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Intercom ? Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunica??o XXXV Congresso Brasileiro de Ci?ncias da Comunica??o ? Fortaleza, CE ? 3 a 7/9/2012

"Avenida Brasil" e o Sub?rbio Carioca: apontamentos para um estudo sobre a telerrealidade na narrativa ficcional televisiva1

Patr?cia de Miranda Iorio2 Funda??o de Amparo ? Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ

RESUMO

Em meio ?s discuss?es sobre o protagonismo da nova classe C na programa??o da principal emissora de tev? do pa?s e o esfor?o das fic??es seriadas em representar seu universo, buscando a identifica??o deste novo p?blico consumidor, este trabalho apresenta apontamentos para olhar a narrativa ficcional televisiva n?o como um espelho da realidade, mas como uma "telerealidade", um "bios virtual", como prop?e o soci?logo Muniz Sodr?. Aqui, o foco de observa??o ? o sub?rbio carioca, o comportamento de seus moradores, a configura??o est?tica do bairro ficcional Divino, a decora??o do interior das casas, o figurino dos personagens e o preconceito do morador da Zona Sul com o suburbano tal como aparecem na novela "Avenida Brasil", de Jo?o Emanuel Carneiro, exibida em hor?rio nobre na TV Globo.

PALAVRAS-CHAVE: Avenida Brasil; sub?rbio; telenovela; telerrealidade; bios virtual.

Em que coordenada do sub?rbio carioca estaria situado o Divino, bairro onde o craque de futebol Tuf?o se criou e fez fama, onde Monalisa inaugurou o primeiro sal?o de beleza de seu imp?rio e onde a protagonista Nina arquiteta suas vingan?as contra a vil? Carminha? Segundo a m?sica-tema do bairro que embala as cenas da telenovela "Avenida Brasil", de Jo?o Emanuel Carneiro, na TV Globo, Divino ? "bem perto de Osvaldo Cruz, Cascadura, Vaz Lobo e Iraj?". Originalmente composta por Arlindo Cruz para homenagear Madureira, a can??o "Meu lugar" teve o nome do tradicional bairro carioca trocado por Divino s? para entrar na trilha da novela (TV GLOBO, 8 abr. 2012). Assim como o sub?rbio da fic??o n?o faz vizinhan?a com os bairros citados na m?sica, ele tamb?m n?o est? na cartografia da cidade do Rio de Janeiro. Mera cenografia, o Divino pertence a uma outra realidade, ?quilo a que o soci?logo Muniz Sodr? chama de "bios virtual".

Ali, nesse "ecossistema" televisivo produzido no Projac e manifestado em dimens?o midi?tica, ganham fisionomia e vida uma ambi?ncia, uma comunidade e uma pr?tica sociocultural identificadas como o sub?rbio carioca. Diante de fachadas de uma arquitetura que

1Trabalho apresentado no GP Fic??o Seriada, XII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunica??o, evento componente do XXXV Congresso Brasileiro de Ci?ncias da Comunica??o. 2 Bolsista de P?s-Doutorado da FAPERJ junto ? Escola de Comunica??o da Universidade Federal do Rio de Janeiro, email: patriciaiorio@.

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parece ter parado no tempo, nas cadeiras dispostas nas cal?adas, ou no interior das casas, bares e clubes, cal?ando chinelos e bermudas, aposentados, jovens desocupados e trabalhadores de todas as idades dedicam-se a suas tarefas, veem o tempo passar, falam da vida alheia, comentam sobre o corpo das mo?as apertado em jeans de cintura baixa e camisetas colantes. Nas ruas sobrecarregadas de carros, gente, lojas, letreiros luminosos, ambulantes e promo??es, a temperatura sobe na mesma intensidade com que o volume das vozes sobrepostas aumenta, o ru?do dos autofalantes estoura os ouvidos e a profus?o de cores nos letreiros, na decora??o e na moda lembra uma cartela de Pantone.

