FEApsico2012



1. O caso Schereber, artigos sobre técnica e outros trabalhos VOLUME XII (1911-1913)2. Dr. Sigmund Freud NOTAS PSICANAL?TICAS SOBRE UM RELATO AUTOBIOGR?FICO DE UM CASO DE PARAN?IA (DEMENTIA PARANOIDES) (1911) NOTA DO EDITOR INGL?S PSYCHOANALYTISCHE BEMERKUNGEN ?BER EINEN AUTOBIOGRAPHISCHBESCHRIEBENEN FALL VONPARANOIA (DEMENTIA PARANOIDES) (a) EDI??ES ALEM?S: 1911 Jb. psychoan. psychopath. Forsch., 3 (1), 9-68. 1913 S. K. S. N., 3, 198-266. (1921, 2? ed.) 1924 G. S.., 8, 355-431. 1932 Vier Krankengeschichten, 377-460. 1943 G. W., 8, 240-316. 1912 ‘Nachtrag zu dem autobiographisch beschriebenen Fall von Paranoia (Dementia paranoides)’, Jb. psychoan. psychopath. Forsch., 3, (2), 588-90. 1913 S. K. S. N., 3, 267-70. (1921, 2? ed.) 1924 G. S., 8, 432-5. 1932 Vier Krankengeschichten, 460-3. 1943 G. W., 8, 317-20. (b) TRADU??O INGLESA: ‘Psycho-Analytic Notes upon an Autobiographical Account of a Case of Paranoia (Dementiaparanoides)’ 1925 C. P., 3, 387-466. - ‘“Pós-escrito” ao Caso de Paranóia’, ibid., 467-70. (Trad. deAlix e James Strachey.) A presente tradu??o inglesa constitui reedi??o da publicada em 1925, algumas corre??es enotas adicionais. As Memórias de Schreber foram publicadas em 1903; mas, embora houvessem sidoamplamente debatidas em círculos psiquiátricos, só parecem ter atraído a aten??o de Freud no3. ver?o de 1910. Sabe-se que falou sobre elas e sobre todo o tema da paranóia durante sua viagemà Sicília, com Ferenczi, em setembro desse ano. No retorno a Viena, come?ou a escrever o artigo,cujo término foi anunciado a Abraham e Ferenczi em cartas datadas de 16 de dezembro. N?oparece ter sido publicado até o ver?o de 1911. O ‘Pós-escrito’ foi lido perante o Terceiro CongressoPsicanalítico Internacional (realizado em Weimar), em 22 de setembro de 1911, e publicado noinício do ano seguinte. Freud atacara o problema da paranóia numa fase muito prematura de suas pesquisas empsicopatologia. Em 24 de janeiro de 1895, alguns meses antes da publica??o dos Estudos sobre aHisteria, enviou a Fliess longo memorando sobre o assunto (Freud, 1950a, Rascunho H). Esteincluía uma breve história clínica e um exame teórico que visava a estabelecer dois pontosprincipais: que a paranóia é uma neurose de defesa e que seu mecanismo principal é a proje??o.Quase um ano depois (em 1? de janeiro de 1896), enviou a Fliess outra nota, muito mais breve,sobre paranóia, parte de um relato geral sobre as ‘neuroses de defesa’ (ibid., Rascunho K), quepouco depois ampliou em seu segundo trabalho publicado com aquele título (1896b). Nessapublica??o, a Se??o II incluía outra história clínica, mais extensa, intitulada ‘Análise de um Caso deParanóia Cr?nica’, caso para o qual Freud (em nota de rodapé acrescentada quase 20 anosdepois) preferiu o diagnóstico corrigido de ‘dementia paranoides’. Com referência à teoria, essetrabalho de 1896 pouco acrescentava às suas sugest?es anteriores; mas, numa carta a Fliess n?omuito posterior (9 de dezembro de 1899, Freud, 1950a, Carta 125), há um parágrafo um tantocrítico, que prenuncia considera??es posteriores de Freud, inclusive a sugest?o de que a paranóiaacarreta o retorno a um auto-erotismo primitivo. Este parágrafo é transcrito na íntegra na Nota doEditor Inglês ao artigo sobre ‘A Disposi??o à Neurose Obsessiva’, com rela??o ao problema da‘escolha da neurose’. (Ver a partir de [1].). Entre a data desta última passagem e a publica??o da história clínica de Schreber, mais dedez anos se passaram quase sem haver men??o à paranóia nos escritos publicados de rmam-nos Ernest Jones (1955, 281), contudo, que em 21 de novembro de 1906 ele apresentouum caso de paranóia feminina perante a Sociedade Psicanalítica de Viena. Nessa data,aparentemente ainda n?o havia chegado ao que deveria ser sua generaliza??o principal sobre oassunto, a saber, a vincula??o existente entre paranóia e homossexualismo passivo reprimido. N?oobstante, pouco mais de um ano mais tarde, apresentava esta hipótese em cartas a Jung (27 dejaneiro de 1908) e Ferenczi (11 de fevereiro de 1908), dela pedindo e recebendo confirma??o.Mais de três anos se passaram antes que as memórias de Schreber lhe oferecessem aoportunidade de publicar sua teoria pela primeira vez e de apoiá-la em um relato detalhado de suaanálise dos processos inconscientes em a??o na paranóia. Há várias referências a essa enfermidade nos escritos posteriores de Freud. As maisimportantes foram seu artigo sobre ‘Um Caso de Paranóia que Contraria a Teoria Psicanalítica daDoen?a’ (1915f), e a Se??o B de ‘Alguns Mecanismos Neuróticos no Ciúme, na Paranóia e noHomossexualismo’ (1922b). Além disso, ‘Uma Neurose Demonológica do Século XVII’ (1923d)4. inclui um exame do caso Schreber, embora a neurose, que é o tema do trabalho, em parte algumaseja descrita por Freud como paranóia. Em nenhum desses escritos posteriores há qualquermodifica??o essencial dos pontos de vista sobre paranóia expressos no presente trabalho. A import?ncia da análise de Schreber, contudo, de maneira alguma se restringe à luz quelan?a sobre o problema da paranóia. A terceira parte, especialmente, foi, sob muitos aspectos,assim como o breve artigo simultaneamente publicado sobre os dois princípios do funcionamentomental (1911b), ver em [1], precursora dos artigos metapsicológicos a que Freud se dedicou, trêsou quatro anos mais tarde. Expuseram-se vários temas que posteriormente deveriam serexaminados mais detalhadamente. Assim, as observa??es sobre narcisismo (Ver a partir de [1].)antecederam o artigo dedicado a este tema (1914c), a descri??o do decurso de alguns anos(1915d), e o exame dos instintos (ver em [2]) preparava terreno para um estudo mais elaborado em‘os Instintos e suas Vicissitudes’ (1915c). Já o parágrafo sobre proje??o (ver em [3]), apesar depromissor, n?o encontraria nenhuma seqüência. Cada um dos dois tópicos examinados na últimaparte do trabalho, contudo - as diversas causas do desencadeamento da neurose (inclusive oconceito de ‘frustra??o’) e o papel desempenhado por ‘pontos de fixa??o’ sucessivos - deveria sertratado antes que decorresse muito tempo, em artigos separados (1912c e 1913f). Finalmente, nopós-escrito, encontramos a primeira rápida excurs?o de Freud pelo campo da mitologia e aprimeira men??o aos totens, que estavam come?ando a ocupar seus pensamentos e deveriamfornecer o título para uma de suas obras principais (1912-13). Como Freud nos diz (Ver em [1].), sua história clínica faz uso apenas de um único fato (aidade de Schreber à época em que caiu enfermo) que n?o se achava contido nas Memórias.Possuímos hoje, gra?as a um trabalho escrito pelo Dr. Franz Baumeyer (1956), certa quantidadede informa??es adicionais. O Dr. Baumeyer esteve por alguns anos (1946-9) encarregado de umhospital situado perto de Dresden, onde encontrou alguns dos registros clínicos originais dassucessivas doen?as de Schreber. Resumiu estes registros e citou muitos deles na íntegra. Alémdisso, coligiu grande número de fatos relacionados à história familiar e aos antecedentes deSchreber. Toda vez que esse material for importante para o trabalho de Freud, será mencionadonas notas de rodapé. Neste momento, é necessário apenas relatar a seqüência à história narradanas Memórias. Após sua alta, em fins de 1902, Schreber parece terlevado uma existênciaexteriormente normal por alguns anos. Ent?o, em novembro de 1907, a esposa teve uma crise deparalisia (embora vivesse até 1912), o que parece ter precipitado novo desencadeamento de suaenfermidade. Foi novamente internado - agora num asilo situado no distrito de D?sen em Leipzig -duas semanas mais tarde. Ali permaneceu, em estado extremamente perturbado e muito intratável,até sua morte, após deteriora??o física gradativa, na primavera de 1911 - pouco tempo apenasantes da publica??o do trabalho de Freud. O seguinte quadro cronológico, baseado em dadosderivados, parte das Memórias e parte do material de Baumeyer, pode tornar os pormenores doestudo de Freud mais fáceis de desemaranhar.5. 1842 25 de julho. Daniel Paul Schreber nasce em Leipzig. 1861 Novembro. Morre-lhe o pai, com 53 anos de idade. 1877 O irm?o mais velho (3 anos mais) morre com 38 anos. 1878 Casamento. Primeira Doen?a 1884 Outono. Apresenta-se como candidato ao Reichstag. 1884 Outubro. Passa algumas semanas no Asilo de Sonnenstein. 8 de dezembro. Clínica Psiquiátrica de Leipzig. 1885 1? de junho. Alta. 1886 1? de janeiro. Toma posse no Landgericht de Leipzig. Segunda Doen?a 1893 Junho. ? informado da nomea??o próxima para o Tribunal de Apela??o. 1? de outubro. Toma posse como juiz presidente. 21 de novembro. ? internado novamente na Clínica de Leipzig. 1894 14 de junho. ? transferido para o Asilo de Lindenhof. 29 de junho. ? transferido para o Asilo de Sonnenstein. 1900-1902 Escreve as Memórias e impetra a??o judicial para ter alta. 1902 14 de julho. Decis?o judicial de alta. 1903 Publica??o das Memórias. Terceira Doen?a 1907 Maio. Morre-lhe a m?e, com 92 anos de idade. 14 de novembro. A esposa tem uma crise de paralisia. Cai enfermo imediatamente após. 27 de novembro. ? admitido no Asilo, em Leipzig-D?sen. 1911 14 de abril. Morte. 1912 Maio. Morre a esposa, com 54 anos de idade. Uma nota sobre os três hospitais psiquiátricos a que se faz men??o, de várias maneiras,no texto, também pode ser útil. (1) Clínica Psiquiátrica (departamento de pacientes internados) da Universidade deLeipzig. Diretor: Professor Flechsig. (2) Schloss Sonnenstein. Asilo Público Sax?nico em Pirna sobre o Elba, dez milhas acimade Dresden. Diretor: Dr. G. Weber. (3) Asilo Particular Lindenhof. Perto de Coswig, onze milhas a noroeste de Dresden.Diretor: Dr. Pierson. Uma tradu??o inglesa das Denkwürdigkeiten, de autoria da Dra. Ida Macalpine e do Dr.Richard A. Hunter, foi publicada em 1955 (Londres, William Dawson). Por diversas raz?es,6. algumas das quais ser?o evidentes a quem quer que compare sua vers?o com a presentetradu??o inglesa, n?o foi possível fazer uso dela para as muitas cita??es do livro de Schreber queocorrem na história clínica. Há dificuldades específicas em traduzir as produ??es dosesquizofrênicos, nas quais as palavras, como o próprio Freud apontou em seu artigo sobre ‘OInconsciente’ (Ver a partir de [1], 1974), desempenham papel t?o predominante. Aqui o tradutor sedefronta com os mesmos problemas que t?o amiúde encontra em sonhos, lapsos de língua echistes. Em todos esses casos, o método adotado na Standard Edition é o método prosaico de,onde necessário, fornecer as palavras originais alem?s em notas de rodapé e procurar, mediantecomentários explicativos, oferecer ao leitor [inglês] oportunidade para formar opini?o própria sobreo material. Ao mesmo tempo, seria enganoso desprezar inteiramente as formas exteriores e,através de uma tradu??o puramente literal, apresentar um retrato inculto do estilo de Schreber.Uma das características notáveis do original é o contraste que perpetuamente oferece entre asfrases complicadas e elaboradas do alem?o oficial acadêmico do século XIX e as extravag?nciasoutré dos eventos psicóticos que descrevem. Informa??es adicionais interessantes sobre o pai deSchreber podem ser encontradas em Niederland, W. G. (1959a) e (1959b). Por todo o trabalho, os números entre colchetes sem serem precedidos por ‘p.’ constituemreferências às páginas da edi??o alem? original das memórias de Schreber - Denkwürdikeiteneines Nervendranken, Leipzig, Oswald Mutze. Números entre colchetes precedidos por ‘p.’ s?o,como sempre acontece na Standard Edition, referências a páginas do presente volume. INTRODU??O A investiga??o analítica da paranóia apresenta dificuldades para médicos que, como eu,n?o est?o ligados a institui??es públicas. N?o podemos aceitar pacientes que sofram destaenfermidade, ou, de qualquer modo, mantê-los por longo tempo, visto n?o podermos oferecertratamento a menos que haja alguma perspectiva de sucesso terapêutico. Somente emcircunst?ncias excepcionais, portanto, é que consigo obter algo mais que uma vis?o superficial daestrutura da paranóia - quando, por exemplo, o diagnóstico (que nem sempre é quest?o simples) éincerto o bastante para justificar uma tentativa de influenciar o paciente, ou quando, apesar de umdiagnóstico seguro, submeto-me aos rogos de parentes do paciente e encarrego-me de tratá-lo poralgum tempo. Independente disto, naturalmente, vejo muitos casos de paranóia e de demênciaprecoce e aprendo sobre eles tanto quanto outros psiquiatras o fazem a respeito de seus casos;mas em geral isso n?o é suficiente para levar a quaisquer conclus?es analíticas. A investiga??o psicanalítica da paranóia seria completamente impossível se os própriospacientes n?o possuíssem a peculiaridade de revelar (de forma distorcida, é verdade) exatamenteaquelas coisas que outros neuróticos mantêm escondidas como um segredo. Visto que osparanóicos n?o podem ser compelidos a superar suas resistências internas e desde que, dequalquer modo, só dizem o que resolvem dizer, decorre disso ser a paranóia um distúrbio em que7. um relatório escrito ou uma história clínica impressa podem tomar o lugar de um conhecimentopessoal do paciente. Por esta raz?o, penso ser legítimo basear interpreta??es analíticas na históriaclínica de um paciente que sofria de paranóia (ou, precisamente, de dementia paranoides) e aquem nunca vi, mas que escreveu sua própria história clínica e publicou-a. Refiro-me ao doutor em Direito Daniel Paul Schreber, anteriormente Senatspr?sident emDresden, cujo livro. Denkwürdigkeiten eines Nervenkranken [Memórias de um Doente dos Nervos],foi publicado em 1903, e, se estou corretamente informado, despertou considerável interesse entreos psiquiatras. ? possível que o Dr. Schreber viva ainda hoje e que se tenha distanciado de talforma do sistema delirante que apresentou em 1903 que possa sentir-se magoado por estas notasa respeito do seu livro. Contudo, na medida em que ele ainda se identifique com sua personalidadeanterior, posso apoiar-me nos argumentos com que ele próprio - ‘homem de dotes mentaissuperiores e contemplado com agudeza fora do comum, tanto de intelecto quanto de observa??o’ -contraditou os esfor?os levados a efeito visando a coibi-lo de publicar suas memórias: “N?o tiveproblemas’, escreve ele, “em fechar os olhos às dificuldades que pareciam jazer no caminho dapublica??o, e, em particular, à preocupa??o de render devida considera??o às suscetibilidades dealgumas pessoas ainda vivas. Por outro lado, sou de opini?o que poderia ser vantajoso tanto paraa ciência quanto para o reconhecimento de verdades religiosas se, durante meu tempo de vida,autoridades qualificadas pudessem encarregar-se de examinar meu corpo e realizar pesquisassobre minhas experiências pessoais. Todos os sentimentos de caráter pessoal devem submeter-sea esta pondera??o. Declara ele, em outra passagem, que decidira se ater à sua inten??o depublicar o livro, mesmo que, em conseqüência, seu médico, o Geheimrat Dr. Flechsig, de Leipzig,movesse uma a??o contra ele. Atribui ao Dr. Flechsig, porém, as mesmas considera??es que lheatribuo agora. ‘Confio’, diz ele, ‘que mesmo no caso do Geheimrat Prof. Dr. Flechsig, quaisquersuscetibilidades pessoais ser?o sobrepujadas por um interesse científico no contexto geral deminhas memórias.’ (446.) Embora todas as passagens das Denkwürkdigkeiten nas quais minhas interpreta??es sebaseiam sejam citadas literalmente nas páginas seguintes, solicitaria a meus leitores tornarem-sefamiliarizados com o livro, lendo-o pelo menos uma vez, de antem?o. I - HIST?RIA CL?NICA ’Duas vezes sofri de distúrbios nervosos’, escreve o Dr. Schreber, ‘e ambas resultaram deexcessiva tens?o mental. Isso se deveu, na primeira ocasi?o, à minha apresenta??o comocandidato à elei??o para o Reichstag, enquanto era Landgerichtsdirektor em Cheminitz, e, nasegunda, ao fardo muito pesado de trabalho que me caiu sobre os ombros quando assumi meusnovos deveres como Senatspr?sident no Oberlandesgericht em Dresden.’