Alta Social: a atuação do assistente social em cuidados ...



Alta Social: a atuação do assistente social em cuidados paliativos[1]

Francis Sodré[2]

Algumas inquietações movem um profissional ao escrever sobre sua prática profissional. Neste artigo, particularmente, ressalto que minhas inquietações vieram do convívio com um ambiente de trabalho hospitalar no qual a morte é recorrente. Vários sentidos são atribuídos ao profissional que tem a morte como seu ofício. Também muitos valores são utilizados para adjetivar tais profissionais.

No caso específico do serviço social, percebo que como todas as demais profissões que estão inseridas nas equipes de saúde, o contato com o usuário que está fora de qualquer possibilidade científica de dar continuidade a sua vida, projeta para o assistente social a noção de que sua intervenção chegou ao fim. Afinal, somos profissionais que atuamos a serviço da vida, nas suas mais abrangentes determinações. Entretanto, teria a morte menor valor para o assistente social?

Sabemos que nos dias atuais a morte tornou-se uma situação distante, afinal a ciência retardou a morte. Adoecemos e envelhecemos, mas a morte está longe. A sensação da juventude atribuída a um “estado de espírito”, personalidade, estilos de vida nos dão uma noção de vida prolongada. Ao mesmo tempo, o culto ao corpo, os avanços da biomedicina, estudos da genética, atividades físicas exacerbadas trazem para nossa temporalidade a percepção de que a vida se tornou maior. É raro ouvirmos notícias de morte como antigamente. Aliás, notícias de morte são coisas de antigamente. As famílias se reduziram, a vida se prolongou, as grandes epidemias já não existem mais.

Nos trabalhos que desenvolvemos nos hospitais e unidades de saúde presenciamos diariamente o adoecimento pelas doenças do nosso século, como o câncer ou o HIV, mas a grande vilã tornou-se a violência urbana: acidentes de trânsito, homicídios, assaltos, seqüestros ou furtos seguidos de morte. Qualquer base de dados estatísticos nos mostra que esta é a maior causa de morte entre jovens e adolescentes no país.

Mas várias são as situações sociais que se desdobram e chegam como demanda ao serviço social nas unidades de saúde e hospitais no momento da morte, ou após a morte. Vasconcelos (2002), em sua pesquisa, considerou que os assistentes sociais inseridos em hospitais, maternidades ou institutos desenvolvem atividades passíveis de uma observação especial, como: a) alta, b) remoção ou c) comunicação de óbito. Para ela, essas demandas são historicamente atribuídas ao serviço social, mas sempre causaram controvérsias no debate da categoria devido o seu componente burocrático. Segundo a autora, os assistentes sociais sempre conseguiram conduzir tal atividade de modo que se reverta aos interesses dos usuários.

O cumprimento de tarefas simples e disciplinares também fazem parte da rotina dos assistentes sociais nos hospitais e unidades de saúde. Em ambulatórios e programas os principais aspectos em relação ao usuário dizem respeito à observância de horários, períodos e prazo para retorno de consultas e controle de tratamentos; ao cumprimento rigoroso de procedimentos terapêuticos recomendados (para atendimentos a crianças em fase de imunização ou gestantes em pré-natal); além da interpretação de normas[3] e rotinas dos serviços institucionais para os usuários.

Nos hospitais, os assistentes sociais incidem suas principais esferas de atuação sobre o cumprimento de horários e duração de visitas, o número de visitantes permitidos para cada paciente internado, comportamentos adotados durante a visita e, até mesmo, atitudes e comportamentos do paciente e família pós-alta médica ou atitudes dos familiares caso o doente chegue a óbito (Costa, 2000).

Em uma das pesquisas mais atuais no campo do serviço social voltado para a saúde, Vasconcelos (2002) direcionou seu estudo para os profissionais que atuam no estado do Rio de Janeiro, entretanto, estabelece uma correlação com nossa legislação profissional quando escreve sobre a alta social (remoção para casa ou asilamento a partir de uma solicitação do serviço social) e demonstra que esta mesma legislação deixa uma lacuna quando há necessidade de remoção do paciente para outra unidade de saúde. Cabe ao assistente social posicionar-se sobre a transferência do paciente de um serviço de saúde para outro, situação denominada de forma recorrente por remoção.