Desde sua estreia em 26 de mar?o de 2012, "Avenida Brasil" vem comemorando surpreendente aceita??o de p?blico e de cr?tica. Nos jornais e em revistas especializadas, os coment?rios do p?blico parecem se desdobrar em tr?s eixos3: a) estamos adorando conhecer os suburbanos; b) como s?o engra?ados os suburbanos; e c) n?s, suburbanos, n?o somos assim. Apenas a t?tulo de exerc?cio de racioc?nio, seria poss?vel imaginar que a novela de Jo?o Emanuel Carneiro, de alguma forma, a) tem dado a conhecer o sub?rbio carioca para uma parcela dos telespectadores, b) tem apresentado o suburbano como um carioca de comportamentos e est?ticas considerados "aut?nticos" (eufemismo para sem classe e cafonas) por outra parte do p?blico, e c) n?o tem cativado a identifica??o de muitos moradores do sub?rbio da vida real, que reclamam n?o estarem reconhecendo a si pr?prios nos personagens do n?cleo do Divino.

Apesar de todo esfor?o e investimento assumido pela emissora (CASTRO; BRITTO, 2012) para que sua programa??o se voltasse para a t?o comentada nova classe C4 com o objetivo de dar visibilidade a esse grande segmento de consumidores emergentes5 (e atrair anunciantes que explorassem seus novos h?bitos de consumo), seria poss?vel ent?o que a novela estivesse resultando num engodo sociol?gico, numa estrat?gia de marketing equivocada, ou numa narrativa truncada sobre a representa??o da vida na periferia? Estaria a Globo vendendo gato por lebre ao apresentar ? audi?ncia um sub?rbio carioca com o qual nem os pr?prios suburbanos se identificam? E o resultado disso -- o refor?o do estere?tipo

3 Tais afirma??es baseiam-se t?o somente em observa??es e leituras informais, sem fundamento cient?fico, sem suporte em nenhum estudo de recep??o. S?o apenas provoca??es baseadas no senso comum para levantar hip?teses para este trabalho. 4 Sobre a nova classe C, Octavio Florisbal, afirmou, no lan?amento da grade de programa??o de 2012: "S?o mudan?as importantes que precisamos acompanhar na nossa dramaturgia, com nosso humor, na presta??o de servi?o com o jornalismo. As pr?ximas novelas ter?o realmente uma abordagem mais popular". 5 Segundo economista-chefe do Centro de Sociais da Funda??o Get?lio Vargas Marcelo N?ri, esse nova classe tem uma renda familiar de R$ 1.800 a R$ 7.400, somam hoje 105 milh?es de pessoas, das quais 40 milh?es foram incorporadas a partir de 2003. A proje??o ? a de que, nos pr?ximos tr?s anos, mais 12 milh?es de cidad?os passem a integr?-la. "? uma classe m?dia nova, n?o ? igual ? tradicional. ? gente que veio de baixo, que trabalhava em servi?os e constru??o. S?o pessoas otimistas e consumidores valorizados, pois sua renda cresce em pleno momento de estagna??o no mundo inteiro."

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recorrente do suburbano, cristalizado desde os primeiros movimentos de urbaniza??o da cidade -- n?o funcionaria como um tiro no p? das inten??es de conquista da nova classe C, provocando, ao inverso, mais do mesmo: a exclus?o e o preconceito?

Tais provoca??es motivaram estes apontamentos para um estudo sobre a telerealidade na fic??o seriada, uma categoria que avan?aria na contra-m?o dos conceitos de identidade e representa??o. Embora a classe popular j? estivesse em cena desde 2007, com a novela "Duas Caras", de Agnaldo Silva, e j? viesse fazendo sucesso na Grande Fam?lia h? mais de dez anos, como bem lembrou Maria Immacolata Lopes (Apud CASTRO;BRITTO, loc. Cit.), s? agora, em "Avenida Brasil", o sub?rbio se materializa de forma t?o central na trama de uma telenovela de hor?rio nobre. Como disse Sodr? a respeito de todo o movimento que vem conquistando visibilidade para o sub?rbio e as classes populares, "A periferia chegou ao centro" ("Roda Viva", 25 jun. 2012).

