NORMAS EDITORIAIS



A informação comprometida – estudo do

noticiário da Folha da Tarde durante a ditadura militar



Cleofe Monteiro de SEQUEIRA

Doutora em Ciências da Comunicação, pela Universidade de São Paulo. Professora do Curso de Jornalismo da Universidade Anhembi-Morumbi, SP.

Resumo

Este trabalho pretende mostrar o comprometimento do noticiário da “Folha da Tarde”, jornal editado pela Empresa Folha da Manhã, com o ideário político do governo militar, a partir da análise de conteúdo das edições deste jornal, publicadas entre 1969 e 1974, durante o governo do presidente Emílio Garrastazu Médici. É estudada a estrutura da redação da Folha da Tarde, a partir de 1969, quando o grupo Folha, para ficar em sintonia com o regime militar, coloca este veículo na contra-mão da transformação e modernização que estavam sendo implantadas na imprensa brasileira. Depoimentos de jornalistas, que integravam a equipe de redação da Folha da Tarde na época, mostram a estratégia utilizada pela direção do jornal e pelo corpo de repórteres e redatores, que combinava, título, texto e diagramação para legitimar os atos dos órgãos de repressão na fase mais sangrenta da ditadura militar.

Palavras chaves:

História da mídia impressa; História do Jornalismo; Folha da Tarde; Ditadura Militar.

O controle da informação durante os governos militares, focalizado em diversas pesquisas, assim como a cobertura jornalística de vários órgãos da mídia, quer impressa quer eletrônica, durante a ditadura, já foi alvo de análises detalhadas, tanto sob a ótica do colaboracionismo como da resistência ao regime. Entretanto, o “caso Folha da Tarde”, um caso singular na imprensa paulistana, embora tenha recebido citações negativas de alguns autores[1], pelas posições políticas defendidas no noticiário, o jornalismo ali praticado nos anos 70 ainda não havia merecido um estudo mais profundo. É exatamente isto que visa este trabalho: mostrar o papel deste jornal durante o regime militar. Ao invés de se ignorar ou desprezar o papel da FT, naquela época, é de importância fundamental, para o melhor entendimento da história recente do jornalismo e do campo da comunicação, analisar as estratégias utilizadas por trás do slogan “o máximo de notícias no mínimo de espaço”.

De 1967 a 1974, a Empresa Folha da Manhã passou por uma grande reformulação tecnológica, introduzindo o off-set, a fotocomposição e novas unidades impressoras, ao mesmo tempo em que Octavio Frias de Oliveira construía o conglomerado jornalístico Folha, que chegou a incluir cinco jornais, nas décadas de 70 e 80, cada um dirigido a um público específico, e duas gráficas. Um destes veículos, foi a Folha da Tarde, lançada em outubro de 1967, para concorrer com o Jornal da Tarde, do grupo Estado de S.Paulo, que era um sucesso editorial na época. Dois anos depois, quando já vigorava o Ato Institucional nº 5, o jornal Folha da Tarde sofre mudança editorial profunda e transforma-se no porta-voz da ditadura, com a função, dentro daquele conglomerado, de legitimar os atos governamentais no que ele tinha de pior: a repressão e a tortura.

É neste período, também, que se torna mais perceptível no país a formação de uma indústria cultural, no sentido do termo que lhe deu Adorno, com a formação de conglomerados empresariais ligados ao setor da comunicação de massa. O Grupo Folhas adquire, então, “as últimas características que lhe faltavam para se tornar definitivamente um ramo da indústria cultural” e a mais importante destas características é tornar-se um conglomerado[2]. Em três anos, usando como estratégia a compra de empresas em má situação financeira, o grupo passa a dispor de duas gráficas, quatro jornais em São Paulo e um na cidade de Santos, a 60 quilômetros da capital. O conglomerado Folha tem, a partir de então, sob seu controle, um bloco de capital sobre o qual “permitia que se operasse em uma escala muito mais ampla do que o dono de qualquer um daqueles empreendimentos isolados não atingiria, o que lhe abre novas possibilidades”[3].

Embora tecnologicamente a “Folha da Tarde” tenha sido um veículo inovador, quer pelo uso de cores, quer pela impressão em off-set, a estrutura de sua redação funcionava nos moldes dos velhos jornais. Quanto à mensagem jornalística, seguindo o slogan que a definia - o maior número de notícias no mínimo de espaço -, também ia na contra-mão do que era moderno nos anos 70: as notícias eram curtas e informavam o essencial; e a parte gráfica excluía os espaços em branco, as fotos abertas em várias colunas e os olhos[4], que davam beleza às páginas dos jornais que seguiam as novas tendências de diagramação[5], visando atrair o consumidor-leitor. Entretanto, mesmo distante das tendências do jornalismo de vanguarda praticado, por exemplo, pelo “Jornal da Tarde”, o vespertino do Grupo Estado de S.Paulo, o principal representante desta tendência, a “Folha da Tarde”, durante o período de 1969 a 1974, resultou em um sucesso de vendas dentro da empresa – concorrendo com os outros jornais do grupo – e também no mercado paulista.

