O INCENSO E O ENXOFRE



O INCENSO E O ENXOFRE

Luiz Antônio Barreto

O INCENSO E O ENXOFRE

(Notas prévias para uma Teoria da Cultura Brasileira – 3ª Série)

2006

© by Luiz Antonio Barreto

Direitos reservados à Sociedade

Editorial de Sergipe

Av. Ivo do Prado, 160

ARACAJU – SERGIPE

Tel/Fax (0xx79) 32137323

e-mail: institutotobiasbarreto@.br

Outros livros do autor,

editados pela Sociedade

Editorial de Sergipe:

Tobias Barreto, 1994

Um Novo Entendimento do Folclore, 2º edição, 1997

Cultura: Um Roteiro de Alusões, 1994

Apologia de Deus e outros Escritos Sergipanos, 1994

Sem Fé, Sem Lei, Sem Rei, 1996

Os Vassalos do Rei, 1998

Folclore – Invenção e Comunicação, 2005

BARRETO, Luiz Antonio – 1944

O INCENSO E O ENXOFRE. Sociedade

Editorial de Sergipe,

Páginas. Aracaju, 1999

I. Literatura Brasileira. Ensaio

II. Título

CDD 869.9

CDD869.0 (81)

Nota Prévia

O Incenso e o Enxofre dá continuidade ao esforço ensaístico de revelar, aos olhos da atualidade, a cultura brasileira, decodificando-a e colocando-a ao alcance de qualquer ouvido, como a água, no dizer metafórico de José Sampaio, poeta de Sergipe.

O livro representa a terceira série dos pequenos ensaios sobre temas da história e da cultura do Brasil, destinados à elaboração de uma teoria, como Sem fé, Sem Lei, Sem Rei e Os Vassalos do Rei, respectivamente primeira e segunda série.

Os temas tratados convergem, neste pequeno volume, para a questão antiga do bem e do mal, nas suas múltiplas faces, desdobramentos e implicações na vida social dos brasileiros. Há, também, uma reflexão sobre a cultura popular, com seus arquétipos, variantes e invariantes, valores, sentidos, que fazem da experiência um capítulo essencial da história humana.

O Incenso e o Enxofre refaz, a partir de episódios, repertórios, situações polarizadas, o itinerário de um povo que teve a terra como o Paraíso, e a vida como a oportunidade de redimir-se do pecado, na utopia cristianizadora ou, no mínimo, catolicizante. A gente pura, expurgada dos delitos do corpo e da alma, muitas vezes manteve próxima a imagem opositora do Diabo, viajante das naus descobridoras, personagem simbólica nos desafios dos embates da fé.

É, portanto, no contraditório que se poderá compreender o presente, contextualizando, como um pêndulo ou uma gangorra, cujo sentido de alteração é mais que uma decisão dominante, é um processo, sem heroísmo.

Preparado em 1999, este livro propõe a formação de uma consciência pedagógica em torno da cultura brasileira.

LAB

Sumário

Literatura Oral: Um mundo de Cultura

Natureza e Cultura no Brasil

Teoria do Reisado

Relações Culturais do Poder

CANUDOS: A Cocanha Sertaneja

O Encontro de Lampeão com o Padre

Literatura Oral: Um Mundo de Cultura

A Danielle Rodrigues

O vasto repertório brasileiro de cultura popular ou folclórica pode ser também percorrido pela intenção catequética, conservadora, redutora, adotada pelos colonizadores e mantida intocada pelo tempo até os dias atuais. A cultura popular é um documento. Um complemento, original e permanente documento, que funciona como armadura coletiva, a proteger os feitos e as ações populares, no contexto das sociedades.

LITERATURA ORAL: UM MUNDO DE CULTURA *

*Texto de conferência na Bienal do Livro Infanto-Juvenil de São Paulo.

A oralidade tem sido, em todo o mundo, grande parceira da história. Uma completa a outra. A história, como a ciência do homem, condutora do destino humano, produzindo uma experiência, nutre a cultura. Cícero nomina a história como “Luz da Verdade, Testemunho dos Tempos, Mestra da Vida, Mensageira da Antigüidade”.

Cada povo soube guardar, na memória do tempo, os seus fatos históricos, nas versões emocionadas do heroísmo, dos feitos gloriosos, nos embates pela vitória, ou nas derrotas tristes das guerras. Cada fato estará revestido, então, de um sentimento profundo, tão íntimo quanto social, na relação da pessoa com o grupo, da personagem com a cena da vida.

Foi comum, a todos os povos, catalogar as suas aventuras para que servissem à educação dos mais novos, e de exortação aos governantes, pela clareza dos exemplos. As grandes coleções de estórias, como o Panchatranta, ou de poemas, como Os Vedas, O Mahabharata, O Ramaiana, parecem confirmar o uso das Purunas ou antigüidades como princípios pedagógicos, realimentando a sobrevivência, das castas inferiores.

Talvez mesmo por isso Splengler tenha feito da cultura, e não dos homens e nem dos povos, a protagonista da história, como se bastasse dizer: Era uma vez...

A oralidade tem, assim, um vínculo completo com o passado dos povos e funciona para manter a tradição. Foi com ela que os povos criaram ou prolongaram a vida das orações e dos cantos, para a exaltação das forças divinas, como com ela glorificaram as façanhas famosas do passado.

É certo que a escrita alargou o campo da memória, mas ainda hoje a oralidade e a escritura cumprem papéis essenciais, com os quais alimentam e realimentam as bases da sobrevivência dos povos e das sociedades. Considerada como fundamento da civilização superior, a escritura tem sido a arte civilizatória por excelência, dinamizando nos presentes os repertórios dos passados, como meio visual de comunicação.

Na longa trajetória humana em busca das expressões de linguagem, as figuras e as cores dos pictogramas, os signos dos ideogramas, os sinais cuneiformes, os sons dos fonogramas, que levaram aos alfabetos cumpriram uma espécie de rito de passagem, valorizando o oral, em todas as suas manifestações, fixando as coleções que a escritura trouxe aos dias atuais.

Não é tarefa fácil separar, pela medida da importância, o oral e o escrito na história dos povos, nem de suas culturas. O domínio da escrita não impõe, e nem significa, uma ruptura definitiva e completa com o passado da pessoa, a tradição herdada, o contexto social, nem com o conhecimento oral. As duas formas: A Oral e a Escrita, se compõem como um conjunto interativo, que alonga a vigência de toda a produção cultural do povo.

Em algumas sociedades africanas era comum ouvir-se, quando morria um velho, que morria uma biblioteca. Porque o conhecimento, tanto o de natureza histórica, como o das relações jurídicas, sobrevivia acomodado na cabeça das pessoas, como referência à qual era possível recorrer, sempre que necessário. A oralidade possui, então, a força da herança, que não se altera com a simples troca da vigência moral dos fatos. A oralidade conserva, como reforço à Pedagogia da Exemplaridade, os valores, nos quais e com os quais os grupos sociais moldam e mantém as suas relações de interesses.

A escritura estabeleceu um conjunto de formas novas de ação preservadora dos repertórios, guiando-os mais objetivamente para os fins aos quais deveriam estar destinados. Assim, a Igreja Católica, que se valia da oralidade, fez a impressão da Bíblia e ampliou o domínio doutrinário da fé, ampliando o poder do seu magistério moral. E fez mais: reelaborou, para uso catequético, a herança oral dos povos antigos.

A cultura dos povos pode, sem maiores prejuízos, ter um marco divisor na Idade Média, aquele longo período do Século IXº ao Século XV, e que cobre desde a Monarquia de Carlos Magno, Rei de França, até, praticamente, as novas descobertas dos caminhos do grande mar oceano, as Navegações de Espanha e de Portugal, dilatando as fronteiras do mundo.

Para o cotejo dos repertórios e de suas influências no Brasil e na cultura brasileira, como pura ilustração, se pode tomar duas datas: a da morte de Carlos Magno – 814, e a da aparição da Obra “Coquêtes Du Grand Charlemagne”, popularizada como “Carlos Magno e os Doze Pares de França”, — 1485. Com tais datas se poderá compreender os limites e as projeções da Idade Média. A primeira, como a síntese da expansão dos domínios da Cristandade. A morte do Rei faz viver, na memória do povo, os 46 anos, as 53 Expedições Militares, as vitórias que deram ao seu Reino cerca de um milhão de quilômetros quadrados. Chamado de “Pai da Europa”, “Cabeça do Mundo”, Carlos Magno sobreviveu à frente do seu grupo mais leal, os Doze Pares, na memória dos povos novos, revelados e formados a partir do Feitos dos Mareantes de Espanha e de Portugal.

Sem precisar recorrer a outra qualquer referência, que não a de Carlos Magno, se pode identificar o entranhamento, nas culturas dos povos novos, de toda a atmosfera medieval, que inspirou o Império Carolíngio, nas suas Cruzadas em favor do Cristianismo.

Porque a essencialidade dos repertórios literários da Idade Média podia ser resumida na persistência dos temas históricos, lendários e heróicos, na exaltação dos valores morais, sociais e religiosos, e na profunda inspiração cristã.

Os repertórios, coligidos, codificados, na Idade Média não procediam apenas dela, mas incorporavam, para o mesmo uso, os legados antigos, dos diversos povos. A sobrevivência de tantos poemas, cantigas, estórias, fábulas, que pertenceram a povos mortos da história, deveu-se a influência do Império Carolíngio.

De igual modo, a Idade Média projetou seu engenho cultural no Renascimento, tingindo com as cores dos Estandartes Cristãos toda a arte e toda a cultura dos povos descobertos e conquistados. Neste sentido a Idade Média não cobre apenas os seis séculos da cronologia histórica que a destaca, mas recua a tempos imemoriais, para colher a memória do passado, como avança no tempo futuro, legando uma herança que ainda hoje vive, pela boca do povo.

Não bastasse o exemplo do livro “Carlos Magno e os Doze Pares de França”, que chegou ao Brasil em 1728, em primeira edição portuguesa, traduzida do espanhol por Jerônimo Moreira de Carvalho, e que na opinião de Luiz da Câmara Cascudo, se tornou um dos livros mais lidos do Brasil e um dos cinco livros do povo, e se teria Roldão, forma espanholada e abrasileirada de Roland, personagem principal de uma canção de Gesta, do ano 1070, sobre a emboscada sofrida pelo Rei Franco, no desfiladeiro de Roncesvales, em 778, pelos Bascos. Roldão está em dezenas de folhetos de cordel, nos versos das Cavalhadas, na iconografia dos xilógrafos, na boca do mundo.

Também está na boca do povo, na literatura de cordel, nas estórias e romances, Roberto da Normandia, personagem da primeira das Cruzadas, ainda no século XI. Muitos outros heróis da utopia de Carlos Magno, de estabelecer um estado Teocrático na França, unificando a Europa pelo Cristianismo. Idéia muito próxima do projeto Cristianizador Ibérico, do Renascimento, posto em prática no novo mundo pelas Coroas de Espanha e de Portugal, com o concurso qualificado da Companhia de Jesus.

Mais que os personagens da literatura oral sobreviveram os gêneros, depositários de todo o espectro repertorial da humanidade antiga. São os adágios, os aforismos, os apólogos, as apotegmas, os axiomas, os dísticos, os enigmas, epigramas, as epopéias, as fábulas, as cantigas, as coplas, as canções de Gestas, as lendas, os provérbios, as saetas, as sagas, as sentenças, os romances, as xácaras, as estórias que troveiros, jograis, goliardos, clérigos, cultuaram no curso da vida e da história, como manifestação estética e moral de suas próprias realidades.

A Idade Média fez circular e ainda teve tempo para fazer recircular os repertórios, alinhados na mesma intencionalidade. Sílvio Romero, na segunda metade do século passado, coletou em Sergipe uma estória que intitulou de “O Cágado e a Festa no Céu”. Conta-se, ainda hoje, outra versão, onde o cágado vai a festa na viola do urubu. Descoberto é jogado à terra, rebentando-se. Nossa Senhora desce do céu, salva o animal e é por isso que o cágado tem a carapaça toda remendada.

Sem querer cotejar as variantes ou invariantes, desde a coleta de Sílvio Romero, publicada nos “Estudos sobre a Poesia Popular no Brasil”, em 1888, até as versões que são repetidas hoje, nas escolas e nas conversas das ruas, é possível distinguir, com clareza, o sentido catequético da estória, pela força de Deus, conforme a versão romeriana, e de Nossa Senhora, pela versão popular, na salvação e na vida do animal.

Longe de ser uma estória criada pelos colonizadores brancos, portugueses ou espanhóis, pelos índios ou pelos escravos negros, “A Festa no Céu” é uma ambientação de uma das estórias do Panchatantra, livro da Índia, reunido em língua sânscrita, entre os séculos IV e VI. É a história da tartaruga Kambugriva, que saiu do seu tanque a dar uma volta com dois amigos cisnes e que rompendo com o trato do silêncio, terminou caindo e sendo destroçada e morta pelas pessoas. A sentença moral estava lá, bem diferente do conto do cágado. A mesma temática está em Esopo, fabulista grego, nascido nos meados do século VI antes de Cristo, nas fábulas A Águia, o Coelho e a Tartaruga e A Águia e a Tartaruga, a primeira delas reescrita por Saramiego.

O Panchatantra é apenas um dos grandes tesouros literários cujas estórias vararam o tempo, espalhando-se no mundo, mescladas com o moralismo Cristão. O Fabulário Universal, igualmente remanesce na oralidade, circulando velhos exemplos, aplicados com função didática pela Igreja Católica. Os primeiros Fabliaux apareceram no ano de 1170 e os últimos em 1340. As pequenas fábulas medievais, que provocavam riso, continuam circulando até hoje, como documentário precioso de várias expressões do viver daquele tempo.

Vários autores, como Esopo, Fedro La Fontaine, deram à fábula uma sobrevida, no imenso caldeirão de cultura que tem regado a história dos povos. Assim também os autores que coletaram cantigas, romances, contos, durante a Idade Média e depois, dando consistência sistêmica a uma literatura oral que venceu as barreiras da língua, adaptando-se às condições históricas, e servindo de material quase exclusivo de exemplos.

Diferentemente dos Católicos, os Protestantes preferiram difundir a Bíblia, na esteira da invenção da imprensa, com os tipos móveis de João Gutemberg. Para eles o que importava era colocar o conhecimento da Bíblia no centro do seu credo, fazendo o ensino da leitura uma ponte para o contato com o Livro Sagrado.

A descoberta do Brasil coincide com essa travessia entre o oral e o escrito, o códice e o livro. Além da palavra dos predicantes, com todo o repertório tornado um arsenal de combate — A Guerra Santa — O Brasil contou, na sua colonização, com diversos outros instrumentos de cultura, notadamente literários e artísticos, como as Coleções de Contos, a começar pela de Gonçalo Fernandes Trancoso, “Contos e Estórias de Proveito e Exemplo”, editada em Lisboa, em 1575, as Coplas Pastorís, os autos como a Chegança, que reproduz a luta de Cristãos e Mouros, dentre tantos outros livros que moldaram a vida Brasileira nos primeiros tempos da Colônia.

Um livro do Século XVIII — Roteiro do Peregrino da América — de Nuno Marques Pereira, reflete o sentido ordenador dado pelos colonizadores à vida no Brasil, tornando-se um tipo especial de manual, que sem a força repressora das confissões inquisitoriais, e sem o primarismo dos catecismos, conduzia as pessoas, de todas as condições, a comportamentos pessoais, privados e públicos, e sociais, de acordo com as regras do projeto cristianizador adotado.

Durante os séculos de dependência formal a Portugal o Brasil conviveu com a fantasia dos repertórios antigos, medievais, que transplantavam reinos e cortes, fidalgos e vassalos, como uma lúdica a aplacar o fadário da ocupação e da colonização da terra. A diversidade dos repertórios fez de cada brasileiro um ser do mundo, de cada palavra uma chave universal de contato, de cada estória, de cada verso ou cantiga, de cada dito ou romance, uma senha de entrada ou de regresso ao mundo velho da história humana.

Nem mesmo a presença imensa de gente indígena, nas praias e florestas, com seus ritos, seus deuses, seus meios próprios de distinguir, nas plantas, o remédio que cura, o veneno que mata, alterou o plano colonizador, com seu mundo de cultura. Aos poucos, pelas fazendas, foram mescladas e incorporadas ao imaginário, as contribuições das diversas nações autóctones, aumentando muito mais o volume das coisas intangíveis, ao lado da produção material, dos artefatos e de hábitos que distinguiam o viver local.

A sobrevivência dos índios, em vários pontos do Brasil, não garantiu a sobrevivência de sua cultura, íntegra como a registra Gabriel Soares de Souza, no primeiro século do contato branco, no seu Tratado Descritivo da Terra do Brasil. Os índios do norte não guardam maiores semelhanças com as nações que sobreviveram no nordeste, como os Xocó, da Ilha de São Pedro, no Rio São Francisco, em Sergipe.

O imenso universo de crenças, de mitos, de saberes e de fazeres indígenas, de música e de dança, não compõem ainda hoje, como nunca compuseram, um repertório ordenado, que atestasse a existência histórica e moral de milhões de pessoas da natureza e da cultura, dos primeiros tempos do Brasil.

A presença dos negros africanos, arrancados à força como bestas de carga, para o trabalho escravo, também foi ignorada, no plano plural da cultura. Não que faltasse ao convívio colonial a contribuição negra, clara e permitida, ou oculta e proibida. O que faltou foi a visão geral da criação negra, a ancestralidade antiga, os mitos e ritos, as produções materiais, a herança mítica da terra berço, onde parece que a humanidade deu os seus primeiros passos.

Os negros foram reduzidos, pela força e pela catequese, ao estado jurídico e cultural de coisas, reconhecido pelo preço que custava ao seu dono, ou pelos sinais anatômicos da raça. Portadores de expressões culturais proibidas, simularam, no sincretismo possível, a sobrevivência. De modo que é possível hoje, em muitas partes do País, identificar fragmentos da Cultura Negra, embutidos no mosaico da Cultura Nacional.

O Brasil foi, num certo sentido, um laboratório de raças e de culturas. Produziu o mestiço, dando-lhe uma feição universal, mas não conseguiu consagrar a igualdade social, nem mesmo eliminar as discriminações da cidadania desigual. Tomado o exemplo biológico, da resposta genética, o próprio País tornou-se injusto e frio com seu produto — O mestiço, para atrair novos brancos, oriundos da Europa, na recolonização do século passado.

O mestiço sobrou, muitas vezes como pária, desempregado, excluído dos processos do desenvolvimento. É nítida, nas áreas rurais do Norte e do Nordeste, do Sul e do Centro-Oeste, ou nas zonas urbanas de alta concentração humana, a desigualdade social. Não há o Brasileiro, personagem real da história, como sujeito na construção da realidade. Há uma variedade de brasileiros, povoando os vários Brasís, como não há uma cultura universalizada ou universalizante, que premie toda a contribuição das partes humanas que formaram o País, valendo-se da língua mestra, dominante sobre as demais.

Evidentemente que personagens vencidos, nas insurgências da história, deixaram nome e fama na memória do povo. Antonio Mendes Maciel, o bom Jesus Conselheiro, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampeão, rasgaram com suas alparcatas as trilhas espinhosas das caatingas sertanejas, com seus seguidores, perdidos do tempo e da marcha do País. O belo Monte Santo, no sertão da Bahia, tornou-se um cenário das mais emocionadas refregas, onde homens e mulheres simples, tomados de uma ira santa, enfrentaram armas e poder, com o pensamento fixo no paraíso.

Poucas vezes, na história humana, um pedaço do povo sonhou tão alto a utopia da felicidade, da fartura, da salvação, quase como a repetir o gesto audaz do jovem Rei Dom Sebastião, que tombou sem vida no Marrocos, emprestando na sua espada a coragem da luta pela vitória do cristianismo, contra os infiéis Africanos.

Poucas vezes um pedaço do corpo social Brasileiro sofreu tanto a adversidade da história, sob o terror dos dominadores. A página de Canudos se insere na história do Brasil, como um retrato da tragédia dos fracos, como a saga dos cangaceiros reflete a ousada rebeldia do sem-terra, constituídos em força ilegal, no desafio provocador ao poder.

Mortos, com as cabeças decepadas, os homens e as mulheres do cangaço deram entrada, no panteão da história, pelas estórias, cantigas, rezas e fatos que passaram a ser, nas noites solidárias do Nordeste, os assuntos preferenciais do povo. O tempo não injuriou, ainda, Conselheiro, nem trapaceou com Lampeão. Mas, ao contrário, tanto mais passa, mais o tempo deixa um rastro antigo dessas pessoas, na memória social do Brasil.

Não se formou, portanto, um imaginário próprio, que fosse a expressão legítima do povo Brasileiro, como mostruário de cultura. Predomina, como um bem depositado nas lembranças do mais fiel dos depositários, o repertório universal, como um bem elaborado pacote da Idade Média, destinado a nutrir com a seiva do mais antigo passado, a formação da sociedade brasileira. Diversa e complexa, como são os códigos, a herança medieval no Brasil não pode ser lida na linearidade fácil. É preciso, e será preciso sempre, buscar-se na emblemática, no símbolo, os modos múltiplos de decifração dos repertórios.

A identificação dos arquétipos, a compreensão dos contextos históricos, étnicos, religiosos, políticos, a interpretação das mentalidades, tudo se justifica para elucidar a trama do tecido cultural brasileiro. Enquanto não há pesquisa, tudo continuará funcionando aos ouvidos atentos, pelo toque mágico do “Era Uma Vez...”

A decodificação da cultura é um processo que tem duas fases distintas e igualmente importantes: a da identificação do Fato Cultural, com toda a complexidade de sua procedência, e do valor que a ele corresponde, como agregado moral, que tanto a pessoa, como os grupos sociais, acrescentam. Deste modo, o Fato Cultural é, em si mesmo, um evento da história, mas é, também, uma representação moral do seu convívio.

