Identificações e estratégias nas relações étnicas na ...

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Identifica??es e estrat?gias nas rela??es ?tnicas na telenovela "Da Cor do Pecado" Dennis de Oliveira (Universidade Metodista de Piracicaba e Universidade de S?o Paulo)1 Maria ?ngela Pavan (Universidade Metodista de Piracicaba)2

Resumo Este artigo faz uma an?lise das estrat?gias dos personagens da telenovela Da cor do pecado, transmitida pela Rede Globo de Televis?o no hor?rio das 19h00, no primeiro semestre de 2004, particularmente no tocante ?s rela??es ?tnicas. Para este estudo, utilizou-se os referenciais da corrente conhecida como "Estudos Culturais" (ou Escola de Birmigham), em especial o te?rico jamaicano Stuart Hall. Com base nestes referenciais te?ricos e uma an?lise emp?rica de cenas da telenovela que demonstram conflitos nas rela??es inter?tnicas, tra?ou-se um quadro de refer?ncias existentes na trama a respeito de estrat?gias apontadas como positivas e negativas no enfrentamento do preconceito racial. Palavras chave: Processos Medi?ticos e Culturais Telenovela e Rela??es ?tnicas M?dia e racismo Contra-hegemonia e comunica??o Minorias

1. Introdu??o A novela Da cor do pecado, escrita por Jo?o Emanuel Carneiro com supervis?o de

Silvio de Abreu e dire??o geral de Denise Saraceni, foi ao ar na Rede Globo de Televis?o no primeiro semestre de 2004. A trama central da telenovela centra-se na personagem Preta (Ta?s Ara?jo), uma mo?a negra maranhense, que tem um romance com Paco (Reinaldo Gianecchini), rela??o da qual nasceu um filho de nome Ra? (S?rgio Malheiros). Entretanto, Paco era namorado de B?rbara (Giovanna Antonelli), uma mo?a rica e ego?sta, que fica inconformada de ser trocada por uma mulher negra e pobre do Maranh?o. O namorado ? a ?nica forma de salv?-la da decad?ncia, pois sua fam?lia est? falida. A novela, basicamente, conta a trajet?ria de dois irm?os Paco e Apolo (Reynaldo Gianecchini) g?meos que desconhecem a exist?ncia um do outro. De um lado est? Paco, que ? um bot?nico dedicado ? profiss?o, que por op??o, vive uma vida pacata de classe m?dia no Rio de Janeiro e n?o

1 Doutor em Ci?ncias da Comunica??o pela ECA/USP, coordenador do curso de Jornalismo da Universidade Metodista de Piracicaba e professor da Escola de Comunica??es e Artes da USP e da Universidade Anhembi Morumbi. L?der do Grupo de Pesquisa "Processos Medi?ticos e Culturais" E-mail: dennisoliveira@.br 2 Doutora em Multimeios pela Unicamp, professora da Faculdade de Comunica??o da Universidade Metodista de Piracicaba. Membro do Grupo de Pesquisa "Processos Medi?ticos e Culturais" E-mail: angelalenotti@

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concorda com a forma pela qual seu pai, Afonso Lambertini (Lima Duarte), construiu seu imp?rio. Apolo vive com a m?e e irm?os, mas os g?meos se cruzam e uma trag?dia leva a vida de Apolo e Paco volta para viver no lugar do irm?o depois de oito anos do acidente. Neste tempo se afasta de Preta (que agora tem um filho seu) e come?a uma eterna desconfian?a na rela??o com ela. Sabemos como ser? o final da hist?ria, eles viver?o felizes e os maus ser?o desmascarados. At? esta hist?ria siderar para o que os olhos possam ver o que deseja, muitas palavras nas sombras que segregam os afrodescentes teremos que ouvir.

Este artigo faz uma an?lise das rela??es raciais existentes na novela a partir de alguns di?logos selecionados. A justificativa para a realiza??o desta an?lise d?-se pelo fato desta novela ter despertado uma s?rie de posicionamentos a respeito da forma como ela trata as rela??es raciais. Estes posicionamentos foram diversos. Variaram desde uma vis?o positiva justificada pelo fato de ser a primeira telenovela global em que uma atriz negra ? a protagonista da hist?ria (Ta?s Ara?jo), passando pelo fato de que a personagem representada por esta atriz ? v?tima de racismo, praticado pelo n?cleo "antagonista" da hist?ria (representado pelos personagens B?rbara (Giovanna Antonelli) e Afonso (Lima Barreto).

Os que partilham desta vis?o consideram que o fato da maior emissora do pa?s colocar uma atriz negra como a personagem principal da hist?ria e, mais, como a hero?na (que, tudo indica, ter? um final feliz com seu "par rom?ntico", o personagem Paco, representado por Gianechinni) ? uma primeira vit?ria da luta do movimento negro em conquistar espa?os na m?dia, uma bandeira antiga dos que consideram que h? uma invisibilidade do afrodescendente brasileiro refor?ado pelos estere?tipos brancos midiatizados.