No caso da comunicação por óbito, cabe ao médico a responsabilidade por tal informação devido à necessidade de complementar ações prestadas após o momento da morte do paciente. Vasconcelos nos diz que o contato estabelecido do assistente social com os familiares proporciona um diferencial em termos de apoio e orientações sobre o sepultamento. Sabemos que alguns benefícios institucionais e também aqueles abarcados por outras instituições são ofertados pelo profissional de serviço social em auxílio às famílias mais carentes.

De acordo com a legislação do Conselho Regional de Serviço Social do Rio de Janeiro, o assistente social não deve participar da comunicação de óbito de usuários que nunca foram atendidos pelo serviço social. Entre nós, assistentes sociais que vivenciamos a morte de seres humanos em nossa rotina de trabalho, presenciamos repetidamente o descaso com este momento para os familiares e o excesso de informações truncadas sobre sepultamento e seguros assistenciais, como o caso do seguro acidente por causa comum ou acidente de trabalho. Ao usuário que chega vítima de um acidente urbano nos hospitais, raramente presenciamos uma avaliação cuidadosa sobre a causa mortis. E aquele que adoece e vem a morrer dentro do ambiente hospitalar, conta com pouca (ou nenhuma) informação sobre o seu adoecimento e morte para suas famílias.

O interessante é observar que o serviço social sempre é acionado quando o usuário não tem registro de nenhum familiar por ele ou com ele durante seu atendimento. A preocupação da equipe de saúde, em hospitais gerais, por exemplo, é se o paciente vier a ter alta e não ter para onde ir. Como desocupar o leito após seu restabelecimento se não conta com ninguém para retira-lo do ambiente hospitalar?

Com os familiares por perto, começa o trabalho de responsabilização destes para auxiliar nos cuidados com este paciente. E isso é uma função atribuída historicamente ao serviço social. A formação do cuidador ganhou hoje requinte de profissão. Antes o familiar era um ente querido que se dispunha a ajudar no restabelecimento de seu consangüíneo. Hoje, um familiar treinado que deverá se especializar em técnicas hospitalares de tratamento e recuperação do seu doente. Afinal, alguém deverá assumir o “ônus” de ter um familiar doente. E quando não se assume, a equipe de saúde trata de designar o familiar ou amigo mais atento nas visitas médicas para este fim.

Sabemos que o papel do cuidador muitas vezes supera tal análise simples como a realizada acima. Entretanto, aquelas funções médicas de consultar, diagnosticar e tratar são acompanhadas pelo trabalho dos assistentes sociais com as famílias – que muitas vezes desempenham este papel silenciador de demandas que perturbam a ordem hospitalar.

Em situações as quais o acompanhamento é realizado a crianças, o assistente social elabora a alta social em equipe, pois geralmente torna-se necessário acionar instituições como o Conselho Tutelar ou algum âmbito do sistema judiciário relacionado à infância. A família nestes casos não deve ser somente “informada” da alta ou morte do seu paciente, mas preparada e orientada a atuar neste fim.

O depoimento dos assistentes sociais que trabalham nesta área se repete quando perguntados sobre a relação com a família. Todos dizem que a família é mais bem orientada e esclarecida tanto no momento da alta por cura do seu doente quanto no momento da morte. É para o setor de serviço social que os familiares se dirigem quando recebem uma notícia como estas e não tem condições sociais de agir em prol do seu ente em recuperação ou já morto. “Não é só colocar as pessoas na rua” (Vasconcelos, 2002).

O trabalho dos assistentes sociais nos hospitais em situações como estas se resume a dar voz ao familiar e deixá-lo extravasar sua tristeza ou insatisfação. Ter uma alta orientada. Dar apoio aos familiares que perderam alguém ou orientar sobre seus direitos sociais neste momento tão soturno e confuso.

Talvez por isso tão pouca bibliografia é encontrada sobre a atuação do serviço social nos hospitais ou unidades de saúde quando se refere à morte. Apesar dos assistentes sociais reconhecerem, em sua maioria, o valor de sua atuação em um momento de dor, atribuem menor valor aos cuidados com aqueles que já morreram de forma indireta: seus familiares. Muitos não gostam de falar sobre a morte de um usuário que acompanhou, ou relatam com depoimentos reticentes sobre os casos de atendimentos aos familiares de uma pessoa que já tenha acompanhado e veio a falecer.