Ao adotar certos e determinados provérbios, por exemplo, o ser ou o grupo atribui uma preferência, que tanto refaz o itinerário da vigência dos fatos, como o regenera e o nutre com o valor da escolha. Tomando a literatura oral como fonte de exemplo se poderá encontrar, na “Festa no Céu”, tanto o fato — A tartaruga do Panchatantra, ou o cágado, na memória brasileira — como o valor a ele atribuído, em tempos, lugares e situações diversas.

Na estória Indiana, a tartaruga tem nome, tem dois cisnes amigos, igualmente nominados, tem um ambiente próprio à sua sobrevivência e tem um grupo de cidadãos, que interferem no fato. E tem, também, o fundo moral, laico e certamente ajustado à vida social do lugar. No conto Sergipano, o cágado, é o animal semelhante, não tem nome, nem tem amigos e sua morte é determinada por outros animais: a garça, na versão de Sílvio Romero, o urubu, na versão em uso comum.

A moral religiosa impôs, ao final do conto, que somente a onipotência de Deus, ou a intercessão de Nossa Senhora, que é mãe de Deus, seriam capazes de preservar a vida animal, justificando-lhe a feição, para assim ser mais simples à compreensão de todos.

Não há nada, no horizonte da cultura, que não carregue a conotação do valor que o usuário, criador ou intérprete, agrega. Essa axiologia é da mais alta relevância que seja vinculada aos fatos da cultura, como molde complementar da leitura interpretativa. É uma relação constante, que o tempo não altera, e que não descende, tão somente, da herança tradicional que a oralidade e a escritura lograram trazer para o povo Brasileiro.

Ou seja: a cultura não está nunca isenta dos valores, como nunca estará alheia aos sentimentos e as emoções que comanda a vida, especialmente no trânsito do ser perante os fatos que fazem rir e os fatos que fazem chorar, ou, ainda, os fatos que causam espanto e os que despertam admiração, os que provocam o repúdio e os que alimentam e exaltam a coragem da aceitação consciente.

A cultura tem cheiro, tem gosto, tem tudo o que é próprio da vida e do ser no mundo. Por isto mesmo a sua representação, seja pela via elaborada dos textos, seja pelos improvisos dos cantadores de viola, emboladores de coco, seja pelas evoluções das danças e dos folguedos, ou nas representações dos autos, será sempre pulsante, dinâmica, atraente, sedutora.

E por mais que variarem os meios de difusão, haverá sempre uma base, servindo de fonte, a fornecer as matrizes, onde os fatos e os valores serão inseparáveis, como fundamentos de uma mesma verdade, sem a qual nenhum povo constrói seu dia seguinte. Nas escolas, como nas bibliotecas, nas feiras de livros, nos ambientes de criação e de reprodução literária, a cultura é o espelho revelador das identidades, como na história ela é a experiência.

Não importa, por um lado, que as bibliotecas, as livrarias, as feiras de livros, estejam cheias de antigas coleções, onde reis piedosos, belas e castas princesas, aguardam tranqüilos a chegada de um príncipe valente, belo e bem vestido, para casar e ser feliz. Com certeza existirão, no fundo negros das páginas, os ambientes enfumados, onde velhas e vilões ajudam a compor os cenários, valorando a realeza. Não importa que as religiões tenham mudado a geografia do mundo antigo e que já nem prevaleçam, com retrato histórico do povo, as coleções dos fatos vencidos pelo tempo, pois o que importa mesmo é saber que tais livros, tais estórias, carregam as suas próprias memórias.

Importa reconhecer que é dessa forma que se traça o arco do passado, com seus contornos, cartográficos e humanos, donde vem a voz dos portadores de vozes, vem as formas visuais da comunicação possível, como vem, todas as noites, a luz velha das estrelas e constelações, na toalha de um céu que sempre achamos novo.

A sala de aula é um espaço mágico, onde a cultura pode ser servida como gênero de primeira necessidade, fundamental à sobrevivência humana. Nela, aluno e professor, cada um a seu modo, realizam o processo ensino-aprendizagem, que longe de ser um empréstimo de informações, é uma troca de conhecimentos, uma reflexão para o saber.

O aluno, usuário da língua e dos conhecimentos que ela faz transitar, leva para a escola a sua realidade, impregnada dos valores que a herança histórica faz supor. O aluno é ele, é a sua realidade, é o seu grupo e seu contexto. É enfim, como disse Ortega, ele e suas circunstâncias.

O professor, que também faz uso da língua, e acumula maior carga de conhecimento e de experiência, decodifica os repertórios universais do seu domínio, pondo frente a frente os dois meridianos da cultura: o particular, de cada aluno, e o público, acumulado pela humanidade, trafegando nas diversas línguas e linguagens.

Por muitos anos, décadas, séculos, a escola repetiu o modelo hegemônico cultural, impondo línguas, repertórios, expressões de arte, tudo alheio aos alunos. Por isso mesmo sabe-se mais dos fenícios, dos assírios, dos babilônios, com seus reis e heróis, suas histórias e lendas, do que se sabe sobre os mareantes portugueses que descobriram, colonizaram e inventaram o Brasil. Pouco ou quase nada a escola trata dos espanhóis, que de 1580 a 1640 dividiram com Portugal a ocupação e colonização da terra brasileira. Nenhuma palavra sobre a África, nem sobre os africanos e africanizados. Os índios, estes têm um dia, no qual são lembrados pela imitação iconográfica, nas visitação da República dos Curumins, como queriam os Padres Jesuítas.

Uma escola que não reconhece a sua própria tez, a sua própria voz, ignora a história e passa ao largo da realidade cotidiana, certamente não tem como operar o processo ensino-aprendizagem, de forma a ser uma agência de cultura. Uma escola sem vida, sem o murmúrio das insatisfações e sem o burburinho das lutas, é tudo, menos uma escola. E se houver, como considero que há, uma saída para redimir a escola do fracasso cultural, indico a sala de aula, este espaço alquímico, onde se pode unir o mágico e o lógico, onde certamente se construirá a consciência lúcida, para prover o ser da sua própria noção e condição.

É com a criança que a vida torna a começar. Será com ela, com os jovens de todo o Brasil, que a escola resgatará a sua relevância, como centro transformador da realidade. A realidade que entronizou privilégios, requer a ação conseqüente, que é a afirmação do direito. Logo, o câmbio de uma sociedade para outra, pressupõe que os princípios pedagógicos da escola estejam afinados com esse anseio do povo brasileiro. A escola, portanto, tem como princípios de sua pedagogia a liberdade, a democracia, a solidariedade, a prosperidade e a justiça. A liberdade, para escolher seu destino, a democracia para partilhar a escolha, a solidariedade para quebrar com o ciclo individualista do sucesso pessoal, a prosperidade porque nenhum povo sobrevive na pobreza e na miséria, a justiça porque é preciso sempre dividir, com todos, o produto de esforço humano.

O passo seguinte é abrir a escola a todos, em todos os lugares, sem discriminações. Uma escola universal, que não esteja contida pelos limites da lei, mas que proclame a responsabilidade de abrigar, na escolarização necessária, as crianças do pré, do ensino fundamental, os jovens do ensino médio e os adultos do supletivo, sem faltar aquele grupo portador de dificuldades em relação as obrigações da escola, ou será a escola que tem dificuldades, em relação a eles?

A gestão da escola deve ser democratizada, tanto para vencer o autoritarismo rançoso de tantos séculos, como para permitir que os diversos agentes do cotidiano escolar — alunos, professores, funcionários, pais de alunos, comunidade — possam assumir seus papéis, na definição e na administração das prioridades. Será bom, na escola pública, que o provimento da função de diretor ocorra por mérito de Concurso Público.

O leito da reforma administrativa que a escola brasileira requer é o mesmo da reforma pedagógica: o Regimento. Neste País, as leis maiores mudaram, mas os regimentos das escolas permaneceram vigorantes, como entulhos da pedagogia do silêncio. O Regimento da escola deve banir de seu texto toda a parte penal e disciplinar, transferindo-a para o campo próprio, que é o da lei e da justiça.

Assim preparada, e com os retoques físicos de nem ser pequena que passe desapercebida, nem grande que chame a atenção, a escola deve ter o tamanho ideal do seu bom fazer cultural. Na experiência de Sergipe adotou-se quatro salas como o mínimo, doze salas como o máximo, como conjunto pedagógico, acrescido de salas de vídeo, de leitura e laboratório de informática, como conjunto pedagógico complementar, refeitório, campo de areia e quadra de esportes, quiosques, bancos de namorar e outros equipamentos de uso social.

Pronta, a escola pode realizar, na sala de aula, o processo ensino-aprendizagem, que começa com uma pesquisa, pela qual o aluno fala (ou escreve) sobre si mesmo, seu ambiente social, seus informes, crenças, tabus, superstições, seu modo de brincar, os gestos, os repertórios, enfim um apanhado sincero do perfil de cultura daquele pequeno portador de conhecimentos. É com esse sinalizador prático, de simples aplicação, que a escola trava o contato mais próximo com seu alunado. O mais, é com o professor, na sala de aula, nos procedimentos próprios do ensino, da fixação e da verificação da aprendizagem, da reflexão crítica com a qual é construído o saber.

Será sempre conveniente, que o cálculo do jogo de marraio, ou bola de gude, com suas trincadas estratégicas de força, direção, toque, fuga, seja incorporado como prática, que o aluno domina, independentemente de saber das fórmulas que vão julgar, mais adiante, sua capacidade de aprender. Será sempre da maior conveniência que o conhecimento das calçadas e das ruas, apanhados da mais livre relação social, passe a freqüentar a escola e a sala de aula.

As rodas, com sua forma simples e perfeita, seus cantos, movimentos, as demais brincadeiras e os demais jogos, de domínio público, são elementos lúdicos insubstituíveis no campo do trabalho intelectual entre alunos e professores. Com esse material, recolhido diretamente na fonte viva, antes que a criança e que o jovem se convertam em alunos, e com os demais materiais provindos das comunidades, onde vicejam, como novos, os velhos temas do mundo, refeitos a cada representação de autos, ou cada movimento de dança e de folguedo, como vicejam as estórias, as poesias e os ditos sintéticos e moralizantes, coisas mais que da vida, da alma das pessoas e dos grupos sociais que elas representam, a escola terá como colocar-se face a face com a história e com a cultura universal da humanidade.

E terá sido feita a síntese: quem sabe ensina.

No mais são os livros, os discos, as fitas de vídeo, todo os materiais didáticos, para didáticos e referenciais, produzidos no contato com o povo, posto ao dispor de alunos e de professores, para a produção do conhecimento e para a construção do saber.

Natureza e Cultura no Brasil*

*Publicado in Cadernos Vianenses, Viana de Castelo, 2000.

A Bráulio do Nascimento,

Jackson da Silva Lima,

Luiz Alberto dos Santos,

Jorge Carvalho do Nascimento,

José Esteves Pereira,

Manuel Ferreira Patrício,

Ilma Silva Loeser

Os índios brasileiros fizeram festa para os descobridores portugueses no mar da Bahia até que, enfastiado, Cabral recolheu-se à sua caravela. A procura de riquezas, de ouro principalmente, bem assim de outras vantagens da terra descoberta, iguala Cabral a Colombo.

A descoberta do Brasil deslumbrou o mundo, 8 anos depois do impacto causado, em toda a Europa, pela viagem do almirante Cristóvão Colombo, na seqüência das viagens que dilataram a cartografia da terra povoada. As surpreendentes terras orientais, reveladas por Vasco da Gama, a América de Colombo e o Brasil de Pedro Álvares Cabral produziram um tal encantamento nas populações, que pareceu um capítulo muito especial do Renascimento. O que estava posto em primeiro plano era a natureza exuberante, com seus rios, florestas, paisagens e riquezas, como a completar as jóias artísticas das catedrais, igrejas e capelas, santuários e cidades.

Havia uma correlação estreita entre a arte renascentista, de nova ocidentalização cultural, e a natureza como o pedaço do paraíso celestial, tal qual a narração bíblica, recuperada para a vida humana a partir das notícias e comentários dos cronistas, aventureiros, religiosos, que cruzaram os mares em longas e penosas viagens, atraídos pela beleza e riqueza descrita. Todos os documentos de época, sem exceção, proclamam a visão paradisíaca da terra, toda a riqueza do ouro, prata, diamante, e toda a potencialidade do solo, as madeiras, as especiarias, tudo enfim que glorificasse os Reinos de Espanha e de Portugal.

Desde a Carta do Achamento, de Pero Vaz de Caminha (1500) que corre mundo a notícia da terra brasileira. Com os olhos cheios de espanto, o escrivão da frota mandou dizer ao Rei de Portugal sobre a terra w sobre os homens e mulheres brasileiros. Sobre a gente ele escreveu:

“Porque de certo esta gente é boa e simples e fácil de levar para onde se quiser e logo Nosso Senhor lhes deu bons corpos e rostos como a bons homens e ele, nos para aqui trouxe, creio que não foi sem causa.

Portanto, pois Vossa Alteza, tanto deseja o acrescentamento da nossa fé católica, deve providenciar para sua salvação e praza a Deus que, com pouco trabalho, assim seja.

Eles não lavram, nem criam, nem há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem outra alguma alimaria costumada ao viver dos homens. Não comem senão do inhame, que aqui há muito, e das sementes e produtos, que as árvores de si lançam e com isso andam tais, tão rijos e nedios, que o não somos nós tanto, conquanto comamos trigo e legumes.”

Nos diversos documentos sobre a descoberta do Brasil as impressões sobre os indígenas, chamados de gentios por serem pagãos, perpassa a visão do Paraíso, na idealidade católica. O próprio Caminha diz ao rei na sua carta:

“A inocência desta gente, Senhor, é tal que a de Adão não seria maior quanto ao pudor.”

Sobre a terra a Carta do Achamento diz:

“Esta terra, Senhor, me parece que, da ponta que vimos mais para o sul até a outra que vimos mais para o norte, será tamanha que haverá nela vinte e cinco léguas da costa. Ao longo do mar, tem grandes barreiras, umas vermelhas e outras brancas, e a terra por cima toda chã e povoada de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia muito chã e muito formosa e do mar nos pareceu ser o sertão tão extenso que com a vista o não podiamos alcançar. Não pudemos averiguar da existência de ouro, nem prata, nem ferro, nem qualquer outro metal. Mas a terra é de muito bons ares, frios e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho e abundantes de águas.

De tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo em virtude das suas boas águas; mas o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente e tal deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela de vê lançar.”

A mística de uma terra ideal, prodigalizando a riqueza e o bom viver, chancelou o primeiro século das descobertas e dos contatos, gerando mitos ainda não devidamente estudados, num imaginário que percorreu quase toda a Europa, justificando uma literatura própria, como a das utopias, projetada até pelo menos o Romantismo, com o El Dorado, as minas de prata, e outros temas recorrentes, de ligação estreita com os feitos dos espanhóis e dos portugueses e de todos aqueles que navegaram com suas bandeiras.

Fica estabelecido, como se pode observar na Carta de Caminha, que a natureza é uma fonte primária de vida, capaz de prover o sustento e a sobrevivência dos seus povos. Isto remete, em certa medida, ao mito da Cocanha, que varou o tempo, introduzindo-se em épocas e fatos diferentes, e que sobrevive ainda no inconsciente dinâmico das populações subalternas, notadamente na América Latina, que é parte do mundo novo.

Os povos indígenas são identificados pelo vínculo com a natureza, como se a terra a gente pudesse, naquela visão inaugural da história, ter a mesma origem divina, a mesma visibilidade terrena, e a mesma perspectiva histórica, com a aplicação do remédio salvador: a catequese redutora.

Outros testemunhos seguiram a mesma visão presencial, como é o caso do Padre Manoel da Nóbrega, em carta de 10 de agosto de 1549, endereçada ao dr. Navarro, seu Mestre em Coímbra:

“A região é tão grande que, dizem, de três partes em que se dividisse o mundo, ocuparia duas; é muito fresca e mais ou menos temperada, não se sentindo muito calor do estio; tem muitos frutos de diversas qualidades e mui saborosos; no mar igualmente muito peixe e bom. Semelham os montes grandes jardins e pomares, que não me lembra ter visto pano de arrás tão belo. Nos ditos montes há animais de muitas diversas feituras, quais nunca conheceu Plínio, nem deles deu notícia, e ervas de diferentes cheiros, muitas e diversas das da Espanha, o que bem mostra a grandeza e beleza do Criador na tamanha variedade e beleza das criaturas.”

Os descobridores portugueses tomaram para si, bem como muitas das gerações futuras, a tarefa da encarnação da “luz do mundo”, como bem aludiu o Padre Antonio Vieira, no Sermão de Santo Antonio, pregado em Roma, na Igreja de Santo Antonio dos Portugueses, na ocasião em que o marquês de Minas, embaixador extraordinário de Portugal, fez embaixada de obediência ao Papa Clemente X. Para o Padre Vieira o português tinha obrigação de ser católico e de ser apostólico, ou seja, de crer a fé e propagá-la. A colonização vestiu, portanto, o figurino antoniano na missão de converter o Novo Mundo.

Outros cronistas escreveram sobre a terra e as gentes do Brasil, afinando um discursos uníssono, como Pêro Magalhães de Gandavo, em 1576:

“Porque a mesma terra é tal, e tão favoravelmente aos que a vão buscar, que a todos agasalha, e convida com remédios por pobres e desamparados que sejam.”

Esta província de Santa Cruz, além de ser tão fértil como digo e abastada de todos os mantimentos necessários para a vida do homem, é certo ser também mui rica e haver nela muito ouro e pedraria, de que se têm grandes esperanças.”

Gabriel Soares de Souza, mais que cronista um explorador do recôncavo da Bahia, adverte no seu Tratado Descritivo, de 1587:

“Minha pretensão é manifestar a grandeza, a fertilidade e outras grandes partes que tem a Bahia de Todos os Santos e o demais Estado do Brasil...”

Rocha Pita, Frei Vicente do Salvador, Jean de Léry e muitos outros autores, muitos padres, das diversas ordens, todos deram continuidade ao discurso da terra dadivosa e de um povo a precisar de religião para salvar-se e aumentar as fileiras da Igreja. Para tanto a Coroa de Portugal, a Companhia de Jesus e a Inquisição cunham um projeto de cristianização, de raiz profunda na Península Ibérica, como nova e fecunda utopia, de construção de um País de homens livres do pecado, catequizados para a vida pura e os mandamentos da Igreja.

Os indígenas, como gente da natureza, ganharam nome e alma, no decorrer da catequese e da colonização, dando forma ao projeto utópico da cristianização do Novo Mundo. Assim como a cultura humana parece ter iniciado com a denominação do primeiro homem, ainda no Paraíso, no enfoque cristão, ao nominar o índio brasileiro o seu descobridor e tutor dá início a um processo que levaria ao Papa, em Bula de 1537, reconhecer como “pertencente à espécie humana e dispunha de alma como seus colonizadores”, conciliando natureza e cultura. Uma conciliação nem sempre possível, muitas vezes afirmada, mas, também, muitas vezes negada.

Para levar adiante o seu projeto a Igreja teve a posição dúbia de condenar , de um lado, a mistura das raças, como aconteceu com o combate, aberto , aos mamelucos pelos jesuítas e outros padres, enquanto aceitou no seu seio a todos os que, das mais diversas procedências, aderiram, no Brasil, ao magistério moral do Catolicismo. Essa ambigüidade é uma das características da cultura brasileira e não foi, ainda, estudada e nem debatida, como se estivesse definitivamente arquivada na história do passado.

Há, então, dois tipos distintos de miscigenação: um étnico, propriamente dito, e outro, igualmente étnico, mas conotado pelo interesse moral, estimulado pela cruzada tardia, efetuada no Brasil pelos portugueses e seus prepostos. O primeiro tipo permitiu que o brasileiro passasse para a história como um dos povos mais mestiços do mundo, miscigenando o branco de várias procedências, o negro africano e os indígenas, Essa tendência de mistura racial sofreu apenas revés, na região sul do País, a partir do século passado, por conta da presença forte e dominante de grupos de colonos alemães, russos, polacos, italianos, e de outras nacionalidades que não se misturaram.

Enquanto as raças se misturaram, no contexto de uma ocupação territorial engenhosa, para transformar a potência da terra em riqueza, gerando um tipo mestiço — o mameluco — que sofreu restrições e constrangimentos, a Igreja estimulou uma espécie de miscigenação moral, permitindo a adesão de qualquer colono ou indígena, ou mesmo escravo, aos postulados da fé. Uma miscigenação ditada pelo interesse moral e não apenas étnico. Instalou-se, com efeito, dois tipos de mescla de raças: aquele decorrente do encontro de diversos povos, sem amarras de natureza social, e aquele ditado pelo interesse catequético de salvar almas, como a reafirmar que “o verdadeiro fim do homem é glorificar Deus e comprazer-se n’Ele para sempre.”

Os encarregados do projeto colonizador mantinham, com todo o vigor possível, fidelidade ao ideal de fazer da terra e da gente do Brasil um exemplo novo para o resto do mundo. Cada ação renovava o inarredável interesse de tirar da terra tudo o que ela pudesse dar, fosse a madeira vermelha, para a tinturaria, do pau da terra, ou Pau Brasil, fosse o sonhado ouro, a prata, o diamante e tudo mais que enchia de cobiça os olhos dos aventureiros, fossem as especiarias, ou, na dimensão espiritual fossem as diversas nações da gente brasileira, aldeadas, batizadas, e reconhecidas com rebanho de Deus.