(34.) A primeira doen?a do Dr. Schreber come?ou no outono de 1884; em fins de 1885 achava-se completamente restabelecido. Durante este período, passou seis meses na clínica de Flechsig,8. que, em relatório formal redigido posteriormente, descreveu o distúrbio como sendo uma crise degrave hipocondria [379]. O Dr. Schreber assegura-nos que a moléstia seguiu seu curso ‘sem aocorrência de quaisquer incidentes que tocassem as raias do sobrenatural.’ (35.) Nem a própria descri??o do paciente, nem os relatórios médicos impressos no final de seulivro dizem-nos o suficiente sobre sua história anterior ou seus pormenores pessoais. Nem mesmotenho condi??es de fornecer a idade do paciente à época de sua enfermidade, embora a elevadaposi??o judiciária que havia atingido antes da segunda doen?a estabele?a uma espécie de limiteinferior. Sabemos que o Dr. Schreber já estava casado há muito tempo, antes da época de sua‘hipocondria’. ‘A gratid?o de minha esposa’, escreve ele, ‘foi talvez ainda mais sincera, poisreverenciava o Professor Flechsig como o homem que lhe havia restituído o marido; daí ter ela,durante anos, mantido o retrato dele sobre a escrivaninha.’ E, no mesmo lugar: ‘Após merestabelecer da primeira doen?a, passei oito anos com minha esposa - anos, em geral, de grandefelicidade, ricos de honrarias exteriores e nublados apenas, de vez em quando, pela contínuafrustra??o da esperan?a de sermos aben?oados com filhos.’ Em junho em 1893, ele foi informado de sua provável indica??o para Senatspr?sident, eassumiu o cargo a 1? de outubro do mesmo ano. Entre estas duas datas tivera alguns sonhos,embora só mais tarde viesse a lhes atribuir qualquer import?ncia. Sonhou duas ou três vezes que oantigo distúrbio nervoso retornara e isto o tornou t?o infeliz no sonho, quanto a descoberta de serapenas um sonho fê-lo feliz ao despertar. Além disso, certa vez, nas primeiras horas de manh?,enquanto se achava entre o sono e a vigília, ocorreu-lhe a idéia de que, ‘afinal de contas, deve serrealmente muito bom ser mulher e submeter-se ao ato da cópula’. (36.) Tratava-se de idéia queteria rejeitado com a maior indigna??o, se estivesse plenamente consciente. A segunda enfermidade manifestou-se em fins de outubro de 1893, com um torturanteacesso de ins?nia, for?ando-o a retornar à clínica Flechsig, onde, porém, sua condi??o piorourapidamente. O curso ulterior da moléstia é descrito em Relatório redigido subseqüentemente [em1899] pelo diretor do Asilo Sonnenstein: ‘No início de seu internamento ali, expressava mais idéiashipocondríacas, queixava-se de ter um amolecimento do cérebro, de que morreria cedo etc. Masidéias de persegui??o já surgiam no quadro clínico, baseadas em ilus?es sensórias que, contudo,só pareciam aparecer esporadicamente, no início, enquanto, ao mesmo tempo, um alto grau dehiperestesia era observável - grande sensibilidade à luz e ao barulho. Mais tarde, as ilus?es visuaise auditivas tornaram-se muito mais freqüentes e, junto com distúrbios cenestésicos, dominavam atotalidade de seu sentimento e pensamento. Acreditava estar morto e em decomposi??o, quesofria de peste; asseverava que seu corpo estava sendo manejado da maneira mais revoltante, e,como ele próprio declara até hoje, passou pelos piores horrores que alguém possa imaginar, etudo em nome de um intuito sagrado. O paciente estava t?o preocupado com estas experiênciaspatológicas, que era inacessível a qualquer outra impress?o e sentava-se perfeitamente rígido eimóvel durante horas (estupor alucinatório). Por outro lado, elas o torturavam a tal ponto, que eleansiava pela morte. Fez repetidas tentativas de afogar-se durante o banho e pediu que lhe fosse9. dado o “cianureto que lhe estava destinado”. Suas idéias delirantes assumiram gradativamentecaráter místico e religioso; achava-se em comunica??o direta com Deus, era joguete de dem?nios,via “apari??es miraculosas”, ouvia “música sagrada”, e, no final, chegou mesmo a acreditar queestava vivendo em outro mundo.’ (380.) Pode-se acrescentar que havia certas pessoas por quem pensava estar sendo perseguidoe prejudicado, e a quem dirigia vitupérios. A mais proeminente delas era seu médico anterior,Flechsig, a quem chamava de ‘assassino da alma’; e costumava gritar repetidas vezes: ‘PequenoFlechsig!’, dando nítida ênfase à primeira palavra (383.). Foi removido para Leipzig e, após breveintervalo passado noutra institui??o, foi trazido em junho de 1894 para o Asilo Sonnenstein, pertode Pirna, onde permaneceu até que o distúrbio assumiu o aspecto final. No decorrer dos anosseguintes, o quadro clínico alterou-se de maneira que pode ser mais bem descrita pelas palavrasdo Dr. Weber, diretor do asilo. ‘N?o preciso me aprofundar nos pormenores do curso da doen?a. Devo, contudo, chamara aten??o para a maneira pela qual, à medida que o tempo passava, a psicose inicialcomparativamente aguda, que havia envolvido diretamente toda a vida mental do paciente emerecia o nome de “insanidade alucinatória”, desenvolveu-se cada vez mais claramente (quasepoder-se-ia dizer cristalizou-se) até o quadro clínico paranóico que temos hoje diante de nós.’(385). Aconteceu que, por um lado, ele havia desenvolvido uma engenhosa estrutura delirante, naqual temos toda raz?o de estar interessados, ao passo que, por outro, sua personalidade forareconstruída e agora se mostrava, exceto por alguns distúrbios isolados, capaz de satisfazer asexigências da vida cotidiana. O Dr. Weber, em seu Relatório de 1899, faz as seguintes observa??es: ‘Assim, pareceque, no momento, independentemente de certos sintomas psicomotores óbvios, que n?o podemdeixar de impressionar como patológicos mesmo o observador superficial, Herr Senatspr?sidentDr. Schreber n?o apresenta sinais de confus?o ou de inibi??o psíquica, nem sua inteligência seacha notadamente prejudicada. Sua mente é calma, a memória excelente, tem à disposi??oestoque considerável de conhecimentos (n?o somente sobre quest?es jurídicas, mas em muitosoutros campos) e é capaz de reproduzi-los numa seqüência vinculada de pensamento. Interessa-se em acompanhar os acontecimentos do mundo da política, da ciência, da arte etc. e ocupa-seconstantemente com tais assuntos… e um observador desinformado sobre sua condi??o geraldificilmente notaria algo de peculiar nesses procedimentos. Apesar disso tudo, entretanto, opaciente acha-se repleto de idéias de origem patológica, que se constituíram num sistemacompleto; s?o mais ou menos fixas e parecem inacessíveis à corre??o por meio de qualqueraprecia??o e juízo objetivos dos fatos externos.’ (385-6.) Assim, o estado do paciente experimentava grande mudan?a e ele agora se consideravacapaz de levar existência independente. Por conseguinte, adotou as medidas apropriadas pararetomar o controle de seus próprios assuntos e assegurar sua alta do asilo. O Dr. Weber disp?s-sea impedir a realiza??o destas inten??es e redigiu relatórios contrários a elas. N?o obstante, em seu10. Relatório datado de 1900, sentiu-se obrigado a dar esta descri??o apreciativa do caráter e condutado paciente: ‘Visto que, durante os últimos nove meses, Herr Pr?sident Schreber fez suas refei??esdiariamente em minha mesa familiar, tive as mais amplas oportunidades de conversar com elesobre todos os tópicos imagináveis. Qualquer que fosse o assunto em debate (exceto,naturalmente, suas idéias delirantes), concernente a acontecimentos no campo da administra??o edo direito, da política, da arte, da literatura e da vida social - em resumo, qualquer que fosse otópico, o Dr. Schreber mostrava interesse vivaz, mente bem informada, boa memória e julgamentosólido; ademais, era impossível n?o endossar sua concep??o ética. Também, em conversa maissuperficial com as senhoras da reuni?o, era t?o cortês quanto afável, e, ao aflorar assuntos demaneira mais jocosa, invariavelmente demonstrava tato e decoro. Nem uma só vez, durante essasconversas inocentes à mesa de jantar, introduziu ele assuntos que mais apropriadamente seriamlevantados numa consulta médica.’ (397-8.) Na verdade, em determinada ocasi?o durante esteperíodo, quando surgiu uma quest?o de negócios que envolvia os interesses de toda a sua família,tomou parte nela de um modo que demonstrava tanto conhecimento técnico quanto senso comum(401 e 510). Nas numerosas solicita??es aos tribunais, através das quais o Dr. Schreber esfor?ou-sepor recobrar a liberdade, n?o repudiou de modo algum seus delírios ou fez qualquer segredo dainten??o de publicar as Denkwürdigkeiten. Pelo contrário, estendeu-se sobre a import?ncia de suasidéias para o pensamento religioso e sua invulnerabilidade aos ataques da ciência moderna; mas,ao mesmo tempo, dava ênfase à ‘absoluta inocuidade’ (430) de todas as a??es que, como se davaconta, seus delírios obrigavam-nos a realizar. Na verdade, tais eram sua perspicácia e a for?aconvincente de sua lógica, que finalmente, e apesar de ser ele paranóico reconhecido, seusesfor?os coroaram-se de sucesso. Em julho de 1902, os direitos civis do Dr. Schreber foramrestabelecidos e, no ano seguinte, suas Denkwürdigkeiten eines Nervenkranken apareceram,embora censuradas e com muitas partes valiosas omitidas. A decis?o judicial que devolveu ao Dr. Schreber a liberdade resume a essência de seusistema delirante em poucas frases: ‘Acreditava que tinha a miss?o de redimir o mundo e restituir-lhe o estado perdido de beatitude. Isso, entretanto, só poderia realizar se primeiro setransformasse de homem em mulher.’ (475.) Para uma descri??o mais pormenorizada de seus delírios, tal como apareceram em suaforma final, podemos recorrer ao Relatório de 1899 do Dr. Weber: ‘O ponto culminante do sistemadelirante do paciente é a sua cren?a de ter a miss?o de redimir o mundo e restituir à humanidade oestado perdido de beatitude. Foi convocado a essa tarefa, assim assevera, por inspira??o direta deDeus, tal como aprendemos que foram os Profetas; pois os nervos, em condi??es de grandeexcita??o, assim como os seus estiveram por longo tempo, têm exatamente a propriedade deexercer atra??o sobre Deus - embora isso signifique tocar em assuntos que a fala humana mal écapaz de expressar, se é que o pode, visto jazerem inteiramente fora do raio de a??o daexperiência humana e, na verdade, terem sido revelados somente a ele. A parte mais essencial de11. sua miss?o redentora é ela ter de ser procedida por sua transforma??o em mulher. N?o se devesupor que ele deseje ser transformado em mulher; trata-se antes de um ‘dever’ baseado na Ordemdas Coisas, ao qual n?o há possibilidade de fugir, por mais que, pessoalmente, preferissepermanecer em sua própria honorável e masculina posi??o na vida. Mas nem ele nem o resto dahumanidade podem reconquistar a vida do além, a n?o ser mediante a transforma??o em mulher(processo que pode ocupar muitos anos ou mesmo décadas), por meio de milagres divinos. Elepróprio, está convencido, é o único objeto sobre o qual milagres divinos se realizam, sendo assim oser humano mais notável que até hoje viveu sobre a Terra. A toda hora e a todo minuto, duranteanos, experimentou estes milagres em seu corpo e teve-os confirmados pelas vozes que com eleconversaram. Durante os primeiros anos de sua moléstia, alguns de seus órg?os corporaissofreram danos t?o terríveis que inevitavelmente levariam à morte qualquer outro homem; viveupor longo tempo sem est?mago, sem intestinos, quase sem pulm?es, com o es?fago rasgado, sembexiga e com as costelas despeda?adas; costumava às vezes engolir parte de sua própria laringecom a comida etc. Mas milagres divinos (“raios”) sempre restauravam o que havia sido destruído, eportanto, enquanto permanecer homem, é inteiramente imortal. Estes fen?menos alarmantescessaram há muito tempo e, como alternativa, sua “feminilidade” tornou-se proeminente. Trata-sede um processo de desenvolvimento que provavelmente exigirá décadas, sen?o séculos, para suaconclus?o, sendo improvável que alguém hoje vivo sobreviva para ver seu final. Ele tem asensa??o de que um número enorme de “nervos femininos” já passou para o seu corpo e, a partirdeles, uma nova ra?a de homens originar-se-á, através de um processo de fecunda??o direta porDeus. Somente ent?o, segundo parece, poderá morrer de morte natural e, juntamente com o restoda humanidade, reconquistará um estado de beatitude. Nesse meio tempo, n?o apenas o Sol, mastambém árvores e pássaros, que têm a natureza de ‘resíduos miraculados (bemiracled) de antigasalmas humanas, falam-lhe com inflex?es humanas, e coisas miraculosas acontecem por toda aparte a seu redor.’ (386-8.) O interesse sentido pelo psiquiatra militante em forma??es delirantes como estas exaure-se, geralmente, uma vez haja determinado o caráter dos produtos do delírio e feito uma estimativade sua influência sobre a conduta geral do paciente; em seu caso, maravilhar-se n?o é o início dacompreens?o. O psicanalista, à luz de seu conhecimento das psiconeuroses, aborda o assuntocom a suspeita de que mesmo estruturas de pensamento t?o extraordinárias como estas, e t?oafastadas de nossas modalidades comuns de pensar, derivam, todavia, dos mais gerais ecompreensíveis impulsos da mente humana; e gostaria de descobrir os motivos de taltransforma??o, bem como a maneira pela qual ela se realizou. Com este objetivo em vista,desejará aprofundar-se mais nos pormenores do delírio e na história de seu desenvolvimento. (a) O diretor da clínica acentua dois pontos como sendo de suma import?ncia: a assun??o,pelo paciente, do papel de Redentor e sua transforma??o em mulher. O delírio de Redentorconstitui fantasia que nos é familiar, pela freqüência com que forma o núcleo da paranóia religiosa.O fator adicional, que faz a reden??o depender de o homem transformar-se previamente em12. mulher, é fora do comum e em si próprio desconcertante, visto apresentar divergência muito amplado mito histórico que a fantasia do paciente se prop?e reproduzir. Segue-se naturalmente orelatório médico a presumir que a for?a motivadora desse complexo delirante foi a ambi??o dopaciente em desempenhar o papel de Redentor e que sua emascula??o merece ser encaradaapenas como um meio de alcan?ar esse fim. Ainda que isto possa parecer verdade, a partir dodelírio em sua forma final, um estudo das Denkwürdigkeiten compele-nos a assumir ponto de vistamuito diferente sobre o assunto. Sabemos que a idéia de se transformar em mulher (isto é, de seremasculado) constituiu o delírio primário, que ele no início encarava esse ato como grave injúria epersegui??o, e que o mesmo só se relacionou com o papel de Redentor de maneira secundária.N?o pode haver dúvida, além disso, de que ele originalmente acreditava que a transforma??odeveria ser efetuada com a finalidade de abusos sexuais e n?o para servir a altos desígnios. Pode-se formular a situa??o, dizendo-se que um delírio sexual de persegui??o foi posteriormentetransformado, na mente do paciente, em delírio religioso de grandeza. O papel de perseguidor foiprimeiramente atribuído ao Professor Flechsig, médico sob cujos cuidados estava; mais tarde, olugar foi assumido pelo Próprio Deus. Citarei na íntegra as passagens pertinentes das Denkwürdigkeiten: ‘Desse modo, umaconspira??o contra mim foi levada ao ponto culminante (por volta de mar?o ou abril de 1894). Seuobjetivo era conseguir que, uma vez minha doen?a nervosa houvesse sido reconhecida comoincurável ou assim admitida, eu fosse entregue a certa pessoa, de maneira específica: minha almadeveria ser-lhe entregue, mas meu corpo - devido a uma má compreens?o do que acima descrevicomo o propósito subjacente à Ordem das Coisas - deveria ser transformado num corpo feminino ecomo tal entregue à pessoa em apre?o com vistas e abusos sexuais, ent?o simplesmente seria“deixado de lado” - o que indubitavelmente significa ser entregue à corrup??o.’ (56.) ‘Além disso, era perfeitamente natural que, do ponto de vista humano (único pelo qual,àquela época, eu era ainda principalmente dirigido), encarasse o Professor Flechsig ou sua almacomo meu único verdadeiro inimigo - em data posterior, houve também a alma de von W., arespeito da qual terei mais a dizer dentro em pouco - e que eu considerasse Deus Todo-Poderosocomo aliado natural. Simplesmente imaginei que Ele se achava em grande dificuldade comreferência ao Professor Flechsig e, por conseguinte, senti-me obrigado a apoiá-lo por todos osmeios concebíveis, até o extremo de sacrificar-me a mim mesmo. Só muito mais tarde foi que meocorreu a idéia de que o próprio Deus havia desempenhado o papel de cúmplice, sen?o deinstigador, na conspira??o em que minha alma deveria ser assassinada e meu corpo usado comoo de uma rameira. De fato, posso dizer que esta idéia em parte só se tornou claramente conscientepara mim enquanto escrevia o presente trabalho.’ (59.) ‘Toda tentativa de assassinar minha alma, de emascular-me para fins contrários a Ordemdas Coisas (isto é, para satisfa??o dos apetites sexuais de um indivíduo) ou, mais tarde, de destruirmeu entendimento - toda tentativa como essa redundou em nada. Desse combate aparentementedesigual entre um débil homem e o Próprio Deus, emergi como vencedor - embora com muito13. amargo sofrimento e priva??o - porque a Ordem das Coisas está do meu lado.’ (61.) Em nota de rodapé ligada às palavras ‘contrários à Ordem das Coisas‘, na passagemanterior, o autor prenuncia a transforma??o subseqüente de seu delírio de emascula??o e de suarela??o com Deus: ‘Demonstrarei mais tarde que a emascula??o para propósito inteiramentediferente - um propósito em harmonia com a Ordem das Coisas - acha-se dentro dos limites dapossibilidade, e, na verdade, que muito provavelmente pode proporcionar a solu??o do conflito.’ Estas afirma??es s?o de import?ncia decisiva para determinar a opini?o que devemosformar quanto ao delírio da emascula??o, dando-nos assim uma compreens?o geral do caso.Pode-se acrescentar que as ‘vozes’ que o paciente ouvia nunca tratavam de sua transforma??o emmulher como algo que n?o fosse uma ignomínia sexual, o que lhes fornecia desculpa para deleescarnecer. ‘Raios de Deus n?o raramente julgaram-se no direito de zombar de mim, chamando-me de “Miss Schreber”, em alus?o à emascula??o que, segundo se afirmava, achava-me a pontode sofrer.’ (127.) Ou ent?o diziam: ‘Ent?o isso declara ter sido um Senatspr?sident, essa pessoaque se deixa ser f.… a!’ Ou, ainda: ‘N?o se sente envergonhado, na frente de sua mulher?’ (177.) Que a fantasia de emascula??o era de natureza primária e originalmente independente domotif do Redentor, torna-se ainda mais provável quando relembramos a ‘idéia’ que, comomencionei em página anterior [Ver em [1].], ocorreu-lhe enquanto se achava semi-adormecido, nosentido de que deve ser bom ser uma mulher e submeter-se ao ato da cópula. (36.) Esta fantasiaapareceu durante o período de incuba??o de sua moléstia, e antes que tivesse come?ado a sentiros efeitos do excesso de trabalho em Dresden. O próprio Schreber indica o mês de novembro de 1895 como a época em que seestabeleceu a vincula??o entre a fantasia de emascula??o e a idéia do Redentor, preparando-seassim o caminho para ele reconciliar-se com a primeira. ‘Agora, contudo’, escreve, ‘dei-meclaramente conta de que a Ordem das Coisas exigia imperativamente a minha emascula??o,gostasse ou n?o disso pessoalmente, e que nenhum caminho razoável se abre para mim excetoreconciliar-me com o pensamento de ser transformado em mulher. A outra conseqüência de minhaemascula??o, naturalmente, só poderia ser a minha fecunda??o por raios divinos, a fim de queuma nova ra?a de homens pudesse ser criada.’ (177.) A idéia de ser transformado em mulher foi a característica saliente e o germe mais primitivode seu sistema delirante. Mostrou também ser a única parte deste que persistiu após a cura e aúnica que p?de permanecer em sua conduta na vida real, após haver-se restabelecido. ‘A únicacoisa que poderia parecer disparatada aos olhos de outras pessoas é o fato, já aflorado norelatório do perito, de que sou às vezes encontrado parado em frente do espelho ou em outrolugar, com a parte superior de meu corpo desnuda e usando adornos femininos variados, taiscomo fitas, colares falsos e similares. Isto só ocorre, posso acrescentar, quando estou sozinho, enunca, pelo menos na medida em que posso evitá-lo, na presen?a de outras pessoas.’ (429.) OHerr Senatspr?sident confessa esta frivolidade numa data (julho de 1901) em que já se achava emposi??o de expressar de modo muito capaz o caráter completo de seu restabelecimento no campo14. da vida prática: ‘Há muito tempo me venho dando conta de que as pessoas que vejo a meu redorn?o s?o “homens apressadamente improvisados”, mas pessoas reais, e que devo, portanto,conduzir-me em rela??o a eles como um homem razoável está acostumado a conduzir-se emrela??o a seus semelhantes.’ (409.) Em contraste com a maneira pela qual colocou em a??o suafantasia de emascula??o, o paciente nunca tomou quaisquer medidas no sentido de induzir aspessoas a reconhecerem sua miss?o de Redentor, fora a publica??o de suas Denkwürdigkeiten. (b) A atitude de nosso paciente para com Deus é t?o singular e cheia de contradi??esinternas, que exige mais que um pouco de fé persistir na cren?a de que, n?o obstante, existe‘método’ em sua ‘loucura’. Com auxílio do que o Dr. Schreber nos conta nas Denkwürdigkeiten,temos agora de esfor?ar-nos por chegar a uma vis?o mais exata de seu sistema teológico-psicológico, e devemos expor suas opini?es sobre os nervos, o estado de beatitude, a hierarquiadivina e os atributos de Deus, em seu nexo delirante (manifesto). Em todos os pontos de suateoria, ficaremos impressionados pela espantosa mistura do banal e do brilhante, do que foitomado emprestado e do que é original. A alma humana está contida nos nervos do corpo. Estes devem ser entendidos comoestruturas de extraordinária finura, comparáveis ao fio mais delgado. Alguns desses nervos s?oapropriados apenas para a recep??o de percep??es sensórias, enquanto que outros (os nervos doentendimento) executam todas as fun??es da mente; com respeito a isso, é de notar que cadanervo do entendimento isolado representa a individualidade mental inteira de uma pessoa, e que apresen?a de um número maior ou menor de nervos do entendimento n?o tem influência, excetosobre a dura??o de tempo durante o qual a mente pode reter suas impress?es. Enquanto que os homens se comp?em de corpos e nervos, Deus é, por Sua próprianatureza, somente nervos. Os nervos de Deus, porém, n?o est?o presente em número limitado,como no caso dos corpos humanos, mas s?o infinitos ou eternos. Possuem todas as propriedadesdos nervos humanos, em grau enormemente intensificado. Em sua capacidade criativa - isto é, nopoder de se transformarem em todo objeto imaginável no mundo criado - s?o conhecidos comoraios. Existe íntima rela??o entre Deus, o céu estrelado e o Sol. Quando a obra da cria??o terminou, Deus retirou-se para muito longe (10-11 e 252) eabandonou o mundo às suas próprias leis. Limitou Suas atividades a chamar a Si as almas dosmortos. Somente em ocasi?es excepcionais é que entraria em rela??o com pessoas específicas,altamente dotadas, ou interviria, por meio de um milagre, nos destinos do mundo. Deus n?o temnenhuma comunica??o regular com as almas humanas, de acordo com a Ordem das Coisas, atédepois da morte. Quando um homem morre, suas partes espirituais (isto é, seus nervos) sofremum processo de purifica??o antes de finalmente se reunirem com o Próprio Deus como ‘ante-salasdo Céu’. Assim, ocorre que tudo se move numa ronda eterna, que está na base da Ordem dasCoisas. Ao criar qualquer coisa, Deus se separa de uma parte de Si Próprio, ou dá a uma parte deSeus nervos forma diferente. A perda aparente que assim experimenta é compensada quando,15. após centenas e milhares de anos, os nervos dos mortos, que ingressaram no estado de beatitude,mais uma vez se Lhe acrescem, como ‘ante-salas do Céu’ (18 e 19 n.). As almas que passaram por este processo de purifica??o come?am a gozar de um estadode beatitude. Nesse meio tempo, perderam um pouco de sua consciência individual e se fundiramcom outras almas em unidades mais elevadas. Almas importantes, aquelas de homens comoGoethe, Bismarck etc., podem ter de manter seu senso de identidade por centenas de anos mais,antes que também elas possam se transformar em complexos anímicos superiores, tais como‘raios de Javé’, no caso do antigo povo judeu, ou ‘raios de Zoroastro’, no caso da antiga Pérsia. Nodecurso de sua purifica??o, ‘as almas aprendem a língua que é falada pelo próprio Deus, achamada “língua básica”, um alem?o vigoroso, ainda que um tanto antiquado, que se caracterizaespecialmente pela grande riqueza em eufemismos’ (13.) O Próprio Deus n?o é uma entidade simples. ‘Acima das “ante-salas do Céu” pairava oPróprio Deus, que, em contraposi??o a estes “domínios anteriores de Deus”, era também descritocomo os ‘‘domínios posteriores de Deus’’. Os domínios posteriores de Deus eram, e ainda s?o,divididos estranhamente em duas partes, de modo que um Deus inferior (Arim?) se diferenciava deum Deus superior (Ormuzd).’ (19.) Com referência ao significado desta distin??o, Schreber só nospode informar que o Deus inferior era mais especialmente ligado aos povos de uma ra?a escura(ou semitas) e o Deus superior aos de uma ra?a loura (os arianos); e nem seria razoável, emassuntos t?o elevados, esperar mais do conhecimento humano. N?o obstante, diz-nos tambémque ‘apesar do fato de, sob certos aspectos, o Deus Todo-Poderoso formar uma unidade, o Deusinferior e o superior devem ser considerados como Seres separados, cada um dos quais possuiseu próprio egoísmo e instinto particular de autopreserva??o, mesmo em rela??o ao outro, e cadaum dos quais se está, portanto, constantemente esfor?ando por arremessar-se na frente do outro’(140 n.). Ademais, os dois Seres divinos comportavam-se de maneira inteiramente diferente emrela??o ao infeliz Schreber, durante o estádio agudo da doen?a. Em dias anteriores à sua doen?a, o Senatspr?sident Schreber tivera dúvida sobre assuntosreligiosos (29 e 64); nunca fora capaz de persuadir-se a ter uma firme cren?a na existência de umDeus pessoal. Na verdade, ele aduz este fato sobre sua vida anterior como argumento em favor dacompleta realidade de seus delírios. Mas quem quer que leia a descri??o que se segue dos tra?oscaracterológicos do Deus de Schreber terá de admitir que a transforma??o efetuada pelo distúrbioparanóico n?o foi fundamental, e que no Redentor de hoje muito permanece daquele que ontemduvidava. ? que existe uma falha na Ordem das Coisas, em conseqüência da qual a existência doPróprio Deus parece ser colocada em perigo. Devido a circunst?ncias sem maior explica??o, osnervos dos homens vivos, especialmente quando em estado de intensa excita??o, podem exercersobre os nervos de Deus atra??o t?o poderosa que ele n?o se pode libertar deles novamente, eassim Sua própria existência pode ser amea?ada. (11.) Esta ocorrência excepcionalmente rararealizou-se no caso de Schreber e envolveu-o nos maiores sofrimentos. O instinto de16. autopreserva??o foi despertado em Deus (30) e ent?o tornou-se evidente que Ele se achava muitoafastado da perfei??o que lhe é atribuída pelas religi?es. Por todo o livro de Schreber ressoa aamarga queixa de que Deus, estando acostumado apenas à comunica??o com os mortos, n?ocompreende os homens vivos. ‘Com rela??o a isso, contudo, prevalece um mal-entendido fundamental, que desde ent?oatravessou minha vida inteira como um fio escarlate. Baseia-se precisamente no fato de que, deacordo com a Ordem das Coisas, Deus realmente n?o sabia nada sobre os homens vivos e n?oprecisava conhecer; em conson?ncia com a Ordem das Coisas, Ele precisava apenas mantercomunica??o com cadáveres.’ (55.) - ‘Esse estado de coisas… estou convencido, deve mais umavez ser vinculado ao fato de que Deus era, se assim posso exprimi-lo, inteiramente incapaz de lidarcom homens vivos, e só estava acostumado a comunicar-se com cadáveres, ou, no máximo, comhomens adormecidos (isto é, em seus sonhos).’ (141.) - ‘Eu próprio senti-me inclinado a exclamar:“Incredibile scriptu!” Todavia, tudo é literalmente verídico, por difícil que possa ser para outraspessoas apreender a idéia da completa incapacidade de Deus em julgar corretamente os homensvivos, e por mais tempo que eu próprio tenha levado para acostumar-me a esta idéia, após minhasinumeráveis observa??es sobre o assunto.’ (246.) Entretanto, como resultado da má compreens?o que Deus tem dos homens vivos, foi-Lhepossível tornar-se o instigador da conspira??o contra Schreber, tomá-lo por idiota e submetê-lo aessas severas prova??es (264). Para evitar ser considerado um idiota, ele se submeteu a umsistema extremamente fatigante de ‘pensamento for?ado’, pois ‘cada vez que minhas atividadesintelectuais cessavam, Deus chegava à conclus?o de que minhas faculdades mentais achavam-seextintas e que a destrui??o de meu entendimento (a idiotia), pela qual Ele esperava, havia-serealmente estabelecido, e que uma retirada se tornara agora possível’. (206.) O comportamento de Deus na quest?o da premência de evacuar (ou ‘c…r’) leva-o a umgrau especialmente alto de indigna??o. A passagem é t?o característica que a citarei na íntegra;mas, para esclarecê-la, devo primeiro explicar que tanto os milagres quanto as vozes procedem deDeus, isto é, dos raios divinos. ‘Embora se torne necessário que eu aflore um tema desagradável, tenho de dedicar maisalgumas palavras à pergunta que acabei de citar (“Por que você n?o c… a?”), devido ao carátertípico de todo o assunto. A necessidade de evacua??o, como tudo o mais que tem a ver com omeu corpo, é evocada por milagre. ? ocasionada pelo fato de minhas fezes serem for?adas para afrente (e, às vezes, para trás novamente) em meus intestinos; e se, devido a já ter havido umaevacua??o, n?o se apresenta material suficiente, ent?o pequenos resíduos que ainda possa haverdo conteúdo de meus intestinos se espalham sobre meu orifício anal. A ocorrência é um milagrerealizado pelo Deus superior, e repete-se diversas dúzias de vezes pelo menos, a cada dia.Associa-se a uma idéia que é inteiramente incompreensível para os seres humanos e só pode serexplicada pela ignor?ncia completa de Deus quanto ao homem vivo como um organismo. De17. acordo com esta idéia, “c… r” é, em certo sentido, o ato final, o que equivale a dizer que, uma vezque a premência de c…r tenha sido causada por milagre, o objetivo de destruir o entendimento éalcan?ado e uma retirada final dos raios torna-se possível. Para chegar ao fundo desta idéia,temos de supor, segundo me parece, que há um equívoco em rela??o ao significado simbólico doato da evacua??o, uma no??o, na verdade, de que qualquer um que tenha mantido uma rela??ocomo a que mantenho com os raios divinos tem, até certo ponto, direito de c…r sobre o mundointeiro.’ ‘Mas o que agora se segue revela toda a perfídia da política que foi seguida com rela??o aminha pessoa. Quase toda vez que a necessidade de evacua??o me aparecia por milagre, outrapessoa nas imedia??es era enviada (por ter seus nervos estimulados com esse intuito) para obanheiro, a fim de impedir-me de evacuar. Trata-se de fen?meno que observei durante anos e emocasi?es t?o incontáveis - milhares delas - e com tal regularidade que exclui qualquer possibilidadede ser atribuível ao acaso. E, ent?o, surge a pergunta: “Por que você n?o c…a?”, à qual é dada avivaz réplica de que sou “t?o estúpido ou coisa assim”. A pena quase se esquiva de registrartamanho absurdo, que Deus, cego por Sua ignor?ncia da natureza humana, possa positivamentechegar ao extremos de supor que exista um homem estúpido demais para fazer o que todo animalfaz - estúpido demais para poder c…r. Quando, levado por tal impulso, eu realmente consigoevacuar - e, geralmente, visto quase sempre encontrar o banheiro ocupado, uso um balde paraesse fim - o processo é sempre acompanhado pelo aparecimento de uma sensa??o extremamenteintensa de voluptuosidade espiritual, pois o alívio da press?o causada pela presen?a das fezes nosintestinos produz intenso bem-estar nos nervos da voluptuosidade; e o mesmo também acontececom a urina. Por esta raz?o, ainda até o dia de hoje, enquanto estou evacuando ou urinando, todosos raios acham-se sempre, sem exce??o, unidos; por esta mesma raz?o, sempre que me dedico aestas fun??es naturais, é invariavelmente feita uma tentativa, embora v?, de inverter por milagre oimpulso de defecar ou urinar.’ (225-7.) Ademais, este extraordinário Deus de Schreber é incapaz de aprender qualquer coisa pelaexperiência: ‘Devido a uma ou outra qualidade inerentes à sua natureza, parece impossível a Deusinferir quaisquer li??es para o futuro da experiência assim obtida.’ (186.) Ele pode, portanto,continuar a repetir as mesmas atormentadoras prova??es, milagres e vozes, sem altera??o, anoapós ano, até que, inevitavelmente, se torna motivo de riso para a vítima de Duas persegui??es. ‘A conseqüência é que, agora que os milagres em grande parte perderam o poder queantigamente possuíam de produzir efeitos aterrorizantes, Deus me parece principalmente, emquase tudo o que me acontece, ridículo ou pueril. Com referência à minha própria conduta, souamiúde obrigado, em autodefesa, a desempenhar o papel de escarnecedor de Deus, e mesmo,ocasionalmente, de zombrar Dele em voz alta.’ (333.) A esta atitude crítica e rebelde para com Deus, contudo, op?e-se na mente de Schreberuma enérgica contracorrente, expressa em muitos lugares: ‘Mas aqui novamente devo muienfaticamente declarar que isto é apenas um episódio que, espero, terminará o mais tardar com18. meu falecimento, e que o direito de escarnecer de Deus pertence, em conseqüência, a mimsomente e n?o a outros homens. Para estes, Ele permanece sendo o criador todo-poderoso doCéu e da Terra, a causa primeira de todas as coisas, e a salva??o de seu futuro, a quem - emboraalgumas das idéias religiosas convencionais possam exigir revis?o - s?o devidas adora??o e amais profunda reverência.’ (333-4.) Fazem-se, portanto, repetidas tentativas de encontrar justifica??o para a conduta de Deusem rela??o ao paciente. Nestas tentativas, que apresentam tanta engenhosidade quanto qualqueroutra teodicéia, a explica??o baseia-se ora na natureza geral das almas, ora na necessidade deautopreserva??o divina, e na influência desencaminhadora da alma de Flechsig. (60-1 e 160.) Emgeral, porém, a enfermidade é encarada como uma luta entre Schreber, o homem e Deus, luta naqual a vitória fica com o homem, fraco que seja, porque a Ordem das Coisas acha-se do seu lado.(61.) O relatório médico poderia facilmente levar-nos a supor que Schreber apresentava a formacorriqueira de fantasia de Redentor, na qual o paciente acredita ser o filho de Deus, destinado asalvar o mundo de sua desgra?a ou da destrui??o que o amea?a, e assim por diante. ? por estaraz?o que tive o cuidado de apresentar com pormenores as peculiaridades da rela??o de Schrebercom Deus. A import?ncia desta rela??o para o resto da humanidade só raramente é mencionadanas Denkwürdigkeiten, e apenas na última fase de sua forma??o delirante. Consisteessencialmente no fato de que ninguém que morra pode ingressar no estado de beatitudeenquanto a maior parte dos raios de Deus for absorvida por sua pessoa (de Schreber), devido aseus poderes de atra??o. (32.) ? somente num estádio muito tardio, também, que sua identifica??ocom Jesus Cristo aparece claramente. (338 e 431.) Nenhuma tentativa de explicar o caso de Schreber terá possibilidade de ser correta, se n?olevar em considera??o essas peculiaridades de sua concep??o de Deus, essa mistura dereverência e rebeldia em sua atitude para com Ele. Voltar-me-ei agora para outro assunto, estreitamente vinculado a Deus, ou seja, o estadode beatitude. Este é também mencionado por Schreber como ‘a vida do além’, à qual a almahumana é elevada após a morte, pelo processo da purifica??o. Ele o descreve como um estado defrui??o ininterrupta, ligado à contempla??o de Deus. Isso n?o é muito original mas, por outro lado,é surpreendente saber que Schreber faz distin??o entre um estado de beatitude masculino e outrofeminino. ‘O estado masculino de beatitude era superior ao feminino, que parece ter consistidoprincipalmente numa sensa??o ininterrupta de voluptuosidade.’ (18.) Em outras passagens, estacoincidência entre o estado de beatitude e a voluptuosidade é expressa em linguagem maissimples e sem referência à distin??o de sexo; ademais, o elemento do estado de beatitude queconsiste na contempla??o de Deus n?o é mais comentado. Assim, por exemplo: ‘A natureza dosnervos de Deus é tal que o estado de beatitude (…) se faz acompanhar por uma sensa??o muitointensa de voluptuosidade, ainda que n?o consista exclusivamente nela.’ (51.) E ainda: ‘A19. voluptuosidade pode ser encarada como um fragmento do estado de beatitude, dadoantecipadamente, por assim dizer, aos homens e às outras criaturas vivas.’ (281.) Assim, o estadode beatitude celestial deve ser compreendido como sendo, em sua essência, uma continua??ointensificada do prazer sensual sobre a Terra! Esta vis?o do estado de beatitude achava-se longe de ser, no delírio de Schreber, umelemento originado nos primeiros estádios de sua doen?a e posteriormente eliminado, comoincompatível com o resto. Na Exposi??o de seu Caso, redigida pelo paciente para o Tribunal deApela??o em julho de 1901, ele enfatiza como uma de suas maiores descobertas o fato de ‘que avoluptuosidade se acha em estreito relacionamento (até ent?o n?o perceptível ao resto dahumanidade) com o estado de beatitude fruído pelos espíritos que já n?o mais se acham aqui’.[442.] Descobriremos, na verdade, que este “relacionamento estreito’ é a rocha sobre a qual opaciente funda suas esperan?as de uma reconcilia??o final com Deus e de que seus sofrimentosrecebam um fim. Os raios de Deus abandonam sua hostilidade assim que se certificam de que,sendo absorvidos pelo corpo dele, experimentar?o voluptuosidade espiritual (133); o próprio Deusexige poder encontrar voluptuosidade nele (283) e amea?a-o com a retirada de Seus raios, se seesquecer de cultivar a voluptuosidade e n?o puder oferecer a Deus o que Este exige. (320.) Essa surpreendente sexualiza??o do estado de beatitude celestial sugere a possibilidadede que o conceito que Schreber tem do estado de beatitude derive de uma condensa??o dosprincipais significados da palavra alem? ‘selig‘, a saber, ‘falecido’ e ‘sensualmente feliz’. Mas esseexemplo de sexualiza??o fornecer-nos-á também ocasi?o de examinar a atitude geral do pacientepara com o lado erótico da vida e para com assuntos de indulgência sexual, pois nós,psicanalistas, até o presente apoiamos a opini?o de que as raízes de todo distúrbio nervoso emental devem se encontrar principalmente na vida sexual do paciente - alguns de nós baseadossimplesmente em fundamentos empíricos, outros, influenciados, além disso, por considera??esteóricas. As amostras dos delírios de Schreber já fornecidas capacitam-nos, sem mais, a p?r delado a suspeita de que exatamente esse distúrbio paranóide pudesse vir a ser o ‘caso negativo’ hátanto tempo procurado: um caso em que a sexualidade desempenhe apenas papel muito poucoimportante. O próprio Schreber fala repetidas vezes como se partilhasse de nosso preconceito.Fala constantemente, e no mesmo alento, de ‘distúrbio nervoso’ e lapsos eróticos, como se asduas coisas fossem inseparáveis. Antes de sua enfermidade, o Senatspr?sident Schreber fora homem de moral estrita:‘Poucas pessoas’, declara ele, e n?o vejo raz?o para duvidar de sua assertiva, ‘podem ter sidocriadas segundo os estritos princípios morais em que fui, e poucas pessoas, durante toda a suavida, podem ter exercido (especialmente em assuntos sexuais) uma autocoibi??o que seconformasse t?o estritamente a esses princípios, como posso dizer de mim mesmo que exerci.’20. (281.) Após o severo combate espiritual, do qual os fen?menos de sua moléstia foram os sinaisexteriores, sua atitude para com o lado erótico da vida se alterou. Chegara a perceber que o cultivoda voluptuosidade lhe incumbia como um dever e que somente pelo cumprimento desse dever éque poderia terminar o grave conflito que irrompera dentro dele - ou, como pensava, a seurespeito. A voluptuosidade, assim as vozes lhe asseguravam, havia-se tornado ‘temente a Deus’, esó lhe restava lamentar que n?o se pudesse dedicar a seu cultivo durante todo o dia. (285.) Foi esse, ent?o, o resultado das modifica??es produzidas em Schreber por sua doen?a, talcomo as encontramos expressas nas duas características principais de seu sistema delirante.Antes dela, inclinara-se ao ascetismo sexual e fora um descrente com referência a Deus, enquantoque, após a mesma, se tornou crente em Deus e devoto da voluptuosidade. Entretanto, assimcomo sua fé em Deus reconquistada era de tipo peculiar, assim também a frui??o sexual que haviaalcan?ado para si próprio era de caráter muito raro. N?o era a liberdade sexual de um homem, masos sentimentos sexuais de uma mulher. Ele assumiu uma atitude feminina para com Deus; sentiuque era a esposa de Deus. Nenhuma outra parte de seus delírios é tratada pelo paciente t?o exaustivamente, quasepoder-se-ia dizer insistentemente, como sua alegada transforma??o em mulher. Os nervos por eleabsorvidos, assim diz, assumiram em seu corpo o caráter de nervos femininos de voluptuosidade elhe deram um molde mais ou menos feminil, e, mais particularmente, à sua pele, a suavidadepeculiar ao sexo feminino. (87.) Se aperta levemente com os dedos qualquer parte do corpo, podesentir esses nervos, sob a superfície da pele, como um tecido de textura fibrosa ou semelhante afios; eles se acham especialmente presentes na regi?o do tórax, onde, numa mulher, ficariam osseios. ‘Aplicando press?o a este tecido, sou capaz de evocar uma sensa??o de voluptuosidade, talcomo as mulheres experimentam, e especialmente se penso em algo feminino ao mesmo tempo.’(277.) Sabe com certeza que o tecido originalmente nada mais era que nervos de Deus, quedificilmente poderiam ter perdido o caráter de nervos simplesmente por terem passado para seucorpo. (279.) Por meio do que chama de ‘atrair’ (isto é, pela invoca??o de imagens visuais), écapaz de dar tanto a si quanto aos raios a impress?o de que seu corpo se acha aparelhado comseios e órg?os genitais femininos: ‘Tornou-se tanto um hábito para mim atrair nádegas femininaspara meu corpo - honi soit qui mal y pense - que o fa?o quase involuntariamente, a cada vez queme abaixo.’ (233.) ? ‘ousado o bastante para asseverar que quem quer que tenha oportunidade deme ver diante do espelho com a parte superior de meu corpo desnuda - especialmente se a ilus?oé auxiliada por estar eu usando algum atavio feminino - receberia uma impress?o inequívoca deum busto feminino‘. (280.) Solicita exame médico, a fim de estabelecer o fato de que todo o seucorpo possui nervos de voluptuosidade dispersos sobre ele, da cabe?a aos pés, situa??o, que, emsua opini?o, só pode ser encontrada no corpo feminino, enquanto no indivíduo do sexo masculino,segundo melhor de seu conhecimento, os nervos da voluptuosidade existem apenas nos órg?ossexuais e em sua vizinhan?a imediata. (274.) A voluptuosidade espiritual que se desenvolveu21. devido a essa acumula??o de nervos em seu corpo é t?o intensa que exige apenas ligeiro esfor?ode sua imagina??o (especialmente quando se acha deitado na cama) para proporcionar-lhe umasensa??o de bem-estar sexual que permite um prenúncio mais ou menos claro do prazer sexualdesfrutado por uma mulher durante a cópula. (269.) Se recordamos agora o sonho que o paciente teve durante o período de incuba??o de suaenfermidade, antes de mudar-se para Dresden [ver em [1]], tornar-se-á claro, acima de qualquerdúvida, que seu delírio de ser transformado em mulher nada mais era que a realiza??o doconteúdo desse sonho. Naquela época, rebelou-se contra o sonho com máscula indigna??o, e, damesma maneira, come?ou a lutar contra a sua realiza??o na enfermidade e encarou suatransforma??o em mulher como uma catástrofe porque era amea?ado com inten??es hostis. Maschegou a ocasi?o (foi em novembro de 1895) em que come?ou a reconciliar-se com atransforma??o e a colocá-la em harmonia com os propósitos mais altos de Deus: ‘Desde ent?o, ecom plena consciência do que fiz, inscrevi em minha bandeira o cultivo da feminilidade.’ (177-8.) Chegou ent?o à firme convic??o de que era o Próprio Deus que, para Sua satisfa??o,exigia dele a feminilidade: ‘Mal, contudo, acho-me a sós com Deus (se assim posso expressá-lo), torna-se umanecessidade para mim empregar todo artifício imaginável e convocar a totalidade de minhasfaculdades mentais, e especialmente minha imagina??o, a fim de fazer com que os raios divinospassam ter a impress?o, t?o continuamente quanto possível (ou, visto isto achar-se além do podermortal, pelo menos em certas ocasi?es do dia), de que sou uma mulher a deleitar-se comsensa??es voluptuosas.’ (281.) ‘Por outro lado, Deus exige um estado constante de prazer, tal como estaria de acordocom as condi??es de existência impostas às almas pela Ordem das Coisas; e é meu deverfornecer-lhe isso… sob a forma da maior gera??o possível de voluptuosidade espiritual. E se,nesse processo, um pouco de prazer sensual cabe a mim, sinto-me justificado em aceitá-lo comodiminuta compensa??o pela excessiva quantidade de sofrimento e priva??o que foi minha portantos anos passados…’ (283.) ‘…Penso que posso mesmo arriscar-me a apresentar a opini?o, baseada em impress?esque recebi, de que Deus nunca tomaria quaisquer medidas no sentido de efetuar uma retirada -cujo primeiro resultado é, invariavelmente, alterar minha condi??o física acentuadamente para pior-, mas quieta e permanentemente render-se-ia a meus poderes de atra??o, se me fosse possívelestar sempre desempenhando o papel de uma mulher e jazer em meus próprios abra?osamorosos, estar sempre modelando minha aparência em formas femininas, estar semprecontemplando retratos de mulheres, e assim por diante.’ (284-5.) No sistema de Schreber, os dois elementos principais de seus delírios (sua transforma??oem mulher e sua rela??o favorecida com Deus) acham-se vinculados na ado??o de uma atitudefeminina para com Deus. Será parte inevitável de nossa tarefa demonstrar que existe uma rela??o22. genética essencial entre esses dois elementos. De outra maneira, nossas tentativas de elucidar osdelírios de Schreber conduzir-nos-iam à posi??o absurda descrita no famoso símile de Kant naCrítica da Raz?o Pura: seríamos como um homem a segurar uma peneira debaixo de um bode,enquanto alguém o ordenha. II - TENTATIVAS DE INTERPRETA??O Existem dois ?ngulos a partir dos quais poderíamos tentar chegar a uma compreens?odessa história de um caso de paranóia e nela expor os conhecidos complexos e for?asmotivadoras da vida mental. Poderíamos partir das próprias declara??es delirantes do paciente oudas causas ativadoras de sua moléstia. O primeiro método deve parecer tentador, desde o brilhante exemplo fornecido por Jung[1907] em sua interpreta??o de um caso de demência precoce que era muito mais grave que estee exibia sintomas muito mais afastados do normal. O alto nível e inteligência de nosso pacienteatual, também, e sua comunicatividade parecem ter probabilidades de facilitar a realiza??o denossa tarefa dentro dessa orienta??o. Ele próprio, n?o raro, oferece-nos a chave, pelo acréscimode uma glosa, cita??o ou exemplo de alguma proposi??o delirante, de modo aparentementeacidental, ou mesmo por negar expressamente algum paralelo a ela, que tenha surgido em suaprópria mente. Pois, quando isso acontece, temos apenas de seguir nossa técnica psicanalíticahabitual - despir a frase de sua forma negativa, tomar o exemplo como sendo a coisa real, ou acita??o ou glosa como a fonte original, e encontramo-nos de posse do que estamos procurando, asaber, uma tradu??o da maneira paranóica de express?o para a normal. Talvez valha a pena fornecer uma ilustra??o mais pormenorizada desse procedimento.Schreber se queixa do aborrecimento criado pelos chamados ‘pássaros miraculados’ ou ‘pássarosfalantes’, aos quais atribui certo número de qualidades extraordinárias. (208-14.) ? cren?a sua queeles sejam formados de antigas ‘ante-salas do Céu’, isto é, almas humanas que ingressaram emestado de beatitude, e que foram impregnados com veneno de ptomaína e a?ulados contra ele.Foram condicionados a repetir ‘frases sem sentido, que aprenderam de cor’ e que ‘se lhesofereceram como jantar’. Cada vez que descarregavam a carga de veneno ptomaínico sobre ele -isto é, cada vez que ‘desfiavam as frases que lhe foram oferecidas como jantar, por assim dizer’ -eram, até certo ponto, incorporados em sua alma, com as palavras ‘Diacho de sujeito!’ ou ‘O diaboo leve!’, que constituem as únicas que ainda s?o capazes de empregar para expressar umsentimento genuíno. Eles n?o podem entender o significado das palavras que dizem, mas s?o, pornatureza, suscetíveis à similaridade de sons, embora a semelhan?a n?o precise necessariamenteser completa. Assim, é-lhes indiferente dizer: ‘Santiago‘ ou ‘Karthago‘,23. ‘Chinesentum‘ ou ‘Jesum Christum‘, ‘Abendrot‘ ou ‘Atemnot‘, ‘Ariman‘ ou ‘Ackermann‘ etc. (210.) Quando lemos esta descri??o, n?o podemos evitar a idéia de que ela deve realmente sereferir a mo?as. Criticamente amiúde comparam-nas a gansos, pouco galantemente acusam-nasde terem ‘miolos de passarinho’ e declara-se que nada podem dizer além de frases aprendidas decor e que revelam sua falta de instru??o ao confundirem palavras estrangeiras que soam de modosemelhante. A frase ‘diacho de sujeito!’, única coisa sobre a qual s?o sérias, constituiria, no caso,uma alus?o ao triunfo do jovem que conseguiu impressioná-la. E, com efeito, algumas páginasadiante deparamo-nos com uma passagem em que Schreber confirma esta interpreta??o: ‘Parafins de distin??o, de brincadeira dei nomes de mo?as a grande número das almas-pássarosrestantes, visto que, por sua curiosidade, inclina??o voluptuosa etc., elas, un?nime e muiprontamente, sugerem uma compara??o com menininhas. Alguns desse nomes de mo?as foram,desde ent?o, adotados pelos raios de Deus e mantidos como designa??o das almas-pássaros emapre?o.’ (214.) Essa fácil interpreta??o dos ‘pássaros miraculados’ fornece-nos uma sugest?o quepode auxiliar-nos no sentido de compreender as enigmáticas ‘ante-salas do Céu’. Dou-me perfeitamente conta de que um psicanalista necessita de certa quantidade de tatoe reserva sempre que, no decurso de seu trabalho, vai além dos casos típicos de interpreta??o, ede que seus ouvintes ou leitores só o seguir?o na medida em que a familiaridade deles com atécnica analítica lhes permita. Tem ele toda raz?o, portanto, de guardar-se contra o risco de queuma exagerada exibi??o de perspicácia de sua parte possa se fazer acompanhar de umadiminui??o na certeza e fidedignidade dos seus resultados. Assim, é apenas natural quedeterminado analista tenda demasiadamente para a cautela e outro excessivamente para aousadia. N?o será possível definir os limites precisos da interpreta??o justificável até que setenham realizado muitos experimentos e que o assunto se tenha tornado mais conhecido.Trabalhando no caso de Schreber, uma política de restri??o me foi for?ada pela circunst?ncia deque a oposi??o a que ele publicasse as Denkwürdigkeiten foi eficaz, a ponto de afastar do nossoconhecimento considerável parte do material - a parte também que, com toda probabilidade, terialan?ado a luz mais importante sobre o caso. Assim, por exemplo, o terceiro capítulo do livro iniciacom esse anúncio promissor: ‘Passarei agora a descrever certos acontecimentos ocorridos comoutros membros de minha família e que podem, concebivelmente, se achar vinculados aoassassinato de alma que postulei; pois há, de qualquer modo, algo mais ou menos problemático arespeito de todos eles, algo n?o facilmente explicável segundo as linhas da experiência humanacomum. (33.) Mas a frase posterior, que é também a última do capítulo, é a seguinte: ‘O restantedeste capítulo foi retirado de impress?o por ser impróprio para publica??o.’ Desse modo, terei dedar-me por satisfeito se conseguir pelo menos, com algum grau de certeza, remontar o núcleo daestrutura delirante a motivos humanos familiares. Com este objetivo em vista, mencionarei agora outro pequeno fragmento da história clínica24. ao qual n?o se deu peso suficiente nos relatórios, embora o próprio paciente tenha feito tudo o quep?de para colocá-lo em primeiro plano. Refiro-me às rela??es de Schreber com seu primeiromédico, o Geheimrat Prof. Flechsig, de Leipzig. Conforme já sabemos, o caso de Schreber assumiu a princípio a forma de delírios depersegui??o e só come?ou a perdê-la quando chegou ao ponto decisivo de sua moléstia (a ocasi?ode sua ‘reconcilia??o’). Dessa época em diante, as persegui??es tornaram-se cada vez menosintoleráveis e o propósito ignominioso que a princípio fundamentava sua amea?ada emascula??ocome?ou a ser suplantado por um propósito em conson?ncia com a Ordem das Coisas. Mas oprimeiro autor de todos esses atos de persegui??o foi Flechsig e permaneceu sendo seu instigadordurante todo o curso da doen?a. Sobre a natureza real da perversidade de Flechsig e seus motivos o paciente fala com avagueza e a obscuridade características, que podem ser encaradas como sinais de um trabalhoparticularmente intenso de forma??o delirante, se é que é legítimo julgar a paranóia segundo omodelo de um fen?meno mental muito mais conhecido - o sonho. Flechsig, segundo o paciente,cometeu ou tentou cometer ‘assassinato de alma’ contra ele - ato que, pensava, era comparávelaos esfor?os feitos pelo Diabo ou por dem?nios para tomar posse de uma alma, e que pode ter tidoseu protótipo em acontecimentos ocorridos entre membros das famílias Flechsig e Schreber hámuito falecidos. Alegrar-nos-íamos em saber mais sobre o significado desse ‘assassinato de alma’,mas nesse ponto nossas fontes mais uma vez recaem num silêncio tendencioso: ‘Quanto ao queconstitui a verdadeira essência do assassinato de alma, e à sua técnica, se assim posso descrevê-la, nada mais posso dizer além do que já foi indicado. Existe apenas isto, talvez, a seracrescentado.…) (A passagem que se segue é imprópria para publica??o.)’ (28.) Em resultadodessa omiss?o, deixam-nos às escuras sobre a quest?o do que significa ‘assassinato de alma’.Referir-nos-emos mais tarde [ver em [1]] à única alus?o ao assunto que escapou à censura. Seja como for, logo houve outra manifesta??o dos delírios de Schreber, que afetou suasrela??es com Deus sem alterar as rela??es com Flechsig. Até ent?o, havia considerado Flechsig(ou melhor, a alma dele) seu único inimigo verdadeiro e encarado Deus Todo-Poderoso comoaliado; mas, agora n?o podia evitar o pensamento de que o Próprio Deus havia desempenhado opapel de cúmplice, sen?o de instigador, na trama contra ele. (59.) Flechsig, contudo, permaneciasendo o primeiro sedutor, a cuja influência Deus se havia rendido. (60.) Ele conseguira abrircaminho até o Céu, com toda a sua alma ou parte dela, e tornar-se ‘líder dos raios’, sem morrer oupassar por qualquer purifica??o preliminar. (56.) A alma de Flechsig continuou a representar essepapel mesmo após o paciente ser removido da clínica de Leipzig para o asilo do Dr. Pierson. Ainfluência do novo ambiente foi demonstrada pelo fato de a alma de Flechsig reunir-se à alma doassistente-chefe, a quem o paciente reconheceu como uma pessoa que anteriormente morara nomesmo bloco de apartamentos que ele próprio. Esta foi descrita como sendo a alma de von W. Aalma de Flechsig introduziu ent?o o sistema de ‘divis?o de almas’, que assumiu grandes25. propor??es. Em determinada época, chegou a haver de 40 a 60 subdivis?es da alma de Flechsig;duas de suas divis?es maiores eram conhecidas como o ‘Flechsig superior’ e o ‘Flechsig médio’. Aalma de von W. (o assistente-chefe) comportava-se exatamente da mesma maneira. (111.) Era, àsvezes, muito divertido observar a maneira pela qual essas duas almas, apesar de sua alian?a,levavam adiante uma rixa mútua, com o orgulho aristocrático de uma oposto à vaidade professoralda outra. (113.) No decorrer de suas primeiras semanas em Sonnestein (para onde foi finalmenteremovido no ver?o de 1894), a alma de seu novo médico, Dr. Weber, entrou em jogo; e poucoapós ocorreu, no desenvolvimento de seus delírios, a reviravolta que viemos a conhecer com sua‘reconcilia??o’. Durante essa estada posterior em Sonnestein, quando Deus come?ara a apreciá-lomelhor, fez-se uma incurs?o sobre as almas, que se haviam multiplicado a ponto de se tornaremum aborrecimento. Em resultado, a alma de Flechsig sobreviveu sob apenas uma ou duas formase a de von W. sob uma única, que em breve desapareceu completamente. As divis?es da alma deFlechsig, que lentamente perderam tanto a inteligência quanto o poder, passaram ent?o a serdescritas como o ‘Flechsig posterior’ e o ‘Partido “Oh, bem!”’. Que a alma de Flechsig conservousua import?ncia até o fim é demonstrado por Schreber no pre?mbulo ‘Carta Aberta ao HerrGeheimrat Prof. Dr. Flechsig’. Nesse notável documento, Schreber expressa sua firme convic??o de que o médico que oinfluenciou teve as mesmas vis?es e recebeu as mesmas revela??es sobre coisas sobrenaturaisque ele próprio. Protesta, já na primeira página, que o autor das Denkwürdigkeiten n?o tem a maisremota inten??o de atacar a honra do médico, e o mesmo argumento é séria e enfaticamenterepetido nas apresenta??es que o paciente faz de sua posi??o. (343, 445.) ? evidente que se estáesfor?ando por distinguir a ‘alma Flechsig’ do homem vivo de mesmo nome, o Flechsig de seusdelírios, do Flechsig real. O estudo de vários casos de delírios de persegui??o levou-me, bem como a outrospesquisadores, à opini?o de que a rela??o entre o paciente e o seu perseguidor pode ser reduzidaa fórmula simples. Parece que a pessoa a quem o delírio atribui tanto poder e influência, a cujasm?os todos os fios da conspira??o convergem, é, se claramente nomeada, idêntica a alguém quedesempenhou papel igualmente importante na vida emocional do paciente antes de suaenfermidade, ou facilmente reconhecível como substituto dela. A intensidade da emo??o éprojetada sob a forma de poder externo, enquanto sua qualidade é transformada no oposto. Apessoa agora odiada e temida, por ser um perseguidor, foi, noutra época, amada e honrada. Oprincipal propósito da persegui??o asseverada pelo delírio do paciente é justificar a modifica??oem sua atitude emocional. Mantendo esse ponto de vista em mente, examinemos agora as rela??es que haviamanteriormente existido entre Schreber e seu médico e perseguidor, Flechsig. Já soubemos [ver em26. [1]] que, nos anos de 1884 e 1885, Schreber sofrera uma primeira crise de distúrbio nervoso, queseguiu seu curso ‘sem a ocorrência de quaisquer indigentes que tocassem as raias dosobrenatural’. (35.) Enquanto se achava nesse estado, que foi descrito como ‘hipocondria’ e n?oparece ter ultrapassado os limites de uma neurose, Flechsig atuou como seu médico. Nessaocasi?o, Schreber passou seis meses na Clínica da Universidade, em Leipzig. Sabemos que, apóso restabelecimento, ele manteve sentimentos cordiais em rela??o ao médico. ‘O principal foi que,após período bastante longo de convalescen?a, que passei viajando, fiquei finalmente curado; e,portanto, era impossível que, àquela época, sentisse algo a n?o ser a mais viva gratid?o para como Professor Flechsig. Expressei de forma acentuada esse sentimento n?o só em visita pessoal quesubseqüentemente lhe fiz quanto no que considerei serem honorários apropriados.’ (35-6.) ?verdade que o enc?mio de Schreber nas Denkwürdigkeiten sobre esse primeiro tratamento deFlechsig n?o é inteiramente sem reservas; mas estas podem ser facilmente entendidas, seconsiderarmos que sua atitude, nesse meio tempo, fora alterada. A passagem imediatamenteseguinte à que acabou de ser citada dá testemunho da cordialidade original de seus sentimentospara com o médico que o havia tratado com tanto sucesso: ‘A gratid?o de minha esposa foi talvezainda mais sincera, pois reverenciava o Professor Flechsig como o homem que lhe havia restituídoo marido; daí ter ela, durante anos, mantido o retrato dele sobre a escrivaninha.’ (36.) Visto n?o podermos conseguir nenhuma compreens?o interna (insight) das causas daprimeira doen?a (cujo conhecimento é sem dúvida indispensável para elucidar apropriadamente asegunda enfermidade, mais grave), temos agora de mergulhar ao acaso numa concatena??odesconhecida de circunst?ncias. Durante o período de incuba??o de sua doen?a, como sabemos(isto é, entre junho de 1893, quando foi nomeado para novo posto, e o outubro seguinte, quandoassumiu seus encargos), ele sonhou repetidamente que seu antigo distúrbio nervoso haviaretornado. Além disso, certa vez, quando se achava semi-adormecido, teve a impress?o de que,afinal de contas, deveria ser bom ser mulher e submeter-se ao ato da cópula. Os sonhos e afantasia s?o comunicados por Schreber em sucess?o imediata; e, se também reunirmos o temageral de ambos, poderemos inferir que, ao mesmo tempo em que rememorava a doen?a, umarecorda??o de seu médico foi-lhe despertada na mente, e que a atitude feminina que assumiu nafantasia foi, desde o início, dirigida para o médico. Ou pode ser que o fato de o sonho de suaenfermidade haver retornado simplesmente expressasse algum anseio tal como ‘Quisera poder verFlechsig novamente!’ A ignor?ncia do conteúdo mental da primeira doen?a barra nosso caminhonessa dire??o. Talvez ela houvesse deixado no paciente um sentimento de dependência afetuosado médico, o qual havia agora, por alguma raz?o desconhecida, aumentado até chegar ao grau deintensidade de um desejo erótico. Essa fantasia feminina, que se havia conservado impessoal,defrontou-se imediatamente com um repúdio indignado - um verdadeiro ‘protesto masculino’, parautilizar a express?o de Adler, mas num sentido diferente do seu. Na aguda psicose que irrompeulogo após, porém, a fantasia feminina venceu todas as dificuldades; e só é preciso ligeira corre??oda imprecis?o paranóica característica do modo de express?o de Schreber, para permitir-nos27. adivinhar o fato de que o paciente temia um abuso sexual das m?os do próprio médico. A causaativadora de sua doen?a, ent?o, foi uma manifesta??o de libido homossexual; o objeto desta libidofoi provavelmente, desde o início, o médico, Flechsig, e suas lutas contra o impulso libidinalproduziram o conflito que deu origem aos sintomas. Farei uma pausa aqui, por um momento, para enfrentar uma tempestade de protestos eobje??es. Quem quer que esteja familiarizado com o estado atual da psiquiatria deve estarpreparado para enfrentar problemas. N?o constitui um ato de irresponsável leviandade, uma indiscri??o e uma calúnia acusarum homem de posi??o ética t?o elevada quanto o ex-Senatspr?sident Schreber, dehomossexualismo? - N?o. O próprio paciente informou o mundo em geral de sua fantasia de sertransformado em mulher, e permitiu que todas as considera??es pessoais fossem superadas porinteresses de natureza mais alta. Desse modo, ele próprio concedeu-nos o direito de ocupar-noscom sua fantasia, e, ao traduzi-la para a terminologia técnica da medicina, n?o efetuamos a menoradi??o a seu conteúdo. ‘Sim, mas ele n?o estava em seu pleno juízo quando o fez. O delírio de estar sendotransformado em mulher era uma idéia patológica.’ N?o esquecemos isso. Na verdade, nossoúnico interesse é o significado e a origem dessa idéia patológica. Apelaremos para a distin??o queele próprio tra?a entre o homem Flechsig e a ‘alma Flechsig’. N?o lhe estamos fazendo censurasde espécie alguma, quer por ter tido impulsos homossexuais quer por ter-se esfor?ado por suprimi-los. Os psiquiatras deveriam, pelo menos, tirar uma li??o desse paciente, ao vê-lo tentando, apesarde seus delírios, n?o confundir o mundo do inconsciente com o da realidade. ‘Mas em parte alguma acha-se expressamente afirmado que a transforma??o em mulherque ele tanto temia devesse realizar-se em benefício de Flechsig.’ Isso é verdade e n?o é difícilcompreender que, ao preparar suas memórias para publica??o, visto estar ansioso por n?o insultaro ‘homem Flechsig’, ele evitasse acusa??o t?o grosseira. Mas a modera??o de sua linguagem,devido a essas considera??es, n?o chega ao ponto de poder esconder o verdadeiro significado daacusa??o. Na verdade, pode-se sustentar que, afinal de contas, ela se acha visivelmente expressanuma passagem como a seguinte: ‘Desse modo, uma conspira??o contra mim foi levada ao pontoculminante (por volta de mar?o ou abril de 1894). Seu objetivo era conseguir que, uma vez minhadoen?a nervosa houvesse sido reconhecida como incurável ou assim admitida, eu fosse entreguea certa pessoa de maneira que minha alma lhe fosse entregue, mas meu corpo… fossetransformado num corpo feminino e como tal entregue à pessoa em apre?o, com vistas a abusossexuais… (56.) ? desnecessário observar que n?o é sequer nomeado algum outro indivíduo quepudesse ser colocado no lugar de Flechsig. Perto do fim da estada de Schreber na clínica deLeipzig, veio-lhe à mente o temor de que ele ‘deveria ser jogado aos assistentes’ para fins deabusos sexuais. (98.) Quaisquer dúvidas remanescentes sobre a natureza do papel originalmenteatribuído ao médico dissipam-se quando, nos estágios posteriores de seu delírio, vemos Schreberadmitir abertamente sua atitude feminina para com Deus. A outra acusa??o contra Flechsig ecoa28. excessivamente alto por todo o livro, Flechsig, diz, tentou cometer assassinato de alma contra o já sabemos [Ver a partir de [1].], o próprio paciente n?o foi claro quanto à natureza realdesse crime, mas a mesma estava ligada a quest?es de discri??o que impediram sua publica??o(como percebemos pelo terceiro capítulo suprimido). A partir deste ponto, um único fio conduz-nosà frente. Schreber ilustra a natureza do assassinato de alma referindo-se às lendas corporificadasno Fausto de Goethe, no Manfred de Byron, no Freichütz de Weber etc. (22), e um desses casos écitado em outra passagem, mais adiante. Ao examinar a divis?o de Deus em duas pessoas,Schreber identifica seu ‘Deus inferior’ e ‘Deus superior’ com Arim? e Ormuzd, respectivamente(19); e, pouco depois, ocorre uma nota de rodapé casual: ‘Além disso, o nome de Arim? tambémaparece em vincula??o com um assassinato de alma no Manfred de Byron, por exemplo.’ (20.) Nape?a mencionada, dificilmente existe algo comparável à barganha da alma de Fausto, e procureiem v?o a express?o ‘assassinato de alma’. Mas a essência e o segredo de toda a obra residemnuma rela??o incestuosa entre irm?o e irm?. E aqui nosso fio se rompe abruptamente. Em estádio posterior deste trabalho, pretendo retornar ao exame de algumas outrasobje??es; entrementes, porém, considerar-me-ei justificado em manter a opini?o de que a base damoléstia de Schreber foi a irrup??o de um impulso homossexual. Esta hipótese se harmoniza comimportante pormenor da história clínica, que do contrário permanece inexplicável. O paciente tevenovo ‘colapso nervoso’, que exerceu efeito decisivo sobre o curso de sua doen?a, na ocasi?o emque sua esposa estava tirando umas pequenas férias por causa da própria saúde. Até ent?o, elahavia passado diversas horas com ele todo dia e feito as refei??es de meio-dia com ele.Entretanto, quando retornou após uma ausência de quatro dias, encontrou-o muito tristementealterado, tanto, na verdade, que ele próprio n?o mais queria vê-la. ‘O que determinouparticularmente meu colapso mental foi uma noite específica, durante a qual tive um númeroextraordinário de emiss?es - positivamente meia-dúzia, todas naquela noite.’ (44.) ? fácilcompreender que a simples presen?a da esposa deve ter atuado como prote??o contra o poderatrativo dos homens a seu redor, e, se estivermos preparados para admitir que uma emiss?o n?opode ocorrer num adulto sem algum acompanhamento mental, poderemos suplementar asemiss?es do paciente naquela noite presumindo que elas se fizeram acompanhar de fantasiashomossexuais que permaneceram inconscientes. A raz?o de essa irrup??o de libido homossexual ter dominado o paciente exatamentenesse período (isto é, entre as datas de sua nomea??o e da mudan?a para Dresden) n?o pode serexplicada na ausência de um conhecimento mais preciso da história de sua vida. Falando de modogeral, todo ser humano oscila, ao longo da vida, entre sentimentos heterossexuais e homossexuaise qualquer frustra??o ou desapontamento numa das dire??es pode impulsioná-lo para outra. Nadasabemos desses fatores no caso de Schreber, mas n?o devemos deixar de chamar aten??o paraum fator somático que pode muito bem ter sido relevante. Na época dessa doen?a, o Dr. Schrebercontava 51 anos e, portanto, atingira uma idade de import?ncia decisiva na vida sexual. ? umperíodo no qual, nas mulheres, a fun??o sexual, após uma fase de atividade intensificada, ingressa29. num processo de involu??o de grandes conseqüências; tampouco os homens parecem estarisentos de sua influência, pois tanto eles quanto as mulheres est?o sujeitos a um ‘climatério’ e àssuscetibilidades a doen?a que o acompanham. Bem posso imaginar que hipótese dúbia deve parecer a suposi??o de que o sentimentoamistoso de um homem para com seu médico possa repentinamente surgir sob formaintensificada, após um lapso de oito anos, e ocasionar t?o grave doen?a mental. Mas n?o acho queseja justo p?r de lado tal hipótese simplesmente por causa de sua inerente improbabilidade, se elase recomenda a nós por outros motivos; devemos antes indagar até onde chegaremos, se aseguirmos. Pois a improbabilidade pode ser de tipo passageiro e devido ao fato de a hipóteseduvidosa ainda n?o ter sido relacionada com outras parcelas de conhecimento, e de ser ela aprimeira hipótese com que o problema foi abordado. Mas, em benefício daqueles que s?oincapazes de manter o julgamento em suspenso e que encaram nossa hipótese como inteiramenteinsustentável, é fácil sugerir uma possibilidade que a despojaria de seu caráter desconcertante. Osentimento amistoso do paciente para com o médico bem se pode ter devido a um processo de‘transferência’, por meio do qual uma catexia emocional se transp?s de alguma pessoa que lhe eraimportante para o médico que, na realidade, era-lhe indiferente; de maneira que o último terá sidoescolhido como representante ou substituto de alguém muito mais chegado ao paciente. Paracolocar o assunto de forma mais concreta: o paciente lembrou-se de seu irm?o ou de seu pai antea figura do médico; redescobriu-os nele; ent?o, n?o causará espanto que, em certascircunst?ncias, um anseio pela figura substituta reaparecesse nele e operasse com uma violênciaque só pode ser explicada à luz de sua origem e significa??o primária. Com o fito de acompanhar essa tentativa de explica??o, naturalmente achei que valeria apena descobrir se o pai do paciente ainda se achava vivo à época em que ele caiu doente, setivera um irm?o e, nesse caso, se ainda se achava vivo ou entre os ‘aben?oados’. Fiquei satisfeito,portanto, quando, após prolongada busca pelas páginas das Denkwürdigkeiten, deparei por fimcom uma passagem em que o paciente aplaca estas dúvidas: ‘A memória de meu pai e meuirm?o… é t?o sagrada para mim como…’ etc. (442.) De modo que ambos eram falecidos porocasi?o do desencadeamento de sua segunda doen?a (e, é possível, também da primeira). N?o levantaremos, portanto, penso eu, novas obje??es à hipótese de que a causaativadora da enfermidade foi o aparecimento de uma fantasia feminina (isto é, homossexualpassiva) de desejo, que tomou por objeto a figura do médico. Uma resistência intensa a estafantasia surgiu por parte da personalidade de Schreber, e a luta defensiva que se seguiu, e quetalvez pudesse ter assumido alguma outra forma, tomou, por raz?es que nos s?o desconhecidas, aforma de delírio de persegui??o. A pessoa por que agora ansiava tornou-se seu perseguidor, e aessência da fantasia de desejo tornou-se a essência da persegui??o. Pode-se presumir que omesmo delineamento esquemático se tornará aplicável a outros casos de delírios de persegui??o.O que distingue o caso de Schreber dos outros, contudo, é seu desenvolvimento ulterior, e atransforma??o que sofreu no decurso deste.30. Uma das modifica??es foi a substitui??o de Flechsig pela figura superior de Deus. Istoparece, a princípio, um sinal de agravamento do conflito, uma intensifica??o da persegui??oinsuportável, mas logo se torna evidente que preparava o caminho para a segunda mudan?a, e,com esta, a solu??o do conflito. Era impossível para Schreber resignar-se a representar o papel deuma devassa para com seu médico, mas a miss?o de fornecer ao Próprio Deus as sensa??esvoluptuosas que Este exigia n?o provocava tal resistência por parte de seu ego. A emascula??o,agora, n?o era mais uma calamidade; tornava-se ‘consonante com a Ordem das Coisas’, assumiaseu lugar numa grande cadeia cósmica de eventos e servia de instrumento para a recria??o dahumanidade, após a extin??o desta. ‘Uma nova ra?a de homens, nascida do espírito de Schreber’,assim pensava ele, reverenciaria como ancestral esse homem que se acreditava vítima depersegui??o. Por esse meio, fornecia-se uma saída que satisfaria ambas as for?as em contenda.Seu ego encontrava satisfa??o na megalomania, enquanto que sua fantasia feminina de desejoavan?ava e tornava-se aceitável. A luta e a doen?a podiam cessar. O senso de realidade dopaciente, contudo, que nesse meio tempo tornara-se mais forte, compelia-o a adiar a solu??o dopresente para o futuro remoto, e a contentar-se com o que poderia ser descrito como umarealiza??o de desejo assintótica. A qualquer momento, previa ele, sua transforma??o em mulherocorreria; até ent?o, a personalidade do Dr. Schreber permaneceria indestrutível. Em compêndios de psiquiatria, freqüentemente deparamos com afirma??es segundo asquais a megalomania pode desenvolver-se a partir de delírios de persegui??o. Imagina-se que oprocesso seja o seguinte: o paciente é primariamente vítima de um delírio de estar sendoperseguido por for?as de máximo poder. Sente ent?o necessidade de explicar isto a si próprio e,dessa maneira, ocorre-lhe a idéia de que ele próprio é personagem muito eminente e digna de talpersegui??o. O desenvolvimento da megalomania é assim atribuído, pelos livros didáticos, a umprocesso que (tomando de empréstimo a Ernest Jones [1908] uma palavra útil) podemos descrevercomo ‘racionaliza??o’. Mas atribuir conseqüências afetivas t?o importantes a uma racionaliza??o é,segundo nos parece, procedimento inteiramente n?o psicológico e, conseqüentemente,tra?aríamos a divis?o nítida entre nossa opini?o e aquela que citamos, dos livros didáticos. N?oestamos reivindicando, por enquanto, conhecer a origem da megalomania. Voltando mais uma vez ao caso de Schreber, somos obrigados a admitir que qualquertentativa de lan?ar luz sobre a transforma??o de seu delírio faz-nos defrontar com dificuldadesextraordinárias. De que maneira e por que meios foi realizada a ascens?o de Flechsig para Deus?De que fonte derivou ele a megalomania que t?o afortunadamente o capacitou a resignar-se aessa persegui??o, ou em fraseologia analítica, a aceitar a fantasia de desejo que tivera de serreprimida? As Denkwürdkeiten d?o-nos uma primeira pista, pois mostram-nos que, na mente dopaciente, ‘Flechsig’ e ‘Deus’ pertenciam à mesma classe. Numa de suas fantasias, ele escutou poracaso uma conversa entre Flechsig e a esposa deste, na qual o primeiro asseverava ser ‘Deus31. Flechsig’, de modo que a esposa pensou que ele ficara louco. (82.) Mas há outro aspecto nodesenvolvimento dos delírios de Schreber que exige nossa aten??o. Se efetuarmos umlevantamento das ilus?es como um todo, veremos que o perseguidor se acha dividido em Flechsige Deus; exatamente da mesma maneira, o próprio Flechsig, subseqüentemente, cinde-se em duaspersonalidades, o ‘superior’ e o ‘médio’ Flechsig [ver em [1]], e Deus, em Deus ‘inferior’ e ‘superior’.Nos estágios posteriores da doen?a, a decomposi??o de Flechsig progride ainda mais. (193.) Umprocesso de decomposi??o desse tipo é muito característico da paranóia. A paranóia decomp?e,tal como a histeria condensa. Ou antes, a paranóia reduz novamente a seus elementos osprodutos das condensa??es e identifica??es realizadas no inconsciente. A freqüente repeti??o doprocesso de decomposi??o no caso de Schreber seria, de acordo com Jung, express?o daimport?ncia que a pessoa em apre?o possuía para ele. Toda essa divis?o de Flechsig e Deus emcerto número de pessoas possuía assim o mesmo significado que a cis?o do perseguidor emFlechsig e Deus. Todas eram duplica??es do mesmo importante relacionamento. Mas, a fim deinterpretar todos estes pormenores, temos ainda de chamar aten??o para nossa vis?o dadecomposi??o do perseguidor em Flechsig e Deus como uma rea??o paranóide a umaidentifica??o previamente estabelecida das duas figuras ou a pertencerem elas à mesma classe.Se o perseguidor Flechsig fora originalmente uma pessoa a quem Schreber amara, ent?o tambémDeus deveria ser simplesmente o reaparecimento de alguém mais que ele amara, e,provavelmente, alguém de maior import?ncia. Se acompanharmos essa seqüência de pensamento, que parece ser legítima, seremoslevados à conclus?o de que esta outra pessoa deve ter sido seu pai; isso torna ainda mais claroque Flechsig deve ter representado o irm?o, que, esperemos, pode ter sido mais velho que elepróprio. A fantasia feminina, que despertou uma oposi??o t?o violenta no paciente, tinha assimsuas raízes num anseio, intensificado até um tom erótico, pelo pai e pelo irm?o. Esse sentimento,na medida em que se referia ao irm?o, passou, por um processo de transferência, para o médico,Flechsig; e, quando foi devolvido ao pai, chegou-se a uma estabiliza??o do conflito. N?o acharemos que tivemos raz?o de introduzir assim o pai de Schreber em seus delírios,a menos que a nova hipótese mostre, ela própria, ser de alguma utilidade para compreens?o docaso e a elucida??o de pormenores dos delírios que ainda s?o ininteligíveis. Recordar-se-á que oDeus de Schreber e as rela??es deste com Ele exibiam as características mais curiosas: comoapresentavam uma estranha mistura de crítica blasfema e insubordina??o amotinada, por um lado,e de devo??o reverente, por outro. Deus, segundo ele, sucumbira à influência desencaminhadorade Flechsig: era incapaz de aprender qualquer coisa pela experiência e n?o compreendia oshomens vivos, porque só sabia lidar com cadáveres, e manifestava o Seu poder numa sucess?ode milagres que, por espantosos que fossem, eram, todavia, fúteis e ridículos. Ora, o pai do Senatspr?sident Dr. Schreber n?o era pessoa insignificante. Era o Dr. DanielGottlob Moritz Schreber, cuja memória é mantida viva até os dias de hoje pelas numerosasAssocia??es Schreber que florescem especialmente na Sax?nia; e, além disso, era médico. Suas32. atividades em favor da promo??o da cria??o harmoniosa dos jovens, de assegurar umacoordena??o entre a educa??o no lar e na escola, de introduzir a cultura física e o trabalho manualcom vistas a elevar os padr?es de saúde, tudo isto exerceu influência duradoura sobre seuscontempor?neos. Sua grande reputa??o como fundador da ginástica terapêutica na Alemanha éainda comprovada pela ampla circula??o de seus ?rztliche Zimmergymnastik nos círculos médicose pelas numerosas edi??es que teve. Um pai como esse de maneira alguma seria inadequado para a transfigura??o em Deus nalembran?a afetuosa do filho de quem t?o cedo havia sido separado pela morte. ? verdade que n?opodemos deixar de achar que existe um abismo intransponível entre a personalidade de Deus e ade qualquer ser humano, por eminente que este possa ser, mas devemos lembrar que isto nemsempre foi assim. Os deuses dos povos da antiguidade achavam-se em relacionamento humanomais estreito com eles. Os romanos costumavam deificar seus imperadores mortos, como quest?ode rotina, e o Imperador Vespasiano, homem sensato e competente, exclamou quando pelaprimeira vez caiu doente: ‘Ai de mim! Parece-me que me estou transformando em Deus!’ Estamos perfeitamente familiarizados com a atitude infantil dos meninos para com o pai;ela se comp?e da mesma mistura de submiss?o reverente e insubordina??o amotinada queencontramos na rela??o de Schreber com o seu Deus, e é o protótipo inequívoco dessa rela??o,fielmente copiada dela. Mas a circunst?ncia de o pai de Schreber ter sido médico, e médico dosmais eminentes, que sem dúvida foi muito respeitado por seus pacientes, é que explica ascaracterísticas mais notáveis de seu Deus e aquelas sobre as quais se demora, de maneira t?ocrítica. Poderia um escárnio mais acerbo ser demonstrado por um médico, do que declarar que elenada compreende sobre os homens vivos e só sabe lidar com cadáveres? Sem dúvida, constituiatributo essencial de Deus realizar milagres, mas um médico os realiza também; ele efetua curasmiraculosas, como seus clientes entusiásticos proclamam. De maneira que, quando vemos queesses próprios milagres (para os quais o material foi fornecido pela hipocondria do paciente)mostram ser incríveis, absurdos e, até certo ponto, positivamente ridículos, lembramo-nos daasser??o feita em A Interpreta??o de Sonhos, de que o absurdo nos sonhos expressa ridículo ederris?o. Evidentemente, portanto, ele é utilizado com os mesmos propósitos na paranóia. Comreferência a algumas das outras censuras que ele dirige contra Deus, tais como, por exemplo, a deque nada aprendeu pela experiência, é natural supor que constituem exemplos do mecanismo tuquoque empregado pelas crian?as, que, quando recebem uma reprova??o, dirigem-na de volta,inalterada, à pessoa que a originou. Semelhantemente, as vozes d?o-nos fundamentos parasuspeitar que a acusa??o de assassinato de alma levantada contra Flechsig foi, desde o início,uma auto-acusa??o. Encorajados pela descoberta de que a profiss?o do pai auxilia a explicar as peculiaridadesdo Deus de Schreber, aventurar-nos-emos agora a uma interpreta??o que pode lan?ar certa luzsobre a extraordinária estrutura desse Ser. O mundo celestial consistia, como sabemos, nos‘domínios anteriores de Deus’, também chamados de ‘ante-salas do Céu’ e que continham as33. almas dos mortos, e de deus ‘inferior’ e Deus ‘superior’ que, juntos, constituíam os ‘domíniosposteriores de Deus’. (19.) [ver em [1]]. Embora devamos estar preparados para descobrir queexiste aqui uma condensa??o que n?o poderemos solucionar, todavia vale a pena referir-nos auma pista que já se acha em nossas m?os. Se os pássaros ‘miraculados’, que se demonstrouserem mo?as, foram originalmente ante-salas do Céu [ver em [1]], n?o poderá acontecer que osdomínios anteriores de Deus e as ante-salas do Céu devam ser encarados como símbolo do que éfeminino, e os domínios posteriores de Deus, do que é masculino? Se tivéssemos certeza de que oirm?o falecido de Schreber era mais velho que ele, poderíamos supor que a decomposi??o deDeus em inferior e superior expressava a recorda??o do paciente de que, após a morte prematurado pai, o irm?o mais velho ocupara seu lugar. Com rela??o a isso, finalmente, gostaria de chamar a aten??o para o tema do Sol, o que,através de seus ‘raios’, veio a ter tanta import?ncia na express?o dos delírios. Schreber mantémuma rela??o bastante peculiar com o Sol. Este lhe fala em linguagem humana, e assim se lherevela como um ser humano, ou como o órg?o de um ser superior, que está por trás dele. (9.)Somos informados, por um relatório médico, de que, em determinada ocasi?o, Schreber‘costumava gritar-lhe amea?as e insultos, e positivamente berrar com ele’ (382) e gritar-lhe quedeveria rastejar para longe e esconder-se. Ele próprio nos conta que o Sol empalidece na suafrente. A maneira pela qual o Sol se encontra ligado a seu destino é demonstrada pelasimportantes altera??es que aquele experimenta logo que ele sofre mudan?as, assim como, porexemplo, durante suas primeiras semanas em Sonnenstein. (135.) Schreber facilita-nos ainterpreta??o deste seu mito solar. Ele identifica o Sol diretamente com Deus, às vezes com oDeus inferior (Arim?), outras com o superior. ‘No dia seguinte… vi o Deus superior (Ormuzd), edesta vez n?o com meus olhos espirituais, mas com os corporais. Era o Sol, mas n?o o Sol em seuaspecto comum, como é conhecido de todos os homens; era…’ (137-8.) Portanto, n?o é mais quecoerente de sua parte tratá-lo do mesmo modo que trata o Próprio Deus. O Sol, por conseguinte, nada mais é que outro símbolo sublimado do pai, e, salientandoisto, devo declinar de toda responsabilidade pela monotonia das solu??es fornecidas pelapsicanálise. Neste caso, o simbolismo ignora o gênero gramatical, pelo menos no que concerne aoalem?o, pois na maioria das outras línguas o Sol é masculino. Seu correspondente neste quadrodos dois pais é a ‘Terra M?e’, como é geralmente chamada. Freqüentemente deparamos comconfirma??es dessa afirma??o, ao solucionar as fantasias patogênicas dos neuróticos por meio dapsicanálise. N?o posso fazer mais que simples alus?o à rela??o de tudo isso com os mitoscósmicos. Um de meus pacientes, que perdera o pai muito cedo, estava sempre procurandoredescobri-lo no que era grande e sublime na Natureza. Desde que soube disto, pareceu-meprovável que o hino de Nietzsche, ‘Vor Sonnenaufgang’ (‘Antes do Amanhecer’), constituaexpress?o do mesmo anseio. Outro paciente, que se tornou neurótico após a morte do pai, foiacometido da primeira crise de ansiedade e tonturas quando o Sol resplandeceu sobre ele, nomomento em que estava trabalhando no jardim com uma pá. Apresentou espontaneamente, como34. interpreta??o, o fato de se ter assustado porque o pai o olhara enquanto trabalhava na m?e comum instrumento pontudo. Quando me aventurei a uma suave admoesta??o, deu ar de maiorplausibilidade à sua opini?o dizendo que, mesmo em vida do pai, ele o havia comparado ao Sol,ainda que em sentido satírico. Sempre que lhe perguntavam onde seu pai ia passar o ver?o,respondia nestas sonoras palavras do ‘Prólogo no Céu’: Und seine vorgeschrieb’ne ReiseVollendet er mit Donnergang. O pai, a conselho médico, costumava fazer uma visita anual a Marienbad. A atitude infantildeste paciente para com ele manifestou-se em duas fases sucessivas. Enquanto o pai estava vivo,revelou-se em rebeldia indomável e franca discórdia, mas, imediatamente após sua morte, assumiua forma de uma neurose baseada em submiss?o abjeta e obediência tardia para com ele. Assim, no caso de Schreber, mais uma vez encontramo-nos no terreno familiar docomplexo paterno. A luta do paciente com Flechsig revelou-se a ele como um conflito com Deus, etemos portanto de explicá-la como um conflito infantil com o pai que amava; os pormenores desdeconflito (sobre o qual nada sabemos) foram o que determinou o conteúdo de seus delírios.Nenhum material que, em outros casos dessa natureza, é revelado pela análise, acha-se ausenteno caso atual: todo elemento é sugerido, de uma maneira ou de outra. Em experiência infantiscomo essa, o pai interfere com a satisfa??o que a crian?a está tentando obter; esta é geralmentede caráter auto-erótico, embora, posteriormente, seja amiúde substituída na fantasia por algumaoutra satisfa??o de tipo menos inglório. No estágio final do delírio de Schreber, vitória magnífica foialcan?ada pelo impulso sexual infantil, pois a voluptuosidade tornou-se temente a Deus e o PróprioDeus (o pai) nunca se cansava de exigi-la dele. A amea?a paterna mais temida, a castra??o, narealidade forneceu o material para sua fantasia de desejo (a princípio combatida mas depoisaceita) de ser transformado em mulher. Sua alus?o a um delito acobertado pela idéia substituta de‘assassinato de alma’ n?o poderia ser mais transparente. Descobriu-se que o assistente-chefe eraidêntico a seu vizinho von W. [Ver a partir de [1].], que, conforme as vozes, havia-o falsamenteacusado de masturba??o. (108.) As vozes diziam, como se fornecendo fundamentos para aamea?a de castra??o: ‘Pois você deve ser representado como sendo dado a excessosvoluptuosos.’ (127-8.) Finalmente, chegamos ao pensamento for?ado (47) a que o paciente sesubmeteu porque supunha que Deus acreditaria que ele se havia tornado idiota e se afastaria delese deixasse de pensar por um só momento. [Ver em [1].] Trata-se de rea??o (com a qual estamostambém familiarizados, sob outros aspectos) à amea?a ou temor de perder a raz?o por entregar-sea práticas sexuais e, especialmente, à masturba??o. Considerando o enorme número de idéiasdelirantes de natureza hipocondríaca que o paciente desenvolveu, talvez n?o se deva dar grandeimport?ncia ao fato de algumas delas coincidirem, palavra por palavra, com os temoreshipocondríacos dos masturbadores. Qualquer um que fosse mais audacioso do que eu em efetuar interpreta??es, ou estivesseem contato com a família de Schreber e, conseqüentemente, mais familiarizado com a sociedadeem que se movimentava e com os pequenos fatos de sua vida, acharia fácil remontar inumeráveis35. pormenores de seus delírios às fontes e descobrir assim seu significado; e isso apesar da censuraa que as Denkwürdigkeiten foram submetidas. Sendo como é, porém, devemos necessariamentecontentar-nos com este enevoado esbo?o do material infantil que foi utilizado pelo distúrbioparanóico ao retratar o conflito atual. Talvez me seja permitido acrescentar umas poucas palavras, com vistas a estabelecer ascausas deste conflito que irrompeu em rela??o à fantasia feminina de desejo. Como sabemos,quando uma fantasia feminina de desejo aparece, nossa tarefa é associá-la com algumafrustra??o, alguma priva??o na vida real. Ora, Schreber admite haver sofrido priva??o deste tipo.Seu casamento, que descreve como feliz, sob outros aspectos, n?o lhe deu filhos; e, em particular,n?o lhe trouxe filho homem que poderia tê-lo consolado da perda do pai e do irm?o e sobre quempoderia ter drenado suas afei??es homossexuais insatisfeitas. Sua linha familiar amea?ava perecere parece que ele sentia bastante orgulho de seu nascimento e linhagem: ‘Tanto os Flechsigsquanto os Schrebers eram membros da “mais alta nobreza do Céu”, como diz a express?o. OsSchrebers, em particular, portavam o título de “Margraves da Toscana e Tasm?nia”; pois as almas,instigadas por algum tipo de vaidade pessoal, têm o costume de adornar-se com títulos um tantoantissonantes, tomados de empréstimos a este mundo.’ (24.) O grande Napole?o obteve divórciode Josefina (embora somente após graves lutas internas) porque ela n?o poderia propagar adinastia. O Dr. Schreber pode ter formado uma fantasia de que, se fosse mulher, trataria o assuntode ter filhos com mais sucesso; e pode ter assim retornado à atitude feminina em rela??o ao paique apresentaria nos primeiros anos de sua inf?ncia. Se assim fosse, ent?o o delírio de que, porcausa de sua emascula??o, o mundo se povoaria de ‘uma nova ra?a de homens nascidos noespírito de Schreber’ (288) - delírio cuja realiza??o continuamente adiava para um futuro cada vezmais remoto - teria também a inten??o de oferecer-lhe uma saída para sua falta de filhos. Se os‘homenzinhos’ que o próprio Schreber acha t?o enigmáticos fossem crian?as, ent?o n?o teríamosdificuldade em compreender por que se achavam reunidos em t?o grande número em sua cabe?a(158): eles eram, verdadeiramente, os ‘filhos de seu espírito’. III - SOBRE O MECANISMO DA PARAN?IA Estivemos até aqui lidando com o complexo paterno, elemento dominante no caso deSchreber, e com a fantasia de desejos em torno da qual a doen?a se centralizou. Mas, em tudoisso, nada existe de característico da enfermidade conhecida como paranóia, nada que n?o possaser encontrado (e que n?o tenha sido, em verdade, encontrado) em outros tipos de neuroses. Ocaráter distintivo da paranóia (ou da dementia paranoides) deve ser procurar alhures, a saber, naforma específica assumida pelos sintomas; e esperamos descobrir que esta é determinada, n?opela natureza dos próprios complexos, mas pelo mecanismo mediante o qual os sintomas s?oformados ou a repress?o é ocasionada. Tenderíamos a dizer que caracteristicamente paranóico na36. doen?a foi o fato de o paciente, para repelir uma fantasia de desejo homossexual, ter reagidoprecisamente com delírios de persegui??o desta espécie. Estas considera??es emprestam, portanto, peso adicional à circunst?ncia de que somos,na realidade, levados pela experiência a atribuir às fantasias de desejo homossexuais uma rela??oíntima (talvez invariável) com essa forma específica de enfermidade. Duvidando de minha própriaexperiência no assunto, durante os últimos anos reuni-me a meus amigos C.G. Jung, de Zurique, eSándor Ferenczi, de Budapest, para pesquisar, sob esta única característica, certo número decasos de distúrbio paranóide que tinham estado sob observa??o. Os pacientes cujas históriasforneceram o material para esta pesquisa incluíam tanto homens quanto mulheres e variavamquanto à ra?a, ocupa??o e posi??o social. Ainda assim, ficamos estupefatos ao descobrir que, emtodos esses casos, uma defesa contra o desejo homossexual era claramente identificável nopróprio centro do conflito subjacente à moléstia, e que fora numa tentativa de dominar umacorrente inconscientemente refor?ada de homossexualismo que todos eles haviam fracassado.Isso certamente n?o era o que havíamos esperado. A paranóia constitui exatamente um distúrbiono qual a etiologia sexual de maneira alguma é óbvia; longe disso, as características notavelmenterelevantes na origem da paranóia, particularmente entre indivíduos do sexo masculino, s?o ashumilha??es e desconsidera??es sociais. Mas, se nos aprofundarmos apenas um pouco mais noassunto, poderemos perceber que o fator realmente eficaz nessas afrontas sociais reside na parteque nelas desempenham os componentes homossexuais da vida emocional. Enquanto o indivíduoage normalmente e é, por conseguinte, impossível perscrutar as profundezas de sua vida psíquica,podemos duvidar que suas rela??es emocionais com o próximo na sociedade tenham algo a vercom a sexualidade, concretamente ou em sua gênese. Mas os delírios nunca deixam de revelarestas rela??es e de remontar os sentimentos sociais às suas raízes num desejo eróticopositivamente sensual. Enquanto foi sadio, também o Dr. Schreber, cujos delírios culminaram poruma fantasia de desejo de natureza inequivocamente