Mas esta não era a única característica da “Folha da Tarde”, a partir de 1969. O jornal se diferenciava também pela terminologia e pela angulação que dava às informações, principalmente as relacionadas com o combate à guerrilha, elaboradas visivelmente para apoiar o regime militar. A terminologia e a angulação usadas na construção da notícia na FT funcionavam como o editorial do jornal (que não tinha página de opinião), mostrando a posição política: “um jornal conservador, sintonizado com o discurso governamental”[6]. A terminologia, principalmente a dos títulos, deixava claro os posicionamentos da direção da “Folha da Tarde” e, por conseqüência, dos seus publishers, que, em última análise, concordavam, por motivos mercadológicos ou não, com o que a terminologia e a angulação expunham aos 150 mil leitores, de terça a sábado, e aos 180 mil às segunda-feira.

O jornalista Antonio Aggio Júnior foi escolhido por Octávio Frias de Oliveira para dirigir a “Folha da Tarde”, como editor-chefe, em agosto de 1969[7], e partir daí o jornal assume uma linha editorial que o marcaria até 1984 e envergonhava a imprensa paulistana. Octávio Frias de Oliveira[8] garantiu que a escolha por Aggio deveu-se ao fato de ele ser um jornalista competente: “Embora ele fosse ligado aos militares nunca sofri pressões no sentido de colocá-lo na direção do jornal.” Diz, ainda que se tivesse havido pressões, estas não seriam aceitas. “O que pesou foi seu desempenho profissional”.

Aggio revelou que sua ida para a “Folha da Tarde” foi acertada com Frias em uma única reunião, que aconteceu no meio da semana, numa quinta-feira, e ficou decidido que ele assumiria no domingo seguinte (a “Folha da Tarde” não circulava aos domingos) para editar o jornal da segunda-feira próxima. Na primeira reunião com a equipe que, então, fazia o jornal, afirmou que foi claro, explicando que Frias lhe dera o papel de salvador do jornal e isto não poderia acontecer com a equipe que ali estava.. “Todos aceitaram porque, também, acho, eles não queriam trabalhar comigo”, confessa. Já a mudança na direção da FT, na visão do jornalista Jorge Okubaro, que na época era repórter da Folha da Tarde, foi dolorosa e não coincide com o relato de Aggio. “Alguns foram demitidos sob alegação de incompetência, mas o verdadeiro motivo da demissão era o fato de terem, em algum momento, feito ou participado de alguma manifestação que os caracterizava como de esquerda, seja pelas conversas pessoais ou pelos textos que eventualmente publicaram[9].”

Para Okubaro, o papel dado ao Aggio, como editor-chefe da FT, para comandar um jornal que não só apoiasse, mas principalmente legitimasse os atos da ditadura militar, principalmente aqueles que espelhavam o que a ditadura tinha de pior, a repressão, o que mostra o “feeling” de Frias para detectar momentos e de como lidar com eles, tanto que Aggio foi sendo fortalecido ao longo do tempo, sobretudo no período mais negro do período militar. “Tornou-se um homem poderoso dentro da empresa e, pelos seus relatos à redação, tinha acesso diário a Frias e Caldeira e conseguia deles decisões favoráveis à ‘Folha da Tarde’.”

Aggio assume, então, o trabalho de fazer manchetes de impacto, sempre ou quase sempre vinculadas ao terrorismo, e as vendas da FT sobem e, em seis meses, o jornal atinge sua primeira meta: vinte mil exemplares vendidos em banca. A partir daí, segundo Aggio, “não se tinha mais controle sobre as vendas, estas cresceram em progressão geométrica e mensalmente aumentávamos em cerca de dez mil os exemplares vendidos em bancas. E festejávamos”. Das festas participavam representantes de toda a empresa, da circulação, da oficina, das redações dos outros jornais. Os salgadinhos vinham da Rodoviária[10] (local famoso por vender alimentos de consumo popular e pouco sofisticado), ou seja, o empresário Frias patrocinava comemorações. “Tivemos quinze anos de vendagem excelente”. Para o jornalista Antonio Carlos Fon[11], a Folha da Tarde era um jornal de leitura obrigatória para os militantes de esquerda, porque este jornal se prestava a fazer o serviço de contra-informação. Quando os órgãos de segurança queriam passar uma informação, tanto para a sociedade em geral como para os descontentes com o regime, eles usavam a FT. Por isso todos a liam. O que estava se passando, nós sabíamos, mas na FT nós encontrávamos o que e de que forma, ou seja, que mentiras eles queriam passar para a população. Esta era a (triste) função da FT.”