Um cuidado especialíssimo mereceram as crianças, da parte dos jesuítas. Os Padres da Companhia de Jesus praticamente adotaram as populações infantis, retirando-as do convívio e da vivência tradicional, despojando-os da cultura própria, da língua, dos hábitos, costumes, ritos e artes, para uma redução avassaladora. Tratava-se, sem guerra, sem sangue, de uma conquista sem precedentes, em nome de Deus e da salvação humana, como a separar pais e filhos, velhos e novos, história e tradição. A descendência biológica não era correspondida pela descendência cultural. Os Padres, com seus Colégios, sua catequese, sua ação evangelizadora estabeleceram uma ruptura que dominou, por séculos seguidos, as relações dos dominantes e dos dominados.

Assim como houve uma permissividade na formação da sociedade primitiva do Brasil, com sexo livre, homossexualismo, adultério, e toda uma tipologia de comportamentos livres, responsável pela mistura das raças, houve uma promiscuidade religiosa, na ânsia de aumentar a massa dos fiéis, cristãos já velhos, ou convertidos em cristão-novos, todos arrebanhados para um mesmo interesse, administrado pela Igreja. Não havia, no Brasil, uma luta tão sangrenta como a luta católica contra os territoriais e de influências sobre as sociedades. No Brasil a luta era a parte menor, como via a redução, pois a maior parte derivava da ação catequética, do domínio sobre as crianças, na ruptura cultural das nações indígenas.

A terra continuava a Ter a imagem, cada vez mais ampliada pela ocupação, do Paraíso. Um Paraíso de riquezas inesgotáveis, que tanto mais dela era tirado mais ela tinha para dar, onde a vida pura de homens e mulheres sem pecado poderia reproduzir o ideal edênico, recuperando a imortalidade perdida. Não sem razão alguns relatos de cronistas e viajantes à longevidade dos habitantes das terras do Novo Mundo, como a colocar mais um elemento de composição no cenário brasileiro, aproximando-o do jardim paradisíaco, descrito pela Bíblia como a morada que Deus deu aos homens.

Na aldeia do Geru, mais tarde Tomar do Geru, os jesuítas tentaram estabelecer uma Redução, aos moldes das do Paraguai, com os índios Kiriris, no século XVII. As crianças, ou Curumins, tinham os seus espaços próprios, os índios tinham representação na Câmara dos Vereadores, um deles era Juiz ordinário, a vida da aldeia tinha uma identidade mantida e a cultura atraía os estudos dos padres. O Padre Mamiani escreveu, por volta de 1696, um Catecismo da Nação Kiriri e uma Gramática da Língua Kiriri, documentos preciosos sobre a aldeia e sobre a Vila de Nossa Senhora do Socorro do Geru, nos primórdios da vida sergipana, antes mesmo da desanexação do território, da Capitania da Bahia, que ocorreu em 1820.

A linha inicial, da visão do Paraíso, tornou-se na marcha da história um ideal nem sempre respeitado. A natureza sofreu uma devastação que ainda hoje tem desdobramentos negativos. Os grandes volumes de água foram represados, os rios, muitos deles secaram, foram desviados, e a terra passou pela grande concentração latifundiária, improdutiva, na mãos de poucos que enriqueceram a partir das doações das Sesmarias, ou da posse simples, ou, ainda da compra aviltada em preços que oscilavam de acordo com as situações sociais.

Formou-se uma aristocracia rural sem ilustração, sem fé, sem compromisso com o ideal cristão, que destruiu a idéia de um estado de inocência e de felicidade em que viviam os indígenas, em harmonia com a natureza e com os bens e tesouros de um Paraíso ou jardim celeste, cultivado pela mão do Deus, como diziam os poetas gregos a respeito de uma Idade de Ouro vivida pela humanidade, nos primeiros tempos, quando a relação era de pessoa, não de família, nem de grupo social.

A aristocracia rural tomou-se de toda a autoridade para estabelecer os limites geográficos da relação social: a Casa Grande, sede do poder e da família, e a Senzala, vila de minúsculas casas, onde vivia a mão-de-obra. Entre uma e outra, uma Capela, símbolo da mediação subordinadora, que estigmatizou, durante muitos séculos, uma dependência subalterna da mão-de-obra, tanto por ser escrava e nesta condição ser coisa de venda em leilão, como pela força opressiva de um poder armado e estruturado como um pequeno Reino em cada engenho de açúcar ou em cada fazenda de gado.

Em muitos momentos, contudo, os negros fugiram, organizaram as suas Santidades, com índios e colonos brancos, também fugidos, formaram quilombos, resistiram como puderam, antes de serem novamente capturados e entregues aos seus donos, como no célebre “milagre de Santos Antonio”, narrado pelo Frei Jaboatão, ocorrido no sertão de Sergipe, quando um negro fugiu de uma fazenda da Jacoca, perto de Lagarto e levou um pequeno grupo com ele, sendo localizado por um frade que o obrigou, com palavras e ameaças, a voltar para o seu senhor. Este exemplo claro de colaboração, da Igreja para com o senhor de terras, perdurou até o século XVIII, quando o Marques de Pombal retirou os Jesuítas do Brasil, enfraquecendo, assim, a relação antiga da Igreja com os proprietários.

As Santidades, combatidas pela visitação do Santo Ofício, no final do século XVI, foram refúgios seguros, durante décadas, para as insurgências negras, índias e de colonos rebeldes, renegados, que chegavam a contar com ajudas de estrangeiros, franceses e holandeses, interessados na terra e nos frutos da terra. O combate armado contra as Santidades e, depois, contra os Quilombos, ensangüentou as páginas da história brasileira. O Brasil nordestino tingiu as suas terras com o banho de sangue, corrente pelas fazendas de gado, pelos engenhos de açúcar, pelas senzalas, ruas e guetos onde viviam os escravos e os deserdados, pobres e miseráveis sem trabalho.

Somente no século XIX, após o período de Dom João VI, e após a Independência, por Pedro I, o Brasil voltou-se para a realidade, para a visão íntima, concreta, objetiva, de sua realidade humana, econômica e cultural. O Romantismo sacode o País, alterando a arte, a literatura, a música, como a permitir que o Brasil tivesse uma expressão própria, uma dicção própria, e deixasse aflorar a sua variada manifestação de cultura popular. Coube a Sílvio Romero, mais que a outros, recolher da oralidade o mundo de expressão artística e cultural que existia com o povo. Um imenso repertório, guardado por séculos seguidos, como um tesouro inesgotável, que alimentou, ludicamente, as populações dominadas, nas noites escuras, nos terreiros, nas procissões, no amplo sincretismo da convivência simulada.

A cultura popular brasileira é o mais vigoroso testemunho documental da resistência do povo, na trajetória do trabalho escravo, no enquadramento religioso e devocional, na sobrevivência mesmo das pessoas. O que ficou guardado, salvo das censuras e das proibições, é uma espécie de códice, que remete à Idade Média, que modela pela evolução dos corpos uma dança antiga, autos de Cristãos e de Mouros, nas refregas da reconquista projetada como ideal cristão, de ter de volta terras e feudos tomados pelos infiéis. O mosaico da cultura popular brasileira é parte de um capítulo de tempo e de história, que singulariza o povo brasileiro, mais que qualquer outro do Novo Mundo.

Foi, portanto, esse caldeirão de culturas, com seus valores agregados, que deu identidade aos brasileiros, no justo momento de sua independência política. Quebrava-se, naquele gesto audaz do jovem Pedro mais do que grilhões do atrelamento a Portugal, rompia-se um vínculo profundo, de cultura, libertando o povo para manifestar-se , do jeito que sabia, cantando, dançando, contando estórias, representando, tratando dos doentes com ervas e rezas, produzindo arte com as mãos, fazendo do barro, da madeira, das fibras, figuras e objetos que ainda hoje correm de mão em mão, ou são, nas casas, peças indispensáveis ao uso útil ou estético, e tudo o mais que o toque do povo faz ou torna melhor.

Foi no contexto do Romantismo que a poesia brasileira engajou-se na luta pela liberdade dos negros escravos, no patriotismo dos soldados que lutavam contra o Paraguai. E com a poesia, a música lírica dos teatros, ou das bandas nas récitas e nas ruas. E a literatura toda, a crônica diária dos jornais, o debate que trouxe a ciência para o cotidiano do conhecimento, uma revolução, enfim, que mudou conceitos de direito, de filosofia, incorporando tudo o que de novo o homem, como centro dos interesses, permitia existir. O Brasil não ficou refratário, nem infenso às mudanças cultuais e políticas do mundo velho. Ao contrário, afinou seu itinerário com o que de mais novo e renovador havia, como a teoria evolucionária de Charles Darwin, aperfeiçoada por Ernest Haeckel, o Positivismo de Augusto Comte, O Evolucionismo de Spencer, Litré, e de muitos outros, a economia política de Karl Marx, o direito de Rudolf Von Jhering, num suceder frenético de informações, conhecimentos, reflexões, inspirando um rumo para o Brasil contemporâneo com o resto do mundo.

No século passado a ciência instigou a filosofia, abrindo um campo amplo de debates, que alterou consideravelmente o repertório de informações, informações, influindo no conhecimento difundido e, pela reflexão, atingiu o saber, mudando a história. Parece que repetiu-se, em Pernambuco e no resto do Brasil um pouco depois, uma nova revolução científica, que surpreendeu os filósofos com suas reflexões sobre o mundo e a vida. A ciência trocou o papel de Deus, de criador e senhor da natureza, para criatura da capacidade cultural humana.

Agora, mais de um século depois, outra revolução científica reorienta as discussões, quebrando com velhos tabus e com verdades que pareciam imutáveis, no contexto das filosofias, das religiões, e das próprias ciências. Os avanços da genética e da engenharia genética, as novas concepções do tempo, a física quântica, o domínio cada vez maior dos mistérios do corpo e da mente, exigem uma revisão profunda da filosofia, como ferramenta de vanguarda na interpretação da experiência humana. Fatalmente um novo embate natureza/cultura está anunciando-se na pauta próxima, contemporânea do futuro, quando novas vozes reinterpretam os fatos, abrindo os horizontes da compreensão para o que está por vir.

Ao tempo dos debates acalorados, de estudantes e professores, nos corredores da faculdades, ou nos pequenos jornais que alardeavam as novidades, a noção de cultura era de oposição à natureza. No dizer de Tobias Barreto, por exemplo, a cultura deveria transformar a natureza, no sentido do bom e do belo. Idéia que pode ser ampliada, com culturalismo de hoje, para o bem, o bom, o belo e o justo, incorporando a convicção de que a natureza deve ser uma fonte de vida bem repartida, sem a velha concentração de terras e de produção, geradora de muitas desigualdades.

Tobias Barreto radicalizou sua posição, inaugurando uma linha de pensamento culturalista, nem sempre bem compreendida pelos seus contemporâneos. Uma linha que distinguia, com clareza, aquilo que decorria da natureza e aquilo que a cultura corrigia, citando a escravidão de animais e de gente, como fenômenos da natureza, ao tempo em que dizia ser cultural que nem uma nem outra existissem. A fronteira estabelecida pelo pensador sergipano levou a alguns setores opostos a manifestarem fundas críticas, de cunho racial, como se fosse possível a um mulato abdicar de sua condição, logo ele que enfrentou a ira do seu próprio sogro e de outros parentes, alforriando negros que herdara, com a mulher, em Escada, município da mata sul pernambucana, produtor de açúcar, onde Tobias viveu por cerca de 10 anos.

A natureza não perdeu a soberania. Muitas obras, de diversos autores que o romantismo consagrou, louvavam o campos, as florestas, os rios, os montes, o mar costeiro, mais até que o povo. Enquanto a força das águas amazônicas parecia zoar em todo o Brasil, como o produto genuinamente nacional, os índios eram deixados de lado, recolhidos ao interior mais distante da terra, perecendo de doenças transmitidas pela civilização dos homens europeus. Foi comum a adoção de sobrenomes tirados da natureza, na homenagem proposital que, ironicamente, acabou sendo um traço da cultura romântica no Brasil.

Tudo que era ou provinha da natureza tinha um toque sagrado e merecia respeito profundo. As ervas, vendidas para infusão, atraindo a ciência para os seus princípios ativos, revelando uma farmacopéia das mais ricas do mundo, requisitada para curar os muitos males da população. As ervas sobreviveram mais que os modos curativos das nações indígenas. Poucas vezes a pajelança entra em cena, mas nos mercados e nas feiras livres são comercializados os produtos da flora, convivendo com a evolução dos remédios.

O índio não foi personagem nacional, nunca. Não entrou, como os seus irmãos latino-americanos, no hinário pátrio, nem mereceu ter guardada, como no México, a sua língua, ideogramas, objetos marcantes de sua cultura material. O índio, enfim, não sobreviveu como tipo humano e ainda hoje tem como batalha frontal de sua sobrevivência, a posse legal da terra demarcada. O tempo lhe retirou da natureza, sem o colocar na cultura propriamente dita. Velho como a história, contemporâneo dos descobrimentos, que chegam aos 500 anos, o índio se assemelha a um astro perdido na imensidão do universo, fatalmente imantado à terra, mas sem sair do estágio de dependência, sem identidade.

Conquistado pela força das armas ou da catequese, o índio foi descartado no curso da história. Um dia por ano, nas escolas, as crianças imitam as figuras indígenas, sem diferenciá-las. Basta uma pintura no rosto, um calção e um pequeno arco e flecha para que se reproduza, do imaginário nacional, esse elemento da raça brasileira. A situação dos índios, embora haja defesa de setores esclarecidos, inclusive da Igreja, continua a mesma do século passado. Poucas nações progrediram, muitas dão pena, com suas carências, num desfile humilhante, como os que habitam a região baiana dos descobrimentos, que empolgaram toda a frota de Pedro Álvares Cabral.

O modo de viver, os tipos de moradia, a culinária, os mitos e os ritos, a relação com as águas, a pesca, a conservação dos alimentos, a convivência na selva, um mundo de cultura que não serviu de legado ao Brasil e nem aos brasileiros mestiços, predominantes no conjunto da sociedade. Os poucos poemas dedicados ao índio, durante o Romantismo, não passaram de loas, desprovidas do conhecimento adquirido pelo contato, ou pela informação mais fidedigna. Poucos foram os trabalhos, como o general Couto de Magalhães, de sociologia e de cultura, levantando dados substanciais, ainda hoje necessários para o melhor entendimento da vida selvagem. Outros, como o poema A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães, apenas lançam um olhar retardado e poético sobre o passado, glorificando mais a natureza que a cultura.

A história jamais esclareceu, por exemplo, a antropofagia atribuída por alguns cronistas e viajantes a certas nações indígenas, como não aprofundou a temática do bom selvagem, difundida na Europa, na onda do conhecimento novo, produzido pelas viagens transoceânicas de Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Américo Vespúcio e muitos outros mareantes. Ainda hoje, quando muitos olhares se lançam sobre a Amazônia, como pulmão da terra, reserva madereira, solos férteis e fartos, a presença indígena na região parece ser acessória, irrelevante, dispensável.

A cultura, por sua vez, não resolveu também a questão indígena, no que diz respeito à incorporação de uma contribuição própria, singular, diferenciada de todas as outras. O mundo da cultura estabeleceu seus próprios horizontes, preferindo avançar na direção do futuro, do que apropriar-se do passado indígena. Nesta direção, o negro escravo também não mereceu ser tipo nacional, inspirando apenas uma poesia humanitária, que mesmo sendo bela não cantou as virtudes da raça negra, nem a contribuição inestimável para a economia, para a vida doméstica, para as cidades, que os escravos deram, em todas as partes do Brasil por onde estiveram.

O tipo mestiço sofreu sérias restrições, passando por privações de falta de terra, de trabalho, de moradia, sobrevivendo de biscates, no campo e na cidade. Muitas vezes tido como sem caráter, o mestiço é um páira, tão suspeito quanto os pobres, marginalizado, sem conceito social, sem ocupar espaço na elite dirigente, inferiorizado. A diferença entre o mestiço e o índio e o negro é a de que estes últimos tiveram papéis definidos, ao longo da história, entrando e saindo de cena, de acordo com os períodos da vida brasileira. O mestiço é permanente e enquanto o Brasil não tiver meios de realizar, num padrão mínimo de dignidade, a vida do seu povo, o mestiço será a parte fraca, dependente, injuriada pela pobreza e pela miséria.

O embate entre cultura e natureza segue seu trajeto, motivado pelas novas orientações intelectuais, desenvolvidas na aprendizagem com os povos. O Brasil é, e o será por muito mais tempo, um imenso laboratório de uma experiência singular, de incorporação racial, de convivência social, de produção de cultura e de exaltação, permanente, do quadro exuberante da natureza, grandioso como aparece nas páginas de muitos livros, como diz o romântico Gonçalves de Magalhães:

“Nesta vasta extensão do Éden terrestre,

se ostenta o céu tão lindo e tão sereno.”

A falta de uma identidade nacional deixa o Brasil com uma grande pendência com a sua sociedade. As suas regiões aprofundam as diferenças: o Norte, com suas águas e florestas, e com os povos das florestas, indígenas ou descendentes, aventureiros e trabalhadores; O Centro-Oeste com seu pantanal, a terra alagada, rarefeita de população, contrastando com as grandes lavouras mecanizadas; o Nordeste com seu mundo velho, de sonhos e resignação, mergulhado na esperança de redenção; o Sudeste desenvolvido nos seus centros urbanos; o Sul recolonizado, estrangeirado, rico e pouco entrosado com as demais regiões brasileiras, salvo o Sudeste.

A língua é a mesma, de ponta a ponta do País, mas as expressões de cultura nem sempre guardam relação com a língua. Há um predomínio do eixo Rio de Janeiro - São Paulo, na produção e distribuição da renda cultural brasileira, deixando as demais regiões como ilhas, com manifestações próprias e de consumo próximo, que, em muitos casos leva a uma compreensão exótica e alegórica da cultura popular, principalmente nos ciclos de festas, quando de forma mais exposta o povo revela a sua alma antiga, com a força de uma comunicação contagiante. A expressividade da criação popular, colegializada, dá sustentação ao mundo de cultura nutrido pela tradição oral. Estabeleceu-se, não raro, a genuinidade das manifestações do povo, ambientadas no contorno geográfico e histórico da região, notadamente no Nordeste que guarda todas as lembranças e experiências do Brasil velho.

É, portanto, no caldeirão da cultura popular que a gente brasileira revive, como os índios e negros que foram, como mestiços que hoje o são, como personagens de uma aventura que começou com a idéia da posse de uma terra igual a do Paraíso, e que andou, por todas as formas, como uma utopia de conter o pecado, purificar as ações humanas e habitar com tais pessoas, limpas e puras, a terra, em nome da glória de Deus. Um projeto arrojado, que esbarrou na força da realidade, quando a própria cultura serviu para abastar o homem da natureza, adaptando-a às condições concretas da vida e da sobrevivência, na tentativa de integrá-lo ao mundo real, em construção.

A literatura tirou o retrato do homem brasileiro, emoldurando-o como um sujeito da história, já desapegado dos compromissos da fé e da devoção salvadora, mais ainda muito impregnado dos valores morais que a Igreja, em sua pregação pastoral, ensinou. A filosofia pensou o homem e sua circunstância histórica, assim como o direito o fez autor de interesses próprios ou de suas comunidades, na fenomenologia contratual do sistema de contradições econômicas. a arte esboçou a figura do homem e procurou nas cores, nos matizes, fazer a síntese da mistura das raças, escapando do determinismo racista que predominou nos oitocentos e lançou-se no tempo.

A cultura como síntese da natureza, compreendendo-a para a convivência harmônica, modificando-a para avançar no processo dialético da evolução da vida, é um patrimônio nacional do Brasil e pode, decodificada, debatida, revelada, ser a fonte e a ponte, ao mesmo tempo, com o futuro. O Brasil é, na sua cultura, uma síntese do mundo, dos vários mundos, dos vários tempos, das várias histórias, como se fosse possível a um só povo ser a encarnação das variedades e diversidades das culturas humanas.

Teoria do Reisado

A Raylane Navarro

Quer parecer, como ilustração, que os regimes políticos no Nordeste reproduzem o jogo do Reisado e de outros grupos populares. Porque também o povo se motiva a partir dos estímulos de partidos que, de quatro em quatro anos, precisam legitimar o poder de algumas pessoas. No período eleitoral os partidos abraçam causas, escavam o passado, atacam os adversários como se estivessem guerreando inimigos, e tudo fazem para que, o povo sem partido assuma uma preferência, como se ao povo restasse apenas, de quatro em quatro anos, preferir entre realidades postiças colocar seus anseios e suas esperanças.

As sociedades não têm, a rigor, um modelo histórico que possam seguir. Geralmente prevalecem, como parâmetros da organização social, os valores difundidos pela Igreja, no seu magistério moral, muitos deles convertidos em leis. Há, assim, pouca diferenciação entre o pecado e o delito, embora haja, no controle social, tipos diferenciados de acompanhamento da vida, nos múltiplos aspectos da sua realização e das suas relações. O padre e o juiz assumem, diretamente, o papel da arbitragem, embora não sejam agentes exclusivos da moral pública. Nem todas as comunidades contam com padres fixos, residentes, ainda que tenham Orago e templos. Do mesmo modo, nem todas as povoações se transformam em Comarcas, abrigando a estrutura do poder judiciário.

A Igreja exerce um papel totalizante sobre as populações. Edificada, como equipamento social, no centro da praça, ou no alto das colinas, a Igreja tem como principal agente de convergência devocional o Orago ou Padroeiro, em torno do qual todos se reúnem na mesma fé, guardando as festas anuais. Mês a mês a Igreja realiza atos que dimensionam, para os fiéis, outros compromissos, num calendário, permanente de Missas, Trezenas, Novenas, reuniões outras, como batizados, crismas, casamentos, confissões, extrema-unção, que têm peso singular no cotidiano das pessoas. Tanto menor, menos informada, mais isolada, a comunidade, mais a presença do padre se torna indispensável.

