do sistema internacional, possuem a capacidade de provocar inflexões no comportamento das grandes potências[8].

Uma questão que emerge de toda essa problemática abarca a possibilidade de dissolução do Estado. Uma vez constituído, pode um Estado perecer? Ou, melhor formulando, quais seriam os elementos que levariam a dissolução do Estado?

Robin LUCKHAM (2004) argumenta que a falência de um estado muitas vezes está relacionada com a perda do monopólio da violência legítima dentro de determinado território. Regimes autoritários e/ou não-democráticos que impossibilitam a inclusão de grande parcela de sua população[9]; guerras civis envolvendo a formação da identidade nacional[10]; e, finalmente, colapso causado por intervenção externa[11] seria algumas das principais causas que minariam a autoridade do governo central.

Todavia, não é a intensidade absoluta da violência que define a falência de um Estado. Como coloca Robert I. ROTBERG (2002), os Estados falidos apresentam características similares, tais como aumento criminalidade; perda do controle de suas fronteiras; intensificação das clivagens étnicas, religiosas, lingüísticas e/ou culturais; guerra civil; instituições fracas; infra-estrutura em decomposição; dificuldade na coleta de impostos sem o uso sistemático da violência; altos níveis de corrupção; crises humanitárias, principalmente fome generalizada. [12]

Partindo-se do pressuposto que um Estado deve ter o monopólio da violência e ser capaz de legislar, executar e verificar o cumprimento das leis dentro de determinado território, além de proporcionar bens públicos para sua população, tais como segurança e saúde, ROTBERG (2004) nos apresenta uma taxonomia distinguindo entre quatro tipos de Estados-Nação:

• Estados fortes: são aqueles que controlam seus territórios e proporcionam uma grande gama de bens públicos para sua população;

• Estados fracos: possuem clivagens étnicas e/ou religiosas capazes de desencadearem um conflito. Ademais, sua capacidade para distribuir bens públicos é mais limitada.

• Estados falidos: proporcionam uma quantidade limitada de bens públicos essenciais, como saúde, educação e segurança. Progressivamente tais bens passam a ser distribuídos por atores não-estatais, como senhores tribais, grupos religiosos e terroristas. O legislativo apenas ratifica as decisões do executivo enquanto que o judiciário é apenas uma extensão do soberano. A infra-estrutura do país está comprometida e a economia privilegia uma oligarquia próxima ao poder.

• Estados em colapso: são versões extremas de estados falidos. Não há autoridade alguma dentro do território, os bens públicos são obtidos via meios privados e a segurança é a lei do mais forte[13].

Como erradicar este problema? Visto que a segurança das grandes potências e a expansão dos mercados globais depende cada vez mais da segurança de todo o sistema internacional, algumas alternativas estão sendo levantadas. Assistência humanitária, empréstimos via instituições financeiras internacionais e mesmo as já citadas intervenções humanitárias foram artifícios utilizados para se lidar com o problema colocado pelos Estados Falidos. No entanto, uma nova ferramenta vem sendo discutida: as ditas operações de Nation-Building.

3. NATION-BUILDING: DEFINIÇÃO E EXECUÇÃO

A definição de Nation-Building é extremamente complexa. Segundo Amitai ETZIONI (2004:02), a expressão Nation-building é geralmente usada para descrever três tarefas distintas mas ao mesmo tempo relacionadas: unificação de grupos étnicos díspares; democratização; e reconstrução econômica. Wendell BELL e Walter FREEMAN (1974:II), por sua vez, definem o termo como a formação e o estabelecimento de um novo estado como uma entidade política própria e o processo de criação de variáveis viáveis de unidade, adaptação, realização, e um senso de identidade nacional entre as pessoas. Já Michael IGNATIEFF (2002:30) enfatiza melhoras na governança dos países. Criar meios de governança efetiva, implementar o Estado de direito, combater a corrupção, instalar a democracia e garantir a liberdade de imprensa seriam as principais tarefas a serem realizadas.

A Rand Corporation[14] editou entre os anos de 2003 e 2004 dois volumes acerca da temática de Nation-building. Segundo James DOBBIN (2005), diretor de Segurança Internacional desta instituição e enviado especial do governo dos EUA na Somália, Haiti, Bósnia, Kosovo e Afeganistão, Nation-Building seria o uso da força armada no pós-conflito para promover a transição à democracia.