A edição na FT

A angulação dada às notícias, segundo critérios definidos por Aggio, tinha um ponto básico: tratar como inimigo da pátria quem se opunha ao governo. “Quanto à terminologia empregada pela “Folha da Tarde”, éramos mais claros ainda: quando se tratava de notícia sobre atos praticados por terroristas nós nos utilizávamos termos pesados”. Explica que os assaltos praticados por terroristas eram chamados de “assalto” mesmo, enquanto os outros jornais usavam o termo “expropriação”. Argumentou que em nenhum momento forjou noticiário ou alterou informações. Usava o material que chegava à sua mesa pelas vias normais da empresa, isto é, pela Agência Folha, e já liberado pela censura feita pela Polícia Federal.

Estas palavras do ex-editor-chefe da “Folha da Tarde” deixaram claro que a Agência Folha exerceu um papel “duplo” no processo do fluxo do noticiário jornalístico nas redações do grupo Folha. Dentro da estratégia da empresa de diminuir gastos, centralizando toda informação a ser distribuída pelos jornais da empresa na Agência Folhas, o grupo dava à Agência Folhas, também, o papel de órgão filtrador das informações que seriam enviadas às redações, uma vez que cabia à Agência também selecionar o material que seria divulgado.

A Agência surgiu em 1967, tendo como origem o DICS, o Departamento de Interior, Comunicações e Sucursais, que centralizava todo o material vindo das sucursais da ‘Folha’ nos vários Estados brasileiros, o material dos correspondentes estrangeiros e o material que vinha das agências internacionais. O DICS foi totalmente reformulado, para se tornar uma agência (papel que já cumpria de fato) com a finalidade, também, de racionalizar custos, ficando responsável pela cobertura dos eventos obrigatórios e postos fixos de cobertura (setores), que era repassada para todos os jornais do grupo.

Entretanto, durante o regime militar, a Agência foi utilizada pela empresa também para centralizar a censura dos jornais a tal ponto que a maior parte dos jornalistas não chegava nem mesmo a tomar conhecimento de certos assuntos, pois as notícias eram cortadas antes de chegarem às redações[12]. Esta função da agência ficou bem clara nas palavras de Aggio: “quando a notícia chegava à minha mesa eu tinha certeza que ela já estava liberada, pois passava pelo crivo do editor da Agência, o Paulo Nunes, e pela chefia da “Folha de S. Paulo”, ocupada pelo Cláudio Abramo, pois a Agência sempre esteve subordinada à Folha”. Afirmou, ainda, que sempre recebeu o mesmo material que outros jornais da casa e que nunca forjou as matérias publicadas pela FT. “Eu apenas as angulava de acordo com a linha da Folha da Tarde.”[13]

Além das manchetes, legitimando os atos da ditadura, o outro diferencial da FT estava na estrutura da redação. O núcleo que centralizava todas operações da FT era constituído de três postos chaves: o de editor-chefe, o de chefe de reportagem e o de secretário de redação, ou seja, a FT mantinha a estrutura dos antigos jornais, e tanto o chefe de reportagem, como o secretário de redação, acumulavam várias outras funções. Cabia ao chefe de reportagem, auxiliado por três subchefes, também, a chefia de produção, isto é, ele era o responsável pelo controle de todo material que chegasse das mais diversas fontes: da Agência Folha, das Assessorias de Comunicação Social das Secretarias de Estado e Município e das empresas privadas, além das matérias produzidas na própria redação da FT. A “Folha da Tarde” manteve durante a direção de Aggio uma média de dez repórteres exclusivos, que faziam reportagens apenas para a FT, sem que estas matérias fossem repassadas para a Agência Folha e distribuídas para os outros jornais. Estes repórteres tinham como objetivo dar uma cara própria à “Folha da Tarde”.