O prédio eminente, o relógio, o sino, completam a ação da Igreja, como atesta, com invulgar acerto, Serafim Santiago, no seu manuscrito Anuário Cristovense, escrito a partir de 1915, em São Cristóvão, a partir das suas próprias vivências na antiga capital sergipana. O autor registra, com detalhes, cada festa do calendário religioso, fixando textos essenciais, tanto da liturgia, quanto da presença popular, como no caso das apresentações folclóricas, em certas festas. No passado, o sino cumpria muitas funções: anunciava as mortes, chamava para as missas, alertava, com seu toque agudo, sobre incêndios e outras situações de emergência. O relógio, o único de uso público, tornava ainda mais importante a Igreja.

O padre sempre foi um importante ator na sua relação, em nome da Igreja, com o povo. No altar, onde é desenvolvida a principal cena do catolicismo — a Missa — o padre entra e celebra, com gestos e palavras, contando com a ajuda do sacristão e da assembléia. Naquele momento ele tem o poder de indulgenciar os pecadores, velhos e novos conhecidos do confessionário, onde a intimidade, a dúvida, a fragilidade moral desfilam como pecados, abrandados pelo poder das orações. E fala, interpretando os textos evangélicos, tirando de cada frase uma sentença exemplar, com a qual leva mais longe a fé. Os sermões, em todo o mundo católico, têm papel fundamental na fixação do moralismo eclesiástico, graças, também, ao talento intelectual de ilustres padres.

É infinitamente maior o número de mulheres, que levam as suas angústias aos ouvidos dos padres, do que dos homens, geralmente transformados em benfeitores, arcando com despesas de manutenção, tanto das Igrejas, quantos dos párocos. A função do padre, junto a homens e a mulheres, concorre para que a organização da sociedade exalte a hegemonia masculina, sobre o feminino, como uma hierarquia que reproduz o controle antigo das pessoas. A distinção dos papéis, perante a Igreja, não deixa de ter sentido prático, no esboço das convivências que regulam a vida do corpo social. Sem a Igreja seriam anárquicas as regras da sobrevivência social.

O bem e o mal são peças de um mesmo jogo, como aparecem nítidas nos textos bíblicos, nos diversos exemplos fixados ao longo do Velho e do Novo Testamento. O bem é Deus ou provém dele, o mal é o Opositor, seja na metáfora do poder de sedução da Serpente, como metamorfose do Diabo, ou Satanás, anjo decaído do mesmo reino celestial, seja na encarnação do Maligno como força imantada, fatalmente, como satélite do bem. Para enfrentar as virtudes teologais — Fé, Esperança, Caridade — , de origem divina, o Diabo teve sete filhas, as quais deu os nomes de Orgulho, Avareza, Avidez, Hipocrisia, Inveja, Vaidade, e Impureza. Seis casaram: Orgulho casou com os poderosos da terra, Avareza com os comerciantes, Avidez com os mercenários, Hipocrisia com os vadios, Inveja com os artistas e Vaidade com os efeminados. Impureza ficou solteira, aguardando alguém que a procurasse, na casa do pai.

Jesus, filho mortal de Deus, resistiu a tentação do Opositor, o próprio Satanás, triunfando. Um triunfo que é repetido a cada confronto ou disputa, ao longo do tempo e da história humana. Um confronto da atualidade, presente no magistério moral religioso, e também no imaginário popular, nas manifestações lúdicas, na política, enfim no âmbito das relações sociais.

Os desenhos animados, nas revistas e na televisão, reproduzem o jogo do bem e do mal, com as mesmas características religiosas. Os heróis, ou mocinhos, enfrentam invariavelmente opositores fortes, desafiantes, poderosos, que são adversários permanentes e indestrutíveis, que valorizam as disputas. O fato de ser derrotado não faz do Opositor um vencido, um eliminado das contendas. A vitória do herói é uma vitória transitória, restrita aquele episódio. As essências ideológicas que nutrem os combates permanecem inalteradas, para novos embates, como aventuras invariantes do jogo.

As estórias modelam um tipo de herói insuficiente para garantir o domínio do bem sobre o mal. É preciso sempre que o personagem evoque uma força superior, da natureza ou da cultura, para o enfrentamento, como se o bem necessitasse de um reforço para a luta contra o mal. No caso da família Marvel, dos gibís, todos os personagens se transformam e somente assim combatem os seus adversários. O Batman tem, a seu favor, muitos poderes, equipagens, segredos, para o confronto com os opositores, o Coringa, ou o Charada. He Man se utiliza dos mesmos recursos para brigar com o Esqueleto, seu inimigo ou opositor. São muitos os exemplos, com as mesmas lógicas, e poucas variações, exaltando a dicotomia do bem e do mal, na revisitação primordial da história.

No plano e no alcance das religiões as diversas igrejas insistem com o jogo, responsabilizando Satanás por todos os problemas e dificuldades dos fiéis. Doenças, desemprego, desajustes, drogas, fome, necessidades em geral, tudo é obra do Diabo, no campo delimitado para o mal. A conversão, a leitura da Bíblia, a preleção dos pastores, a mudança comportamental, a freqüência regular aos templos, tomam o lado do bem, na representação nítida do jogo. Tem crescido, em todo o Brasil e especialmente no Nordeste, esse cenário mitológico, balizador do controle social, movido pela fé e por um devocionário participativo abonador. As igrejas estão cheias de homens e mulheres “possuídos” pelo mal, a serem exorcizados pelos representantes do bem. As cadeias de televisão mostram programas onde os ministros religiosos, aos berros, “expulsam” o Diabo do corpo e da mente das pessoas. O jogo antigo convive, assim, com as mais modernas e convincentes linguagens de comunicação social.

O inferno é a desarmonia, enquanto o céu, como paraíso, é a paz, a infinitude, a imortalidade. Essa dialética tem ocupado teólogos e filósofos, no curso da história humana, e tem exigido da hierarquia da Igreja Católica posições teóricas e práticas, como nas palavras do Papa Paulo VI: na Audiência Pública de 15 de novembro de 1972:

“O mal não é somente uma deficiência, mas sim uma eficiência, um ser vivo espiritual, pervertido e perversor. Terrível realidade. Misteriosa e pavorosa. É o inimigo número um, é o tentador por excelência. Sabemos pois (pela Bíblia) que este ser obscuro e perturbador existe de verdade, e que com astúcia aleivosa segue obrando, é o inimigo oculto que semeia erros e desventuras na história humana.”

A Teoria do Reisado é a reprodução, recorrente, da dicotomia do bem e do mal, com diversas projeções, encarnadas no Deus e no Diabo. Enquanto Deus tem a aparência moral única, de Pai, o Diabo, toma, no tempo e nas circunstâncias da história, múltiplas aparências sendo a tentação permanente, que retirou Eva do Pai, rivalizou os filhos de Adão, levando-os ao conflito de sangue, e, ainda, quis enfraquecer a face moral de Jesus, apresentado como o filho de Deus.

O Reisado é um grupo popular, que encena, durante o ciclo natalino, um auto que louva o nascimento de Jesus, como o Deus menino. O grupo é formado por dois Cordões de moças, um Azul outro Encarnado, ou Vermelho, podendo, em alguns lugares, ser Verde e Encarnado, que parece ser cromatismo mais antigo. Na frente do grupo a Dona Deusa, ou Dona do Baile, trajando um vestido que põe em destaque as duas cores do grupo, o Azul e o Encarnado, para demonstrar a neutralidade diante dos cordões em disputa. Um palhaço, também na frente do grupo, ajuda a conduzir as jornadas, acompanhadas por um conjunto musical.

Na medida em que canta e dança, o Reisado atrai o público e a cada jornada as pessoas vão tomando o partido dos Cordões e assumindo, enquanto dura a função, a radicalidade de suas escolhas. É comum, durante as apresentações dos Reisados, que o povo se divida em duas grandes torcidas, chegando, algumas vezes, aos confrontos físicos, dos quais resultam, não raro, ferimentos e mortes.

Durante as suas apresentações o Reisado utiliza muitos meios de conquista do povo, para os seus Cordões ou Partidos. As moças, com suas evoluções e rodadas, dão o tom da sensualidade, atraindo jovens e velhos para as suas hostes. Ao final, o vencedor deixa a maior torcida, na superioridade sobre os vencidos. O Cordão Azul, que na emblemática representa o Cristianismo, sempre vence. E o grupo, unido na sua formação e estrutura, segue pelos lugares, com suas funções, dividindo o povo em dois Cordões.

As cores estão presentes em todas as manifestações populares: nos estandartes das Irmandades e nas Procissões, nos grupos folclóricos, como o próprio Reisado, o Guerreiro, o Pastoril, a Congada, a Chegança.

O vermelho, ou encarnado, em animais representa um sinal do inferno e do seu soberano Satanás, que na cultura popular é um negro, senhor das almas negras, como se pode ler na Malassombrada Peleja de Francisco Sales Arêda com o Negro Visão, folheto de cordel que corre feira, como dos mais lidos e apreciados pelo povo, realçando, de certo modo, o poder do diabo de dominar as mentes.

No Egito antigo o Azul correspondia aos deuses e o Vermelho a Seth, senhor do deserto, adversário de Osiris, muitas vezes associado a Tífon, o demônio causador das tempestades e terremotos, com seu corpo de gigante. O azul dá boa sorte e protege das doenças. Simboliza os atributos divinos da sabedoria, previdência e verdade. Desde o século XV o azul é a cor da Mãe de Deus, por conta de que Maria, depois da morte de Jesus, apareceu muitas vezes com trajes azuis. O cantor popular brasileiro Wilson Simonal fez sucesso com uma música, nos anos 70, que dizia:

“Vesti azul,

minha sorte então mudou.”

O vermelho, para o Cristianismo, é sinônimo de guerra, ódio, egoísmo, amor infernal, paixões do homem degradado e síntese do pecado. O Diabo veste vermelho e na Idade Média os pecadores eram identificados, ou discriminados, pelo uso de vestes vermelhas.

Havia uma lei antiga, em Atenas, que mandava o povo formar ou tomar um Partido, para que ninguém ficasse indiferente, diante de uma decisão do País. Durante a revolta de Niké, no ano de 532, as forças circenses, que eram normalmente rivais e inimigas e que formavam os Partidos Verde e Azul, se uniram na tentativa de depor Justiniano, na transição final do Império Romano. Com o tempo os Verdes foram substituídos pelos Azuis, aparecendo o Vermelho, que no Brasil é o Encarnado, como o outro Partido.

A polarização Direita/Esquerda também descende dessa origem religiosa, do bem e do mal, como imagens do Juízo Final, onde o próprio Jesus apareceria separando as Ovelhas, como representação do bem, dos Cabritos, que representariam o mal. Os salvos estariam à direita e os condenados à esquerda.

No passado a direita era a luz, enquanto a esquerda era as trevas, a direita o sol, a esquerda a lua. A Igreja Católica costumava separar, nos seus cultos, os homens, que ficavam à direita, das mulheres, que ocupavam os lugares da esquerda. A grafologia identifica a direita como o pai e a esquerda como a mãe, na imagística do masculino/feminino.

Na política de diversos povos a esquerda tornou-se revolucionária por encampar a luta dos oprimidos, dos fracos, dos carentes, dos excluídos em geral, enquanto a direita conservou-se com o Poder dominante.

No Brasil de hoje os partidos políticos reproduzem nas suas campanhas eleitorais a dicotomia do bem e do mal, dividindo o povo, invariavelmente, em dois Cordões, como no Reisado. Ocorre na política o mesmo fenômeno dos esportes, notadamente o futebol, estabelecendo rivalidades que aprofundam diferenças na base social do País. Tomando como alegoria o Brasil, a União federal parece ser a Dona do Baile, vestindo as cores da neutralidade, muito embora controle todas as cenas que envolvem os dois Partidos. Os Estados teriam as disputas frontais dos Cordões Azul e Encarnado e os Municípios, mimeticamente, reproduzem.

O mesmo se dá com o futebol. Todos os Estados brasileiros e muitos municípios dividem o povo em torcidas. De norte a sul, por toda parte, os clubes futebolísticos revivem a contenda. Em muitos Estados e nas cidades grandes são muitos os times de futebol na disputa dos torneios e dos campeonatos, termos conotados, historicamente. Para os grupos de torcedores não importa a condição da equipe em disputar e em se igualar a equipes de outros Estados. Importa é ser a base de sustentação motivadora, o suporte moral, que eleva a energia e a vitalidade, nos momentos das disputas. O torcedor do Grêmio ou do Internacional, no Rio Grande do Sul, torce com a mesma intensidade e emoção, que os torcedores do CSA ou do CRB, em Alagoas, ou do Sergipe e do Confiança, em Sergipe.

Na última ditadura dos militares as grandes cidades receberam imensos estádios, locais apropriados para o encontro dos clubes e das torcidas, cada qual com suas cores, emblemas, símbolos identificadores que motivam as opções das pessoas. Bahia e Vitória, na Bahia, Sport e Santa Cruz, em Pernambuco, Palmeiras e Coríntians, ou São Paulo, ou Santos, em São Paulo, fazem a festa do povo, nos grandes estádios. As torcidas, uniformizadas, empunhando os estandartes dos seus clubes, parecem séquitos fiéis, dispostos a tudo, até mesmo ao confronto físico, chegando à luta e até à morte.

Não importa em que local, em que cidade, em que Estado é realizado o jogo. As torcidas vão, como podem, aos locais dos embates, e neles se convertem em partícipes das decisões. A própria imprensa desportiva considera a torcida a Camisa 12 de cada time de futebol, como se ela participasse do jogo, com seu entusiasmo, seu calor, sua paixão, sua entrega total. Os hinos dos Clubes, não por mera coincidência, têm ritmo de marchas militares.

Os partidos políticos têm, também, as suas cores, estandartes, símbolos com os quais fazem os contatos com o povo. Há uma filiação, que deve ser motivada pelo programa partidário, pelo tom ideológico, mas o que sustenta, nas ruas, principalmente durante os períodos de campanha, a militância é a cor ou o conjunto harmonioso de cores, exaltado como uma marca identificadora dos grupos. A militância político-partidária assemelha-se, em tudo ou quase tudo, as torcidas dos clubes de futebol.

O discurso central dos Partidos, invariavelmente, estabelece uma linha divisória entre o certo e o errado, na representação evidente da dicotomia do bem e do mal. Um discurso que muda, contudo, na medida em que há composições partidárias. Assim, o processo mobilizador dos partidos sofre modificações, algumas vezes radicais, que tornam ainda mais visíveis e sensíveis os interesses divisionistas. Tem sido muito comum, nos Estados brasileiros, as coligações que aproximam lideranças e partidos rivais, obrigando a mudança dos discursos nas campanhas eleitorais.

Por isto mesmo, determinados candidatos são apresentados como santos, ou como demônios, a depender da posição partidária que tomam. Um mesmo candidato pode ter sua imagem pública adornada por todas as qualidades, como por todos os defeitos, sem qualquer julgamento de valor, mas pela simples opção partidária. O maniqueísmo político ilude, ou visa iludir, o povo, confundindo as consciências, a serviço de interesses partidários ou meramente grupais. Daí a repetição, freqüente, dos mesmos nomes, por décadas seguidas, na manipulação do voto e das vontades.

Os dois Partidos, no foco das disputas, alternam a hegemonia com seus candidatos, por longos períodos, vedando a participação das facções menores, das lideranças sociais, comunitárias, classistas, dos grupos minoritários que abraçam e defendem causas da atualidade. Inspirados na Teoria do Reisado os grandes Partidos formulam as suas estratégias de campanha formando os dois Cordões para a disputa: o Cordão dos partidários, coligados e aderentes, e o Cordão dos adversários.

Tem cabido aos partidos e líderes políticos a escolha, prévia e conveniente, dos adversários, muitas vezes convertidos em inimigos de ocasião, a respeito dos quais tudo se pode dizer, fixando imagem que gera, no meio do povo, desconfianças e reprovações. Essa simulação ocorre, a cada eleição, desde o município até o Estado e, em certa medida, na eleição presidencial do País. Para tanto os Partidos contam, de algum tempo, com os meios de comunicação de massa: os jornais, quase todos partidários, as emissoras de rádio, as televisões, cujos anunciantes ou financiadores abrem canais de simpatias para uns e de denúncia e crítica para outros.

Os jornais têm, nos Estados, tiragens restritas, pequenas, de pouco alcance social. Via de regra os jornais são lidos nas residências da classe média, mediante assinatura, ou nos escritórios de empresas e nas repartições públicas. O povo, propriamente dito, não tem o jornal como meio habitual de acompanhamento dos fatos. Quem informa o povo, quem conduz a opinião do povo é o rádio, nos diversos programas abertos à participação dos ouvintes, através de telefonemas, cartas ou presenças. Não é sem razão que muitos apresentadores de programas populares se transformam, também, em políticos e em candidatos a mandatos eletivos. As Assembléias Legislativas, a Câmara Federal, em menor escala, e as Câmaras Municipais, principalmente, estão sempre repletas de radialistas, com mandatos conquistados com seus programas.

Em Aracaju, capital do Estado de Sergipe, os programas das emissoras de rádio são como Ouvidorias, que auscultam, sem qualquer critério ou seleção, denúncias que pipocam, diariamente, atingindo o Poder Público. O Executivo é mais alvejado, mas são muitas as denúncias contra o Judiciário e contra o Legislativo. Mais recentemente o Ministério Público entrou na linha de tiro, justo quando consolidava o seu papel constitucional de protetor dos direitos da sociedade. A audiência massiva dos programas responde pelo sucesso eleitoral dos seus apresentadores.

Ao fazer a opção pela participação direta na vida pública o radialista escolhe um partido e geralmente toma uma direção, na popularidade das disputas, nem sempre conciliando a postura do rádio com a partidária e eleitoral. Isto porque o rádio reproduz, com algumas adaptações, o mesmo processo de dividir o povo em dois Cordões. A tática mais eficaz tem sido a de apresentar aos ouvintes, todos os dias, fatos novos que estimulem as pessoas, provocando nelas interesse pelas novidades, independentemente de que se trate.

O povo, passivo como o boi, lunar como os apaixonados, acostuma o ouvido às novidades do dia, incorporando esse hábito à vida, enquanto tem a ilusão que verá, mais cedo ou mais tarde, seu drama pessoal retratado e transformado em problema a ser resolvido, na velocidade do som. Essa manipulação do povo é antiga e não está circunscrita aos instrumentos político-partidários e eleitorais. Também na religião, dos diversos credos, o povo é a massa calada, chamada vez por outra a repetir frases velhas, previamente escolhidas, ou a fazer coro nas celebrações.

Durante muito tempo a ideologia pareceu marcar, com risco forte, o chão das divergências políticas. Nos tempos ditatoriais, por exemplo, quando a ação partidária perdia força ou era mesmo banida da prática democrática, por falta de democracia, os políticos, ainda assim, tomavam posições, divididos entre apoios e oposições, como Cordões silenciosos, quase ocultos, nos bastidores da história. Em tais situações aprofunda-se a divisão da sociedade brasileira, entre o sistema, em suas múltiplas representações, sustentadas pelas Forças Armadas e a chamada “Sociedade Civil”, como pelo oposto, onde se multiplicam as ações dos grupos esclarecidos, das minorias, das representações corporativas.

O que é a sociedade, e qual é a sociedade civil no Brasil? No Brasil a sociedade é uma ênfase, uma aspiração, um ideal, que depende de organização. Tobias Barreto, no seu magistério filosófico em Pernambuco, ensinou que no Brasil do seu tempo o que era organizado não era o povo, era o Governo, não era a Nação, era o Estado. E que ele reconhecia o Governo no fiscal que cobrava os impostos e no soldado que lhe metia medo. O Brasil de hoje não é muito diferente e, em alguns aspectos, tornou ainda mais complexo o esforço organizador da sociedade.

O que é certo, na base da vida brasileira, é que a sociedade formou-se nos privilégios, criados e transferidos para atender, na hierarquia do tempo, aos donatários, sesmeiros, colonos, herdeiros, e a outros sujeitos da engenharia histórica, ligados ao Poder. O Estado brasileiro tem sido dos ricos, para os ricos ou para fazer novos ricos, enquanto o povo, fora do processo de produção da riqueza, assume o papel de espectador, coadjuvando a cena da história.

Quando Tobias Barreto fez as suas observações sobre o Brasil morava em Escada, na zona da mata sul Pernambucana, comarca cercada por cento e trinta engenhos. É certo que os proprietários dos engenhos estavam divididos entre Liberais e Conservadores, partidos da época, mas é igualmente certo que todos eram senhores de terra e de escravos, formando o que Tobias Barreto classificou como açucarocracia. A divisão dos senhores de engenhos, em dois partidos, repete-se desde então, na seqüência que tem atualizado, de algum modo, a origem das classes dominantes.

Enquanto os Reisados trocam de Cordões, na medida em que novos ricos substituem velhos ricos, o povo permanece o mesmo, com a mesma fisionomia alegre, crédula, ingênua, ouvindo os Cordões e os Partidos na esperança de que os vencedores possam resgatar os sonhos de dignidade para a sobrevivência pessoal e das famílias, nascidas na visão do paraíso, conformadas pelo peso da queda humana diante de Deus, santificadas no sofrimento e na flagelação da existência pobre, algumas vezes miserável.

O Império formou e ao mesmo tempo foi vítima dos militares, classe de projeção nacional, no combate aos movimentos insurgentes e principalmente nas guerras: a do Paraguai, a de Canudos, ambas no século passado, e, neste século, as duas Guerras Mundiais. Um País cuja economia dependia do braço escravo, sem capital para reinjetar meios de elevar a produção, centralizado na pessoa do Imperador, valeu-se sempre da força para manter o Governo. Nas Províncias, onde os Presidentes eram nomeados, a maior obra dos governos era a manutenção da paz e da tranqüilidade e do sossego públicos, como dizem os Relatórios dos Presidentes provinciais.

