Implantar uma biblioteca, ajudar na organização de um ...



PRELIMINARES DE UMA BIBLIOTECA COMUNITÁRIA: SENSIBILIZAÇÃO COM ADULTOS E COM CRIANÇAS

Cíntia Mariza do Amaral Moreira

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Universidade Federal do Rio de Janeiro

Isabella  Massa de Campos

CIESPI, Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância, em convênio com a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Resumo

A comunicação descreve e analisa estratégias de sensibilização para a implantação de uma biblioteca comunitária na favela Santa Marta, vinculada ao CIESPI, Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância, através do projeto ´Rede Brincar e Aprender´, que desenvolve linhas de ação e pesquisa em quatro comunidades de baixa renda da Zona Sul do Rio de Janeiro. O relato apresenta e ilustra várias oficinas, realizadas com adultos e com crianças. Nas oficinas com adultos buscou-se relacionar a implantação da biblioteca infantil à atividades que tomaram a brincadeira, a narrativa oral, a operatividade manual e a expressão plástica como foco; nas atividades realizadas com crianças procurou-se relacionar a implantação da biblioteca infantil à oficina ´O livro tem suas histórias´, que se realizou ao longo de um mês, tomando a leitura e a confecção de livros artesanais como foco. A criação de histórias e confecção de livros pelas crianças foi precedida de vivências com a brincadeira, o teatro, o folguedo popular e a expressão plástica.

Preliminares de uma biblioteca comunitária: sensibilização com adultos e com crianças

As transformações do mundo moderno vêm afetando profundamente a vida familiar de milhões de pessoas. São inúmeros fatores que levam ao enfraquecimento das antigas formas comunitárias de apoio. Pasolini (1990) esclarece a sensação de desamparo familiar sofrida pela humanidade ao afirmar que:

“A semelhança com os pais é desarraigada dos filhos, e estes são projetados em direção a um amanhã que, mesmo conservando os problemas e a miséria de hoje, só pode ser qualitativamente diverso em absoluto (...) O desprendimento do passado e a falta de relação (mesmo ideal e poética) com o futuro são radicais”. ( p 135).

Há mudança nos papéis parentais, mais mulheres estão incorporadas ao mercado de trabalho, necessitando com isso construir redes de apoio que as auxiliem no cuidado e desenvolvimento dos filhos, independentemente de suas condições sócio-econômicas.

Com base na necessidade de uma mudança de foco nas ações voltadas para crianças, pressupõe-se a valorização dos potenciais das mesmas, através da construção de bases que sirvam de apoio. Locais pensados para as crianças são propiciadores do desenvolvimento de habilidades (físicas e mentais), do domínio de conhecimentos, da troca dialógica, da sensibilização para a vida.

A favela Santa Marta fica localizada em um morro muito íngreme e a verticalização das casas é a única maneira de expansão da comunidade. Isso quer dizer que falta espaço no local. Dispor de uma sala, um terreno é praticamente impossível, no entanto, a demanda por uma biblioteca comunitária na favela Santa Marta é sonho antigo e necessidade urgente levando-se em conta que existem mais de dez mil moradores no local sem acesso à leitura, a não ser que se desloquem para o “asfalto”. A implantação da biblioteca terá como finalidade, fornecer suporte à população local, como creches, cursos de pré-vestibular e grupos de reforço escolar; todos com pouco acesso aos bens culturais.

A ausência de ações públicas perpetua um quadro de carências em inúmeros aspectos dentro das comunidades. Carências que vão desde o saneamento básico à construção de creches. Falta de espaços de lazer assim como de bibliotecas.

Enfocando a biblioteca, o que se percebe é a inexistência de um local apropriado para que um aluno possa desenvolver uma simples pesquisa escolar; muito menos apreciar um livro de literatura.

O pedido ocorreu a partir da entrada do CIESPI na comunidade, em 1999, com um projeto de cunho nacional chamado “Fortalecendo as Bases de Apoio Familiares e Comunitárias para Crianças e Adolescentes”. [1]

No ano de 2000, uma pequena biblioteca foi montada no interior de uma creche comunitária; a creche Mundo Infantil. O uso do espaço pelas crianças permitiu não só disseminar o contato com os livros como também o ouvir histórias, prática não realizada anteriormente. A partir dessa experiência, outros grupos representantes da comunidade, verificaram a necessidade de ampliar o acesso à leitura para todos os moradores.