No mesmo nível de importância do chefe de reportagem posicionava-se o secretário de redação, ao qual estavam subordinados dois subsecretários e os editores das seções de Geral, Esportes, Polícia, Economia, Internacional, Política e Variedades. Cada editoria tinha, em média, um editor, um subeditor e um ou dois copies; apenas as seções de Esporte e Variedades possuíam quatro redatores e produziam um caderno por dia. O fluxo diário das notícias na “Folha da Tarde” percorria caminhos diferentes, também, se comparados ao dos outros jornais. Todo material recolhido durante o dia era centralizado na Chefia de Reportagem, selecionado e enviado aos oito editores que, ao chegarem à redação por volta das 18 horas, já encontravam este material em suas mesas, geralmente separado por assunto. A maneira como este material bruto era transformado em notícia para divulgação também diferia da dos outros jornais. Enquanto nas redações mais modernas, na época, a decisão de como angular e editar o material captado diariamente é produto de discussão, em reuniões de pauta entre editores e o editor-chefe, na “Folha da Tarde” esta prática não existia.“Ninguém orientava ninguém, porque todos os editores sabiam como as matérias tinham que ser feitas. Nunca houve uma reunião de pauta ou qualquer tipo de reunião para se decidir como uma matéria seria angulada”, diz Aggio. Afirmou ainda que cada um fazia a sua parte, mas “todas as matérias passavam, primeiro, pelo secretário de redação e depois por mim, antes de serem enviadas para a oficina”.

A rotina de trabalho dos editores e copies começava após a distribuição do material pelas editorias, quando cada editor preparava uma espécie de “pré-página”, com as matérias já prontas e retrancadas[14], mas não diagramadas[15], e dirigia-se ao secretário de redação. Cabia ao editor informar ao secretário (que até aquele momento desconhecia as matérias captadas) quantas matérias seriam publicadas em sua página, qual o tema de cada uma e como ele iria hierarquizá-las (distribuí-las na página de acordo com sua importância) na sua página. Cabia ao editor, ainda, alertar o secretário sobre as matérias que eventualmente poderiam ser transformadas em manchete[16] e as que mereciam chamadas[17]. Ao secretário de redação cabia concordar com a seleção do editor ou sugerir uma outra hierarquização para as matérias, mas o fluxo do fechamento das páginas do jornal era este. Decidida a página (ou as páginas) de cada editoria, cabia ao editor levar seu material para diagramação, titular as matérias e fazer suas chamadas de primeira página, sem ter certeza se elas entrariam ou não na edição que estava sendo preparada. Já diagramadas e tituladas, as matérias passavam, então, pelo editor-chefe (Aggio), para depois seguirem para a oficina, onde seriam impressas. As chamadas de primeira página já prontas ficavam com o secretário de redação e após o fechamento de todas editorias, estas eram entregues ao editor-chefe que decidia, sem a participação dos editores e muitas vezes sem a participação do próprio secretário de redação - “Muitas vezes, acho que a maioria das vezes, eu decidia sozinho o que ia entrar, pois o Rodrigão (Gwinplane Landa Rodrigues, o secretário de redação) estava ocupado com o fechamento, e não podia opinar sobre a primeira página”[18], quais seriam a manchete, a sub-manchete e as matérias que mereciam chamadas de primeira página. “Os editores não participavam destas decisões, eles não opinavam”. Aggio explica ainda que nunca houve uma reunião com editores para se decidir a manchete. “Esta era uma decisão minha. Aliás eu não só escolhia como fazia a manchete e a sub-manchete. Estas eram atribuições minhas, que eu não delegava a ninguém.”

Embora o editor não tivesse a última palavra sobre a edição de sua página, Aggio considera que eles (os editores) tinham autonomia no seu trabalho, desde que concordassem com os quatro pontos fundamentais do jornal: 1º, a linha editorial do jornal; 2º, com o fato de que o sucesso do jornal estava baseado no tripé política-polícia-esporte[19]; 3º, com o slogan do jornal (o máximo de notícias no mínimo de espaço); e 4º, não emitisse opinião nas páginas do jornal.

Esta rotina de trabalho foi vivida por Okubaro, como subsecretário do jornal, a partir de 1971, que tinha como função controlar a produção dos copies da editoria de Geral e participar do fechamento da primeira página. Okubaro confirma que o material chegava em bruto à mesa da chefia de reportagem, que o distribuía pelas várias editorias e não aconteciam cortes ou censura de matérias na redação da FT, pois as matérias censuradas não passavam da Agência Folhas, mas obviamente os assuntos importantes mereciam um exame do Aggio. “Pelo que percebi, como subsecretário, estes eram separados previamente, relatados a ele e depois encaminhados às editorias. Não havia interrupção deste fluxo, as matérias não paravam na chefia de reportagem, nem na mesa do Aggio, mas as decisões do que e como publicar eram dele”. O diferencial entre a FT e os outros jornais eram os critérios usados para se avaliar uma matéria, descreveu Okubaro. “Estes, sim, mudavam na FT. E estes critérios são fáceis de se detectar, basta olhar a coleção da FT, no arquivo da empresa.” Os critérios que norteavam a direção da FT estão explícitos, por exemplo, nestas manchetes, de natureza política, publicadas entre 1970 e 1972: “Bandido Lamarca quis assassinar Marighela” (publicada em 10-07-1970), “Lamarca, o assassino, chega à pena de morte” (publicada em 14-04-1971), “Terror está devorando seus próprios filhos” (publicada em 12-03-1971), “Lamarca, o louco, foi condenado a 30 anos” (publicada em 20-04-71); “Chantagem sexual é a arma do terror” (publicada em 28-07-71) e “Terror abandonou comparsa agonizante” (publicada em 09-02-1972).