Contudo, há autores os quais não vêm com bons olhos Nation-Building por parte de outros países. Segundo Gary T. DEMPSEY (2001:59), Nation-Building é talvez a mais intrusiva forma de intervenção existente. É a massiva regulamentação da política interna de um estado por outro país. O processo consiste geralmente na troca ou, no caso de um estado falido, na criação de instituições governamentais e lideranças políticas que são ligadas às potências que conduzem a intervenção. Como estas profundas interferências tendem a criar resistência, o processo de Nation-Building requer uma substancial presença militar para impor a operação no país alvo.

DUFFIELD (2001), por sua vez, argumenta que a ascensão de um novo humanitarismo, calcado na premissa de que traumas e sofrimentos associados com conflitos é uma responsabilidade global, constitui uma nova forma de hegemonia global e intervencionismo. Seguindo seu raciocínio, este tipo de operação está se tornando em uma imposição incontestável de valores liberais ocidentais, de instituições políticas e de mercados capitalistas em países multifacetados culturalmente e subordinados aos desígnios das grandes potências.

O maior escopo dado a esta idéia de Nation-Building veio com o final da Guerra Fria. Durante o período compreendido entre o final da Segunda Guerra Mundial e a queda do Muro de Berlim, os EUA estavam mais interessados, segundo James DOBBIN (2003) , em gerenciar as crises, não em resolver os problemas fundamentais que as causavam. Ainda de acordo com DOBBINS (2003: xiv), desde o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos se sentiram livres para intervir não apenas em cessar-fogos ou restaurar o status quo, mas também para tentar realizar as mais fundamentais mudanças em sociedades dilaceradas pela guerra, em muito semelhante ao que foi realizado no Japão e Alemanha quatro décadas antes.

Assim como a definição do termo, a forma de se empreender tamanha tarefa também provoca discussões. Os principais atores envolvidos nesta missão, os Estados Unidos da América e a Organização das Nações Unidas apresentam formas distintas para a execução de tal empreitada. Primeiramente, ambos têm casos paradigmáticos diferentes. Para os EUA, a reconstrução da Alemanha, por meio do Plano do Marshall, e do Japão no pós - Segunda Guerra são os marcos históricos do país nessa tarefa[15]. Já para a ONU, a intervenção na República do Congo em 1960 é considerada a primeira ação da organização com o intuito de se reconstruir um estado, contando com o consenso de todos os membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas[16].

Com o final da bipolaridade e o decorrer dos anos noventa, Estados Unidos e ONU desenvolveram maneiras distintas de Nation-Building, devido principalmente às suas diferentes naturezas e capacidades. A ONU é uma organização internacional que depende do consenso de seus membros e concomitante financiamento das missões. Por sua vez, os EUA se apresentam como a única superpotência do mundo, com recursos financeiros e militares abundantes e grande influência sobre outros países e instituições.

A chegada de Kofi Annan à Secretaria - Geral das Nações Unidas provocou mudanças nas operações de paz da instituição. O novo Secretário-Geral procurou integrar outros órgãos da organização nessas tarefas e deu à ONU um maior papel político em alguns processos de reconstrução[17]. Um dos principais documentos da organização acerca da temática da reconstrução de estados-nação é o Relatório Brahimi, preparado por Lakdar Brahimi, que tinha como principal objetivo assessorar o Conselho de Segurança sobre a atuação das Nações Unidas nesta tarefa[18].

Para as Nações Unidas, o escopo de suas operações visa três áreas: o real encerramento dos conflitos; o desarmamento, desmobilização e reintegração da população; e o restabelecimento do primado da lei dentro do território[19]. Para realizar tamanha tarefa, muitas vezes a ONU se encontra a mercê da vontade de seus principais membros, os quais não vêm com bons olhos os financiamentos dessas missões, tampouco o envio de soldados para países em conflito, culminando em recursos e contingente exíguos.

Para compensar esta deficiência pelo menos em alguma medida, a ONU procura calcar suas missões na legitimidade internacional _ por ser um órgão multilateral_ e na imparcialidade da missão. Ademais, o Nation-Building é guiado por um mandato altamente negociado entre seus membros e que em nenhum momento pode ser visto como desrespeitando o princípio de não-intervenção e autodeterminação dos povos.