A tradição armada vem dos primeiros tempos da colonização, quando o senhor de engenho tinha a sua Casa Forte e nela os homens em armas, as munições e o Poder delegado, para o exercício do controle social. Variaram as denominações, mas não as funções dos militares, no processo de ocupação do Brasil. Herança que o Império reelaborou, ao impulso laico da evolução e do debate das idéias, tanto nos círculos fechados das academias, como nas lojas maçônicas, como em alguns jornais e revistas, como nas ruas, em torno de questões do dia, como a campanha abolicionista.

A classe militar organizou-se, enquanto a “sociedade civil” se transformou numa aspiração que, contraditoriamente, tomou corpo no fim do século, após o golpe militar que proclamou a República. O orgulho das missões bem sucedidas, a serviço do Império, o heroísmo das vitórias nos campos de guerra davam urdimento aos militares, popularizados nas pessoas de Osório, Caxias, e outros soldados exaltados e glorificados no Brasil. Militares que tomaram o caminho positivista, cientificista em certo sentido, afastando-se do poder e das influências da Igreja Católica.

A segunda metade do século passado foi, para o Brasil, um período fértil de transformações ideológicas. A origem da vida, que a versão do gênesis bíblico proclamou, foi questionada pelas teorias da evolução das espécies, desde Charles Darwin, até Ernest Haeckel, inspirando os mais jovens na aventura do conhecimento livre, revolucionário, que sacudiu com seu vento forte os ambientes velhos, sebosos, estáticos das verdades antigas e imutáveis. O Brasil amanheceu, viveu e amadureceu sua consciência mental, em poucas décadas, tragando, velozmente, tudo o que o mundo produzia de idéias, da ciência, do direito, da filosofia, das artes, enfim tudo o que movia o pensamento.

As gerações que viveram as quatro últimas décadas do século XIX deram ao Brasil uma noção nova de sociedade, incluindo, dentro dela, a própria classe militar. A campanha abolicionista e a pregação republicana foram como irmãs, nas mesmas páginas dos jornais, nas mesmas cenas de rua, nos mesmos saraus, nas mesmas sessões maçônicas, nos mesmos corredores das Faculdades de Direito, Medicina, Engenharia e nas Escolas Militares. O surto de idéias novas emancipou o Brasil, como bem o disse Graça Aranha, em suas memórias de estudante no Recife, na Faculdade de Direito, tendo Tobias Barreto como mestre e como líder.

Os Partidos, contudo, não saíram do esquema binário e as tentativas afloradas do corpo das mudanças, como ações e reações, não chegaram a prosperar. Nem de um lado, como o Partido Católico, do Padre Olímpio Campos, nem do outro, como o Partido Progressista, de Fausto Cardoso, para citar o exemplo localizado de Sergipe, justificado pela participação majoritária de estudantes nos debates de Pernambuco, da Bahia, de São Paulo e de outros locais do País.

A República consolidou a classe militar, apesar das dissidências internas, de grupos, que persistem nas fases seguintes da história. Na II Guerra Mundial, porém, a classe militar brasileira troca sua função nacionalista, adquirida no Império, por uma função ideológica, de combate ao comunismo e ao socialismo, na linha da pregação dos Estados Unidos. Tal posição leva o Brasil a criar a sua Escola Superior de Guerra e a instituir uma espécie de doutrina de Segurança Nacional, ancorada no subjetivismo do acompanhamento e do controle das ações de pessoas e de grupos.

A experiência vivida em alguns quartéis, em 1935, quando da Intentona Comunista reforçou, com certeza, a ideologia contra a marcha socialista, bem ritmada àquela quadra da história do mundo. Mesmo assim, os militares não impediram que na redemocratização de 45/47 houvesse, em alguns lugares, a polarização ideológica. Os comunistas e socialistas, com seus partidos, frentes e listas, elegeram diversos parlamentares e candidataram o engenheiro Iedo Fiuza à Presidência da República. Luiz Carlos Prestes, líder comunista, recebeu votação expressiva para o Senado Federal em vários Estados.

O resultado eleitoral do Brasil redemocratizado, depois de quinze anos de ditadura, representou, de algum modo, a consciência política da sociedade brasileira. O voto, em si mesmo, foi conquista nova, que aos poucos ganhou espaço e atendeu mais amplamente ao povo. O voto secreto, o voto das mulheres, o voto dos analfabetos, o voto, embora facultativo, dos maiores de 16 anos, tem sido conquistas importantes para a consistência democrática da sociedade, ainda que os Partidos mantenham suas estratégias de fazer do voto mera legitimação do Poder.

Com a República a sociedade passou a ter, na prática, uma cara civil, trocando o Batistério pela Certidão de Nascimento, primeiro dos documentos individuais de identidade. Com o tempo cada pessoa passou a ter, cada vez mais, acesso aos direitos, consolidados, principalmente, na Constituição Federal de 1946. Mesmo mergulhando, mais uma vez, nas profundezas trevadas da ditadura militar, a sociedade emergiu forte, em 1988, influindo pela mobilização e pelo debate, no texto constitucional, para ampliar o conjunto de direitos sociais.

A construção da cidadania tem sido, com efeito, penosa e lenta, num País sem tradição democrática, onde os limites da vigência das liberdades públicas têm sido marcados pela força dominadora das classes hegemônicas, sejam os militares, sejam os ricos civis. E por mais que o povo brasileiro possa contar, em seu favor, com avanços formais das leis, não conta, ainda, com as práticas democráticas que garantam uma participação ampla dos diversos segmentos sociais. Os Partidos continuaram com o fingimento polarizador, repetindo os mesmos costumes das funções folclóricas dos Cristãos e dos Mouros.

Relações Culturais do Poder

A Joyce Rodrigues Monteiro

Houve, assim, uma forma, um fundo, um modelo, que prevaleceu tanto na América como no Brasil e do qual ha resquícios na vida prática dos povos que completaram 500 anos de história. Os Reis católicos, patrocinadores dos descobrimentos, encarnavam, o entendimento doutrinário que faziam, a própria representação divina, sendo por isso mesmo senhores de todas as vidas, detentores de todos os direitos e artífices de todas as conquistas.

O poder político no Brasil, notadamente no Nordeste, descende do patriarcado rural. Aquele poder do senhor de engenhos e de terras, armado e municiado, abrandado pelas relações de compadrio, foi diluído pela história, principalmente após a proclamação da República. A República tem certas e determinadas características, e tem singularidades, que transcendem ao seu próprio registro histórico, seja durante toda a propaganda, seja após a instalação do Governo Federal.

O Império centralizou o poder, nomeando os Presidentes das Províncias, embora muitos deles fossem figuras ilustres, projetadas na vida intelectual do País, enquanto as sociedades ficavam de fora, sem representação, sem voz. Qualquer pessoa de confiança do Império podia presidir uma Província, sem conhecê-la, sem ter o mínimo contato com o povo, sem qualquer vínculo. Os mandatos eram, geralmente, de curta duração e não chegavam a estabelecer relações profundas dos governantes com as Províncias. Os Senadores também podiam representar Províncias que não conheciam, das quais não eram naturais. Até Deputados representaram Províncias, sem contatos com elas.

O processo eleitoral, com suas Juntas Paroquiais, foi uma luta desigual entre os proprietários e os outros, que não dispunham das condições exigidas para as candidaturas, ligadas, todas elas, ao poder econômico. Só podia ser votado, durante o Império, quem fosse proprietário e tivesse bens em dinheiro. Os senhores de engenhos e de terras se valeram, muitas vezes, dos capoeiras, para afugentar da porta da igreja os adversários, conforme registro em várias partes do Nordeste, colhidos pelo Diário de Pernambuco, no Recife.

A República criou a União e transformou as Províncias em Estados, reconstitucionalizando o País. A Federação tinha sido uma aspiração republicana, liberal, respaldada numa nascente opinião pública, produzida nos corredores das faculdades, pela imprensa, nas reuniões públicas, nas lojas maçônicas, pela obra de professores, jornalistas e escritores que pensaram o Brasil. Havia um intenso e apaixonado debate, rompendo com os compêndios surrados, substituindo a teologia na mudança de atitude diante do mundo e diante da vida.

A segunda metade do século XIX fez aflorar um sentimento nacional e fez nascer uma classe social, a dos militares, transformados em heróis nos campos de batalha, no conflito contra o Paraguai. Havia uma identidade entre o soldado que partia para a guerra e o poeta que ficava louvando seu heroísmo, a Pátria e a liberdade. Em alguns pontos do País, mais que em outros, a agitação tomou conta da juventude, tomou as ruas, os teatros, afirmando uma luta que conciliou as glórias guerreiras do Império, com os anseios de liberdade que a República proclamada assegurou, apesar dos muitos percalços.

Os movimentos da literatura emancipada, da ciência nova e da filosofia marcaram o Brasil nas últimas décadas dos oitocentos, dando contemporaneidade à vida das Províncias, acelerando as transformações. As idealidades cresciam alimentadas pelo conhecimento mais novo, de várias procedências. O germanismo, abraçado por Tobias Barreto, praticamente retirou da França e de Portugal as funções intermediadoras da cultura. O Direito teve seu conceito mudado. Assim também a filosofia, a economia política, a antropologia, a política, a crítica religiosa, literária, musical, as ciências, evoluíram nas mãos e nas mentes dos jovens estudantes, dos professores, dos jornalistas, de todos os que estiveram enfileirados nos mesmos propósitos de construção do futuro.

Naquele tempo, já Tobias Barreto advertia que no Brasil organizado era o Estado, não era a nação, era o Governo, não o povo. e que ele reconhecia o Estado e o Governo no policial que metia medo e no fiscal que cobrava impostos. Duas forças a serviço do Poder, ambas oriundas da organização, de cima para baixo, da sociedade. Pernambuco, onde vivia o pensador sergipano, era uma Província vocacionada para a luta em favor da liberdade. Levantou-se em 1817, em 1824 e em 1848, enfrentando o travo da reação imperial, que passou em armas muitos dos líderes pernambucanos, incluindo alguns padres.

O Recife foi, por muitas décadas, uma cidade de convergências, atraindo grupos de pessoas de várias Províncias do norte, para a sua Faculdade de Direito, criada em 1827. Aberta e solidária, a cidade serviu de ambiente para movimentos que mudaram o Brasil. O Recife foi palco da Questão Religiosa, que contrapôs o Bispo capuchinho Dom Vital aos maçons das diversas lojas, num embate que exigiria a intervenção do Império. O Monismo tornou-se a face do materialismo científico, que tomava o lugar das pregações religiosas. A divulgação das novidades científicas, em muito ajudada pelos positivistas, fez da física, antes da filosofia natural, da matemática, da química, ferramentas úteis na compreensão dos processos evolutivos do homem e da sociedade.

Antes mesmo do Império havia uma idéia de ordem, no sentido de sossego público, que presidia as relações dos colonos com os prepostos da Coroa portuguesa, que de tudo mandava tirar devassa. Foram muitos os casos em Sergipe, envolvendo as autoridades — Capitão-Mor, Sargento-Mor, e outros, incluindo padres das diversas procedências e vinculações, como ficou célebre o caso do padre Eusébio Dias Laços Lima, da vigararia do Itapicuru de Cima, na Freguesia de Lagarto, acusado de subversão, no século XVIII.

A proclamação da república encerrou o ciclo, consolidando a emancipação mental do Brasil. O Imperador Pedro II, com sua família, tomou o rumo da Europa, para o ócio do exílio. Os militares, que tomaram o Poder, levaram para a nova bandeira o dístico positivista de Ordem e Progresso, comum durante o Império, como elemento propulsor das relações com as Províncias. Cada Relatório de Presidente de Província zelava por informar a “ordem” reinante, bem como o “progresso” conquistado. A ordem parecia ser, antes do Império e nos primeiros tempos da República, o fundamento da organização social. E o progresso representava uma espécie de ideologia, para a transição da economia escravocrata para a organização de trabalho livre.

Não variou muito o conceito de Ordem e de Progresso, na República, em relação ao Brasil imperial, até que foi vencido, no tempo, pelos novos modelos organizados da sociedade, e pelas lutas que desde as primeiras décadas do século XX reproduzem novas tendências ideológicas. Em pouco tempo o Brasil saiu do trabalho escravo para o estabelecimento de um operariado vigoroso, politizado e participativo, que incorporou a sintonia com a luta, principalmente na Europa, das classes trabalhadoras, conotada pela adesão aos princípios do socialismo. No mesmo estilo do Império, os governantes republicanos invocaram a Ordem como base de toda a vida nacional, reprimindo as manifestações dos trabalhadores.

O Progresso continuou a ser uma meta. Abrir estradas, construir ferrovias, melhorar os portos, acelerar o processo industrial combinavam com o fervor dos partidários da ideologia do progresso. O Nordeste, que era o Brasil velho, perdeu a hegemonia econômica. Os surtos de crescimento atingiram São Paulo, Rio de Janeiro, outros Estados do Sul, dinamizando a vida das cidades. O País passou, então, por um processo rápido de urbanização, aumentando muito mais o fosso diferencial com o campo. Até mesmo a agroindústria do açúcar passou a ser o produto da vida econômica rural, de exportação, para fazer os novos ricos senhores de terras.

A República reestruturou, efetivamente, a vida política nacional, convivendo com sublevações militares que colocaram em relevo os Tenentes, mas também com as velhas oligarquias, algumas delas recicladas, outras guardiãs de um poder velho, conquistado nas relações de dependência do Império, vigorantes como herança, como se a atuação política estivesse intrinsecamente ligada à propriedade das terras. A classe política continuou sendo, de algum modo, formada por proprietários. Ou aqueles remanescentes do patriarcado rural nordestino, ou os chamados “barões” do café, nova aristocracia brasileira.

O processo de amadurecimento das relações políticas foi interrompido com a Revolução de 1930, que levou o País a uma ditadura, sob a liderança de Getúlio Vargas, político gaúcho, ligado ao caudilhismo, que permaneceu no poder por 15 longos anos, caindo com o fim da II Guerra Mundial e a redemocratização de 1945, consolidada no País em 1947, para voltar, como Presidente constitucional, na eleição de 1950, e como líder populista, patrono de um partido de trabalhadores — o Partido Trabalhista Brasileiro. Um tiro no peito, dado por ele mesmo na madrugada de 24 de agosto de 1954, matou Getúlio Vargas e encerrou, traumaticamente, mais um ciclo da história política brasileira. Um ciclo que retornaria, sem força e sem expressão de apoio político e popular, com a renúncia do Presidente Jânio Quadros e a posse do Vice-Presidente João Goulart, apadrinhado de Getúlio Vargas.

Em 1964, depois de agitações em favor das reformas de base, os militares tomaram o poder, extinguindo os partidos políticos, que funcionavam desde a redemocratização de 1945, e retomando a ideologia do progresso, protegendo, com todo o rigor a censura, das prisões, cassações de mandatos, torturas e desaparecimento de pessoas, a ordem, agora debaixo de um conceito de segurança nacional, formulado durante a II Guerra Mundial, sob os auspícios da luta ideológica patrocinada pelos Estados Unidos, como representante da concentração do capital.

Uma luta, mais que outras, marcou a transição do Império para a República: a luta pelo direito. E toda vez que um direito é afirmado, liquida-se com privilégios. O embate requereu, dentro e fora das academias, que novos conceitos substituíssem velhas lições caducas, que serviram, como os Catecismos, para frear os sentimentos de liberdade que, vez por outra, explodiam nos corações insubmissos. Foi árdua a tarefa de fixar, no tempo, os direitos individuais, abrigados, principalmente, na Constituição Federal de 1946. Os direitos sociais vieram depois e estão, muitos deles, na chamada Constituição Cidadã, promulgada pela Assembléia Nacional Constituinte, em 1988. Hoje há uma defesa, ampla, dos Direitos Humanos, como síntese dos avanços democráticos.

A prevalência de um Direito Natural, de origem divina, colocado nas mãos dos Príncipes, para regular a vida do povo cedeu à afirmação de um direito pactuado nas relações sociais e culturais do povo, capaz de evoluir e de incorporar as tendências que a própria dinâmica da sociedade produz. O Direito passou a ser, ainda durante o Império, um fenômeno da cultura, um produto social, em permanente marcha, como suporte dos interesses públicos, mesmo que não perdesse a sua força, expressa na norma escrita, diante das relações de convivência social, a partir da propriedade.

Durante a República foi criado a Registro Civil, um dos primeiros passos para a cidadania, vez que retirava o homem da órbita única e exclusiva da religião que registrava o batismo. O voto passou a ser um instrumento da sociedade, primeiro dos homens, depois das mulheres, depois tornado secreto, ampliado para maiores de 16 anos e para analfabetos, ainda que facultativos, em alguns casos. Houve uma evolução no processo eleitoral, democratizando-o. Do mesmo modo as organizações de trabalhadores, os centos operários, as uniões, os sindicatos, as federações e confederações, enfim cresceu perante o poder uma opinião pública cada vez mais qualificada, que fez encolher, legalmente, os tentáculos governamentais.

Os governos militares recriaram as indicações, respaldando-as nos Colégios Eleitorais que elegeram, indiretamente, os Governadores dos Estados. O poder foi novamente partilhado com os chefes políticos, suas famílias, restabelecendo as oligarquias como donatárias, nos Estados, do controle da administração pública. Somente em 1982 os Estados recuperaram o direito de voto para a eleição dos seus governadores, quando o Brasil refazia, lenta e gradualmente como preconizara o general Ernesto Geisel, o seu itinerário democrático. Começava o processo redemocratizador, que restabeleceu as eleições diretas nos Estados (1982), nos municípios sedes das capitais (1985) e para Presidente da República (1989). Foi extinta, também, a figura do Senador biônico, ou eleito indiretamente desde 1978 (1986).

O Estado brasileiro adquiriu, no tempo, um papel mediador entre a sociedade e o mercado. As relações econômicas passaram a ser reguladas, praticamente, pelo Estado forte, investidor, gerador de empregos. O gerenciamento de obras, feito diretamente pelo Estado, através de órgãos especialmente criados para tal fim, esquentou o mercado, fez novos ricos — os empresários da construção civil — elevou o capital dos bancos e manteve alta a taxa de empregos, notadamente de mão-de-obra sem qualificação.

O Banco Nacional de Habitação — BNH — foi um símbolo desse poder econômico do Estado, durante o período dos militares no Governo. Cada Estado criou a sua Companhia de Habitação, sua estrutura de obras, para adequar-se aos programas de investimentos. Durante muitos anos rios de dinheiro foram lançados ao mar da construção civil, para a construção de casas populares, em conjuntos que foram verdadeiras cidades, pela dimensão das áreas, número de residências e, em conseqüência, pelos problemas recorrentes de tal modelo.

Além do crescimento dirigido pelos investimentos em diversos tipos de obras, o Brasil experimentou uma verdadeira corrida ao serviço público nos Estados. No Nordeste proliferaram pelos trilhos do apadrinhamento os “trens da alegria”, incorporando milhares de pessoas, habilitadas ou não, ao serviço público, como funcionários do Governo. Foi a maior febre de empreguismo, criando para os cofres públicos uma responsabilidade enorme com a folha mensal. O custo das folhas de pagamento tornou-se pesado demais para as parcas receitas, transferidas da União ou geradas nos próprios Estados.

Todo o esforço arrecadador foi canalizado para o pagamento do pessoal, sem que isso representasse a melhoria da capacidade prestadora do Estado ou a simples melhoria da qualidade dos serviços prestados. Os Estados nordestinos continuam sem água em muitas localidades urbanas e rurais, sem luz, sem estradas, sem oportunidade de trabalho, sem terra para a produção, sem perspectiva de um futuro melhor. Os investimentos na construção civil e o empreguismo desenfreado no serviço público não mudaram a face atrasada e subdesenvolvida da região nordestina. As populações continuam dependentes dos favores políticos, na mercantilização dos votos, na troca cumpliciada entre o poder e sua fonte legal de alimentação.

Grande porção do povo não faz julgamento de valores, apenas adere às preferências, muitas vezes movido pela mobilização constante, feita pelos programas de rádio, ou durante os calendários eleitorais, quando são radicalizadas as propagandas e estabelecidos os pólos das disputas, como dicotomias profundas, que, certamente, tem vigência curtíssima: a da eleição.

Os conjuntos habitacionais se transformam em zonas turbulentas, de difícil convivência entre as milhares de famílias, que foram reunidas por um único ponto comum: a renda mensal. Pessoas, aos milhares, que nunca se viram, não tinham qualquer semelhança em termos de projeto de vida, de repente foram colocadas no mesmo espaço, em pequenas casas, sem qualquer elemento de agregação social. Nem mesmo foram construídas igrejas ou capelas, nos conjuntos, para que exercessem funções de atração e convergência, como fizeram os catequistas e outros religiosos, quando da colonização, nomeando um Orago para com ele e em torno dele reunir o povo.

Os altos índices de criminalidade, as taxas de desemprego, os conflitos diários que são remetidos às Delegacias policiais atestam, enfaticamente, que os Conjuntos Habitacionais não cumpriram com seus objetivos de atender a uma necessidade básica, a da moradia. Por outro lado, obras faraônicas, que consumiram grandes somas financeiras, perderam importância, foram desgastadas pelo tempo e pelo uso sem manutenção, representando mais ônus para as administrações estaduais. Tudo concorre, então, para que o erário público seja insuficiente para os gastos fixos, com essa herança de um passado próximo.

A paisagem humana das cidades não mudou. As periferias são ocupadas com famílias inteiras de retirantes das secas, porque a questão da terra e da água nunca foi resolvida. As invasões de homens e mulheres sem terra e sem teto geram uma patologia social nova, inquietante e desafiante para os governantes municipais e estaduais. Ou seja, o quadro social permanece o mesmo, carenciado pelas desigualdades, arrastando uma miséria que deprime, humilha e envergonha, desumanizando a história brasileira, como se essas legiões de pobres fossem descendentes diretos dos escravos, na orfandade social que desde o Império e por toda a República não se modificou, e constituídos numa massa de manobras, a serviço de interesses grupais ou partidários, na legitimação de mandatos.