A atriz principal, Ta?s Ara?jo, em entrevista ? Revista Ra?a, declarou que: "Xica da Silva foi um marco importante (nesta novela, Ta?s Ara?jo fez o seu

primeiro papel principal, como filha de Zez? Mota) Mas uma negra estrelando uma novela da Globo, a primeira rede de tev? do pa?s e a terceira do mundo, significa tudo de bom. Vejo como um degrau importante para o fim do preconceito racial. Uma empresa de comunica??o e formadora de opini?o est? avalizando a nossa luta."3 A mesma edi??o da revista Ra?a Brasil celebra o espa?o conquistado pelo negro na m?dia brasileira. Na reportagem intitulada O Descobrimento do Brasil, assinada pela jornalista Joyce Ribeiro, a chamada afirma: "At? bem pouco tempo, quando se ligava a

3 Revista RA?A BRASIL n. 73, abril de 2004, p.20

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televis?o, ou abria-se uma revista, t?nhamos a impress?o de que est?vamos em algum pa?s da Europa. Hoje, a realidade j? ? outra".4

Segundo a reportagem, a presen?a maior do negro na m?dia deve-se a uma percep??o de que h? um segmento afrodescendente com potencial consumidor. A j? conhecida pesquisa realizada pelo Instituto Grottera realizada no final dos anos 80 que indica que h? uma classe m?dia negra composta por cerca de 8 milh?es de pessoas que movimenta 50 bilh?es de reais por ano e renda mensal superior a 2.300 reais. Estes afrodescendentes, segundo a mesma pesquisa, tem sonhos de consumo iguais aos da classe m?dia branca (grifos nossos), com uma diferen?a: sete em cada dez negros sentemse induzidos a comprar produtos que tenham protagonistas negros em sua propaganda. A telenovela Da cor do pecado ? um indicador desta identifica??o racial: a audi?ncia dela fica em torno de 42 pontos no Ibope, e as pesquisas qualitativas demonstram que existe uma parcela majorit?ria de afrodescendentes nesta audi?ncia em fun??o do protagonismo de Ta?s Ara?jo e a exist?ncia de um n?cleo de personagens negros na trama central da fic??o5.

Outro artigo no jornal "Agora" mostra que a novela est? batendo uma m?dia de 41 pontos de audi?ncia e que no dia cinco de maio quando o casal Paco e Preta se beijaram num encontro a audi?ncia bateu 49 pontos. A mat?ria diz que a rela??o inter-racial est? agradando o p?blico.6 H? tamb?m o questionamento de Joel Zito Ara?jo, que at? 1997 monitorou a participa??o de negros na TV em 174 novelas exibidas entre 1964 at? 1997 pela TV Globo e antiga TV Tupi. Ara?jo diz que continua monitorando a TV e afirma que a situa??o melhorou um pouco, mas ainda est? longe de ser ideal, "Em termos num?ricos, quase nada mudou. A participa??o dos negros fica abaixo dos 10% do elenco, mesmo em "Da cor do Pecado".7 Por?m, pretendemos neste artigo, n?o desconsiderando a import?ncia do espa?o conquistado pelos negros na m?dia como esta telenovela pode demonstrar, levantar outras quest?es importantes para que a mera ocupa??o do espa?o n?o seja vista como o suficiente para considerarmos que os mecanismos de preconceito racial estejam em decl?nio na m?dia. Ao colocar negros e brancos em situa??es relacionais de conflito, ? importante fazer uma leitura acurada de como a telenovela constr?i as minitramas e os

4 idem, p. 80 5 idem, p. 81 e seguintes 6 Agora. Casal inter-racial da novela das sete da Globo ? aprovado pelo p?blico. Ciro Bonilho e Mary P?rsia ? 12/05/2004 ? 10h 20. 7 Da cor do Pecado ainda peca com negros, entrevista com Joel Zito Ara?jo, www1.folha..Br/folha/ilustrada ? em 13/05/2004.

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di?logos, onde se desenvolvem estas situa??es relacionais, quais perspectivas s?o apontadas para a solu??o de tais conflitos. Estas quest?es s?o importantes, porque consideramos que os produtos midi?ticos, longe de apontar sa?das ?nicas e irrefut?veis, apresentam um conjunto de interpela??es e possibilidades de assujeitamentos8, evidentemente apontando conseq??ncias distintas para cada uma destas possibilidades.

Os questionamentos apresentados pelos movimentos negros a respeito da novela "Da cor do pecado" direcionaram para o nome da novela (que relembra a id?ia de que o negro ? a cor do pecado, a mulher negra ? a tenta??o) refor?ada na m?sica-tema de Bororo: - "Esse corpo moreno/cheiroso, gostoso/ que voc? tem/ ? um corpo delgado/ da cor do pecado/ que faz t?o bem" na m?sica real que n?o ? tocada na apresenta??o da novela a letra da m?sica diz ? "E quando voc? me responde / umas coisas com gra?a/ a vergonha se esconde/ porque se revela a maldade da ra?a". S? a m?sica tema seria um importante elemento a ser ressaltado pelos estudos culturais.

