INFÂNCIA E GÊNERO: O QUE SE APRENDE NOS FILMES …



INFÂNCIA E GÊNERO: O QUE SE APRENDE NOS FILMES INFANTIS?

Ruth Ramos Sabat (UFRGS)

Como as normas heterossexuais são construídas nos filmes infantis de animação? Quais os mecanismos utilizados nas narrativas fílmicas para reproduzir a heterossexualidade como norma social? Como o outro é representado no processo de produção de identidades de gênero e sexuais normalizantes?

Tais perguntas servirão como balizas para este artigo, pois considero-as produtivas na medida em que nos permitem pensar como alguns artefatos culturais, tais como os filmes infantis de animação, estão constituindo a infância, considerando que freqüentemente, as crianças assistem a esses filmes inúmeras vezes – seja em casa, no cinema ou na própria escola – decorando as músicas, os gestos, os diálogos.

É dentro desse contexto que se produz um currículo cultural que constitui sujeitos, ensina comportamentos, hábitos e atitudes. E é a partir desse contexto que escrevo este artigo: tomando o filme Mulan, como um artefato cultural que opera como meio de representação do eu e do outro, como forma de educar e governar sujeitos, como um meio de regular condutas. Tal representação não traz apenas marcas concretas, mas também subjetivas, envolvendo ética, sentimentos, qualidades pessoais. Ao analisar as representações do feminino, é imprescindível observar também de que formas o feio, o estranho, o abjeto é representado, considerando a indefinível fronteira entre esses elementos e seus opostos, ou seja, o belo, o “normal”, qualidades freqüentemente atribuídas aos heróis ou às heroínas.

Nesse sentido, meu objetivo é analisar de que formas a conduta heterossexual está sendo re/produzida nos filmes infantis de animação, na medida em que eles tornam possível educar e regular os sujeitos (Donald, 1999). Busco observar de que forma os filmes infantis de animação constróem representações de gênero e de sexualidade, a partir do outro como parâmetro de normalidade. Portanto, ao analisar as representações do feminino, estarei também analisando as representações do outro no filme Mulan, como o outro da heroína, do feminino. Para isso tomo como suporte o conceito de performatividade (Culler, 1999; Butler, 1999); e de representação (Silva, 1999). Utilizo tais conceitos – inseridos na teoria queer e na perspectiva dos Estudos Culturais, respectivamente – para analisar a construção da heterossexualidade como norma social.

No filme Mulan, dos estúdios Disney (1999), o pai de Mulan, a heroína, é convocado a se alistar no exército que vai lutar contra os Hunos. Como seu pai está velho e doente, Mulan disfarça-se de homem e vai para a batalha com o objetivo de preservar a honra da família. Nessa narrativa, o outro com o qual a personagem tem que se defrontar, se apresenta de duas formas: por um lado através dos Hunos, seus inimigos; por outro lado, através de seus próprios companheiros homens do exército.

Inicialmente, mostro a importância que tem a visualidade na cultura ocidental, localizando o cinema e os filmes como artefatos culturais que utilizam mecanismos educativos e até mesmo pedagógicos. Em seguida, apresento alguns dos tópicos fundamentais da teoria queer, utilizando especificamente os argumentos da filósofa americana Judith Butler (1999), relacionados à performatividade. Na parte final do artigo, apresento uma análise do filme Mulan, utilizando a teoria performativa como ferramenta analítica.

I – O cinema como cultura visual

A cultura é produzida, entre outras coisas, pela visão; ao mesmo tempo o ato de ver alguma coisa é já, ele mesmo, produtor de cultura. A experiência visual no mundo contemporâneo tem caminhado muito próxima da construção do real; de um real que nem sempre é racional, como no caso da presença constante de monstros e bruxas nas histórias infantis. São os novos problemas identificados no ato de ver que estão no centro de uma perspectiva pós-moderna. Isso não significa minimizar a importância da textualidade, mas sim ampliá-la ou torná-la elemento importante na cultura visual. A imagem, e tudo o mais relacionado à visão, constitui também o texto escrito sobre o social, sobre sujeitos históricos.[1]

Isso não significa, de modo algum, assumir a centralidade da visão, mas sim problematizá-la considerando sua relação com outros sentidos e com outras formas de representação. O visual, as imagens, são muito mais que estratégias ou recursos para enriquecer o texto escrito. Mirzoeff (1998) afirma que “[o visual] oferece uma proximidade dos sentidos que não pode ser rivalizada pela mídia impressa: ele é o próprio elemento que torna a visualidade de todos os tipos diferente dos textos”. (p.9). Essa sensação imediata que irrompe no momento em que observamos um evento suscita sentimentos como raiva, admiração, prazer, horror. Ou seja, podemos identificar o cinema como um dos mecanismos mais importantes na produção de uma cultura visual e que funciona, basicamente, por meio de um processo de interação com o público espectador suscitando os mais diferentes tipos de reações.