Sintetizando, de acordo com James DOBBIN ET AL (2004:243), as principais deficiências dos Nation-building empreendido pela ONU se devem ao fato de que a maioria das missões da ONU tem contingentes exíguos e pouco financiamento. Tropas militares comandadas pelas Nações Unidas são geralmente colocadas e retiradas em prazos irrealistas. A qualidade das tropas é desigual e a situação tem piorado na medida em que grande parte dos países tem seguido os Estados Unidos e negado comprometimento de suas forças armadas em missões da ONU. Os contingentes policiais e civis são de competências mistas e todos os componentes da missão chegam tarde.

A visão de Nation-Building norte-americana é, por sua vez, distinta. Primeiramente, devemos destacar que, diferente da ONU, os EUA não possuem uma estrutura permanente para a execução de desta tarefa[20]. Outro agravante para a situação é que a cada mudança na administração, dificilmente as lições das missões anteriores são assimiladas. Segundo Fareed ZAKARIA (2004:13), um dos principais erros de Bush em sua política externa foi sua regra ABC _ “Anything But Clinton.” Antes de assumir a Casa Branca, o então candidato George W. Bush afirmou que Eu não acredito que nossas tropas devem ser usadas para o que se cunhou de Nation-building. Eu creio que nossas tropas devem ser usadas para lutar e vencer guerras [21]. No entanto, após os atentados às Torres Gêmeas e ao Pentágono, o que era outrora opositor se transformou em um reconstrutor de estados, levando adiante duas grandes empreitadas, uma no Afeganistão e outra no Iraque.

Durante os anos noventa, principalmente durante a administração Clinton, os EUA fizeram uso da chamada doutrina Powell, caracterizada pelos grandes contingentes de soldados nas missões, procurando desencorajar qualquer chance de resistência. Já o governo Bush vem adotando o chamado Small Footprint, que consiste num numero mais reduzido de soldados, característico das missões da ONU[22].

Apesar das diferentes administrações, os EUA têm uma capacidade para mobilizar soldados e recursos muito maior que as Nações Unidas. Dentre os objetivos estadunidenses, podemos incluir a democratização do país, fato que não é obrigatório nas missões da ONU. Distanciando-se ainda mais das Nações Unidas, esforços unilaterais de Nation-Building são menos complexos para serem negociados, mas carecem de legitimidade internacional e podem ser vistos como intrusivos. Não podemos esquecer de incluir que após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, Nation-Building se tornou uma ferramenta na Guerra contra o Terrorismo, sendo esta a explicação dada pelo presidente Bush para justificar o emprego de recursos e soldados norte-americanos em territórios alhures.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta reavaliação do papel do estado no sistema internacional derivada da problemática dos Estados Falidos está, conforme AYERBE (2005), fortemente condicionada pelas convulsões que ameaçam a governabilidade nas periferias subdesenvolvidas, com seus desdobramentos problemáticos no capitalismo avançado. Dessa forma, procurar soluções que garantam a segurança internacional e o pleno funcionamento dos mercados é imperativo para o atual contexto

No entanto, os debates envolvendo Estados Falidos e Nation-Building são de difícil consenso. Primeiramente, e retomando uma discussão supracitada, dizer quais são os sintomas que nos capacitam a afirmar se este ou aquele estado está em colapso ou não é algo extremamente complexo. Muitas vezes, como no caso colombiano[23], o estado pode ter perdido parte do monopólio da violência legítima dentro de seu território, mas ainda é capaz de oferecer uma grande gama de bens públicos à sua população e ter um governo central funcionando, ainda que venha a ser contestado sistematicamente.

Um segundo problema é onde intervir, quando intervir e como intervir. Identificar se as operações de Nation-Building estão sendo conduzidas da maneira mais imparcial e transparente possível, isentas de interesses privados de determinados países também é uma questão ainda sem resposta. Evitar com que tais operações desemboquem em missões civilizadoras, como as do período colonial, é de fundamental importância para o sucesso destas empreitadas. De acordo com PARIS (2002 apud MESSARI 2004:298), assim como o colonialismo europeu fez há cem anos, hoje as operações de construção da paz transmitem normas de um comportamento aceitável ou civilizado para as questões domésticas dos Estados menos desenvolvidos [de forma que eles] globalizam [...] um modelo particular de governança doméstica _ democracia e livre mercado _ do centro para a periferia do sistema internacional.