Outra estratégia utilizada por Aggio, visando “influenciar o leitor” era quanto à titulação das matérias, tornando a FT um jornal muito forte pelo uso que se fazia do título na notícia. O corpo da matéria, muitas vezes, não era diferente dos que veiculavam nos outros jornais do grupo, já que todos recebiam a mesma informação, o importante era o lead. Antonio Aggio Jr. utilizava-se da seguinte estratégia: introduzia no lead termos fortes, para justificar um título que causasse impacto. Do ponto de vista estilístico, esta estratégia não é condenável, pelo contrário, pode-se até melhorar um texto, torná-lo mais interessante para o leitor, e melhorando-se o texto, permite-se o uso de um título mais criativo. Mas no caso da FT não era necessariamente uma questão de estilo, havia uma questão política e ideológica embutida no título. Primeiro, reescrevia-se o lead visando a defesa do regime militar e dos seus atos, quaisquer que eles fossem. E, na maioria das vezes, conforme Okubaro presenciou, como subsecretário, eram defendidos os piores atos do regime militar. O objetivo era sempre um só: combater os que combatiam o regime militar[20].

Embora as notícias fossem anguladas de forma a defender o governo e tornar legítima a repressão aos opositores do regime, é difícil definir como manipulação a forma como as matérias eram redigidas, pois a informação recebida pela FT era a mesma que chegava aos outros jornais da empresa, revelou Okubaro. “Se havia manipulação esta era feita nas próprias fontes de informação e a responsabilidade do jornal estaria em não conferir a qualidade da informação recebida”. Segundo o depoimento de Okubaro, os casos são muitos. Quando o Dops distribuía informações sobre a morte de um militante, por atropelamento – “isto aconteceu várias vezes” - estas informações não eram checadas. Depois, descobria-se que o militante havia morrido sob tortura, nas dependências dos órgãos de repressão. Era extremamente difícil conferir a veracidade das notícias, então elas eram publicadas como verídicas. Os outros jornais também publicavam este tipo de informação, mas com ressalvas. No corpo da matéria, colocavam que determinado órgão governamental informou que fulano de tal participou disto e foi morto. “Já na FT, não. Este jornal publicava esta informação em manchete, usando termos como terrorista e bandido”.[21]

Para o ex-editor chefe da “Folha da Tarde”, a linha editorial do jornal, visivelmente em defesa do regime militar, vinha ao encontro de suas idéias, mas em nenhum momento visou legitimar atos de violência do governo. “Eu estou num jornal que tinha suas fontes, que recebia todo material da Agência Folha, como os outros jornais da empresa, sem exceção, então, como eu poderia colocar em dúvida estas informações? Eu usava, sim termos fortes, pois para mim quem assalta banco é assaltante e o fato de carregarem bandeira política, não era o suficiente para lhes garantir outro adjetivo.”[22]

Quanto às torturas que aconteciam nos órgãos de repressão, causando muitas vezes a morte dos torturados, Aggio explica: “Como eu poderia saber disto? Aliás, ninguém sabia e precisou que a Cúria Metropolitana e pesquisadores de todo o Brasil se juntassem para produzir trabalhos abordando e divulgando o problema”[23].

Embora o ex-editor editor-chefe da “Folha da Tarde” negasse saber, na época, que havia tortura a presos políticos, a FT que ele dirigia publicou matérias negando a existência de tortura. Na edição de 17 de junho de 1970, por exemplo, no pé da primeira página, há a seguinte chamada, sob o título “Concluído o IPM dos boatos”. E o texto da chamada diz:“Foi remetido à 3ª Auditoria do Exército, no Rio, o IPM que apurou a divulgação na imprensa internacional, de falsas notícias de torturas de presos políticos no Brasil. Estão indiciados dez subversivos entre os quais dois diplomatas, um sociólogo, um engenheiro, um professor e funcionários do Ministério de Relações Exteriores e quatro mulheres, que começaram a agir em janeiro de 1969, denegrindo a imagem do País. Página 3.” Abrindo a página 3, a matéria é publicada sob o título “Falsa tortura: IPM na Justiça” e acusa um grupo de brasileiros de divulgar à imprensa internacional falsas notícias de torturas de presos políticos no Brasil. No corpo da matéria está escrito:“... conspiração destinada a promover e articular uma campanha bem montada com bases ideológicas e objetivos políticos mediante o fornecimento de material de desinformação para com todos os malefícios decorrentes, criar e manter no exterior uma imagem desumana e revoltante do Brasil e seu governo, de repercussão extremamente danosa, tendente a suscitar-lhe sérias dificuldades no campo internacional como, por exemplo, as perturbações nos meios financeiros...”