Até a primeira metade deste século, o sucesso alcançado pelos filmes de longa-metragem era devido exclusivamente aos seus próprios méritos, ao contrário de hoje, quando os longas são apresentados acompanhados de diferentes artigos produzidos para serem consumidos simultaneamente e contribuindo diretamente para o sucesso do filme. No caso dos filmes infantis de animação os artigos vão desde camisetas, sapatos, jogos eletrônicos, até grande número de artigos escolares como cadernos, lancheiras, mochilas.

Atualmente, o filme é apenas um dos produtos que compõem um agregado de produtos formando um pacote multimídia de consumo cultural que funciona dentro da lógica capitalista do mundo globalizado. Desse modo, os custos da produção podem ser garantidos não apenas pela bilheteria do cinema, mas sim por uma ampla estratégia publicitária e de marketing. Uma das conseqüências é que o processo de significação é ampliado envolvendo outros espaços além da sala de cinema. Um exemplo interessante foi o que ocorreu com o filme Os caça-fantasmas (Ghostbusters) do qual o logotipo foi divulgado muito antes do seu lançamento, através de camisetas, bonés e até mesmo da trilha sonora; o filme entrou aí apenas como mais um dos produtos a serem vendidos (Turner, 1997). Mais recentemente, com o lançamento do filme Tigrão, os estúdios Disney em parceria com a mega rede de sanduíches McDonald´s comercializou 2 milhões de personagens do filme em forma de bonecos para atender a demanda. Segundo Turner (1997), ultimamente muitos orçamentos de produção de filmes têm sido menores do que a verba destinada para sua publicidade.

Os desenhos animados, no formato de filmes infantis, têm sido produzidos em números cada vez maiores, pelos grandes estúdios cinematográficos. Longe de serem simples mecanismos de diversão, tais filmes podem ser considerados artefatos que exercem uma determinada pedagogia cultural. É a partir desta perspectiva que busco analisá-los como espaços de constituição de identidades de gênero e sexuais, e como construtores de uma heterossexualidade normativa que produz sujeitos da educação. Freqüentemente, os filmes infantis produzidos constróem as diferenças de gênero e sexuais de forma “convencional”, determinando a construção hierárquica do feminino e do masculino como definitivas e imutáveis.

Tais filmes são dirigidos mais específicamente a uma faixa etária determinada e neles o que podemos observar é uma série de narrativas em torno de comportamentos e valores que, entre outras coisas, estão produzindo determinados sujeitos de gênero. É nesse sentido que se torna importante estarmos atentas/os para as formas através das quais as representações de gênero têm sido reafirmadas na sociedade ocidental contemporânea, contribuindo para educar sujeitos e normalizar condutas.

II - Atos que constituem o sujeito

Se a visualidade ocupa um lugar de destaque na cultura contemporânea, o mesmo podemos dizer da linguagem como elemento imprescindível no processo de representação cultural. Considero, pois, produtivo pensar em termos de possíveis cruzamentos entre a noção de representação e de ato performativo; e, a partir daí, analisar como essas duas noções operam para produzir o outro.

As noções de representação e de ato performativo surgem ambas no contexto da “virada lingüística”. Representar aqui é nomear a realidade e ao mesmo tempo constituí-la, a partir de significados que são atribuídos a eventos, a objetos, a sentimentos. Assim sendo, o ato mesmo de representar significa constituir realidades através da linguagem. Tudo o que é nomeado é feito a partir de um contexto em que tal nomeação faça sentido e, desse modo, nomear/representar, torna-se imediatamente algo material. (Silva, 1999).