A atividade de comunicar o óbito torna-se um problema para a equipe, principalmente quando a morte não era esperada. Quando a evolução do tratamento não mostra efeito rápido e a morte clínica já é sabida, a preparação dos familiares vai se dando aos poucos, com o objetivo de amenizar sofrimentos, conflitos ou problemas.

Sobre os demais profissionais, os assistentes sociais sempre se colocam favoráveis a atuar de forma conjunta no que se refere à alta social, remoção, atendimento aos familiares, acompanhar o tratamento do usuário através de visitas domiciliares; mas nunca quando se refere à morte. A discussão sobre a promoção do acesso aos direitos sociais, tão repetida pelos profissionais de serviço social, parece esvair quando relacionada ao usuário que falece e seus familiares à espera de um rumo ou uma simples orientação. A noção do acesso parece se perder frente àquela família que chora. O destino da finitude humana coloca um ponto final no nosso contato com a família que está à nossa frente. Fica a noção de que não há mais nada a se fazer; tudo o que for feito a partir dali é um mero procedimento burocrático.

Enfrentamento da morte através dos tempos

Não seria novidade afirmar que a morte sempre foi dotada de mistérios, segredos e crenças, sendo um dos mais antigos questionamentos humanos. Porque morremos e quais as representações criadas para explicar a finitude dos seres são questões que se perpetuam e atravessam os tempos.

Hoje o “morrer” tem novos significados, digo novos porque outras representações foram criadas pelas sociedades (principalmente a ocidentalizada e medicalizada) e várias tecnologias são criadas para atenuar, “atrasar”, facilitar, retardar, diminuir a dor e o sofrimento do indivíduo no momento da morte.

Nas sociedades tradicionais são inegáveis os registros da morte epidêmica de crianças por doenças infecciosas, de mulheres por parto ou mesmo de homens pelas guerras e doenças como o tétano. Poderíamos afirmar que verdadeiramente as epidemias eram fatores que determinavam a morte. O “morto de guerra” era considerado um “glorioso”; as crianças “anjos” e as mulheres “nobres” por terem “lutado” pela sobrevivência do seu filho e tê-lo dado à vida mesmo após o sacrifício da sua.

O significado atribuído à morte nesta época era o da salvação, a passagem da vida para a morte deveria, antes de qualquer outro procedimento, ter como autoridade a figura religiosa para abençoar aquele que está para morrer ou aquela que está por parir. Afinal era o padre o dono do poder de trazer à vida um ser já sacralizado ou despedir-se do morto com a autoridade de perdoar seus pecados, desde que se arrependesse dos mesmos naquele exato momento do suspiro final.

Com as epidemias os padres que andavam de casa a casa também eram vitimas do adoecimento e morte. Ao circular por estes espaços, casas repletas de moribundos, os padres não conseguiam benzer todas as pessoas que necessitavam antes de morrerem pela causa a qual seus fiéis também morriam (Elias, 2001). As epidemias avançavam em um curto espaço de tempo devido às más condições de habitação e ausência total de regulação sanitária. A degradação do corpo era vista no processo de adoecimento e depois da morte, pois não havia cemitérios.

As crianças eram batizadas um ano ou dois após seu nascimento, pois não poderia prever se iriam “vingar” a morte. O registro era feito somente após a certeza que sobreviveriam. Os miseráveis morriam nos hospitais, que antes chamados hospice em Londres, tinham o significado de um “morredouro”. Foucault (1979) analisa que o pobre era alguém que necessitava ser assistido material e espiritualmente na ideologia da época.

Neste espaço trabalhavam àquelas pessoas dotadas de um espírito sacerdotal – por caridade ou por arrependimento de seus próprios pecados. Basta lembrar da história da formação profissional dos enfermeiros, atividade iniciada por ex-prostitutas idosas que desejavam o perdão dos seus pecados. Com o início da profissionalização dos mesmos, um broche na roupa era utilizado para diferenciar as ex-meretrizes das profissionais por formação técnica.

Em uma época de valorização extremada da família nuclear, os “moribundos” tinham consciência da aproximação da própria morte, pois as epidemias (ou pestes) marcavam a pele e traziam os sinais da morbidez com a evolução do quadro. Ao reconhecer os sinais de sua própria morte, os amigos e parentes eram comunicados, este era o momento dos arrependimentos, despedidas e perdões. O adoecimento que se agravava trazia a certeza da morte.