I. A AVENIDA BRASIL QUE D? NOME ? NOVELA Maior avenida em extens?o do Brasil e mais importante via expressa da cidade do

Rio de Janeiro, a Avenida Brasil atravessa 27 bairros, permitindo o fluxo di?rio pendular de trabalhadores da Baixada Fluminense e das zonas Norte e Oeste com o Centro. Desde 1946, quando foi inaugurada, o eixo vi?rio tornou-se um ?cone da expans?o da cidade em dire??o ao sub?rbio e um importante possibilitador do crescimento econ?mico da regi?o a partir dos anos JK, com a circula??o de mercadorias, a escoa??o da produ??o do crescente parque industrial adjacente e a presen?a de entrepostos de hortifrutogranjeiros.

O intenso, lento e pesado tr?fego, a vizinhan?a de favelas, a crescente onda de inseguran?a, a falta de conserva??o da via e a constru??o das linhas alternativas mais modernas e velozes nas ?ltimas d?cadas determinaram o abandono por parte de muitas empresas da Avenida Brasil, causando ainda mais desvaloriza??o ? regi?o. Recentemente, com o programa de pacifica??o de favelas e o esfor?o de repaginar "cenograficamente" a cidade para que satisfa?a ?s exig?ncias dos organizadores internacionais dos grandes eventos esportivos que ser?o sediados no Rio de Janeiro em 2014 e 2016, a avenida, bem como o seu entorno, vem sendo beneficiada. Tem sido contemplada n?o s? com obras f?sicas, mas com campanhas midi?ticas de todo tipo destinadas a convencer a popula??o (e os turistas) de que o Rio ? um canteiro de obras, de que as favelas est?o pacificadas e de que as Unidades de Pol?cia Pacificadora (UPPs) n?o s? acabaram com a viol?ncia e o tr?fico como promoveram a inclus?o social atrav?s da integra??o morro-asfalto.

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Digo tudo isso para contextualizar brevemente o tema-t?tulo da novela de Jo?o Emanuel Carneiro no cen?rio s?cio-pol?tico atual carioca. Mais que explorar uma classe de consumidores em plena expans?o e desejo de consumo, mais que tratar de um assunto ardente na realidade brasileira (como sempre fizeram as telenovelas nacionais) e mais que falar de um movimento leg?timo e espont?neo da periferia em suas manifesta??es culturais e intelectuais, falar do sub?rbio carioca em hor?rio nobre na TV Globo precisamente nestes tempos de UPP parece-me, para al?m do arb?trio e da criatividade do autor, um desdobramento de uma narrativa que compartilha o mesmo enquadramento do jornalismo da emissora. (Mas isso j? ? assunto de outra pesquisa que est? em andamento e que antecipo aqui apenas por quest?o de oportunidade6.)

I.1 Para entender a cidade partida Quem se der ao trabalho de revolver a hist?ria em busca dos primeiros planos de

zoneamento da cidade do Rio de Janeiro ser? surpreendido com a informa??o de que apenas em 1918, atrav?s do Decreto 1.185, a ent?o capital da Rep?blica foi dividida em zonas urbana, suburbana e rural (FERNANDES, 1995, p. 37). Diferentemente do que se concebe hoje, a terminologia "urbana" configurava um territ?rio povoado, de ocupa??o densa. Nesse sentido eram consideradas "zonas suburbanas" tanto o descampado litoral da Ba?a da Guanabara como as partes montanhosas da G?vea e da Tijuca. Bairros que ainda tinham fei??o suburbana por sua baixa densidade populacional, mas que viriam mais tarde a compor a Zona Sul, como Copacabana, por exemplo, eram identificados como "arrabalde", como se houvesse um "um `veto' ? utiliza??o da palavra sub?rbio para se referir aos bairros da "zona sul", mesmo quando eles ainda tinham caracter?sticas de sub?rbios".