Quanto à performatividade, este é um conceito que se apoia na teoria dos atos de fala de John Austin (1990), uma expressão performativa realiza algo, no momento de seu proferimento, desde que dita nas circunstâncias apropriadas. Judith Butler[2] (apud Culler, 1999), propõe considerar o gênero como performativo, pelo fato de ele não ser uma afirmação ou uma negação, mas sim uma construção que se dá através da repetição de atos que tenham alguma correspondência com as normas sociais e culturais. Portanto, um gênero é um modo de subjetivação dos sujeitos, pois do mesmo modo, "o 'eu' nem precede nem se segue ao processo de atribuição de gênero, mas surge apenas no interior de e como matriz das próprias relações de gênero" (Butler apud Culler, 1999, p.103).

O gênero dos sujeitos, portanto, é constituído em meio a esta operação, e como tal ele precisa ser constantemente reinvocado. O que não se pode esquecer é que esse processo implica reafirmar atribuições específicas aos indivíduos e, ao mesmo tempo, subverter tais atribuições. Ou seja, o gênero e o "eu" dos sujeitos são constituídos não pelo que são em uma condição preexistente, mas sim pela forma como são nomeados em diferentes momentos de sua existência. Culler (idem, p. 103) apresenta o seguinte exemplo:

Desse ponto de vista, a elocução 'É uma menina!' ou 'É um menino!' pela qual um bebê é, tradicionalmente, saudado quando vem ao mundo, é menos uma elocução constativa (verdadeira ou falsa de acordo com a situação) do que a primeira de uma longa série de performativas que criam o sujeito cuja chegada anunciam.

O questionamento da heterossexualidade como sexualidade normativa tem encontrado na teoria queer[3] seu espaço mais forte de debates. Na teoria feminista a palavra “queer” remete de imediato a questões sobre homossexualidade e o que se conhece hoje como teoria queer tem sido afirmada como área de estudos desde 1991. Seu surgimento ocorre a partir da união dos estudos gays com os estudos lésbicos, estes reconhecidos como campos disciplinares desde a década de 80, quando emergem dos estudos feministas. A teoria queer vem radicalizar a idéia de que também a sexualidade é uma construção social. Segundo Deborah Britzman (idem, p. 74):

Nenhuma identidade sexual —mesmo a mais normativa— é automática, autêntica, facilmente assumida; nenhuma identidade sexual existe sem negociação ou construção. Não existe, de um lado, uma identidade heterossexual lá fora, pronta, acabada, esperando para ser assumida e, de outro, uma identidade homossexual instável, que deve se virar sozinha. [Grifos da autora].

A concepção da heterossexualidade como apenas mais uma das sexualidades construídas socialmente, é o ponto de partida da teorização queer; isso significa dizer, por outro lado, que a homossexualidade, a bissexualidade – e as várias outras formas através das quais os sujeitos vivem seus desejos – também são problematizadas pela teoria queer.[4] Ao fim e ao cabo, o que está em jogo nesta perspectiva teórica é o questionamento de qualquer tipo de rotulação de identidades sexuais ou de gênero, sob pena de fixar algo que não deve – ou não pode – ser fixado.

Os códigos de heterossexualidade, envolvem negociar e compartilhar significados nas próprias relações sociais. Compreender a identidade heterossexual como re/produzindo-se permanentemente, significa aceitar que a heterossexualidade não é prazerosa e tranqüila sempre. A impossibilidade de pôr em xeque algumas normas e signos, está ligada ao caráter supostamente natural da heterossexualidade que prescinde de um questionamento de si própria como problemática. É precisamente em meio a esses discursos que são produzidas representações hegemônicas de heterossexualidade como a sexualidade “normal”.

De maneira mais ampla, é em torno dos argumentos acima que se desenvolvem as discussões sobre gênero e sexualidade, a maioria compartilhando da separação no que diz respeito a sexo (homem ou mulher), a gênero (masculino ou feminino) e à sexualidade (homo ou heterossexual).

Desestabilizando esse quadro que, em alguns momentos, parece ser estável ou tranqüilo Judith Butler, uma das principais teóricas queer, vai pensar a identidade, o corpo e o sujeito desde um mesmo eixo analítico: em termos de uma teoria performativa. Butler (1999), argumenta que o sexo, assim como o gênero, é materializado através de práticas discursivas, de normas regulatórias que não são nunca finalizadas, pois permanecem num processo constante de reafirmação. Tal processo é indispensável para garantir a hegemonia das leis regulatórias, sob pena de fragilizar e abrir espaços para contestação de tais leis. Nesse sentido, a utilização do termo queer para nomear esse campo de estudos, funciona como uma estratégia política de reafirmação de um significado na forma contrária como tem sido utilizado habitualmente.