O pesquisador canadense van Dijk diz que precisamos levar em considera??o os discursos sociais, di?logos socializantes pois estes discursos "desempenham um papel central tanto na produ??o quanto na reprodu??o do preconceito e do racismo". Dijk esclarece que esse discurso atua nos n?veis micro e macro, assim como nos registros de intera??o e da cogni??o.9

Dois artigos do jornalista e pesquisador Paulo J. Rafael 10 no site Observat?rio da Imprensa suscitou este debate. Rafael refuta a id?ia de que a Rede Globo estava abrindo mais espa?o para os afrodescendentes em fun??o de colocar no papel principal uma atriz negra. Segundo ele, esta "concess?o" da Globo teve um pre?o ? o refor?o da id?ia da mulher negra como "amante", como a "tenta??o". Tanto ? que, na seq??ncia desta pol?mica, organiza??es de mulheres negras protocolaram uma carta de protesto ? Rede Globo, expondo estes pontos de vista. Stuart Hall comenta que o modernismo gosta da diferen?a e do ex?tico.

8 Utilizamos os conceitos de interpela??es e assujeitamentos como definidores dos mecanismos atuantes dos aparelhos ideol?gicos do Estado, conforme proposi??o te?rica de Louis Althusser. Ver a este respeito a obra ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodu??o. Petr?polis, Vozes, 1998. O conceito de "assujeitamento" tamb?m est? presente na Escola Francesa de An?lise de Discurso, conforme afirma Eni ORLANDI, Discurso e Leitura. Campinas: Unicamp, 2000 9 Dijk, Teun A van. Cogni??o, discurso e intera??o, Contexto. 1992 apud Muniz Sodr? (....) p. 242 10 Racismo no hor?rio nobre e No mundo da fic??o hip?crita da Globo, artigos de Paulo J. Rafael - jornalista e professor em Ci?ncias Pol?ticas e Administra??o P?blica pela American World Univ. of Iowa, EUA. .br - 22/05/2004.

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Este debate a respeito da telenovela tem grande import?ncia porque transcende de uma situa??o reivindicat?ria de ocupa??o do espa?o para a discuss?o sobre como ocupar este espa?o. ? fato que a press?o do movimento contra o racismo e o pr?prio reconhecimento das institui??es da exist?ncia do racismo contribuiu para que a quase invisibilidade do negro na m?dia fosse reduzida. O maior capital da m?dia ? a sua credibilidade, ela se prop?e a ser um simulacro do espa?o societ?rio. Por isto, mudan?as em valores e press?es de determinados segmentos sociais tem reflexos nos imagin?rios constru?dos no espa?o midi?tico ? ? o que explica a Globo ter colocado o n?cleo de atores negros no centro da trama desta telenovela.

Entretanto, conforme se depreende da vis?o de Gramsci a respeito de cultura como espa?o de conflitos, os conflitos das vis?es m?ltiplas sobre as rela??es raciais est?o presentes na esfera midi?tica. Assim, ocupar os lugares na esfera midi?tica hegem?nica n?o ? o suficiente. Para isso Hall prop?e uma estrat?gia ao movimento negro, ele pede para que a cultura popular negra busque sua singularidade constantemente. Para isso coloca algumas quest?es: - Quem sou? ?De onde venho? Estas quest?es fortalecem a estrat?gia futura de reconhecimento como bem coloca Muniz Sodr?.

"Contornar esse desdobramento violento do mal-estar individualista, que ? o racismo, implica engendrar lugares de tr?nsito (?tico-pol?ticos) entre as singularidades. Na pr?tica, isto significa levar indiv?duos e institui??es a assumirem ou incorporarem o princ?pio da diversidade humana como uma anterioridade simb?lica (e n?o como mera conseq??ncia) para os desenvolvimentos jur?dicos, pol?ticos e econ?micos que possam intervir na espinhosa quest?o da diferen?a e da desigualdade entre os homens".11

Segundo Stuart Hall a identidade ? realmente algo formado, ao longo do tempo, atrav?s de processos inconscientes, e n?o algo inato. Existe sempre algo "imagin?rio" ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, est? sempre "em processo", sempre "sendo formada". 12 Em vez de falarmos da identidade como uma coisa acabada, dever?amos falar de identifica??o, e v?-la como um processo em andamento. E acrescenta que a identidade surge n?o tanto da plenitude da identidade que j? est? dentro de n?s como indiv?duos, mas de uma falta de inteireza que ? "preenchida" a partir de nosso exterior, pelas formas atrav?s das quais n?s imaginamos ser vistos por outros. Se a novela

11 Sodr?, Muniz. (...) Rejei??o da Alteridade. P. 264.

12 Hall, Stuart. A identidade cultural na p?s modernidade. RJ: DP&A ed, 2001.p.38

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