Em grande parte dos casos, a morte se dava em casa com a família ao redor. A casa ficava aberta para que o corpo fosse velado comunitariamente. As crianças poderiam presenciar a cena (Elias, 2001). A comunidade vivia a realidade da morte entre pessoas muito jovens e por causas hoje consideradas muito simples. Velar o corpo era o conforto para a família que aguardava a chegada dos vizinhos com as portas de suas casas abertas e esta era uma realidade rotineira devido o grande número de mortos.

O mais importante de toda essa história é que o “moribundo” era o protagonista de tudo. A cena girava em torno dele. A morte era o momento em que ele era o foco e tinha voz (Menezes, 2004). O momento de morrer era vivido lentamente, com despedidas e depoimentos surpreendentes aos familiares. Ele sabia “sua hora”, os sinais de seu fim e era o centro neste último momento de sua vida.

Com a chegada do século XX, o Iluminismo – idade das luzes, outros protagonistas vivenciam a cena. A ciência avançou de forma incontestável. O médico e sua equipe trouxeram a autoridade da competência técnica para responderem, com argumentação científica, por esta cena.

Quando se está para morrer ou parir, não se lembrava do padre, mas sim do médico – um profissional que deveria estar ao seu lado no momento da dúvida sobre a vinda da morte ou da chegada de um novo ser ao mundo. A crença se desloca da religião para a ciência. A família passou a delegar os cuidados do seu moribundo ao médico.

Apesar de datado o seu nascimento no século XVIII, o hospital manteve sua estrutura espacial; mas a introdução de mecanismos disciplinares é que possibilita sua medicalização e o confinamento por princípio segregador (Foucault, 1979).

O surgimento dos antibióticos e das vacinas, de forma autoritária, trouxe resultados científicos passíveis de comprovação. Este era o diferencial do conhecimento produzido pela época; tudo era comprovado através de sinais no próprio corpo. A somar-se, ainda, a tecnologia empregada para o retardamento da morte: na Noruega, em 1946, criou-se o primeiro “pulmão de aço”, o arquétipo do respirador artificial[4]. Na Europa o ultra-som surgiu através de uma tecnologia utilizada para encontrar submarinos em alto mar. Bem como o uso do lazer em processos cirúrgicos – resultado de tecnologias utilizadas em guerras (Menezes, 2003).

A primeira experiência de um Centro de Terapia Intensiva (CTI) aconteceu a partir da experiência do respirador artificial: uma caixa de metal que pressionava o corpo, forçando os pulmões. Essa experiência foi primeiramente testada em crianças. O ambiente era composto da equipe médica e enfermagem, o respirador, o doente e o espaço confinado (Menezes, 2004).

Em 1969, ano em que o homem pisou na lua, foi realizado o primeiro transplante de coração[5], o transplante só pode ser realizado devido existência de um respirador artificial. Agora, respira-se artificialmente, coração não pára (mesmo desconectado ao corpo) e cria-se o conceito de “morte cerebral”. O indivíduo só é considerado morto quando o cérebro não mais responde, pois todos os outros órgãos estão sob controle (Menezes, 2004).

O doente, despossuído de voz, diferencia-se do moribundo descrito no processo histórico acima. No século XX, o hospital agregava a família, o doente e a equipe. A primeira, sem nenhum conhecimento do que haveria de ser feito pelo seu ente. O segundo, sem as vestes próprias, nu, com um roupão verde padronizado, o corpo entregue à equipe médica e de enfermagem. A equipe, detentora da autoridade científica, responsável pela continuidade da vida e também pelo fracasso profissional se o doente chegar a óbito.

O isolamento, a exclusão do indivíduo do processo decisório sobre sua condição de adoecimento, luz fria, ausência de familiares, quarto sem janelas[6] e uma infinidade de aparelhos conectados ao seu corpo em uma sala fria devido o ar condicionado - compõem a cena do ser humano que está “em processo” de morte. Elias (2001) ressalta que a morte em um CTI é uma morte higienizada se comparada aos nossos antepassados; os moribundos são tratados de acordo com o mais recente conhecimento biofísico especializado – mas neutra de sentimentos, podem morrer em um total isolamento.