III – Atos que subvertem o sujeito

No filme Mulan observamos a permanente reiteração performativa em função da construção de sua suposta masculinidade como um modo de salvar a honra da família. Tal necessidade afirma-se desde o início, quando em meio a uma discussão entre os ancestrais sobre uma forma de salvar Mulan, que foi se alistar no exército disfarçada de homem, um deles diz: sua bisneta tinha que ser transformista!. Declara-se, então, a mudança de um gênero para outro; uma transformação que precisa de alguns artifícios para se concretizar.

Mulan, então, passa por um processo de construção de uma nova identidade. Ao ser rejeitada como candidata a noiva, ela canta: quem é que está aqui junto a mim/ em meu ser/ é a minha imagem/ eu não sei dizer/ vou desvendar quem sou/ eu vou lembrar/ quando a imagem de quem sou/ se revelar. Essa busca de Mulan anuncia sua transformação subjetiva, no momento em que percebe que não se sairá bem como esposa perfeita; transformação esta que mais tarde deverá ter marcas corporais e de atitudes, quando ela assume um "comportamento" masculino. A construção da personagem representa a oscilação permanente entre qualidades consideradas femininas e outras consideradas masculinas, através de um sucessivo número de nomeações.

O dragão Mushu (um ser enviado pelos ancestrais para proteger Mulan) ensina-a como agir: é o seguinte: tem que andar que nem homem, levanta o queixo, ombro pra trás, separa os pés, ergue a cabeça... Ao avistar um grupo de soldados, um mexendo nos pés, outro com o dedo no nariz, ela diz isso é uma nojeira!, e o dragão responde: não, são homens e você vai ter que ser igual a eles. Em outro momento, enquanto toma banho no lago, Mulan (agora chamada Ping) justifica-se: Só porque pareço com um homem não quer dizer que tenha que cheirar como um.

Retomo aqui a intenção inicial de pensar possíveis cruzamentos entre a noção de representação e de linguagem performativa: acredito que falar em uma não exclui a outra, pelo fato de que ambas implicam ações que operam para constituir o real. No caso do cinema, existe uma complementação na qual a imagem junto com a fala constrói representações. A imagem, junto com a linguagem tem uma função performativa que constrói algo ao mesmo tempo em que representa e age sobre um sujeito, no caso a personagem, nomeando-o.

Nesse sentido, é preciso lembrar que todos os esforços de Mulan estão canalizados para um objetivo maior: salvar a honra da família, como o representante "masculino" que vai defender seu país na batalha contra os Hunos. Desse modo, só podemos identificá-la como heroína no momento em que a confrontamos com o outro. Entendo que o outro aparece sob duas formas: como os Hunos e como os homens, seus companheiros de exército, tal como estão ali representados.

Como bons vilãos, os Hunos são representados imageticamente em cores escuras, traços pontiagudos, vozes firmes e pausadas, corpos fortes e assustadores. As cores do filme, até então claras e alegres, passam a sombrias quando a cena concentra-se no inimigo. Os vilãos têm poucas aparições e poucos diálogos. Sua presença forte afirma pela imagem o contraste entre as qualidades desejáveis de um herói e as indesejáveis de seu outro. O filme concentra sua atenção na representação de gênero, isto é, volta-se mais diretamente para marcar diferenças entre o feminino e o masculino de sujeitos que estão "do mesmo lado", ou seja, entre os que estão lutando pela libertação do Império Chinês. Sendo Mulan a heroína, ela é apresentada como o modelo a ser seguido, enquanto que o outro está representado pelos soldados que lutam com ela. Ser um homem significa não apenas ser forte, mas também ser grosseiro, mal educado e violento, características que ela precisa adotar para ser reconhecida e respeitada no exército.

É possível ler, então, essa narrativa de dois modos: por um lado, existe a reiteração constante das qualidades que deve ter uma mulher; por outro lado, há a representação do homem como o ser abjeto e, nesse sentido, a performativa presente no filme pode funcionar como reiteração e subversão ao mesmo tempo. Butler (1999) afirma que, no momento em que é estabelecida uma matriz de gênero adotada como normal, tudo o que se encontra fora dela é considerado abjeto. Segundo a autora:

O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas "inóspitas" e "inabitáveis" da vida social que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do "inabitável" é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito. Essa zona de inabitabilidade constitui o limite definidor do domínio do sujeito; ela constitui aquele local de temida identificação contra o qual ( e em virtude do qual ( o domínio do sujeito circunscreverá sua própria reivindicação de direito à autonomia e à vida. Neste sentido, pois, o sujeito é constituído através da força da exclusão e da abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, "dentro" do sujeito, como seu próprio e fundante repúdio. (1999, p.155-6).