Com a chegada em 2002 de outro projeto do CIESPI, a Rede Brincar e Aprender,[2] a perspectiva da construção da biblioteca comunitária começou a delinear-se. O espaço físico foi cedido por uma igreja Batista e o início da sensibilização de nossa proposta espalhou-se junto a diversos grupos: crianças, jovens e adultos.

A organização da biblioteca será simplificada, utilizando um painel com símbolos e numeração reduzida, baseados no modelo existente nas Bibliotecas Demonstrativas da Casa da Leitura, sede do PROLER ( Programa Nacional de Incentivo à Leitura), para que crianças que ainda não lêem possam através dos símbolos identificarem os temas de que os livros tratam e a partir daí, estabelecerem uma relação facilitadora na biblioteca.

Uma primeira etapa, com duração de seis meses, permitiu a realização de oficinas que enfocassem o brincar e seu significado mais amplo: o brincar com palavras, o brincar com histórias, o brincar com o corpo, o brincar com música, etc. Os resultados foram bastante expressivos no que se refere a questão das histórias. Histórias pessoais, histórias inventadas, histórias que moram nos livros....preliminares para a futura biblioteca comunitária do Santa Marta.

Oficinas

A interlocução entre crianças, suas famílias e a futura biblioteca foi estabelecida através de oficinas de sensibilização com o objetivo de valorizar  tradições, saberes e fazeres contidos nos gestos, palavras e histórias das pessoas que participaram desses encontros.

A tradução desses sensíveis encontros aconteceu em forma de livros artesanais, confeccionados à mão em cores e formatos diversos: livros de rolo, livros de sanfona, livro estandarte entre outros. Eles serão parte integrante do acervo da biblioteca comunitária do Santa Marta, contando, recontando e conservando a tradição oral e escrita da comunidade.

Sensibilização com crianças

A sensibilização realizada com crianças, que precedeu a implantação da biblioteca comunitária na favela Santa Marta, faz parte do processo de entendimento deste novo espaço e suas funções.

A sensibilização ocorreu durante a oficina ´O livro tem suas histórias´. Desenvolveu-se na varanda da Igreja Batista, localizada pouco acima da principal escadaria de acesso à favela. Esta varanda fica no terceiro andar e está na mesma altura das ´lages´dos barracos vizinhos. No Santa Marta, como a encosta é íngreme, as crianças costumam brincar nas lages cimentadas, existentes no topo dos barracos. Nas lages, dentre outras brincadeiras, as crianças  soltam pipa e brincam de elástico.

Cerca de 30 crianças participaram da oficina, subdivididas em dois grupos de 15. Os menores tinham de 7 a 8 anos e os maiores, de 9 a 10  anos de idade. Todos estavam em fase de letramento e apresentavam dificuldade na aquisição da leitura e da escrita. De manhã frequentavam escolas do ensino público fundamental ´no asfalto´ e de tarde uma instituição de reforço escolar ´no morro´.

A oficina se prolongou por 4 tardes, em fevereiro de 2003. O terceiro dia da oficina coincidiu com uma onda de violência que invadiu a cidade, na segunda-feira que antecedeu o carnaval. Neste dia inúmeros ônibus foram incendiados, por integrantes do mundo do tráfico de drogas, um deles em frente à pracinha vizinha ao morro.

Optamos por orientar a oficina, para a confecção de livros em conjunto com as crianças. Para dar início a cada uma das sessões, foi necessário abrir uma rodada de brincadeiras com as crianças. A sensibilização, a leitura e a confecção de livros sempre estiveram aliadas à oralidade das crianças.

Na primeira tarde trabalhamos a conhecida fórmula oral ´Cadê o ratinho que tava aqui?`, com o grupo dos menores, e a história ´A bola sapeca´, com o grupo dos maiores. O livro de rolo e o desenho constituíram as peças-chaves, na transcrição dessas duas narrativas. A parlenda ´Cadê o ratinho que tava aqui?´ foi recriada oralmente pelas crianças. A frase de cada um ´puxou´sua respectiva ilustração, em folhas avulsas que depois foram emendadas para finalizar o livro.