Enquanto nas sociedades tradicionais o grande receio do moribundo era ter a extrema unção antes de morrer, neste século, passa a ser o medo de sentir dor e de morrer só. Os hospitais passam a ficar repletos de idosos e vitimas da violência urbana, solitários e entubados; afinal praticamente é erradicada a mortalidade de crianças e a vida se prolonga.

cuidados paliativos, uma “boa morte”[7] é necessária

Segundo a Organização Mundial de Saúde, “Cuidados Paliativos consistem na abordagem para melhorar a qualidade de vida dos pacientes e seus familiares, no enfrentamento de doenças que oferecem risco de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento. Isto significa a identificação precoce e o tratamento da dor e outros sintomas de ordem física, psicossocial e espiritual”.

Esta é a definição, na íntegra do texto, que revela o que são cuidados paliativos no site do Instituto Nacional do Câncer (INCA). Esta instituição foi uma das precursoras neste tipo de abordagem no país, afinal seu público, quando em fase terminal, torna-se uma clientela diferenciada; pois se denomina por pacientes fora de possibilidades terapêuticas (FPT). O que isso significa? Significa que este tratamento é dado aos pacientes que clinicamente já não há nada a ser feito por eles. Os recursos científicos para a obtenção da cura se esgotam e a certeza da morte é presente e inquestionável.

Quando o paciente não pode ser curado, para a filosofia deste tipo de tratamento ainda há muito que fazer por ele. Os cuidados paliativos visam prolongar a vida do doente com boa qualidade, retardar a morte, aliviar o sofrimento, integrá-lo novamente à comunidade e à sua família. É uma prática comum em tratamentos na área de oncologia e também em infectologia (HIV/AIDS). Segundo a revista Prática Hospitalar (27),2003; em 1994 existia dez equipes de cuidados paliativos no Brasil, em 2003 somavam-se mais de quarenta.

Não podemos considerar os cuidados paliativos como uma especialidade médica porque pressupõe a atuação multiprofissional. É interessante observar que esta especialidade nunca será tarefa de um único profissional, mas sim de uma equipe preparada para isso. O que se prega como objetivo desta proposta de tratamento é cuidar do indivíduo em todos os aspectos: seu corpo, mente, espírito e social. Aliviar a sua dor, diminuir seu sofrimento e ampliar sua qualidade de vida.

Estas definições oficiais do ministério da saúde nos levam ao questionamento de qual tipo de morte ou processo de morte estão sendo produzidos. O que é morrer bem? Morrer com “qualidade de vida”? O que é um tratamento da saúde física, social, psicológica e espiritual?

A visita domiciliar é parte principal deste atendimento para o doente, para a família e principalmente para o médico. A idéia é que o profissional se beneficie como ser humano ao realizar esse trabalho. Já o paciente deverá ser acompanhado pela equipe no lugar mais adequado para praticá-lo: sua própria casa. Normalmente a família recebe orientação do paliativista de como cuidar do seu familiar doente. O médico, assistente social, enfermeiro e psicólogo ensinam cuidados como, por exemplo, não deixar o doente sozinho por muito tempo, conversar com ele, abraçá-lo. Ensina, também, a respeitar o doente mesmo que ele se encontre, por exemplo, em coma, pois o último sentido que se perde é a audição e ele não deve escutar discussões ou qualquer tipo de coisa que o desagrade, pois isso pode prejudicar seu tratamento.

O discurso disseminado pelos profissionais que atuam com cuidados paliativos é que a partir da segunda metade do século XX, a medicina teve um desenvolvimento fantástico em seu aspecto científico, mas perdeu todo seu lado de humanização e fazer cuidados paliativos é resgatar esta humanização. O paciente e sua família devem ser bem tratados; quando não há mais cura o papel do paliativista é fazer com que a morte ocorra com dignidade.

A terapêutica paliativa é voltada para o controle sintomático e preservação da qualidade de vida para o paciente sem função curativa, de prolongação ou de abreviação da sobrevida. A empatia, bom humor e compreensão são integrantes fundamentais da terapêutica. Deixa de ser uma preparação para morte e passa a assumir um papel de suporte a toda família do doente (Ministério da Saúde, 2001).

Em várias produções científicas que pesquisei, concluí que o assistente social tem um papel determinante para a concretização dessa nova forma de tratar, cuidar. Os cuidados paliativos só se operacionalizam com a visita sistemática ao paciente em sua casa. O treinamento do cuidador é parte deste tratamento. A família é o foco da abordagem para a preparação da casa, do doente, dos amigos no prolongamento da vida e na abreviação da morte.