Mulan penetra nessa zona "inabitável" em função de um objetivo maior que é salvar a honra da família, mas ao mesmo tempo zela pelas qualidades que lhe garantem continuar sendo uma mulher. É possível, então, analisar os atos performativos no filme como algo que reitera/subverte/ reitera a representação feminina. Mulan, ao passar pela experiência de tornar-se um "homem", identifica o outro, aquele sujeito como alguém que não quer ser. Ela sai de casa, vai para o acampamento, passa por treinamentos e, finalmente, no campo de batalha, torna-se responsável pela vitória. Entretanto, em seu retorno para casa, Mulan assume seu comportamento inicial, seu papel de filha, e termina sendo pedida em casamento pelo comandante da tropa.

O comportamento inicial ao qual me refiro é mostrado no início do filme, quando Mulan prepara-se para encontrar a casamenteira[5], ela relembra quais as qualidades de uma esposa desejável: Calma e reservada, graciosa e delicada, educada, refinada, equilibrada e pontual... Sua mãe e sua avó cantam ainda: A moça vai trazer a grande honra ao seu lar/ achando um bom par/ e com ele se casar./ Mas terá que ser bem calma/ obediente, com bons modos e com muito amor/ Traz mais honra a todas nós. Entretanto, todas essas qualidade deverão ser esquecidas no contato com os soldados. Estes, recrutados sem nenhum critério, apresentam tipos físicos completamente fora dos padrões determinados socialmente, a exceção do comandante Shang, um jovem forte e musculoso, que com determinação e disciplina, consegue preparar os demais soldados para a batalha.

Inicialmente, pensava em analisar o outro representado pela figura dos Hunos, do inimigo; mas a partir do momento em que comecei a observar o filme, percebi que os próprios homens, companheiros de Mulan no exército, desempenham um papel muito mais forte, em termos de qualidades que contribuem para construir o "eu" de Mulan. A masculinidade representada carrega um alto grau de abjeção: os homens são grosseiros, sujos e violentos. O tempo todo, Mulan luta para não abdicar de suas qualidades "femininas". Enquanto toma banho, contra a vontade do dragão, seu protetor, este sai resmungando para si próprio, imitando Mulan: Vá vigiar enquanto eu estrago nosso segredo com essa mania de mulherzinha: higiene!

Segue-se, então, uma série de performativas que partem de um sujeito que existe ali em minoria, e que reitera uma representação de masculinidade com algo abjeto: ao ver um homem batendo em outro, Mulan diz: acho que não vou conseguir e o dragão encoraja-a: é só pegar o jeito, seja agressiva como essa cara aí. Vamos! Dê um soco nele, homem gosta disso. Em outro momento, o comandante vai até Mulan e diz que não quer confusão no acampamento e ela, com voz forte e trejeitos firmes, diz: desculpe a bagunça mas é a masculinidade. Dá vontade de quebrar as coisas, arrotar, falar palavrão... No primeiro dia no acampamento, Mulan acorda para treinar junto com os outros soldados e o dragão lhe diz: vamos! Grita! Me assusta! Bota esse machão pra fora! Já nas fileiras do exército, o comandante dá as primeiras instruções: soldados! Vão se apresentar em ordem e silêncio todas as manhãs! Quem desobedecer será punido. Tal procedimento é semelhante ao que a esposa deve ter ao casar; enquanto os soldados devem estar subordinados ao comandante, a mulher deve estar subordinada ao marido. É um procedimento que funciona, não apenas como modo de subjetivação do sujeito, como também de educação para um contexto sociocultural determinado, através do elenco de uma série de procedimentos que compõe um currículo específico.