Uma terceira questão é saber se as ditas operações de Nation-Building são realmente o melhor instrumental para se lidar com tal problemática. Visto que a maioria das operações se iniciou no pós-Guerra Fria e não estão plenamente consolidados, ainda é cedo para tirarmos conclusões de uma tarefa que demanda prazos maiores que meses ou mesmo anos para sua completa execução. Prazos inverossímeis para tal empreitada podem redundar na volta dos conflitos ou, ainda pior, diminuir cada vez mais as chances de se reconstruir o estado em questão. Ademais, quando o assunto abordado é a intervenção internacional, devemos refletir se as chances de êxito são maiores via ONU e/ou instituições regionais internacionais ou por meio da via unilateral ou mesmo de uma coalizão envolvendo um número reduzido de países.

Ainda que muitos tenham pregado o fim da história (FUKUYAMA, 1994), é fato que o Estado nacional ainda é o ator preponderante dentro das Relações Internacionais. Conforme Kenneth WALTZ (1999) coloca, a maior diferença entre a política internacional atual e a de outrora não é a interdependência econômica ou mesmo a globalização; consiste sim na crescente desigualdade entre os países, levando a uma distribuição de capacidades extremamente díspar dentro do sistema internacional.

Assim sendo, ao se defrontarem com este novo cenário no qual as ameaças partem de um estado falido, os países com maior capacidade, conforme o raciocínio de Waltz, devem refletir acerca das melhores respostas para o problema. A única alternativa inviável parece ser a ingerência e inoperância: se as grandes potências e as instituições de cunho multilateral optarem por deixarem à margem estes países, o resultado pode ser algo similar ao 11 de setembro de 2001, aos atentados terroristas na Espanha em 11 de março de 2004 e aos ataques de 07 de julho de 2005 em Londres. Ou mesmo algo pior. O fato é que nenhum país na atual conjuntura está incólume a esta ameaça.

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[1] É notório o caso da Organização das Nações Unidas, mais especificamente do Conselho de Segurança, o qual passou grande parte da Guerra Fria “travado”, devido ora aos vetos estadunidenses, ora aos vetos soviéticos. São exceções ao período, por exemplo, a intervenção no Congo, em 1960, e durante a Guerra da Coréia, na década de 50.

[2] Dentre os principais autores, podemos destacar três: Francis FUKUYAMA (O Fim da História e o Último Homem, 1994); John J. MEARSHEIMER (Back to the Future: Instability in Europe after the Cold War, 1990); e Samuel HUNTINGTON (O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial, 1996).

[3] Sobre intervenções humanitárias, ver Michael WALZER (Guerras Justas e Injustas, 2004), Nicholas WHEELER (Saving Strangers, 2001) e Alberto do AMARAL JÚNIOR (O Direito de Assistência Humanitária, 2003)

[4] Para maiores informações acerca da seletividade, ver Noam CHOMSKY (Uma Nova Geração Define o Limite, 2003) e J.A. LINDGREN ALVES (O Contrario dos Direitos Humanos, 2002).

[5]Para maiores esclarecimentos acerca das ameaças e das distintas estratégias de segurança norte-americana no pós-Guerra Fria, ver Michael BROWN ET AL (eds.), América´s Strategic Choices

[6] A Doutrina de Contenção foi formulada durante o período da Guerra Fria por George Kennan, consistindo no apoio à governos de outros países objetivando conter a expansão soviética, independentemente do tipo de regime político _ fosse ele democrático ou autoritário_ adotado. A Dissuasão procurava impedir o expansionismo militar soviético por meio da ameaça nuclear.

[7] Haja vista os choques do petróleo (1973/1978), passando pela crise da dívida (1982) e chegando até as recentes crises econômicas da década de noventa, como na Rússia (1998), por exemplo.

[8] Esta inflexão se faz evidente no comportamento dos EUA. Após os atentados de 11 de setembro, a administração Bush formulou uma nova estratégia de defesa decorrente das novas ameaças para a segurança do país. Maiores informações em Érica Simone Almeida RESENDE (Da Contenção à Prevenção: Reflexões sobre a legitimidade da estratégia de segurança nacional norte-americana do Pós-Guerra Fria; dissertação de mestrado, DCP/USP, 2005).