O Estado continua, contudo, asfixiado pela folha mensal de pagamento, que segundo lei federal, a chamada Lei Camata, não pode ultrapassar de 60% das receitas. O Estado de Sergipe, por exemplo, tem cerca de 52 mil servidores públicos, para uma população aproximada de 1 milhão e 500 mil pessoas (dados de 1994). Uma relação, tomada a grosso modo, de 1 servidor para cada grupo de 30 pessoas. Retirando os mais velhos, os aposentados, os menores de 18 anos, os inválidos, os patrões e empregados das diversas atividades, os servidores federais e municipais, a relação cai, praticamente, para 1 servidor para cada família sergipana.

Essa relação ente os grupos sociais familiares e o Estado tem o patrocínio da influência que a classe política detém, historicamente, no Brasil, no Nordeste e particularmente no Estado de Sergipe. A alternância do Poder, as lutas radicalizadas, utilizando os partidos políticos, fortalecem esse quadro de interesses, enquanto a economia permanece estagnada. A agricultura sergipana empobreceu, a pecuária diminuiu o rebanho, a agroindústria açucareira faliu, restando uma única unidade produtiva, consolidada e forte, o setor têxtil depende de incentivos fiscais e toda a dinâmica do mercado está localizada no setor terciário.

A realidade produz uma tensão social, pois tanto mais pobre a sociedade, mais forte o Estado que a governa. No Nordeste inteiro, onde vivem mais de 40% da sociedade brasileira, os governantes exercem um mando que vai além da legalidade constitucional. Distanciados dos diagnósticos, os governantes fazem Planos meramente referenciais, para captação de recursos, sem qualquer garantia de execução. Por isso mesmo os indicadores sociais puxam para baixo a vida, avassalando mais ainda as pessoas, no desespero da fome, da incerteza, da descrença em saídas honrosas. Parte da população continua, como é comum em todo Brasil, apostando na sorte, comprando loterias, na esperança de sair rápido da situação subalterna.

O Estado reproduz as relações existentes durante o patriarcado rural. Os governantes são como senhores, donatários do Poder, e de um Poder que tudo pode. Um Poder absoluto, que mantém o Legislativo e o Judiciário presos pela dependência de transferências dos gastos mensais, com folhas e custeios, quebrando a mais elementar das normas de harmonia e interdependência entre os poderes. Sem direito a legislar criando despesas, as Assembléias homologam, via de regra, os projetos oriundos do Executivo, resguardando as suas discussões para temáticas políticas, distantes do cotidiano real da vida da sociedade.

Fadado ao sofrimento e conformado, o povo não esconde a submissão, nem a dependência, oferecendo voto, como moeda de troca, nas relações com os governantes e seus agentes, do vereador ao cabo eleitoral, nos municípios, do deputado estadual ao federal, ao senador, no Estado. O favor é um instituto, utilizado sem escrúpulos, para o que se diz comumente: “fazer política”. Antes da Constituição Federal de 1988 os governadores podiam nomear, livremente, para todos os cargos, satisfazendo aos interesses partidários. Tornou-se jargão, no meio político, o QI significando Quem Indica. O Concurso Público, exigência legal, parece corrigir, aos poucos, as distorções.

É da cultura das pessoas o reconhecimento da fortaleza do poder. Um poder afrodisíaco, atraente, esbanjador, que coopta, muitas vezes, os seus críticos e que alimenta, no imaginário social, a idéia de participação. Entre um emprego público, de menor salário, e um emprego privado a preferência sempre foi em favor do primeiro. A flexibilidade quanto a exigência de formação, horário, e cumprimento das tarefas e a segurança de que, geralmente, quem entra não sai e vai recebendo, em cascata, benefícios e vantagens, condiciona os interesses pelo emprego público. E mais ainda pelos Cargos de Comissão, pelas Funções Gratificadas e de Confiança, pela proximidade, enfim, com as cúpulas diretivas. Nem mesmo a barreira constitucional, que manda fazer concurso público para ingresso no quadro funcional público, inibe as pessoas e seus padrinhos que pedem e esperam os favores dos governantes.

Os governantes dominam o universo das carências e das dependências e fazem favores, dão cargos em comissão, atribuem gratificações, prestam serviços, alimentando, abertamente, o próprio poder que exercem, contando com os partidos políticos que legalizam as candidaturas e, em muitos casos, legitimam a relação promíscua entre os donatários do poder e o eleitorado intermediado. Os partidos podem até mudar, com enchentes e vazantes de interesses, mas as figuras continuam as mesmas, como no velho Reisado, com seus cordões Azul e Encarnado dividindo o povo.

Os partido têm, na verdade, as mesmas funções dos cordões do Reisado, porque se oferecem como caudatários das opiniões divididas, muitas vezes artificialmente. A radicalização dos partidos prende a atenção do povo, como a desviá-la da realidade. Daí a falta de mudanças, de avanços e de conquistas, sem os quais a sociedade não evolui, nem supera os problemas. Desde o Império, seguindo-se pela República já mais que centenária, os partidos representam a falsa polaridade, que remete ao mito do bem e do mal.

A pluralidade social não condiciona a formação dos partidos políticos. O que vale, e tem valido historicamente, é o fato de um partido, vitorioso nas urnas, governar e outro, derrotado, fazer a oposição. Nem um nem outro altera o comportamento administrativo.

De tal modo alguns setores da sociedade associam o Governo à figura do governante, que é comum ouvir-se: “O Governo saiu, o Governo viajou, o Governo chegou”, aureolando de importância o poder exercido dos diversos níveis, notadamente no nível estadual, onde não apenas é mais freqüente a constatação dos traços do patriarcado, como é infinitamente maior a dependência do cidadão ao aparelho estatal. É o Estado que mais compra, que mais contrata serviços, que mais emprega, que mais constrói, enfim quem põe em circulação milhões de reais, sendo, como é, no caso de Sergipe, o menor dos Estados brasileiros.

Essa metamorfose, Governo/Governador, tem efeito na condução administrativa, como remete a comportamentos violentos, quando da construção do poder. De um lado, o Governador, em nome do Governo, pode tudo. Manda prender, bater, matar, perseguir, censurar, vigiar, do mesmo modo que manda soltar, proteger, beneficiar, dar cobertura, ajudar com recursos financeiros. E pode, ainda, construir e distribuir moradias, dotá-las de água, de luz, fazer em suma tudo o que quiser. Não há limites, nem legais, nem éticos, para o exercício do poder.

Como se fosse possível ao governante incorporar, de sua herança genética e política, o espírito do passado, quando os senhores de terra tudo podiam, com seus homens em armas, suas munições, aplicando a lei nos limites de suas propriedades, e conquistando poderes ilimitados, com os quais dispunham das vidas próximas, refaz-se, no presente, métodos e procedimentos antigos de subalternidade. O governante pode ser, então, um homem ao seu tempo, com o lustro da atualização social, sendo, também, um vínculo vivo com as formas dominadoras do passado, que vigoraram longamente durante a escravidão.

O senhor de engenho, o senhor de terras, o criador de gado, revive, cada um, nas pessoas dos governantes que fazem dos seus mandatos um instrumento igualmente dominador. São várias as moedas, como são amplos e múltiplos os poderes do poder, que permitem a quem governa o domínio dos governados. Antes era o compadrio que abrandava as relações e avassalava o povo. Hoje são os favores, o uso da máquina administrativa e do dinheiro público, com e para os mesmos propósitos. A sociedade, que ainda é uma ênfase, não alguma coisa concreta, não tem meios de reagir e não dispõe de classes organizadas, que possam, no mínimo, esboçar uma defesa pela sobrevivência.

O Governo, que tudo pode, controla o conhecimento, sua distribuição, como o faz com o trabalho, com a produção. A alienação freqüenta os ambientes escolares, os equipamentos culturais, tornando a realidade alguma coisa distante e sem interesse. No outro extremo, a força policial intimida mais do que assegura a paz e a tranqüilidade, e serve de suporte pessoal de quem governa. Foi usual ter-se as Polícias Militares, no Nordeste, como forças a serviços de políticos e de pessoas influentes. Ou seja, a sociedade pagava uma conta, de um banquete que não participava e que, muitas vezes, era a própria vítima.

Os discursos modernizados em sua expressão de linguagem soam falsos, incoerentes, diante de uma constatação, de que o mando derivado do Poder tem um espectro totalitário, abrangente em sua ação, eficaz como controle. Manipulada pelos meios de comunicação, muitos deles de propriedade dos próprios governantes, a sociedade faz o jogo das elites, dividindo-se pendularmente, dando movimento a uma gangorra que fataliza as relações de dependência e de submissão.

O retrato de quem governa pode ter duas faces: a visível, do rosto conhecido, e a encoberta, de rostos rotos pelo tempo, como fantasmas influentes, no caldeirão de uma cultura funcional, onde florescem as diversas hegemonias: o homem sobre a mulher, o branco sobre o preto, o bonito sobre o feio, o alto sobre o baixo, o saudável sobre o doente, o perfeito sobre o aleijado, e, muito especialmente, o rico sobre o pobre, um catálogo impiedoso de diferenças.

CANUDOS: A Cocanha Sertaneja

À memória do poeta José de Oliveira Falcón

A revolta messiânica de Antonio Conselheiro, em Canudos, parece um revide ao modo particular, lento e persistente, desafiante e renitente como as idéias bem formadas.

A palavra sertão ganhou, no Brasil, um sentido diferente do que teve em Portugal, como lugar inculto e distante. A primeira vez que é citada, no Brasil, é na Carta do Achamento, de Pero Vaz de Caminha, em 1500, com uma grafia pouco repetida: sartaão. Foi grafada de muitas outras formas: sertã, ceretan, certan, certão e sertão, sempre designado região pouco habitável, como refúgio inóspito.

Para os brasileiros do Nordeste sertão sempre foi sinônimo de região seca, sem água, sem regime regular de chuvas, sem fertilidade permanente para as lavouras. O homem nordestino, habitante da região sertaneja, travou uma batalha permanente com a natureza, resultando numa convivência difícil, sacrificada, estigmatizada, que permanece até hoje. As prolongadas estiagens se repetem, ciclicamente, causando enormes prejuízos materiais e transtornos à vida dos povos do sertão.

Embora reverdeça lindo com a chuva, o sertão seco é um quadro de miséria comovente. A terra racha, vira pó, a vegetação queima, desaparece, e nada resta de comida para as pessoas e para as criações. O homem vende tudo o que tem, para comprar água e comida, o gado agoniza, magro, e morre. A tragédia sertaneja tem inspirado obras literárias que celebrizaram o Nordeste e os seus autores nordestinos, como José Américo de Almeida, com A Bagaceira, Raquel de Queiroz, com O Quinze, Graciliano Ramos, principalmente com Vidas Secas, João Cabral de Melo Neto, com Morte e Vida Severina, e que muitos outros que colheram com os próprios olhos, no ambiente da família e dos conhecimentos, uma saga de coragem, um fadário resignado, sobre a vida no sertão nordestino.

Há, também, na literatura e na música um sertão de quimeras, de sonhos, que é cenário de obras igualmente célebres e de cancioneiro que dilui o sofrimento imposto pela seca. Luiz Gonzaga, mais que outros, é um artista da comunicação sertaneja. Ele cantou, como ninguém o fez melhor, com Asa Branca, de 1947, em parceria com Humberto Teixeira, a seca, com Vozes da Seca, em parceria com Zédantas, e interpretou, de Patativa de Assaré, a Triste Partida, espécie de hino sobre o retirante, sua fatalidade como braço alugado, a serviço do progresso de São Paulo.

Em Vozes da Seca Luiz Gonzaga rejeita a esmola e pede providências governamentais, para retirar o povo da miséria e da fome em que se encontrava, no início da década de 50 deste século, em mais uma repetição das estiagens. No seu canto engajado o ‘Rei do Baião” afirma:

“Mas, doutor uma esmola,

a um homem que é são,

ou lhe mata de vergonha,

ou vicia o cidadão.”

Mais adiante, pede:

“Dê serviço a nosso povo,

dê açudes e barragens,

dê comida a preço bom,

não esqueça da açudagem,

livre assim nós da esmola,

que no fim desta estiagem,

lhe pagamos até o juros,

sem gastar nossa coragem.”

E termina dizendo:

“Se o doutor fizer assim,

salva o povo dos sertão,

quando um dia a chuva vim,

que riqueza prá Nação,

Nunca mais nós pensa em seca,

vai dar tudo neste chão,

como vê, nosso destino,

mercê tem na vossa mão.”

O cancioneiro é um imenso repertório de lamento do homem sertanejo, mas é, também, um vasto universo de expressões artísticas que tira da terra a beleza, apaixonado o homem, definitivamente , com o lugar. A voz e sanfona de Luiz Gonzaga deram ao sertão nordestino um vigoroso momento artístico. Por longas décadas o canto fez do sertão um paraíso na terra brasileira, e fez do homem um crédulo, um devoto, um conformado com a realidade, capaz de trocar o choro pela emoção alegre quando chove, como o fez o próprio Luiz Gonzaga, em A Volta da Asa Branca, também com Zédantas:

cuidar da plantação.

“Já faz três noites,

que pro norte relampeia,

e a Asa Branca ouvindo

o ronco do trovão,

já bateu asas

e voltou pro meu sertão,

ai, ai, eu vou embora,

vou cuidar da plantação.

Rios correndo,

as cachoeiras tão zoando,

terra molhada, mato verde,

que riqueza,

e a Asa Branca, a tarde canta,

que beleza,

ai, ai, o povo alegre,

mais alegre, a natureza.”

Poucas regiões do mundo, desértica algumas vezes, seca quase sempre, madrasta para a vida humana, têm o encanto do sertão nordestino. No período junino a terra se faz toda verde, de milho, reunindo o povo em festa. No campo e nas cidades nordestinas o milho faz a alegria do povo. Fogueiras, arraiás, comidas típicas, forrós, e um clima animado de gente vestida tipicamente, para celebrar um culto antigo, de colheita. Um culto agrário que ganhou a benção da Igreja católica, na identidade de três figuras emblemáticas: Santo Antônio, um doutor da Igreja, São João, um profeta e São Pedro, um apóstolo. de 13 a 29 de junho o nordeste transforma a sua vida e vai buscar no sertão o milho, produto da terra, produto dos índios, cercado de todas as potencialidades de fartura, para matar a fome da gente sertaneja.

Milho e feijão são grãos que enriquecem a terra do sertão, quando há regularidade de chuvas, fertilizando os solos. As sementes e sua germinação tiveram, no passado mais antigo, deuses favoráveis, como Perséfone, que era deusa do mundo inferior, e Deméter, que zelava pela germinação e crescimento dos grãos. Deméter também era conhecida como Ceres, de onde pode ter vindo a palavra Sertão, como veio, por exemplo, Cereal, como grão, plural Cereais, como grãos. Não há, com certeza, uma origem etmológica clara para sertão, mas apenas algumas especulações, como a que faz Dionísio da Silva, ao propor desertão, aumentativo de deserto, do latin desertu, que seria desabitado. O autor justifica a sua proposição valendo-se de uma aférise, ou supressão de fonemas no começo da palavra, no caso o de, de desertão. É uma tentativa muito válida, sem dúvida, de esclarecimento. No caso de Ceres o advérbio tão (tanto) estaria acoplado, sem perder seu significado: de tal maneira, de tal grau.

Há pouco mais de um século, precisamente em 1899, Euclides da Cunha escreveu um livro referencial, Os Sertões, retratando a tragédia de Belo Monte, Canudos, de Antonio Conselheiro e sua gente, no Sertão da Bahia. Mais do que um capítulo da história do Brasil, como uma espécie de percalço da República proclamada em 1889, Canudos representa a última Santidade ou, como quer José Calasans, o último Quilombo. Canudos foi, de qualquer forma, um dos mais importantes cenários, onde a gente simples sertaneja, declarou-se livre, insurgente e insubmissa, para juntar a fé e a coragem, assumindo um mundo moral próprio, representado pela cidade inexpugnável, com suas casas toscas, um viver simples, radicalmente religioso, que guarda parentesco com as utopias.

Euclides da Cunha narra, com precisão científica, o que foi a cidade do Conselheiro, a vida social, os embates, as batalhas com as forças públicas, as expedições militares, bem armadas, como operações de guerra, enfim a trágica vitória final, do Exército contra essa porção do povo brasileiro, reunida em Canudos, anos antes, pela liderança de Antonio, Conselheiro.

(Antonio Mendes Maciel, cearense de nascimento, sertanejou-se em Sergipe, e Bahia,, construindo capelas e pequenas igrejas, cemitérios, em lugares pobres e isolados, enquanto resmungava textos de comportamentos moralizantes e exemplares, pelo fervor católico mais ortodoxo. Conselheiro desafiou o poder, prometendo uma vida santa e farta aos seus seguidores, homens e mulheres simples, de tudo despojadas, que viram no homem o martírio beatificador e na terra sertaneja a Canaã prometida.)

Os sertanejos são destemidos em suas ações. Euclides da Cunha é o autor de uma sentença que vigorou, na antropologia brasileira, por muito tempo: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte.” A beleza da afirmação contrasta com o que moveu o escritor ao fazer tal louvação. É que não houve, ou quase não houve, miscigenação na região sertaneja do Nordeste. A mistura racial preponderante foi de índios e brancos, e não de negros, considerados, pelas teorias da época, fracos e inferiores. Trocada em miúdos, a frase euclidiana exalta o sertanejo, justo por ele não descender do negro escravo. O símbolo da força cai, assim, por terra, para, a propósito, recuperar-se na própria terra onde está ambientado e situado, enfrentando as adversidades e as conseqüências das secas. É aí, neste contexto social de certo modo impróprio e inóspito, que o sertanejo se faz forte e resistente, como a algaroba, a palma, o mandacaru, que guardam em suas raízes, caules e frutos, água e o que há de vida nutritiva na terra.

A utopia de Canudos, no sertão da Bahia, atraiu centenas de adeptos, muitos com suas famílias, feitos jagunços pelas refregas que enfrentou. A comunidade organizada, sob a tutela única de Antonio Conselheiro, foi vista, testemunhada e acompanhada por diversas pessoas que deixaram relatos impressionantes, como o rábula Manuel Pedro das Dores Bombinho, que também era Mestre da Banda de Música de Simão Dias, na fronteira sergipana. Matando, involuntariamente, um colega advogado, na Comarca de Simão Dias, Bombinho passou-se, fugido, para o lado da Bahia e assistiu, no palco da guerra, todo o drama do Conselheiro e de sua gente.

Canudos, História em Versos, datado de 1897, é o livro, ainda há pouco editado, em São Paulo, do sergipano, com notas explicativas, comentários, pequenas biografias, que elucidam o campo de batalha e o episódio, no seu capítulo final, devastador, liquidando a cidade, matando sua gente, destruindo aquele mundo feliz. Outros sergipanos foram personagens, tanto do lado dos militares, como José de Siqueira Menezes, que depois da guerra de Canudos governou e modernizou Sergipe, como do lado dos Jagunços, que tiveram as suas biografias fixadas por José Calasans.

Canudos foi um tipo de Cocanha, aquela utopia de terra de fartura, sem trabalho, de liberdade e de eterna juventude, o Paraíso perdido. Hilário Franco Junior, em dois preciosos livros, trata da Cocanha com o rigor de um mestre, indexando textos de várias épocas e lugares, a partir do Fabliaux francês, dos meados do século XIII. A vigência da Cocanha, em diversos países e povos, justifica o parentesco com alguns traços do Sebastianismo, depois da morte trágica do jovem Rei de Portugal, em luta, no Marrocos, contra os infiéis. São temas que se tocam, se aproximam, comuns em certas e determinadas situações, revigoradas em suas projeções sociais.

As Santidades tinham essa característica, de um viver farto e feliz, com as pessoas convertidas em “santos”, na comunhão da vida social. Canudos herdou das Santidades esse espírito santo, já reconhecido no Céu das Carnaíbas, em Sergipe, duas décadas antes. A Cocanha, como utopia universal, vivificou em Canudos de Conselheiro, como um atrativo a mais para as legiões de pessoas famintas, sem trabalho, andando nas incertezas do tempo, por lugares próximos, que fossem redentores com seus frutos. Canudos tinha o poder mágico de fazer abrir a sua terra seca e muitas vezes ainda mais ressecada pelas estiagens, num pomar inesgotável, como o País do São Saruê, versão cordeliana da própria Cocanha.

Além do folheto de cordel, de autoria de Manoel Camilo dos Santos, talvez de 1947, há muitas outras projeções de fartura, marcando a vida das populações nordestinas, muitas vezes faminta, estigmatizada pelas secas. Assim como a terra pode se transformar em alimento, de todos os tipos, também o corpo pode exibir toda a abundância alimentar, como na música, de domínio público, Linforme (Uniforme) Extravagante, gravada por Luiz Gonzaga, na década de 50:

“Mandei fazer um linforme,

como toda a preparação,

para botar no arraiá,

na noite de São João.

Chapéu de arroz doce

forrado com tapioca

As fitas de alfinim

e as fivelas de paçoca

a camisa de nata

e os botões de pipoca.

A ceroula de soro

e as calças de coalhada

O cinturão de manteiga

e o buquê de carne assada

sapato de pirão

e ezertilhão de escada.

As meias de angu

presilhas de amendoim

charuto de biscoito

e os anelões de bolinho

os óculos de ovos fritos

e as luvas de toucinho.

O colete de banana

e a gravata de tripa

o paletó de ensopado

e o lenço de canjica

carteira de pamonha

e a bengala de lingüiça.