Desse modo, ocorre simultaneamente um processo de subjetivação que reafirma a feminilidade de Mulan e que rejeita a masculinidade vigente, contribuindo para reafirmar a posição que ela ocupa naquele contexto de filha exemplar criada para o casamento. Para Butler, esse domínio da abjeção é fundamental na constituição da identidade. Segundo a autora:

A formação de um sujeito exige uma identificação com o fantasma normativo do sexo: essa identificação ocorre através de um repúdio que produz um domínio de abjeção, um repúdio sem o qual o sujeito não pode emergir. Trata-se de um repúdio que cria a valência da "abjeção" ( e seu status para o sujeito ( como um espectro ameaçador. Além disso, a materialização de um dado sexo diz respeito, centralmente, à regulação de práticas identificatórias, de forma que a identificação com a abjeção do sexo será persistentemente negada. (1999, p. 156)

A experiência pela qual passa a heroína, é permanentemente atravessada pela indesejada identificação com o sexo oposto, materializada em práticas abjetas. Essa desidentificação com as normas regulatórias pelas quais a diferença sexual é materializada (Butler, idem), ao meu ver trabalham muito mais para reforçar a representação de feminilidade que é adotada pelos modelos hegemônicos de pensamento do que para subvertê-las. A feminilidade aparece aqui como o "eu" e a masculinidade como um domínio abjeto. Se, por um lado, essa prática é subversiva, por outro, ela reitera exatamente aquelas características femininas que servem para construir a feminilidade como um dos domínios de abjeção, em relação ao modelo regulatório que é a masculinidade: doçura, fragilidade, submissão.

O sexo de Mulan é revelado após a batalha contra os Hunos na qual ela é ferida. A partir deste momento a forma como ela passa a ser vista por todos muda radicalmente muito menos por ela ter se passado por homem, e muito mais por ela ser uma mulher. Isso fica bem claro nas cenas finais do filme quando o conselheiro imperial, indignado com os acontecimentos, procura Mulan que é protegida por Shang. O conselheiro, então, ordena: Saiam daí! Essa criatura não é digna de proteção. Shang argumenta: É uma heroína! E o conselheiro afirma: Uma mulher? Nunca será digna de nada!

Mas os esforços de Mulan são reconhecidos pelo imperador e ela não somente é condecorada, como também é nomeada conselheira imperial, embora recuse o cargo preferindo voltar para sua família. De volta ao lar, Shang vai ao encontro de Mulan e fica implícito, no filme, um “final feliz”. A rebeldia de Mulan serve, ao final, para que ela alcance o seu objetivo maior: casar e trazer mais honra a sua família.

O filme apresenta uma oscilação constante entre o ato de subverter e o ato de reiterar um sujeito a partir de seu sexo. Quando o sexo de Mulan é descoberto, ela confessa a Mushu que, na verdade, havia feito aquilo tudo por ela mesma, e não por seu pai, como uma forma de provar que poderia fazer bem alguma coisa – uma clara referência ao seu fracasso inicial diante da casamenteira. É, portanto, inevitável que após ter passado por toda a experiência de estar no exército, entre homens e tendo que se comportar como um deles, a Mulan que retorna não é a mesma que partiu.

Referências bibliográficas

AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. 136p.

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 153-172.

DONALD, James. Pedagogia dos monstros: o que está em jogo nos filmes de vampiro? In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Pedagogia dos monstros: prazeres da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 105-140.

MIRZOEFF, Nicholas. What is visual culture? In: MIRZOEFF, Nicholas. (Org.). Visual culture reader. Londres: Routledge, 1998. p. 3-13.

SILVA, Tomaz Tadeu da. O currículo como prática de significação. In: O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 07-30.

TURNER, Graemer. O cinema como prática social. São Paulo: Summus, 1997. 174 pp.

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[1] É preciso dizer que a relação texto/imagem está longe de ser algo tranqüilo de ambos os lados: assim como o texto não consegue decodificar plenamente a imagem, também esta reclama mais instrumentos para traduzir o texto escrito. Acredito que esse aspecto da relação texto/imagem pode ser melhor compreendido se pensamos em termos de tradução de um idioma para outro: não existe tradução completa e perfeita. Pensemos, então, texto e imagem como idiomas diferentes.

[2] É preciso dizer que Butler não adota a noção de performatividade de Austin, de forma total e inquestionável; entretanto, suas restrições não cabem ser expostas aqui. (ver Culler, 1999)

[3] Em português a palavra queer significa “estranho”, “esquisito”. Em inglês é uma gíria usada, de forma pejorativa, para fazer referência aos homossexuais masculinos, que poderia ser traduzida como “bicha”.

[4] Neste artigo limito minha análise à construção da heterossexualidade normativa.

[5] A função da casamenteira é testar as candidatas a noiva através de perguntas sobre as funções de uma esposa perfeita, observar o zelo pela tradição e avaliar seu desempenho nas tarefas domésticas.

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