A parlenda  recriada pelas crianças ficou assim:

Marcela - Cadê o ratinho que tava aqui ?

Ariane - O gato mordeu.

Todos - Mas cadê o gato?

Michel - Entrou no meu suvaco.

Todos - Mas cadê o suvaco?

Suzanna - A vaca cheirou.

Todos - E cadê a vaca?

Solange - Tá atràs do boi.

Todos - E cadê o boi?

Luís Fernando - Tá no mato.

Todos - E cadê o mato?

Ana Luisa - O fogo queimou.

Todos- E cadê o fogo?

Valdeci - A água apagou.

Todos - E cadê a água

Wendell - O sapo bebeu.

Todos - E cadê o sapo?

Tauane - Voltou pro lago.

Todos - E cadê o lago?

Natália - Refletiu a lua.

Todos - E cadê a lua?

Marlon - Está no céu

Todos - E cadê o céu?

Nayara e Ronan - Está longe, está longe, está longe.

A história ´A bola sapeca´, foi por eles imaginada, a partir da idéia por nós sugerida, de uma bola que desceria o morro, passando por diferentes lugares. Os locais por onde a bola passaria foram escolhidos por eles. Sentaram-se no chão, ao longo de uma faixa contínua de papel craft, com cerca de 3 metros de comprimento, trazida por nós. Em duplas, desenharam os vários locais e situações onde a bola teria estado. A ilustração de cada dupla ´puxou´ uma frase escrita. Quando o trabalho estava pronto, batizaram a história de ´A bola sapeca´e o suporte de papel craft que estava no chão, de ´Tapete de bronze´. Depois da leitura, o Tapete de bronze foi enrolado para a guarda.

A história ´A bola sapeca´ ficou assim:

O atacante  Felipe chutou a bola do campinho,

e ela desceu pela escada.

A bola passou com força no buraco do gol,

A bola passou pela  mina,

A bola agarrou na rabiola da pipa,

A bola quicou no carrinho,

A bola passou por cima da birosca da Margarida,

A bola passou pelo Cristo,

A bola passou no telhado da igreja,

E foi parar na árvore.

Na segunda tarde de oficina trabalhamos o tema ´Eu e minha família`, com o grupo dos menores e o tema ´Da minha janela eu vejo`, com o grupo dos maiores. O livro de sanfona foi o suporte utilizado, em ambos os casos. A tônica desta sessão foi a dificuldade das crianças em realizar a expressão escrita. Esta dificuldade foi por nós contornada, buscando estimular a ilustração e o desenho, na descrição dos temas propostos e oralizados anteriormente pelas crianças.

Na terceira tarde, o dia do episódio do ônibus incendiado, a dinâmica foi flexível, deixando as próprias crianças se estruturarem. As brincadeiras, a narrativa encenada e a expressão plástica constituíram a chave da sensibilização neste dia. No grupo dos maiores aflorou uma teatralização a partir do episódio do ônibus incendiado, seguida de desenhos que algumas vezes foram acompanhados de escritos. No grupo dos maiores eclodiu um desafio oral, encenado por palhaços de ´Folia de Reis´3 de crianças, seguido da confecção de máscaras e roupas de palhaço.

Neste terceiro dia da oficina as crianças criaram brincadeiras para ultrapassar o mal-estar gerado pelo contexto de extrema violência na cidade. Não foram confeccionados livros.

A quarta tarde de oficina foi destinada à preparação de uma exposição de encerramento que contou com a presença de algumas mães. Os livros criados anteriormente pelas crianças, foram finalizados nesta tarde.

Além disto, duas outras atividades afloraram neste dia. O grupo dos menores resolveu criar  bonecos desenhados, que pendiam de barbantes, em seguida transformados em personagens de um teatrinho. O grupo dos maiores outra vez  cedeu espaço aos palhaços de folia de reis de crianças, desta vez acompanhados por músicos do ritmo, que faziam uso de latas para tocar. Já não era apenas um desafio de palhaços como o da sessão anterior, mas a apresentação de toda uma ´Folia de lata´ encenada pelas crianças, onde a cantoria dos palhaços era acompanhada pela percussão e observada atentamente por uma assistência dentro,  e outra fora da Igreja Batista. A assistência externa era   composta por crianças que não estavam inscritas na oficina e   acomodava-se nas lages dos barracos vizinhos.