Okubaro revelou que durante o processo de redação das notícias, estas eram “enriquecidas” com informações privilegiadas que o jornal possuía, já que o editor-chefe da “Folha da Tarde” possuía canais bastante influentes com várias pessoas ligadas aos órgãos de repressão e dialogava, com freqüência, com agentes importantes da repressão. “O delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos principais responsáveis pela repressão no Estado de São Paulo, por exemplo, freqüentava as festas de aniversário da FT, que eram sempre no começo de julho”, e, além disso, “o jornal recebia informações diretas do delegado Romeu Tuma[24], então responsável pelo Dops paulista e amigo pessoal de Aggio.” Okubaro relata ainda que Aggio também tinha ligações com o Exército e um de seus amigos mais chegados, ao qual ele chamava de “padrinho”, era o coronel Antonio Lepiani, que comandava o quartel do qual fugiu Carlos Lamarca. Além disso, o chefe de reportagem da FT, Carlos Dias Torres, tinha sido assessor de imprensa do Quarto Comando Aéreo Regional (ou Quarta Zona Aérea) e mantinha também ligações com a Marinha. “Então quando alguma notícia era dada com destaque o Aggio sabia o que estava fazendo, sempre havia um motivo subjacente nas manchetes, nas fotos, nos títulos, nos leads provocativos das matérias. Eu vi isso acontecer muitas vezes como subsecretário do jornal.”[25]

Antonio Aggio negou que a “Folha da Tarde” recebesse informações privilegiadas dos órgãos de Segurança, mas o jornal divulgou com exclusividades vários fatos que marcaram a História recente do Brasil. Um destes fatos, publicado como manchete, em 1º de julho de 1970, “Massa, o Terrorista, promete entregar-se”, foi quando o terrorista André Massafumi Yoshinaga entregou-se ao Dops, arrependido de suas atividades políticas. Esta informação, apenas no dia seguinte, foi publicada na “Folha de S.Paulo”. Levando-se em conta que a “Folha” editou a matéria com destaque, fica claro que ela a teria publicado junto com a FT, se tivesse recebido, também, a informação com antecedência, ou se esta informação tivesse chegado à redação da “Folha da Tarde” via Agência Folha.

Quanto ao processo de fechamento[26] da “Folha da Tarde”, do ponto de vista técnico, não se diferenciava muito do dos outros jornais da empresa, apenas os critérios para avaliação das matérias é que eram outros: normalmente, nos veículos de comunicação, há a preocupação com a veracidade da informação, com a qualidade da fonte, a qualidade do texto, a relevância do assunto. “Já na FT os critérios eram necessariamente os da defesa do regime contra os seus inimigos e inimigos eram todos os que achavam que o regime era ditatorial”.[27] Nesta época, a FT publicou manchetes sobre a Transamazônica, o lançamento do PIS, discursos sobre o tema “Brasil Grande” e a Copa de 70. “O lead destas matérias tinha sempre por objetivo mostrar o grande futuro que o governo via para o Brasil“. Por outro lado, o discurso de Médici é extremamente positivo na retratação de um país que ele imaginava que o Brasil fosse ou o Brasil que ele achava que deveria ser e a “Folha da Tarde” propositadamente transmitia esse clima de Brasil Grande em suas matérias. Algumas manchetes da época foram: “Pis subiu: mais lucro para os trabalhadores” (publicada em 29-11-1973), “55 municípios com a reforma agrária” (publicada em 27-10-1971), “Mais uma revolução: estudo terá salários” (publicada em 13-01-1973), “Decreto revoluciona a alimentação do povo” (publicada em 30-03-1973), “EUA reconhecem Brasil como a nova potência” (publicada em 23-12-1971). Claro que muitos jornais seguiram, também, este caminho, mas a FT destoava do resto, pois pontificava como a grande defensora dos atos praticados pelo regime.

Em 84, o fim de uma era

Com o declínio do regime militar, a percepção de Frias, seu felling mercadológico, apontou para a ascensão das forças sociais contra o regime militar e, usando uma estratégia de marketing perfeita, ele fez da “Folha de S. Paulo” a defensora das eleições diretas para presidente, numa campanha que mobilizou não só a redação, mas também a Agência Folha, que na época era dirigida por Adilson Laranjeira, responsável pela coordenação do noticiário da “Campanha das Diretas” e que, não por acaso, foi escolhido para substituir Aggio na direção da “Folha da Tarde”, a partir de maio de 1984.