O assistente social[8] administra e gerencia a divisão das tarefas em equipe, atende os familiares e os treina para aceitação desta nova fase da vida e, muitas vezes, fora do espaço da casa do doente, treina[9] pessoas que serão voluntárias para os cuidados com outras pessoas também fora da possibilidade clínica e científica de continuar a viver.

Um dos instrumentais mais utilizados pelos assistentes sociais é a visita domiciliar. Por meio dela, lançamos mão de outras técnicas como a entrevista a familiares de forma sistematizada, atendimentos à família (em grupo), e visam intervir nas relações estabelecidas; a divisão de papéis e tarefas em um âmbito domiciliar. Quando necessário, também são resgatados amigos e familiares que estavam distantes. É mapeado o resgate de uma rede social daquele doente que até então se considerava perdida.

Em entrevista a assistentes sociais que compõem uma equipe de cuidados paliativos em um hospital público da Grande Vitória/Espírito Santo somei relatos minuciosos sobre o enfrentamento da morte por estas famílias que estão sendo acompanhadas. Uma delas em uma visita domiciliar ouviu de uma senhora que tinha somente alguns dias de vida que não queria que o seu esposo soubesse que já presentia a chegada de sua morte; enquanto isso o marido relatava para o enfermeiro, na mesma casa, em outro ambiente, que não queria que sua esposa soubesse que ele estava certo que restava à sua esposa apenas poucos dias de vida. Os sinais dados pelo cansaço do corpo, as dores incontroláveis, a dificuldade em conseguir se alimentar dava ao casal a certeza da finitude da paciente. O clima era de ocultação do presságio, mas de manutenção da cordialidade, troca de afetos e cooperação que deveria ser mantido.

O termo utilizado pelos assistentes sociais paliativistas é que este paciente está “fora de possibilidade de cura” e não “fora de possibilidade terapêutica” – uma alusão à definição macro de cuidados paliativos que descreve o ministério da saúde: a cura científica para este paciente não existe, mas terapêuticas de cuidado e tratamento sempre são possíveis para proporcionar-lhe uma morte digna.

Segundo os assistentes sociais o suporte com aparelhagem e recursos humanos oferecidos pelo hospital são para a casa, mas o paciente é da família. Os ensinamentos da equipe sobre o momento do banho ou das conversas com o enfermo devem ser momentos de afeição, ternura e benevolência.

Em uma entrevista o assistente social relatou-me que na rotina dos atendimentos nas enfermarias o médico pode diagnosticar que o paciente está “fora da possibilidade de cura”. Em seguida, com o diagnóstico fechado, prevendo que a morte é certa, o médico pergunta ao assistente social: “Quando posso dar alta? Quanto tempo vocês precisam para preparar esta família para ficar com ele [o paciente] em casa?” Isso foi considerado um grande avanço para a equipe de serviço social., pois na alta social é que o profissional de serviço social avalia se a família está pronta ou não para receber a equipe de paliativistas em casa e cuidar do seu doente até a morte.

Para o assistente social paliativista, a alta social representa o fim do acompanhamento hospitalar e o início de um acompanhamento aos moldes hospiatalocêntricos no âmbito domiciliar. Deve-se destacar que entre os assistentes sociais funcionários efetivos dos hospitais entrevistados, os mesmos profissionais que atuam nas enfermarias e ambulatórios são os que também realizam cuidados paliativos. O número de contratações de assistentes sociais efetivos geralmente não é satisfatório em hospitais de grande porte no que se refere à demanda atendida.

O manuseio e o gerenciamento de medicamentos para dor crônica deve ser parte do treinamento oferecido ao familiar-cuidador; bem como uma certa destreza para alimentar o paciente que já não consegue ingerir alimentos. Entretanto, tais cuidados, disse-me uma assistente social, despertam o sentimento de “consciência tranqüila” da família cuidadora até os momentos finais do seu doente. “No momento da morte estes pacientes raramente choram; apegam-se a religiões em 99% dos casos; quase sempre têm uma morte feliz. Parecem uma vela que vai se apagando aos poucos”. Isto, porque, sentimentos como: pedidos de perdão, aproximação de familiares que há muito não se encontravam, poder auxiliar um amigo ou parente no momento da dor e do sofrimento com a doença são situações, ações e sentimentos despertados pelo paliativista na família. A maior parte das vezes este paliativista é o assistente social – considerado o profissional que proporciona esses momentos de fortalecimento das relações, e, também aquele que providencia recursos materiais emergenciais que são demandados pelos cuidados básicos quando necessários.