[9] O melhor exemplo segundo o autor seria a resistência timorense frente ao governo da Indonésia (1975-1999).

[10] O conflito no Sri Lanka envolvendo o governo central e o grupo separatisra Liberation Tigers of Tamil Eelam é um dos exemplos citados (1983-1997).

[11] As intervenções norte-americanas no Iraque (2003) e Afeganistão (2001) são os melhores exemplos contemporâneos.

[12] Para indicar estes sintomas, ROTBERG faz uso de índices como o IDH, PIB per capita, Relatórios da Transparência Internacional sobre Corrupção e o Freedom House´s Freedom of the World Report.

[13] Atualmente, além dos termos supracitados, nos deparamos com uma proliferação de nomenclaturas que procuram dar conta da situação destes estados. O Banco Mundial criou o termo LICUS (Lower-income countries under stress), além de existirem nomes como Estados Fraturados e Estados pária. No entanto, é extremamente difícil cunhar um termo capaz de englobar toda uma realidade histórica muito específica. Dessa forma, doravante, optaremos apenas pelo termo Estados Falidos.

[14] A Rand Corporation foi criada no final da Segunda Guerra Mundial objetivando assessorar a Força Aérea estadunidense em temas relacionados a pensamento estratégico e sistemas de armamentos.

[15] A idéia de que a Alemanha e Japão foram casos de Nation-Building é muito contestada, visto que ambos os países já tinham experiências prévias com democracia e que não existem grupos étnicos heterogêneos em seu território. Logo, podem ser vistos apenas como casos de reconstrução econômica. Além disso, podem também ser entendidos como fazendo parte da estratégia de Washington para impedir a URSS de se expandir para a Europa Ocidental e Ásia.

[16] No dia 14 de julho de 1960, atuando de forma rápida, o Conselho de Segurança aprovou a primeira de uma série de resoluções autorizando o envio de forças militares lideradas pela ONU para ajudar a República do Congo a restaurar a ordem dentro de seu território e terminar com a rebelião na província de Katanga.

[17] É notório a importância de órgãos como o Alto Comissariado das Nações Unidas para Regufiados (ACNUR) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) nas missões. O maior papel político da instituição pode ser ilustrado pela Administração de Transição das Nações Unidas no Timor Leste (UNTAET).

[18] Para maiores informações, ver versão final do relatório, emitido em 2000, dentro das resoluções da Assembléia Geral: A/55/305

[19] São 4 as etapas das operações de paz da ONU. O Peacemaking consiste nas iniciativas diplomáticas após o começo do conflito, almejando um cessar-fogo. O Peace-keeping é a presença da ONU em campo com o consentimento das partes envolvidas para implementação dos acordos, entrega de assistência humanitária, entre outras ações. O Peace enforcement pode ser necessário caso as demais tentativas falhem. Inclui o uso da força armada para manter a ordem e restaurar a paz e segurança internacional, seguindo ordens do Conselho de Segurança. Finalmente, Peace-building consiste na construção da paz e na reconciliação entre as partes beligerantes, por meio da viabilização de instituições e infra-estrutura no país.

[20] Enquanto a ONU estabeleceu uma unidade que elabora e estuda as melhores maneiras de levar a cabo estas operações em 1995, os o Departamento de Estado dos EUA criou uma instância semelhante apenas em 2004. Todavia, desde 1961 os EUA possuem a US Agency for International Development (USAID), cuja principal tarefa é organizar e administrar programas de assistência econômica para outros países.

[21] Discurso proferido por George W. Bush, 11 de outubro de 2000.

[22] Para melhor exemplificação, no Haiti, durante os anos de 1994-1996, os EUA enviaram cerca de 21.000 soldados, enquanto que no Afeganistão o montante alcançou o mesmo número, só que divididos entre soldados da OTAN. O Iraque, apesar dos 175.000 soldados, necessitaria de muito mais pois, segundo James Dobbin, a relação soldados por habitantes é insuficiente para a pacificação do país.

[23] Há mais de 40 anos, a Colômbia enfrenta o problema das guerrilhas, principalmente as FARC, que controlam uma porção do território colombiano.

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