O empresário Octávio Frias de Oliveira[28] em seu depoimento afirma que “Aggio saiu da direção da FT após a Campanhas da Diretas “por pura coincidência”. “Não houve relação entre a Campanhas das Diretas, feita pela Folha, e o fim do governo militar com a troca do Aggio pelo Adilson Laranjeira, na direção da “Folha da Tarde”, mesmo porque “se eu tivesse dado uma orientação diferente ao Aggio, ele a teria cumprido”, revelou Frias .Entretanto no primeiro número editado por Adilson Laranjeira, a mudança da linha editorial da FT pode ser detectada na manchete – “Ulisses condena os covardes” –, dando espaço a uma declaração de Ulisses Guimarães, então presidente nacional do PMDB, partido de oposição ao governo, pregando a unidade de seu partido na defesa de eleições diretas para escolha do presidente. Manchete que Aggio nunca daria. Segundo Adilson Laranjeira, a saída do Aggio não aconteceu de uma hora para outra, era tema de discussão na cúpula da empresa e das reuniões de Frias com os editores da “Folha de S.Paulo”. E dentro da empresa um dos que mais pressão fazia para que isso acontecesse o mais rápido possível era exatamente o herdeiro do grupo, Otávio Frias Filho.

Na visão de Adilson, Antonio Aggio Júnior se apegou muito aquele tipo de jornal que fazia e não percebeu que as coisas estavam mudando, enfim, ele não conseguiu se adaptar aos novos tempos “seja por convicção, seja pelos amigos que ele tenha feito, pessoas ligadas à direita e que o patrulhavam”. Quando Adilson assumiu a “Folha da Tarde” a tiragem já havia caído muito, os leitores já haviam abandonado a FT. Embora Aggio conseguisse se manter na direção da “Folha da Tarde” até 1984, o jornal não tinha mais credibilidade. À medida que o brasileiro perdia a confiança no governo, ele também deixava de acreditar no que a FT publicava, pois ela não havia mudado, ou melhor, seu editor-chefe não percebia que o Brasil tinha mudado.

O que se pode concluir de tudo isso é que, jogando estrategicamente no campo político, nos marcos do capitalismo, e também mercadológico, oferecendo uma linha de produto (jornais) diversificada, o Grupo Folha consolidou seu império, tendo, para qualquer tendência da política e do mercado, um produto pronto para ser ativado. E foi exatamente isso que aconteceu: quando percebeu que as mudanças no campo político não tinham mais volta – todos os segmentos sociais (menos, claro, os que apoiavam o regime) queriam a volta da democracia, não teve dúvidas: trocou a linha editorial da FT (e seu editor) para estar a favor dos ventos e tirar deles proveito fosse qual fosse a direção.

Referências bibliográficas

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MAYRINK, José Maria. Da Dificuldade de ser Repórter no Brasil, Cadernos de Jornalismo nº 7, Rio, Edições Jornal do Brasil, 1967.

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MOTA, Carlos Guilherme e CAPELATO. Maria Helena. História da Folha de S.Paulo, São Paulo, Impress, 1981.

SEQUEIRA, Cleofe Monteiro. A Informação Comprometida – Um Estudo do noticiário da Folha da Tarde no Governo Médici. Dissertação de mestrado, ECA-USP, São Paulo, 2000.

TASCHNER, Gisela. Folhas ao Vento – Análise de um Conglomerado Jornalístico no Brasil, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.

Entrevistas

Adilson Laranjeira, jornalista, ex-editor-chefe da Folha da Tarde, em 19.11.1999.

Antonio Aggio Júnior, jornalista, ex-editor-chefe da Folha da Tarde, em 20.9.1999 e 24.11.1999.

Antonio Carlos Fon, jornalista, em 22.11.1999.

Jorge Okubaro, jornalista ex-subsecretário da Folha da Tarde, em 22.9.1999

Octávio Frias de Oliveira, ex-diretor da Folha de S.Paulo

 

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[1] Um dos autores que citam a “Folha da Tarde” é Cláudio Abramo, em A Regra do Jogo, São Paulo, Companhia das Letras, 1988. Na página 87, o autor define a “Folha da Tarde” como um jornal colaboracionista e porta-voz do governo militar. Eis o texto completo: “De 1969 até 1972 a Folha atravessou um período negro, em que não havia espaço político algum no jornal. Na verdade, o jornal não tinha condições de resistir a pressões do governo e por isso não provocava. Foi uma política muito sábia, que Frias aplicou ao jornal. Se provocasse, o governo cobraria do jornal. Foi nessa época que se formou o núcleo policial da Agência Folhas, composto por remanescentes do grupo que estava na Folha quando fui para lá, em 65. Esse pessoal mais tarde passaria para a “Folha da Tarde”, transformando-a no jornal mais sórdido do país”.