Considerações Finais

O trabalho do assistente social tem acompanhado o modelo disciplinar da saúde e, entretanto, muitas são as concepções de saúde, doença, vida e morte que tem sido produzidas em nossa contemporaneidade. Nos ambientes hospitalares e unidades de saúde várias intervenções estão sendo pensadas no sentido de facilitar e vida em períodos os quais a morte é próxima.

A especificidade do olhar social sobre a morte mistura-se ao olhar sobre as relações afetuosas, papéis socialmente construídos e atribuídos aos membros de uma família ou rede afetiva. O assistente social torna-se aquele que reforça o papel de facilitador nas relações de um grupo familiar e sob esse novo prisma, socializa suas técnicas de intervenção em âmbito domiciliar.

A morte, já vista como castigo, desgraça, ou infortúito, recebe várias representações sociais através dos tempos, bem como várias formas de tratá-la ou enfrentá-la. O avanço inegável da ciência determina que o ser humano “não morre” mais. As notícias de morte são consideradas um fracasso para a equipe de saúde que não conseguiram através de técnicas cientificas retardar a morte e ganhar sobrevida. A vida não pode ter fim e se tiver, não pode ser com dor ou sofrimento. Não pode carregar mágoas ou rancor. Essa é a boa morte ou a morte digna.

Neste modelo de cuidado em saúde a medicalização passa a fazer parte de uma rotina doméstica, com direito a equipe e aparelhagem montada nas residências. O atendimento ao doente em fase terminal, sem a possibilidade de cura prevista pelo argumento científico, ganha status de protagonista nos seus momentos finais. Tudo, no modelo de saúde ditado pelos cuidados paliativos, gira em torno dele; com o intuito de dar voz ao sujeito nos seus dias finais.

Discordamos de Bravo (2004) quando diz que os objetivos profissionais do assistente social passam pela compreensão dos aspectos sociais, culturais e econômicos que interferem no processo saúde-doença e o enfrentamento dessas questões. Para a autora, a atuação do assistente social não pode se reduzir a questões subjetivas vividas pelo usuário nas diferentes especialidades da medicina, pois reforçaríamos a concepção da estratificação por área das patologias. No entanto, consideramos que o nosso entendimento sobre aquilo que é considerado “social” não abarca questões que passam por uma outra forma de entender as relações sociais. A dimensão sobre o que é social em um sistema de trocas cooperativas no trabalho da saúde, nos proporciona o entendimento que fazer saúde é muito mais do que objetivar relações sociais, pois as mesmas relações também são subjetivas.

Como o próprio nome diz, o que paliativo é momentâneo. Por ser circunstancial, mesmo com a certeza da morte; um cuidado que é paliativo tem menor valor? O que determina a dimensão social de um acompanhamento realizado pelo assistente social? Qual o parâmetro que mensura um trabalho ter menos atributos que outro?

O controle sobre o corpo, sobre as relações, sobre as redes sociais ganha outras dimensões que chegam a afetar o trabalho do assistente social (há tão pouco tempo histórico) considerado um profissional integrante de uma equipe de saúde. A alta social considerada o fim da intervenção do assistente social, passa a ser o começo de uma outra intervenção. A alta não representa a cura para os cuidados paliativos, mas a luta a favor da vida, sem dor, sofrimento e com o máximo de cuidados. Tecer, analisar, avaliar e movimentar uma rede social é papel da saúde e função do assistente social. Novas demandas atribuídas sob um novo olhar sobre as questões sociais.

Referências Bibliográficas

Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional do Câncer. Cuidados Paliativos Oncológicos: controle de sintomas. Rio de Janeiro: INCA, 2001.

Bravo, M.I.S. [et al]. Saúde e Serviço Social. São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: UERJ, 2004.

Costa, M.D.H. O trabalho nos serviços de saúde e a inserção dos assistentes sociais. In: Serviço Social & Sociedade. São Paulo: Cortez, (62), 2000.

Elias, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de, Envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001.

Foucault, Michael. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Editora Graal/15ª edição, 2000.