Neste dia, ao lado da finalização dos livros anteriormente iniciados, observamos um amadurecimento do grupo. As crianças se organizaram e de desinibiram tanto para a expressão plástica e cênica com o teatrinho de bonecos, quanto para a expressão oral e cênica, através da Folia de lata.

Por fim, algumas considerações de natureza teórica:

1. Svenbro (1999) quando analisa a leitura na Grécia clássica, vê no teatro o germe do livro;

2. Cascia Frade (1997) quando analisa as Folias de Reis, vê na fala dos palhaços o entrelaçamento entre  oralidade e   cultura escrita. A fala dos palhaços das  Folias de Reis fluminenses, embora de natureza oral, se espelha muitas vezes em livros de cordel. Esses cordéis transcrevem uma oralidade anterior, que na boca dos palhaços será novamente oralizada de memória.

3. Chartier (1999) considera o rolo um suporte característico da leitura oralizada.

A oficina que descrevemos teve a intenção de sensibilizar crianças que serão futuras usuárias de uma bibliioteca comunitária no Santa Marta. As crianças tiveram a oportunidade de confeccionar coletivamente livros de rolo, livros de sanfona e com eles realizar uma leitura coletiva. Puderam também dar vazão a um mundo de narrativas orais, que dialogou com o mundo escrito através de vários tipos de encenação e de expressão plástica e escrita. Fizeram o teatro, o desenho e a escrita sobre o ´Ônibus incendiado´, fizeram também o teatro com bonecos por eles desenhados e a apresentação dos palhaços da Folia dde Reis de crianças.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARKER, Gary & RIZZINI, Irene. Criança não é risco, é oportunidade. Fortalecendo as Bases de Apoio Familiares e Comunitárias para Crianças e Adolescentes. Rio de Janeiro: CESPI / USU – INSTITUTO PROMUNDO, 2000.

BARKER, Gary & RIZZINI, Irene. Crianças, adolescentes e suas bases de apoio – Fortalecendo as Bases de Apoio Familiares e Comunitárias para crianças e adolescentes no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: CESPI/USU – INSTITUTO PROMUNDO, 2001.

CAVALLO & CHARTIER. A história da leitura no mundo ocidental, vol 1, 1999.

FRADE,  Maria de Cascia Nascimento. O saber do viver: Redes sociais e transmissão do conhecimento. Tese de doutorado, 1997.

PASOLINI, P. P. Gennariello: a linguagem pedagógica das coisas. In: Os jovens infelizes: Antologia de ensaios corsários. São Paulo: Brasiliense, 1990.

SILVA, Nivia Carla Ricardo & ZAMORA, Maria Helena ( org ). Vozes e Experiências dos Educadores de uma Favela. . Rio de Janeiro: CESPI / USU – INSTITUTO PROMUNDO, 2002.

SVENBRO, Jasper. A Grécia arcaica e clássica: a invenção da leitura silenciosa, 1999.

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[1] O objetivo do projeto de pesqisa-ação é a de estudar novas formas de se olhar para crianças e jovens provenientes das chamadas comunidades de baixa renda. A mudança de foco com as quais a população jovem pobre e suas comunidades são vistas – ou seja, como foco de risco – para uma perspectiva que vise identificar, fortalecer e desenvolver os recursos da comunidade e as formas de apoio familiar já existentes, constitui um direito previsto em lei, porém longe de ser assegurado (Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos da Criança, 1989, e Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990) e constitui subsídio para as políticas públicas relacionadas às crianças e adolescentes.

[2] A Rede Brincar e Aprender é uma proposta que integra arte, educação, literatura e ação social, objetivando o intercâmbio e a criação de laços entre 4 (quatro) comunidades de baixa renda da Zona Sul do Rio de Janeiro – Mangueira de Botafogo, Santa Marta, Horto e Rocinha.

3 As Folias de Reis constituem um folguedo popular que no Santa Marta são representadas pela Folia de Reis Penitentes do Santa Marta. O grupo de integrantes do qual fazem parte cantadores, músicos e palhço realizam um giro pelas casas entre o natal e o dia 20 de janeiro, todos os anos. As crianças integram esta manifestação popular de duas maneiras: fazendo parte da assistência e organizando a Folia das Crianças, também conhecida como Folia de Lata.

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