[2] TASCHNER, Gisela. Folhas ao Vento – Análise de um Conglomerado Jornalístico no Brasil, Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1992. Pág. 133.

[3] Idem nota 5.

[4] Olho – É um subtítulo ou intertítulo, de três a cinco linhas. Servem para facilitar a leitura e organizar as idéias. Manual Geral da Redação, Folha de S.Paulo, 1987, págs.92, 144, 156.

[5] Manual de Redação da Folha de S.Paulo, 1987, 2ª revisão. Diagramação – Tarefa que consiste em dispor plasticamente na página de jornal todo o material de edição: textos, títulos, fotos, ilustrações, gráficos, legendas. Obra citada, pág. 152.

[6] Depoimento do jornalista Jorge Okubaro, ex-redator e subeditor da Folha da Tarde, em depoimento à autora, em 22 de setembro de 2000.

[7]O jornalista Antonio Aggio Júnior ficou no cargo até maio de 1984. Depoimento dado em 22 de setembro de 1999.

[8] Depoimento do empresário Octávio Frias de Oliveira à autora em 18 de maio de 2000 .

[9] Depoimento do jornalista Jorge Okubaro, que ocupou os cargos de repórter, redator, editor e subsecretário da Folha da Tarde.

[10] Nos anos 60/ 70/80, Frias foi proprietário da Estação Rodoviária de São Paulo, localizada no bairro Campos Elíseos, próximo à alameda Barão de Limeira, onde até hoje fica a Empresa Folha da Manhã .

[11] Depoimento do jornalista Antonio Carlos Fon, em 22.11.1999. Fon começou no Jornalismo em 1967, no jornal O Dia, de São Paulo, como repórter-policial; transferindo-se depois para o Diário Popular e mais tarde, para o Jornal da Tarde, onde trabalhou por seis anos cobrindo a área policial. Em 1974 transferiu-se para a revista Visão, onde, durante um ano, cobriu as áreas de economia e política. Fez parte do grupo que lançou em 1975 o jornal Aqui São Paulo, transferindo-se depois para a Veja onde dedicou-se à reportagem policial. Fon ficou preso de 29 de setembro a 19 de novembro de 1969. É autor do livro “Tortura – A História da Repressão Política no Brasil” editado pela Global Editora e Distribuidora Ltda., em julho de 1979.

[12] TASCHNER, Gisela. Obra citada, pág. 162.

[13] Depoimento de Antonio Aggio Júnior.

[14]Retranca – Palavra usada genericamente para identificar cada unidade de texto em jornal. Especificamente, significa a identificação, feita através de números e letras, que permite localizar a unidade de texto no diagrama (folha de papel quadriculado de dimensão equivalente à metade do tamanho padrão de uma página de jornal ou igual a ela. Ali, editor e diagramador desenham, dispondo plasticamente a forma pela qual o texto e as ilustrações vão aparecer na página impressa) de uma página. Manual de Geral de Redação da Folha de S.Paulo, págs. 152 e 158.

[15] Diagramação – Tarefa que consiste em dispor plasticamente no diagrama todo o material de edição: textos, fotos, títulos, ilustrações, gráficos, legendas. Idem, pág. 152.

[16] Manchete – É o título do assunto principal de cada edição. Ibidem, pág. 155.

[17] Chamada – É o texto publicado na primeira página que apresenta a notícia ao leitor e o avisa de que um noticiário mais completo está em determinada página interna. Ibidem, pág. 150.

[18] Depoimento de Antonio Aggio Jr.

[19] Na visão de Antonio Aggio Júnior são as matérias relacionadas com áreas política, policial e esportiva que atraem o leitor.

[20] SEQUEIRA, Cleofe Monteiro. A Informação Comprometida – Um estudo do noticiário da Folha da Tarde no governo Médici. Dissertação de Mestrado defendida na Escola de Comunicações e Artes da USP, em 2000. São Paulo. Pág. 136.

[21] Depoimento de Jorge Okubaro.

[22] Depoimento do jornalista Antonio Aggio Jr.

[23] Depoimento do jornalista Antonio Aggio Jr.

[24] Atualmente, o jornalista Antonio Aggio Júnior é assessor de imprensa do hoje senador Romeu Tuma.

[25] Depoimento do jornalista Jorge Okubaro.

[26] Fechamento – É a conclusão do trabalho de edição. Obra citada, pág. 153.

[27] Depoimento do jornalista Jorge Okubaro.

[28] Depoimento do empresário Octávio Frias de Oliveira.

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