Vai ser um grande sucesso

no baile da Prefeitura

a pulseira de queijo

e o relógio de rapadura

quem tem um linforme deste

pode contar em fartura.

Sendo a sobrevivência a mais universal das recorrências humanas é natural e cultural que as pessoas e os grupos sociais façam da comida um objeto permanente de sonho de consumo. E que busquem na terra, onde a semente brota, o alimento que falta. Os índios brasileiros, do norte, contam uma estória sobre o líder Nhara, que é a própria história do milho, com seus grãos inesgotáveis, reproduzindo numa progressão infinita, além da matemática.

Certo dia, vendo que sua tribo aos poucos morria de fome, sem guerreiros fortes para a guerra, Nhara pediu aos mais jovens de sua aldeia, que ainda guardavam a força dos braços, para arremessar o seu corpo contra as árvores, para fertilizar a terra. Seus jovens guerreiros reagiram à ordem, mas foram convencidos pela voz do chefe e assim fizeram. E em cada lugar que caiu um pedaço do corpo de Nhara nasceu um pé de milho e jamais houve fome naquela tribo.

A noção da responsabilidade do chefe é tão forte, na narrativa, quanto a busca de um alimento perpétuo, que jamais falte, e que garanta a sobrevivência das pessoas. O exemplo do chefe índio é próximo da composição musical folclórica, do folheto de cordel e dos textos cantados em Canudos, todos convergentes com a utopia da Cocanha como terra da fartura e da felicidade. e mais exemplos da história humana, encontrando, alguns deles, no Brasil lançam mais funda e mais larga a idéia do Paraíso reinventado, para consolo e a paz do homem para o qual foi destinado.

O índio muitas vezes foi tido como mangrião, indolente, preguiçoso, e até mesmo acreditados estudiosos não escaparam do preconceito contra as nações de selvagens. Durante muito tempo a indolência estava associada ao índio, como se justificasse a sua condição nômada, em relação à natureza. Essa visão do colonizador sobre o colonizado não deu clichê apenas ao índio, mas também ao negro, considerado igualmente preguiçoso, e ao mestiço. Essa qualificação pejorativa concorreu, com certeza, para a literatura nacional não construísse um tipo brasileiro nunca: nem entre índios, nem entre negros, nem entre mestiços. Mário de Andrade, com sua rapsódia O Macunaíma foi quem melhor encaminhou a questão, ainda sob a máscara da crítica ferina, característica do Modernismo de 1922, que tinha nele um dos seus maiores expoentes.

O mito da preguiça entre os índios e, mais tarde, entre os brasileiros em geral responde, de algum modo, pelas ocorrências de cenas utópicas, de paraísos próximos, como o da Cidade do Paraíso Terrestre, ou Santa de Pedra, episódio entre Pernambuco e Alagoas, de 1817, ou a Pedra do Reino, também em Pernambuco, ambos inspiradores de diversas obras literárias. Mas, não apenas são conhecidos os vínculos exclusivos dos índios, mas também dos colonos, nos primeiros tempos, conforme está registrado nas Confissões da Bahia, livro de depoimentos de pessoas submetidas à Visitação do Santo Ofício.

Luísa Barbosa, cristã-velha, confessou em 23 de agosto de 1591, aos 37 anos, que quando mocinha de 12 anos, viu levantar-se na Capitania da Bahia uma santidade e que havia nela Deus que dizia aos adeptos, que “não trabalhassem, porque os mantimentos por si próprios haviam de nascer.” Esse tema da frutificação espontânea da terra, saciando a fome de quem nela vive, está no imaginário brasileiro desde o primeiro século da colonização. É grande o número de Santidade na Bahia e em Sergipe, conforme o registro de Heitor Furtado de Mendonça, Visitador, em nome da Santa Inquisição.

Nos séculos seguintes — XVII e XVIII — são também registrados episódios curiosos, sobre a expectativa de felicidade do povo brasileiro de então. Vivendo o século XII entre a restauração de Portugal — 1640, e a chegada dos holandeses, os brasileiros foram divididos, lutaram, e ainda assim alimentaram a idéia de riqueza e de liberdade, nos episódios que patrocinaram. As descobertas das minas de ouro e prata, no rastro do salitre, outra riqueza por ser matéria prima da pólvora, permitiram aumentar ainda no imaginário a idéia de riqueza, antes ligada tão somente aos frutos agrícolas da terra.

O século, o mais obscuro de todos para a história do Brasil, reproduz a noção da terra rica, em Minas Gerais, e realimenta, no seu curso, o ideal de liberdade, que tem como ponto maior o levante mineiro dos inconfidentes, tendo o Alferes Joaquim José da Silva Xavier, O Tiradentes, como o principal martirizado. Vários outros levantes, insurgências, sedimentaram, nos brasileiros, um compromisso que parecia estar próximo, de construção de uma pátria livre, cuja noção era sentida em diversos pontos do País, como em Sergipe, quando o Padre Eusébio Dias Laços Lima proclama o seu Império, distribui títulos de nobreza e enfrenta a ira da Coroa portuguesa.

O século XIX chega, assim, conotado por lutas e por ideais encarnados durante o itinerário histórico da sociedade nacional. A utopia de um País farto e feliz, como o da Cocanha, perpassa toda a história social brasileira. E Canudos dá o arremate, ainda que não esgote o compromisso onírico, cuja proteção estética ainda repercute hoje no Brasil. O sentimento dominante era o de que os brasileiros precisavam de alguém, uma Santidade, um líder, um guerreiro, um beato, como o Conselheiro, para conduzir o povo ao estado feliz. Por isso mesmo os brasileiros acreditaram na volta do Rei Dom Sebastião, confiando gozar da mais perfeita felicidade e que todos os sonhos se realizariam, plenamente, como anotou o botânico George Gardner, na sua Viagem ao Interior do Brasil (1836 – 1841).

O Frei João Evangelista do Monte-Marciano, um dos capuchinhos presentes no palco da guerra de Canudos, comprova tudo o que estava anotado em relação aos movimentos místicos da Pedra do Reino, ao fazer o registro da cidade do Conselheiro, “onde corria leite e mel, e os barracos do rio eram de cuscuz.” Vale transcrever o texto do frade, como um alegoria sentida por quem passou pelo campo de batalha, e viu as legiões de famintos, carentes na fartura, os regimentos de infelizes, certos da felicidade, viu, talvez, o sonho de um povo inteiro ali representado por atores do cotidiano sertanejo, acostumados a uma vida de provações e de sacrifícios, sem os votos de pobreza da sua ordem religiosa.

Desde o século XVIII que aquela região sertaneja destinada a ser um centro de fé. O capuchinho italiano Apolonio de Todi mudou o nome da Serra de Piguaraça para Monte Santo, depois que um forte vento impediu a Procissão da Penitência, que fincava cruzes ao longo do caminho. Naquele local, após a saída do missionário, apareceram arco-íris e o povo, admirado, começou a visitar as cruzes santas e logo descobria que a peregrinação curava os doentes. O próprio Apolonio de Todi, em carta ao dr. Baltazar da Silva Lisboa, testemunha. “Espalhou-se este boato, e com isto, e com arco-íris que apareciam, principiaram a concorrer os doentes, que era um continuado concurso de bem longe, vindo cegos, aleijados, ainda em rede, e todos ficavam bons.”

A idéia de redenção, da superação de todas as dificuldades, está presente não apenas em Canudos, mas em outras partes do Brasil, em épocas diversas, como um sonho permanente, desde os primeiros tempos do Brasil. Canudos tomou, isto sim, um significado especial, porque os seguidores do beato levaram às últimas conseqüências, pagando com o sangue, os ideais, ainda que toscos, de liberdade, de justiça, de felicidade. O combate a Conselheiro não estava limitado ao poderio bélico da Expedições. Jornalistas, escritores, folheteiros, todos tomaram partido, ridicularizando a figura líder, nivelando-o pela patologia dos crimes, bem ao escopo racial da época.

O poeta de cordel João Melchiades Ferreira da Silva, que lutou na Guerra de Canudos, contra os conselheiristas, escreveu:

“Para iludir ao povo

ignorante do sertão

inventou fazer milagre

dizia em seu sermão

que virava a água em leite

convertia as pedras em pão.”

Os dois últimos versos ecoaram e foram guardados pela tradição, em Canudos e em todo o Nordeste brasileiro. 60 anos depois, em 1957, circulava a Segunda edição de Meu Folclore, de J. Sara, reproduzindo o imaginário do tempo do Conselheiro:

“Construiu em Monte Santo

o caminho da Santa Cruz

o povo dizia na reza

“do céu baixou a luz,

quem no fizer o bem

Dom Sebastião já vem

mandado do Bom Jesus.

Espalharam mil boatos

por todo aquele sertão

Em Belo Monte já estava

o D. Rei Sebastião

Dos montes corria azeite

a água do rio era leite

as pedras convertiam-se em pão.

Desta triste retirada

que rumaram ao sertão

a fome, a sede, o flagelo,

esse povo em oração,

morrer, sofrer e rezar,

porque íam ressuscitar

com D. Rei Sebastião.

Tomaram todo armamento,

víveres e munição e espalharam boatos

Que D. Rei Sebastião

chegou em Belo Monte

transformou a água das fontes

em leite e as pedras em pão.

No seu relatório, o frade Marciano atesta: “Os aliciadores da seita se ocupam em persuadir de que todo aquele que quiser se salvar precisa vir para os Canudos, porque nos outros lugares tudo está contaminado pela República: ali, porém, nem é preciso trabalhar; é a terra da promissão, onde corre um rio de leite e são de cuscuz de milho os barracos.”

Muito tempo depois da tragédia, dois irmãos que sobreviveram — Manuel Ciríaco e José Ciríaco — guardaram a essência do ambiente de fartura, e assim disseram: “No tempo do Conselheiro, não gosto nem de falar para não passar por mentiroso, havia de tudo, por estes arredores. Dava de tudo e até cana-de-açúcar de se descascar com a unha, nascia bonitona por estes lados. Legumes em abundância e chuvas à vontade. Esse tempo parecia mentira.” (Manoel Ciríaco) “Canudos, onde antigamente o verde das folhas não faltava, Hoje seca é todo o ano.” (José Ciríaco). Não sem razão Euclides da Cunha afirmava em Os Sertões: “E o sertão é um paraíso.”

Antonio Conselheiro tinha certa consciência do seu papel de líder, alimentando no povo a esperança boa da mesa farta, sem trabalho, do ócio digno e da ressurreição celestial. Num Manuscrito datado de 12 de janeiro de 1897, Conselheiro demonstra a sua visão da realidade do seu tempo, afirmando: “Dona Isabel libertou a escravidão, que não fez mais do que cumprir a ordem do céu; porque era chegado o tempo marcado por Deus para libertar esse povo de semelhante estado; o mais degradante a que podia ser reduzido o ente humano.”

A imagem física de um homem desgastado pelo tempo e pelo sofrimento pessoal, com sua túnica azul, seus cabelos longos e barbas compridas, unhas grandes e sujas, envelhecendo sem az, não é a mesma que têm os seus devotos, como registra Manoel Pedro da Dores Bombinho:

“Tido como homem divino

do céu para a terra escolhido

aquele que o via falando

ficava por ele perdido.

de crente as provas deu ele

as obras que fez que o diga,

não se pode isto ocultar

nos trabalhos não tinha fadiga.

Diziam: é o servo divino

outros: é Santo, vem do Senhor

afirmavam: conversa com Deus,

devemos lhe ter grande amor.

Faz milagre, não é ? é Jesus

sumo bem de Deus enviado

vem trazermos bonança, perdão

é um Santo, não tem pecado.

No final da guerra, o povo se move nervoso, tenso, emocionado, de um lado para o outro. J. Sara conclui seu poema:

“Reuniu-se tanta gente,

para o dia da redenção,

esperavam o Salvador

e o Rei Dom Sebastião,

gente fazia fileira,

foi a Tróia brasileira,

nos carrascos do sertão.”

Bombinho, no fim do seu livro, fala da morte do Conselheiro, pela boca de João Francisco:

“O nosso Conselheiro Bom Jesus

está morto venham ver é uma verdade

não sei o que se deu é um mistério

acabou-se a nossa liberdade.”

J. Sara vai ainda mais longe, ao informar sobre o Conselheiro após a morte em Canudos, como a expressar o sentimento de perda e, ao mesmo tempo, a esperança da justiça divina:

“O Conselheiro foi ao céu,

e a Deus pediu perdão,

São Pedro lhe respondeu

descansa aí teu bastão,

criarei um lugar novo

para descanso do teu povo

até vir a redenção.”

Canudos pode ser identificado, no seu exemplo vivo, sofrido e dorido para o povo, como o País de São Saruê, o improvável, no dia de São Nunca, uma “besteirinha”, como disse o poeta popular Manoel Camilo, autor do folheto sobre o País da fartura, tirado da frase comum na boca do povo: “Só em São Saruê, onde feijão bota sem chovê.” Orígenes Lessa conta, em A Voz dos Poetas — 1ª série, 1984, que entrevistou, por três vezes o poeta do País de São Saruê e revela que Manoel Camilo nunca entendeu, por exemplo, como é que um folheto escrito fácil, fácil, em menos de duas horas, quase em cima do joelho, atoleiros de coalhada, açude de vinho de cristal e marfim, gente sadia, alegre e forte, sem pobreza nenhuma, árvores de comida já pronta, peixe, carne, feijão ( só pegar e comer), árvores de roupa feita( só pegar e vestir), árvores de dinheiro(só apanhar e gastar), tudo de ouro e cristal(sem precisão de trabalho).

O País de São Saruê não é somente um País de mentira, é, principalmente, um anseio de verdade próxima, refletida na saciedade que põe fim ao travo da miséria sertaneja. Do mesmo modo como a Cocanha, “como terra maravilhosa de fartura, ociosa, juventude e liberdade”, no dizer de Hilário Franco Júnior, não é apenas um texto, com as suas variantes, paródias e ilustrações, é um sentimento íntimo dos povos que rejeitam a fatalidade da submissão.

Em Sergipe, o poeta popular Vicente de Paula, no seu folheto O maior Candidato, lança uma plataforma para o Governo do Estado, prometendo:

“Quando eu for governador

vamos ter prosperidade,

vai haver felicidade,

tranqüilidade e pudor,

nada ao povo há de faltar

e todos irão gritar

o mau tempo já passou.

..................

O povo já está cansado

de trabalhar para viver

fazer tudo e nada ter

vivendo sacrificado.

Vamos ter muita fortuna

comer, gozar e luxar

só se come o que quiser

ninguém pode passar má

doce, queijo e guiné

cigarro bom pra fumar.

Ao povo do interior

também não vai faltar nada

terão transporte de graça

comida e vida folgada,

eu darei vacas leiteiras

com bonitas capineiras

ninguém pega mais a enxada.”

Com tal promessa de campanha, Sergipe seria outro País de São Saruê ou outro País da Cocanha.

O Encontro de Lampeão com o Padre

(A representação, pessoal, do Bem e do Mal)

A Expedita, filha de Lampião e

Maria Bonita e aos seus filhos

Dejair, Gleise Mary, Vera e

Isa

No contexto do culto popular aparece Lampeão, movido pela necessidade de fazer justiça pelas suas próprias mãos e reunindo todos os descontentes e apáticos caminhantes das paisagens desoladas do Nordeste construiu uma milícia que incomodou, como Conselheiro fizera antes, a todo o sistema.

Virgulino Ferreira da Silva seria um cidadão comum, que passaria desapercebido em sua vida difícil, convivendo com a seca no sertão pernambucano, não fosse a circunstância forte, de disputa de um pequeno pedaço de terra, onde deitar o corpo cansado, onde plantar uma malhada com feijão e milho, a mandioca da farinha e a macaxeira para comer, diariamente, com carne do sol. Cada nordestino pode, como acontece com a esmagadora maioria deles, passar pela vida e não deixar mais que um nome, repetido, de José, Severino, João, Pedro e Francisco, que os mais velhos guardam da história sagrada, como se a simples tomada do nome pudesse aliviar a dor e o sofrer da gente do sertão nordestino.

Não há, na biografia do Virgulino, qualquer aspecto que possa diferenciá-lo dos demais sertanejos de sua época, apenas a circunstância de fazê-lo sujeito de uma trama comum, que marcou, sempre, a vida das comunidades pobres, organizadas sem simetria, desde que os índios, escravos fugidos ou libertos, mestiços, e pobres em geral procuraram terra para o sustento, trabalho, casa, para repetirem, nas condições possíveis, a base familiar da ordem social. a família é no Nordeste um padrão imitado, nos moldes da aristocracia das fazendas de gado e dos engenhos de açúcar.

Ao pobre resta ter uma grande família, para sentir a posse, como se cada filho fosse um bem. Há, entre os nordestinos duas formas de riqueza, como eles próprios dizem: “sou rico, das graças de Deus”, ou “minha família é tudo na vida.” As graças de Deus dependem do comportamento, da fé, da devoção, da vida regrada pelos ensinamentos da Igreja, acompanhados, de perto, pelo padre da paróquia. A família grande não é apenas uma demonstração de virilidade, mas uma busca de posição e de respeito, na comunhão social. Cada filho representa uma oportunidade de aproximação com as outras pessoas do lugar, pelo batismo que faz compadres, ou protetores, na batalha da sobrevivência.

Virgulino Ferreira da Silva, entre os seus irmãos, repetiu o gesto dos pais sertanejos, buscando afirmar-se pela prole, garantindo, ainda, mais braços para o aluguel, mais força para o trabalho. Essa forma de reproduzir as famílias e os grupos sociais serviu, durante séculos, aos interesses de produção da região nordestina. Cada pessoa que nasce parece ser, de logo, destinada ao serviço do aluguel, ou tratando a terra para as diversas lavouras, ou apartando o pastorando o gado, ou limpando a cana-de-açúcar, ou nos serviço domésticos. E assim tem sido mantida a riqueza concentrada nas mãos de poucos. Os braços que sobraram, os mais fortes e sadios, foram empregados na construção civil e em outras atividades pesadas, em São Paulo e em outras cidades grandes, em processo acelerado de crescimento urbano.

Virgulino ficou na terra onde nasceu e só saiu para cumprir um fadário que marcou sua vida, introduzindo-a na história, como fugitivo, como pistoleiro ou cabra, e finalmente como cangaceiro, chefe de si mesmo e de seus bandos, formados por homens iguais, com as mesmas limitações na roda do destino. Com ele seus irmão, tão motivados quanto ele, para as refregas que fizeram da catinga um cenário único no Brasil do Nordeste. Um cenário desafiador, seco e sem vida na maior parte do tempo, mas que reverdece rico e bonito, como não há nada igual para quem vive dele. Virgulino conhecia, como a palma da mão, a terra onde nasceu e viveu, dilatando os horizontes dos seus olhos para os pontos cardeais, andando firme em todas as direções, até tombar sem vida, na margem do rio São Francisco, na Gruta de Angico, em Sergipe.

Desde que trocou o rancho fixo da terra pernambucana que Virgulino iniciou uma saga, que só terminaria em 1938, quando a sua cabeça foi decepada, como símbolo final de um “reinado” no sertão. Travava-se, naquele momento, uma batalha entre a ciência que explicava as ações humanas pelo tamanho e peso do crânio e por outros sinais físicos, e a cultura, que guardava da realidade um tipo singular de experiência, dando vida e voz a personagem simples, dotados apenas de coragem própria, sem modelos ou estímulos, que não os da reação justa e digna para as mais indisfarçáveis formas de tutela e de dominação no sertão nordestino.

Virgulino coletivizou-se em muitos dos seus assemelhados, a começar pelos irmãos e parentes, como Ezequiel, mais tarde conhecido como Ponto Fino, Virgínio Fortunato, que ganhou o apelido de Moderno, amigos, conhecidos e desconhecidos, como Luiz Pedro da Silva, o Esperança, Cristino Gomes da Silva, o Corisco, Mariano Gomes da Silva, o Pernambuco, Hortêncio Gomes da Silva, o Arvoredo, José Alves dos Santos, o Fortaleza, José Vieira da Silva, o Lavareda e Antonio Alves de Souza, o menino Volta Seca, com os quais dividiu suas ações, assumindo um comando forte, respeitado, afamado, sob a alcunha de Lampeão.

A vida de Virgulino Lampeão, feito capitão dos seus homens em marcha, entrando e saindo de pequenas vilas, dando combate ao grande número de forças policiais ou Volantes, organizadas a soldo, para perseguirem, por todos os lugares, os bandos de cangaceiros. O Nordeste virou um campo de guerra. Saques, perseguições, violências generalizadas, foram praticados contra as populações, em nome de uma causa, a morte de Lampeão. O povo chegou a dizer, fugindo de casa, que dos males o menor, que preferia Lampeão as Volantes, porque estas eram perversas, faziam todo tipo de horror, horrorizando as localidades. Para as Volantes valia tudo: delação, tortura, suborno, assaltos, , tudo que pudesse intimidar as pessoas que davam, com seus códigos de silêncio, cobertura aos bandos de Lampeão.

Conhecendo, palmo a palmo, toda a região nordestina, sabendo onde estavam as fontes de água, os pequenos riachos, as grotas e as grutas, andando em desertos diferentes, pelos Estados de Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, Virgulino Lampeão foi, como ficou na memória do povo, um Interventor ou Governador do Sertão, distribuindo justiça, aplacando a alma abafada da gente sertaneja, fatalizada pela dependência e pela submissão. A vida do justiceiro nômade, que com suas alparcatas atravessava o sertão, entrava na catinga, subia as serras, beirava os cursos de água, canoava pelo velho Chico e ainda tinha forças para enfrentar as forças, dando ao povo uma mitologia própria, um imenso repertório de estórias, quadrinhas, cantigas, relatos de episódios, que foram um dos mais expressivos tesouros da cultura popular brasileira.