Mais tarde, em 1925, o Decreto 2.087, quando o zoneamento Central foi acrescentado ?s tr?s zonas j? existentes, a defini??o de "urbano" foi levemente ajustada para corresponder aos assentamentos residenciais mais populosos na ?poca, ou a parte "conhecida e habitada" (OLIVEIRA, 1978, p. 5) da cidade. Curiosamente, embora Copacabana, Ipanema e Leblon (os bairros praianos) ainda fossem pouco ocupados ent?o, para efeito do zoneamento da cidade eram considerados ?rea urbana por serem "conhecidos". Conhecidos por quem?, pergunta Oliveira. Pela mesma elite carioca que

6 Com o apoio da FAPERJ, conduzo a pesquisa de p?s-doutorado "Cartografia do Rio: Representa??o da Cidade no jornalismo e na telenovela", com a orienta??o do prof. Muniz Sodr?.

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passou a pensar a cidade inspirada pelas reformas do prefeito Pereira Passos, nos primeiros anos do s?culo XX.

? servi?o de um urbanismo moldado na Europa, valores como "ciliza??o", "progresso", "higiene" e "modernidade" passaram a ser adotados convenientemente por aqui, nessa cidade que ainda havia pouco cantara as maravilhas da escravatura e que agora, em uma faxina de fachada, tinha de demolir os relevos naturais do Centro e as constru??es nativas para dar lugar ? Avenida Central e seus arremedos parisienses, al?m de expulsar negros e mulatos das ?reas urbanas para os sub?rbios, de modo que n?o fossem vistos pelos cidad?os civilizados. A hipocrisia faria Lima Barreto indignar-se em carta para Assis Viana:

A nossa mania de fachadas leva-nos a prorromper em berreiros pelas colunas dos jornais, reclamando dos poderes p?blicos provid?ncias para que sejamos conhecidos na Europa, ?sia, etc, a fim de evitar que os estrangeiros n?o mais nos caluniem, dizendo que aqui h? negros e mulatos; entretanto, n?o nos lembramos que n?o nos conhecemos uns aos outros, dentro do nosso pr?prio pa?s, e tudo aquilo que fica pouco adiante dos sub?rbios das nossas cidades, na vaga denomina??o de Brasil, terra de duvidosa exist?ncia, como a sua homenagem da fant?stica geogr?fica pr?colombiana. (BARRETO apud NOGUEIRA, 2010, p. 111.)

Diferentes l?gicas, "ci?ncias" e preconceitos recortaram a cidade diversas vezes e de diversos modos. Ao longo desse processo, muitas foram as imagens do suburbano.

I.2 O sub?rbio como constru??o Sub?rbio, palavra m?ltipla. Espa?o id?lico, distante do caos, onde o tempo corre

mais lentamente, onde os la?os afetivos se estreitam na soleira da porta, no jogo de cartas na cal?ada, na x?cara de a??car compartilhada entre vizinhas, na pipa que corta o c?u aberto e entrela?a rabiola com o amigo. Burburinho, gente por toda parte, ruas engarrafadas, tr?nsito desordenado, apito de trem, mais gente, com?rcio popular, ambulantes, shopping centers, auto-falantes com promo??es e m?sicas de todos os estilos, letreiros luminosos, cartazes coloridos, estampas vibrantes. Calor escaldante, a brasa assa a carne na churrasqueira, um frescor escapa da mangueira que molha o carro na garagem, os amigos se encontram no terreno baldio para o futebol dominical. Aglomerado de com?rcio tradicional onde o dono ? conhecido, onde o avi?rio ? vizinho do secos e molhados, da barbearia, da loja de ferragem, da madeireira, da boutique de marca. A comunidade fronteiri?a com a favela de casas coloridas, recortada por vielas, "protegida" por policiais, guardada pelos moto-taxis, monitoradas pelo tr?fico, visitada pelos turistas, atravessada por alunos rumo a

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