Menezes, Raquel Aisengart. “Em busca da ‘Boa Morte’: uma investigação sócio-antropológica sobre cuidados paliativos”. Tese de doutorado apresentada ao IMS/UERJ, 2004.

Menezes, Raquel Aisengart. “Tecnologia de morte natural: o morrer na contemporaneidade. In: Physis. 13 (2), 2003.

Vasconcelos, Ana Maria. A Prática do Serviço Social – cotidiano, formação e alternativas na área da saúde. São Paulo: Cortez, 2002.

Sites consultados

.Brasil/cuidados paliativos/dor



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— todos os sites citados entre os consultados foram revistos em 07 de julho de 2005

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[1] Artigo publicado na Revista “Serviço Social & Sociedade”, nº82 da Editora Cortez.

[2] Assistente Social, doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social / UERJ.

[3] O exercício da interpretação das normas institucionais aos usuários fez surgir uma demanda de trabalho aos assistentes sócias: a elaboração de normas e exigências institucionais. Essa atividade exige da equipe que gerencia os serviços uma compreensão macro da relação instituição/usuário e também sua concepção sobre o processo saúde/doença. A rigidez da norma exige comportamentos e precauções na circulação de pacientes e familiares a ponto de comprometer a capacidade da população de decodificar as normas e agravar o quadro de exclusão social que se encontra a população usuária do SUS (Costa, 2000).

[4] O respirador artificial mudou a concepção de morte. Antes, ao parar a respiração ou os batimentos cardíacos, o indivíduo era considerado morto. A partir deste período, não. A morte tornou-se um processo. Os órgãos param aos poucos, um por um. Cria-se o argumento científico de morte cerebral ou falência múltipla dos órgãos. O indivíduo é considerado morto por partes do corpo, aos poucos (Menezes, 2004).

[5] Como se faz um transplante de coração? Por escrever para profissionais das ciências humanas, cabe descrever: 1) retira-se todo sangue do corpo e a circulação passa a ser de forma extracorpórea; 2) respira-se artificialmente e; 3) retira-se o coração e coloca-se outro no lugar.

[6] Os CTI´s, quando possuem janelas, geralmente são janelas altas e pequenas com insul film. Dentro, perde-se totalmente a noção do tempo.

[7] O termo “boa morte” foi apropriado da tese de Menezes (2004) quando relata sobre os significados do modelo de morte atual.

[8] No site do St. Christophers Hospice de Londres (instituição especializada somente em cuidados paliativos) existe a definição de algumas atividades do serviço social. “Dentre elas a mediação e a articulação da rede social do paciente, como: os parceiros de trabalho, membros da família ou amigos. A preocupação da equipe é que possa haver coisas significativas a dizer das pessoas dessa rede para o paciente em um momento como este. O assistente social pode ajudar essas conversações longitudinais e organizar o planejamento prático destas relações” ( em 11/03/2005). [tradução nossa]. Destacamos o papel articulador de uma rede afetiva que o assistente social desempenha com a finalidade de envolver o usuário e assim dinamizar a relação de cuidado integral. Cabe ressaltar que St. Christhopher é o santo que protege os viajantes e no hospice a morte é concebida apenas como uma passagem. É uma instituição fora do hospital; o doente que nele é atendido recebe a concepção de “totalidade” para a saúde (bio, psico, social e espiritual). Aquele que cuida de alguém doente está propenso a grande crescimento espiritual. Nos hospices vigoram a filosofia que o doente, mesmo terminal, só pedirá para morrer (eutanásia) se não for bem assistido ou bem cuidado. Conceituam-se como um modelo cristão/humanista de saúde. Foi uma das primeiras instituições que atendiam sob a ótica do que hoje chamamos de cuidados paliativos. Na instituição, em tratamento, o doente deverá ter o direito de dizer e ouvir cinco frases “me perdoe, te perdôo, eu te amo, obrigado e adeus” (Menezes, 2004). A equipe de um hospice visa o conforto do doente (controle da dor) e a aceitação da morte.

[9] Muitos cursos e treinamentos sobre cuidados paliativos em todo Brasil oferecem como disciplina informações sobre Tanatologia (estudo ou tratado sobre a morte), com enfoques em: biologia e deontologia da morte, psicologia da morte, espiritualidade da morte, eutanásia e por fim cuidados paliativos.

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