Lampeão criou seu uniforme, para a convivência com o ambiente do sertão. Uma roupa ecológica, capaz de proteger, mas também de permitir uma adaptação aos rigores do clima. Levando, com a roupa, armas, munição e víveres, cada homem do bando carregava uma carga pesada, de mais de vinte quilos, da qual jamais se livrava. O cangaceiro era ele, sua roupa, sua armaria, sua manutenção, numa pessoa só. Não há, na iconografia do Cangaço, qualquer imagem de burros de carga ou de outro qualquer transporte daquilo que era necessário à sobrevivência. Cada homem, cada mulher, levava o peso de tudo o que tinha, como a própria sombra.

Já muito afamado, ungindo pelo Juazeiro na devoção ao Padre Cícero Romão batista, Virgulino Lampeão fez de Sergipe uma espécie de acampamento, para onde voltava sempre, reabastecendo-se de homens, de armas, de munição e de gêneros. Poço Redondo, no sertão sanfrancisco, que dera muitos homens e mulheres a Canudos de Antonio Conselheiro, dera também parte dos cangaceiros dos bandos de Lampeão, de Zé Sereno, a começar pela mulher Sila, de Corisco e de Zé Baiano. Foi em Pocó Redondo, em 1929, que Virgulino Lampeão apareceu com seu pequeno bando. Ele com 29 anos, Ponto Fino com 20, Moderno com 28, Esperança com 24, Corisco com 23, Pernambuco com 25, Arvoredo com 24, Lavareda com 27, e Volta Seca com 18 anos. Todos, a exceção de Fortaleza, que não teve a idade declarada, em documento de próprio punho e firmado pelo Capitão Virgulino Lampeão, tinham menos de trinta anos, exibindo uma média de 24 anos para o bando de 10 homens em armas.

Nunca o Capitão Virgulino Lampeão apareceu tão aberto, com seus homens, como naquele dia 19 de abril de 1929, em Poço Redondo, sertão de Sergipe, onde ouviu Missa acompanhado por todos. O Padre Artur Passos, virando-se do altar para o povo viu, “além, ao sol, fora da capela, cabeças descobertas, sem armas, de braços cruzados, atentos, respeitosos, olhos pregados(nele), esses homens cujas vidas têm sido um amontoado de crimes, delitos, abominações, mas homens, todavia.” O Padre, homem experiente no convívio com as populações sertanejas do rio São Francisco, hesitou em abençoar o grupo de Lampeão, amparando-se na responsabilidade de cumprir o ritual perante os fiéis todos e não apenas os Cangaceiros. Ele próprio confessou: “Tinha que erguer a mão para abençoar o meu povo, as ovelhas do MEU REBANHO. Um certo constrangimento me empolgou. Voltei-me ainda uma vez. Devia ser mais explícito. E foi um desenrolar enérgico e bem claro dos MANDAMENTOS, onde o amor de Deus e do próximo, o não matarás, o não adulterarás, o não violentarás, se entremeavam a cada instante com o QUEM TEM OUVIDO DE OUVIR, OUÇA.” (Padre Artur Passos in O Bando Diante de Deus III, Penedo, 18 de maio de 1929).

A primeira pessoa do bando, com quem falou o Padre Artur foi o Moderno, descrito como “um rapaz robusto, espigado, de traços fisionomicamente não desagradáveis, alvo corado, insinuante”. Os modos e a desenvoltura nas respostas chamaram a atenção do Padre. Em seguida chegou Lampeão, “alto, acaboclado, robusto, andar firme e compassado, cabeça um tanto inclinada, o olho direito inutilizado, com uma grande mancha branca, óculos brancos de aro de ouro, ou metal dourado, um sinal preto na face direita. Na cabeça, grande, alto, vistoso chapéu de couro, ainda novo, bem talhado, a imitar os antigos chapéus de bois bicos, com as pontas para os lados, tendo as largas abas da frente e de detrás erguidas e enfeitadas. Uma estreita tira de couro, ornada, o prende a testa, uma outra à nuca, e uma terceira, o barbicacho, aos queixos. Este chapéu fica, assim, bem seguro e apesar da altura não deve cair com facilidade. Cabelos estirados, cortados à Nazarena, inteiramente bem barbeado. Blusa e calças-perneiras de cáqui. Aos pulsos — guarda-pulsos — de couro, de uns 4 dedos de largura. Anéis em todos os dedos, teria na ocasião uns 5 ou 6 na mão direita e uns 6 ou 8 na mão esquerda. Duas grandes cartucheiras de um lado e duas iguais do outro, cruzam-se sobre o peito. À cintura, à guiza de cinturão, um larga cartucheira com duas ou três ordens de cartuchos. Tudo bem enfeitado de ilhoes e placas de metal. Na mão, inseparavelmente, a arma terrível que tantas mortes já vomitou, no rápido crepitar, no lampejar contínuo do qual, segundo consta, se origina o seu nome de guerra. Esta arma não é um rifle. é sim um mosquetão de cavalaria, ou coisa semelhante: aram de cinco tiros, que tem o ponto curvo. À frente, passando entre as cartucheiras, o já conhecido punhal, de uns 3 palmos, cabo e bainha de metal branco, arma forte, bonita, mau grado a aplicação que tem, de ótima têmpora. Com ela pelo cabo observei abrir, com facilidade, uma garrafa de conhaque sergipano, sem ultrajar a rolha. Ao lado e às costas, pendentes de fortes bandoleiras, as sólidas mochilas, bem recheadas de balas, formando uma larga e saliente roda, de grande peso. Tudo isto liga-se ao corpo de modo tal, que forma uma espécie de couraça fixa, sem lhe prejudicar os movimentos rápidos. Ao voltar-se para qualquer parte e em qualquer posição, nada desse arsenal se desloca. Usa uma espécie de sapatos de grossas solas e bem feitos. Traz esporas e rebenque e, ao montar, calça umas luvas de pano marrom que cobrem apenas as costas das mãos. No bolso das calças, donde várias vezes a vi retirar, uma carteira bem recheada, além da qual deve trazer, em lenço ou carteira, sob a blusa, o grosso dos cobres. Anda sempre bem barbeado. E em qualquer casa de barbeiro, por onde passa, manda escanhoar, desembainhando o terrível punhal que conserva voltado para o operador, enquanto da porta, um dos seus, arma pronta, segue atento a operação. Em tudo guarda serenidade e presença de espírito. Este o homem.”

Virgulino era o mais caboclo dos 10 integrantes do bando. Seu irmão Ponto Fino era o mais claro e os demais, todos eram alvos, exceto Volta Seca, que era moreno. Ao descrever o bando, Padre Artur Passos informa: “Estes 10 homens, moços, fortes, robustos, musculosos, formam um verdadeiro esquadrão sui generis, assim, mais ou menos, igual e formidavelmente uniformizados. Diversos deles, nomeadamente o Moderno, trazem, além dos guarda-pulsos de couro, pulseiras nos pulsos e pendentes dos dois bicos que formam as abas dos grandes, altos e vistosos chapéus. Cabelos bons, bem tratados, cortados à Nazarena, barbeados todos. Trazem muitos anéis em todos os dedos, mas nem os anéis e nem as pulseiras são de grande valor. Alguns trazem cobertas, ou cobertores, bem bordados, sob as cartucheiras, ornadas, bem como as correias das armas, de ilhoses brancos e rodelas de metal. Tal a sua disciplina, que formam um tanto compacto e homogêneo. Alguns são calados e reservados. Não mostram, porém, face carrancuda, nem os ví com maus modos. Não têm, inclusive Lampeão, cara repelente, como imaginamos nos bandidos em geral, devendo frisar, porém, o olhar especial de um deles, o fedelho de 16 a 18 anos, que os acompanha. Estão bem armados, todos, trazendo alguns 2 ou 3 revólveres e, ao que parece, bem municiados. Apenas uns 3 ou 4 estão armados a rifles, os demais, como Lampeão, trazem mosquetão de cavalaria. Observei bem que são destemidos e valentes."

A Igreja representa, simbolicamente, em toda a região nordestina, a esperança de um mundo melhor, purificado no respeito aos mandamentos. As populações, por mais dependentes que sejam, devem perseverar na fé, confiando que os padres, em nome de Deus, e os santos, em nome da devoção que eles inspiram, farão a mediação com o Paraíso remontado, no sertão, pela visão da terra como capaz de saciar a sede e a fome, acabando com a miséria e a vida indigna. Não surpreende, portanto, que o vigário sertanejo se tome de autoridade moral e enfrente o grupo de Lampeão, tentando o desarme material, em função dos pecados cometidos.

Os valores, que muitas vezes são confundidos com os mandamentos religiosos ou com o rol de crimes, vigoram por adesão, em todas as classes. E tanto mais arcaica a sociedade mais os valores são evocados, em suas vigências.

Virgulino manteve, conforme testemunho insuspeito do Padre Artur Passos, os seus costumes sertanejos. Procura a Igreja, assiste Missa, dá esmolas, faz caridade, ajuda na construção de novos templos, seguindo uma regra que adotou, como valor, de sua própria existência, ainda que sua conduta permita reparos. Em Poço Redondo não foi diferente. Mesmo alquebrado pelas lutas e pelas fugas, o chefe do bando deu exemplo, representou a todos do grupo e acautelou-se diante da voz do Padre, com a conciliar a autoridade adquirida nos sertões, pela bravura de seus atos, com o respeito à autoridade superior da Igreja, a única que parecia lhe intimidar.

Havia uma diferença fundamental entre o movimento messiânico, monárquico, de Antonio Conselheiro, feito contra a República, os maçons e os protestantes, que encarnaram, no século passado, o que havia de mais novo em termos de pensamento político, com fundo filosófico e científico, e o longo apogeu do cangaceirismo, liderado por vários expoentes nordestinos, como Sinhô Pereira, Jesuíno Brilhante, Antonio Silvino, e mais especificamente por Virgulino Ferreira da Silva, o Capitão Virgulino Lampeão. Era a causa em luta. Canudos foi uma Cidade especialmente destinada a resistir contra os avanços republicanos dos militares, positivistas, no Poder. Com Virgulino Lampeão era a terra do Nordeste, que servia de campo de guerra, nos encontros de uma guerrilha que caiu pela traição, não pela vitória das forças, no combate.

Nos dois casos, contudo, o traço de religiosidade persistiu. Conselheiro se tornou um beato, mitificado e santificado pelos seus seguidores. Lampeão ganhou fama de homem de corpo fechado, protegido e abençoado por Deus, para sobreviver a todos os ataques e não dar trégua aos seus perseguidores. Ambos, Conselheiro e Lampeão, embora ungidos pela religiosidade, representaram a mais clara vertente do mal, assumindo, com seus vidas, a desobediência e a insubordinação, diante do Catolicismo. Em Canudos o Frei Marciano, no seu Relatório, condenou Conselheiro. Em Poço Redondo, na sua narrativa do encontro na Igreja, Padre Artur Passos condena Virgulino Lampeão e seus rapazes.

O Padre não conseguiu entender como um grupo de apenas 10 homens podia Ter pleno domínio de uma região que era, por séculos, dominada pelos senhores de terras, que tinham leis próprias e justiça nas mãos.

Lampeão foi insurgente e construiu uma força ilegal, com a qual mostrou uma realidade que o resto do Brasil não conhecia. Nunca um País real revelou-se tão nítido, como no sertão nordestino, no tempo de Lampeão.

Na frente dos seus rapazes Lampeão tornou-se intrépido cavalheiro, armado de ousadia ilimitada, a desafiar um mundo poderosos e rico que o Governo, com suas forças, representava.

Sangrar, castrar, ferrar, e cortar a língua eram práticas dos dois lados, tanto do grupo de Cangaceiros, como das Volantes, e das forças policiais dos Estados. E mais do que práticas eram termos ameaçadores, que desmoralizavam oponentes, como troféus de coragem, tão chocantes como os escalpos dos índios nos Estados Unidos, durante a conquista do Oeste.

Virgulino Lampeão sabia, e também os seus homens, que “o Governo só lhes quer mal, que os sangram se os apanharem, que sofreriam horrores se entregassem, que sabiam que fim teriam nas mãos da força, que os soldados são perversos e mais do que eles, pois atribuem a eles as desgraças que fazem, que não havia mais outro jeito para eles e que era continuar assim, até o fim.” As certezas do “Donatário dos Sertões”, no dizer, segundo o Padre Artur Passos, de “um acatado amigo de Propriá”, prevaleceram até a refrega final, na Gruta do Angico, encerrando não apenas um ciclo, mas pondo um ponto final na especulação, corriqueira na boca do povo, da proteção que Virgulino Lampeão gozava em Sergipe, por ser amigo do fazendeiro Antonio Carvalho, o Antonio Caxeiro, e do seu filho, o Interventor Eronides Ferreira de Carvalho.

Em julho de 1938, quando as forças cortaram a cabeça de Lampeão, de Maria Bonita e de muitos de seu grupo, levando-as para o Instituto “Nina Rodrigues”, em Salvador, na Bahia, o Interventor Eronildes Carvalho fazia publicar, no Rio de Janeiro, nos jornais de grande circulação, matéria sobre Sergipe, de propaganda, com a indisfarçável intenção de desviar o assunto do Cangaço e da morte de Lampeão. Mais do que uma coincidência o fato parece uma deliberada forma de abafar os comentários, que certamente surgiriam com o desmantelo do bando chefiado, diretamente, pelo Capitão Lampeão, so sertão sergipano, justo nas proximidades da fazenda do seu importante coiteiro, o pai do interventor ou ele mesmo, acostumado a encontros com o chefe e com o grupo, em Porto da Folha onde, aliás, residia o Padre Artur Passos.

Não sem esse mote atrativo, curioso, o povo desacreditou na morte de Lampeão. Moderno, em Poço Redondo, teria afirmado, com seus demais companheiros, que “Lampeão não morre assim”, que deus protegia a todos, levantando os olhos e as mãos para o alto. Circulavam várias versões sobre a morte de Lampeão. Bala, envenenamento, ou simples encenação, para permitir uma retirada, organizada, do chefe e do grupo, num acordo selado com o Interventor Eronildes Ferreira de Carvalho. Há quem afirme, ainda hoje, que Lampeão transferiu-se para Minas Gerais, onde como fazendeiro contou com seus antigos companheiros, os que escaparam da morte ou da prisão. O tema da vida e da morte de Virgulino Ferreira da Silva tornou-se motivo recorrente no cancioneiro popular, na Literatura de Cordel, no imaginário do povo.

O Capitão Virgulino Lampeão protegia a donzelice das moças, pelas vilas e cidades por onde andava, proibindo que elas circulassem nas ruas ou ficassem, exibidas, nas janelas de suas casas. E nisto tinha um comportamento moral igual ao do Padre Artur Passos, que também zelava pela integridade das mulheres.

Em Sergipe dois grupos se organizaram para a representação da vida do cangaceiro. O grupo de Zé Padeiro, em lagarto, denominado de Cangaceiros, e o grupo Cangaceiros Novo Lampeão, em Propriá. Um terceiro, também em Propriá, aumenta o número de pessoas que cantam, dançam e contam e representam as estórias de Lampeão. O Capitão não morreu para o povo, que relembram os inúmeros episódios de um tempo difícil, conturbado. Com o passar do tempo as populações sertanejas abonavam, com suas lúdicas, a idéia que Lampeão fazia da sua própria imagem, ao dizer que “O povo não tem medo de mim, tem medo é da força.” O povo guardou a memória do Capitão Virgulino Lampeão e dos seus rapazes, como quem guarda um pedaço da própria alma, na elevação, a um patamar de heroísmo, dos atos de coragem, que fizeram a fama dos cangaceiros.

Lampeão tratou sempre de desmentir, por onde andava, sobre aquilo que lhe atribuíam Ter feito. Com viva voz se declarou-se inocente, como disse o Padre Artur Passos: “Eu respeito as famílias, senhor Vigário. Eu respeito o Padre e o Senhor não quer me fazer mal” e concluiu, já em Nossa Senhora da Glória, diante do Juiz Municipal Heráclito Poderoso, que “o Padre é forte, mas é delicado. Gostei dele. Não gostei mais porque não ouve bem.” Essa imagem pacata, segura, calma, de quem lidera um grupo sempre disposto a decidir, na bala, no punhal, na raça, passou para o povo e com o povo ficou, de forma a alimentar permanentemente uma admiração, que a tradição vai sedimentando como um legado incorporado à cultura nordestina.

O Capitão Virgulino Lampeão passou a ser um personagem da vida sertaneja, como o Padre Cícero Romão Batista, como Antonio Conselheiro, como o Padre Ibiapina, e, mais recentemente, o capuchinho italiano Damião de Bozano, o Frei Damião. Todos viveram dedicados à melhoria da vida dos nordestinos, uns aguardando os dons da terra, para prover o sustento, outros com a semeadura espiritual, preparando as pessoas para a morte, o juízo final, a salvação prometida. Traços comuns, que irmanizam, no inconsciente do povo, as mesmas intenções redentoras.

Assim como os partidários do Conselheiro, confiados no retorno do Rei Dom Sebastião não trabalhavam e esperavam que da terra brotassem os frutos necessários à vida, o Capitão Virgulino Lampeão justificava o confisco que fazia de dinheiro, pelos sertões nordestinos. Dizia Lampeão: “Quem tinha 100$000, por exemplo e lhe fizesse falta, que desse 10$000.” E se dizia obrigado a fazer tal coisa, porque “precisa viver, comer, fazer despesas. Não deixavam trabalhar, nem cuidar de outra vida. Era o jeito.” E com suas esmolas, sempre generosas e para todos que pediam, as gratificações que distribuía com seus informantes, os pagamentos que fazia, a mais, a quem lhe servia Lampeão granjeou a simpatia do povo, ergueu uma imagem romântica, como a que foi mostrada, em 1936/37, pelo fotógrafo e cineasta Benjamim Abraão, a quem Lampeão autorizou, e somente a ele, fotografar e filmar a ele e aos seus rapazes, “nos movimentos da nossa vida nas catingas dos sertões nordestinos.”

O Capitão fazia a leitura dos jornais, ou perguntava por eles, para saber quem falava mal e dar “um ensino”, como ele encarava os exemplos. Quando pedia algum dinheiro aos seus amigos, fazendeiros, sempre os que tinha recursos, ele não deixava de fazer ameaças, muitas vezes com ditos comuns, correntes na tradição, como “Eu tenho comido toucinho com mais cabelo”, “Quem tem questão comigo dorme pouco”, “Com zoada não me faz medo”, “Eu tenho visto é coisa forte não me assombra”. Por outro lado sabia agradar aos amigos e colaboradores, com dinheiro e presentes.

Luiz Gonzaga, artista do povo nordestino, cantou a saga de Lampeão, renovou o Xaxado como o ritmo da dança dos Cangaceiros, garantindo uma sobrevida a tudo o que tem relação com a memória sertaneja. Outros artistas cantaram a vida e os feitos do Capitão Virgulino Lampeão. O cinema fez de Lampeão personagem de muitos filmes e fez do Cangaço um tema importante, desde O Cangaceiro, de Lima Barreto até o Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas. A arte popular, em cerâmica e em madeira principalmente, reproduz as figuras de Lampeão, de Maria Bonita, de cangaceiros em geral, para decoração de ambientes. Volta Seca, depois de cumprir dezenas de anos de prisão, soltou a voz e gravou, no Rio de Janeiro, um álbum de músicas do cangaço, tendo como um dos temas o cotidiano do grupo:

“Acorda Maria Bonita,

Levanta vai fazer o café,

Que o dia já vem raiando,

E a polícia já tá de pé.”

O tema do amor, no Cangaço, é um capítulo especial que tem nome e vida em Maria de Déa, a baiana que se tornou Maria Bonita e cheia de encantos foi a companheira inseparável de Lampeão, com quem teve uma filha — Expedita, ou Rosa como a família chama, ou depois de casada: Expedita Ferreira Nunes. Sila, menina moça do sertão sergipano, foi a mulher de Zé Sereno e deu um comovente depoimento sobre a vida no Cangaço, ao escrever livros ou passar para jornalistas e escritores as suas informações privilegiadas. Outras mulheres, como Dadá, companheira de Corisco, cuidaram para que o amor não ficasse de fora da vida dos grupos armados do sertão nordestino.

O lirismo não ficou perdido, como canta Volta Seca:

“Se eu soubesse que chorando,

empatava a sua viagem,

meus olhos eram dois rios,

que não lhe davam passagem.

Cabelos pretos, alinhados,

olhos castanhos, delicados,

quem não ama a cor morena,

morre cego e não vê nada.”

José Sampaio, o poeta dos humildes, escreveu em 1938, em Aracaju, o poema Maria Bonita, que tem esta última estrofe:

“Quando Lampeão caiu para morrer,

Maria Bonita Morreu sobre ele, as lágrimas caindo,

abençoando o seu corpo,

como as contas de um rosário de brilhantes

rezada pela noite morta dos seus olhos.”

José Edson Dias, no baião épico Rei do Sertão, gravado por Xangai, resume:

“Maria Bonita lhe tirou da solidão

dividiu sua vida

entre o sangue e a paixão

até morreu...

...................................

Virgulino, hoje tanta gente

lembra o seu destino.”

Os versos do baião parecem lembrar que Virgulino tocou sanfona, andou com seu pequeno fole de 8 baixos, tirando sons nas festas, para que os bailes sertanejos pudessem ouvir:

“Olê muié rendeira,

olê muié rendá,

tu me ensina a fazer renda,

que eu te ensino a namorar.”

.......................................

“As moças de Vila Bela,

não tem mais ocupação,

passam o dia na janela,

namorando Lampeão.”

Por isto mesmo que o Capitão Virgulino Lampeão encerrava as suas palestras, se despedia do povo e seguia “amando e querendo bem”, como vivia.

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download