homossexuais, n?o havia, segundo afirmamtodos, demonstrado quaisquer sinais de homossexualismo no sentido comum da palavra. Esfor?ar-me-ei agora (e penso que a tentativa n?o é desnecessária nem injustificável) pordemonstrar que o conhecimento dos processos psicológicos, que gra?as à psicanálise hojepossuímos, já nos permite compreender o papel desempenhado por um desejo homossexual nodesenvolvimento da paranóia. Pesquisas recentes dirigiram nossa aten??o para um estádio dodesenvolvimento da libido, entre o auto-erotismo e o amor objetal. Este estádio recebeu o nome denarcisismo. O que acontece é o seguinte: chega uma ocasi?o, no desenvolvimento do indivíduo,em que ele reúne seus instintos sexuais (que até aqui haviam estado empenhados em atividadesauto-eróticas), a fim de conseguir um objeto amoroso; e come?a por tomar a si próprio, seu própriocorpo, como objeto amoroso, sendo apenas subseqüentemente que passa daí para a escolha dealguma outra pessoa que n?o ele mesmo, como objeto. Essa fase eqüidistante entre o auto-erotismo e o amor objetal pode, talvez, ser indispensável normalmente; mas parece que muitaspessoas se demoram por tempo inusitadamente longo nesse estado e que muitas de suas37. características s?o por elas transportadas para os estádios posteriores de seu desenvolvimento.De import?ncia principal no eu (self) do sujeito assim escolhido como objeto amoroso já podem seros órg?os genitais. A linha de desenvolvimento, ent?o, conduz à escolha de um objeto externo comórg?os genitais semelhantes - isto é, a uma escolha objetal homossexual - e daí aoheterossexualismo. As pessoas que se tornam homossexuais manifestas mais tarde, nunca seemanciparam, pode-se presumir, da condi??o obrigatória de que o objeto de sua escolha devepossuir órg?os genitais como os seus; e, com rela??o a isto, as teorias sexuais infantis queatribuem o mesmo tipo de órg?os genitais a ambos os sexos exercem muita influência. [Cf. Freud,1908c.] Após o estádio de escolha objetal heterossexual ter sido atingido, as tendênciashomossexuais n?o s?o, como se poderia supor, postas de lado ou interrompidas; s?osimplesmente desviadas de seu objetivo sexual e aplicadas a novas utiliza??es. Combinam-seagora com partes dos instintos do ego e, como componentes ‘ligados’, ajudam a constituir osinstintos sociais, contribuindo assim como um fator erótico para a amizade e a camaradagem, parao esprit de corps e o amor à humanidade em geral. Qu?o grande é a contribui??o realmentederivada de fontes eróticas (com o objetivo sexual inibido) dificilmente poder-se-ia adivinhar pelasrela??es sociais normais da humanidade. Mas n?o é irrelevante observar que s?o precisamente oshomossexuais manifestos, e entre eles exatamente aqueles que se colocam contra a toler?nciaquanto a atos sensuais, que se distinguem por participa??o particularmente ativa nos interessesgerais da humanidade - interesses que por si mesmo se originaram de uma sublima??o de instintoseróticos. Em meus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade [Ver em [1], 1972], expressei aopini?o de que cada estádio no desenvolvimento da psicossexualidade fornece uma possibilidadede ‘fixa??o’, e, assim, de um ponto disposicional. As pessoas que n?o se libertaramcompletamente do estádio de narcisismo - que, equivale a dizer, têm nesse ponto uma fixa??o quepode operar como disposi??o para uma enfermidade posterior - acham-se expostas ao perigo deque alguma vaga de libido excepcionalmente intensa, n?o encontrando outro escoadouro, possaconduzir a uma sexualiza??o de seus instintos sociais e desfazer assim as sublima??es quehaviam alcan?ado no curso de seu desenvolvimento. Este resultado pode ser produzido porqualquer coisa que fa?a a libido fluir regressivamente (isto é, que causa uma ‘regress?o’): quer, porum lado, a libido se torne colateralmente refor?ada, devido a algum desapontamento com umamulher, ou seja diretamente represada devido a um infortúnio nas rela??es sociais com outroshomens, ambos os casos sendo exemplos de ‘frustra??o’; quer, por outro lado, haja umaintensifica??o geral da libido, de maneira que ela se torne poderosa demais para encontrar umescoadouro ao longo dos canais que já lhe est?o abertos, e, conseqüentemente, irrompa por suasmargens no ponto mais fraco. Visto nossas análises demonstrarem que os paranóicos se esfor?ampor proteger-se contra esse tipo de sexualiza??o de suas catexias sociais instintuais, somoslevados a supor que o ponto fraco em seu desenvolvimento deve ser procurado em algum lugar38. entre os estádios de auto-erotismo, narcisismo e homossexualismo, e que sua disposi??o àenfermidade (que talvez seja suscetível de defini??o mais precisa) deve estar localizada nessaregi?o. Uma disposi??o semelhante teria de ser atribuída aos pacientes que sofrem da demênciaprecoce de Kraepelin ou de (como Bleuler a denominou) esquizofrenia; e esperamos,posteriormente, encontrar pistas que nos permitam remontar às diferen?as entre os dois distúrbios(com referência tanto à forma que assumem quanto ao curso que seguem) a diferen?ascorrespondentes nas fixa??es disposicionais dos pacientes. Assumindo ent?o o ponto de vista de que o que jaz no cerne do conflito, nos casos deparanóia entre indivíduos do sexo masculino, é uma fantasia de desejo homossexual de amar umhomem, certamente n?o esqueceremos que a confirma??o de hipótese t?o importante só podedecorrer da investiga??o de um grande número de exemplos de toda espécie de distúrbioparanóide. Temos, portanto, de estar preparados, se preciso for, para limitar nossa assertiva a umúnico tipo de paranóia. N?o obstante, constitui fato notável que as principais formas de paranóiaconhecidas podem ser todas representadas como contradi??es da proposi??o única ‘eu (umhomem) o amo (um homem)’, e que, na verdade, exaurem todas as maneiras possíveis em quetais contradi??es poderiam ser formuladas. A proposi??o ‘eu (um homem) o amo’ é contraditada por: (a) Delírios de persegui??o, pois eles ruidosamente asseveram: ‘Eu n?o o amo - Eu o odeio.’ Esta contradi??o, que deve ter sido enunciada assim no inconsciente, n?o pode, contudo,tornar-se consciente para um paranóico sob essa forma. O mecanismo de forma??o de sintomasna paranóia exige que as percep??es internas - sentimentos - sejam substituídas por percep??esexternas. Conseqüentemente, a proposi??o ‘eu o odeio’ transforma-se, por proje??o, em outra: ‘Eleme odeia (persegue), o que me desculpará por odiá-lo.’ E, assim, o sentimento inconscientecompulsivo surge como se fosse a conseqüência de uma percep??o externa: ‘Eu n?o o amo - eu o odeio, porque ELE ME PERSEGUE.’ A observa??o n?o deixa lugar para dúvidas de que o perseguidor é alguém que foi outroraamado. (b) Outro elemento é escolhido para a contradi??o na erotomania, que permanecetotalmente ininteligível sob qualquer outro ponto de vista: ‘Eu n?o o amo - eu a amo.’ E, em obediência à mesma necessidade de proje??o, a proposi??o é transformada em: ‘Eunoto que ela me ama.’ ‘Eu n?o o amo - eu a amo, porque ELA ME AMA.’ ? possível a muitos casos de erotomania dar a impress?o de que poderiam sersatisfatoriamente explicados como fixa??es heterossexuais exageradas ou deformadas, se nossaaten??o n?o fosse atraída pela circunst?ncia de que essas afei??es come?am invariavelmente n?opor qualquer percep??o interna de amar, mas por uma percep??o externa de ser amado. Nessa39. forma de paranóia, porém, a proposi??o intermediária ‘eu a amo’ também se pode tornarconsciente, porque a contradi??o entre ela e a proposi??o original n?o é diametral nem t?oirreconciliável como a existente entre amor e ódio; afinal de contas, é possível amar tanto elaquanto ele. Assim, pode acontecer que a proposi??o que foi substituída por proje??o (‘ela meama‘) abra caminho novamente para a proposi??o da ‘língua básica’ ‘eu a amo’. (c) A terceira modalidade pela qual a proposi??o original pode ser contraditada seria pordelírios de ciúme, que podemos estudar nas formas características sob que aparecem em cadasexo. ( ) Delírios alcoólicos de ciúme. O papel desempenhado pelo álcool nesse distúrbio é, sobtodos os aspectos, inteligível. Sabemos que aquela fonte de prazer afasta inibi??es e desfazsublima??es. N?o é raro que o desapontamento com uma mulher leve um homem a beber - masisso significa, geralmente, que ele recorre ao bar e à companhia de homens, que lhe proporcionama satisfa??o emocional que deixou de conseguir de sua mulher em casa. Se ent?o esses homensse tornarem os objetos de uma forte catexia libidinal em seu inconsciente, ele a repelirá com oterceiro tipo de contradi??o: ‘N?o sou eu quem ama o homem - ela o ama’, e suspeita da mulher em rela??o a todos oshomens a quem ele próprio é incitado a amar. A deforma??o por meio da proje??o acha-se necessariamente ausente nesse caso, vistoque, com a mudan?a do sujeito que ama, todo o processo é, de qualquer modo, lan?ado para forado ego. O fato de a mulher amar os homens constitui matéria de percep??o externa para ele, aopasso que os fatos de que ele próprio n?o ama, mas odeia, ou de que ele mesmo ama, n?o esta,mas aquela pessoa, s?o assuntos de percep??o interna. ( ) Os delírios de ciúme nas mulheres s?o exatamente análogos. ‘N?o sou eu quem ama as mulheres - ele as ama.’ A mulher ciumenta suspeita do maridoem rela??o a todas as mulheres por quem ela própria é atraída, devido ao seu homossexualismo eao efeito disposicional de seu narcisismo excessivo. A influência da época da vida em que suafixa??o ocorreu é claramente demonstrada pela sele??o dos objetos amorosos que imputa aomarido; s?o amiúde velhas e inteiramente inapropriadas para uma rela??o amorosa real -revivescência das babás, criadas e meninas que foram suas amigas na inf?ncia, ou das irm?s, queforam suas rivais verdadeiras. Ora, poder-se-ia supor que uma proposi??o composta de três termos, tal como ‘eu o amo‘,só pudesse ser contestada por três maneiras diferentes. Os delírios de ciúme contradizem osujeito, os delírios de persegui??o contradizem o predicado, e a erotomania contradiz o objeto. Narealidade, porém, é possível um quarto tipo de contradi??o - a saber, aquele que rejeita aproposi??o como um todo: ‘N?o amo de modo algum - n?o amo ninguém‘. E visto que, afinal de contas, a libido temde ir para algum lugar, essa proposi??o parece ser o equivalente psicológico da proposi??o: ‘Eu só40. amo a mim mesmo’. Desta maneira, esse tipo de contradi??o dar-nos-ia a megalomania, quepodemos encarar como uma supervaloriza??o sexual do ego e ser assim colocada ao lado dasupervaloriza??o do objeto amoroso, com a qual já nos achamos familiarizados. ? de alguma import?ncia, com rela??o a outras partes da teoria da paranóia, observar quepodemos detectar um elemento de megalomania na maioria das outras formas de distúrbioparanóide. ? justo presumir que a megalomania é essencialmente de natureza infantil e que, àmedida que o desenvolvimento progride, ela é sacrificada às considera??es sociais. Do mesmomodo, a megalomania de um indivíduo nunca é t?o veementemente abafada como quando ele seacha em poder de um amor irresistível: Denn wo die Lieb’ erwachet, stirbt das Ich, der finstere Despot. Após este exame do papel inesperadamente importante desempenhado pelas fantasias dedesejo homossexuais na paranóia, retornemos aos dois fatores em que esperávamos, desde oprincípio, encontrar os sinais característicos da paranóia, a saber, o mecanismo pelo qual ossintomas s?o formados e o mecanismo pelo qual a repress?o é ocasionada [ver em [1]]. Certamente n?o temos direito de come?ar por presumir que estes dois mecanismos s?oidênticos e que a forma??o de sintomas segue o mesmo caminho que a repress?o, cada qualavan?ando ao longo dele, talvez, em dire??o oposta. Tampouco parece haver qualquer grandepossibilidade de que tal identidade exista. N?o obstante, abster-nos-emos de expressar qualqueropini?o sobre o assunto até termos completado nossa pesquisa. A característica mais notável da forma??o de sintomas na paranóia é o processo quemerece o nome de proje??o. Uma percep??o interna é suprimida e, ao invés, seu conteúdo, apóssofrer certo tipo de deforma??o, ingressa na consciência sob a forma de percep??o externa. Nosdelírios de persegui??o, a deforma??o consiste numa transforma??o do afeto; o que deveria tersido sentido internamente como amor é percebido externamente como ódio. Deveríamos sentir-nostentados a encarar esse processo notável como o elemento mais importante na paranóia e delaabsolutamente patognom?nico, se oportunamente n?o nos lembrássemos de duas coisas. Emprimeiro lugar, a proje??o n?o desempenha o mesmo papel em todas as formas de paranóia; e, emsegundo, ela faz seu aparecimento n?o apenas na paranóia mas também sob outras condi??espsicológicas, e de fato é-lhe concedida participa??o regular em nossa atitude para com o mundoexterno. Pois, quando atribuímos as causas de certas sensa??es ao mundo externo, ao invés deprocurá-las (como fazemos no caso dos outros) dentro de nós mesmos, esse procedimento normaltambém merece ser chamado de proje??o. Cientes de que problemas psicológicos mais geraisacham-se envolvidos na quest?o da natureza da proje??o, decidamos adiar sua investiga??o (e,com ela, a do mecanismo da forma??o paranóide de sintomas em geral) para outra ocasi?o, epassemos agora a considerar que idéias podemos reunir sobre o tema do mecanismo darepress?o na paranóia. Gostaria de dizer ao mesmo tempo, para justificar esta renúnciatemporária, que descobriremos que a maneira pela qual o processo de repress?o ocorre acha-se41. muito mais intimamente vinculada à história do desenvolvimento da libido e à disposi??o a que eledá origem, do que a maneira pela qual os sintomas se formam. Na psicanálise, acostumamo-nos a encarar os fen?menos patológicos como derivados, demaneira geral, da repress?o. Se examinarmos mais de perto o que é chamado de ‘repress?o’,encontraremos raz?es para dividir o processo em três fases que s?o facilmente distinguíveis umada outra, conceptualmente. (1) A primeira fase consiste na fixa??o, que é a precursora e condi??o necessária de toda‘repress?o’. A fixa??o pode ser descrita da seguinte maneira: determinado instinto ou componenteinstintual deixa de acompanhar os demais ao longo do caminho normal previsto dedesenvolvimento, e, em conseqüência desta inibi??o em seu desenvolvimento, é deixado para trás,num estádio mais infantil. A corrente libidinal em apre?o comporta-se ent?o, em rela??o aestruturas psicológicas posteriores, como se pertencesse ao sistema do inconsciente, comoreprimida. Já demonstramos [ver em [1]] que essas fixa??es instintuais constituem a base para adisposi??o à enfermidade subseqüente, e podemos agora acrescentar que elas constituem, acimade tudo, a base para a determina??o do resultado da terceira fase da repress?o. (2) A segunda fase da repress?o é a da repress?o propriamente dita - fase à qual foi dada,até aqui, a máxima aten??o. Provém dos sistemas mais altamente desenvolvidos do ego -sistemas capazes de serem conscientes - e pode, na realidade, ser descrita como um processo de‘pós-press?o’. Aparenta ser um processo essencialmente ativo, ao passo que a fixa??o parece defato constituir um retardamento passivo. Podem sofrer repress?o que os derivados psíquicos dosinstintos retardados originais, quando estes se refor?am e entram assim em conflito com o ego (ouinstintos egossint?nicos), quer tendências psíquicas que, por outras raz?es, despertaram uma forteavers?o. Mas esta avers?o, em si própria, n?o conduziria à repress?o, a menos que algumavincula??o tenha sido estabelecida e entre as tendências indesejáveis que têm de ser reprimidas eaquelas que já o foram. Onde isso acontece, a repulsa exercida pelo sistema consciente e aatra??o exercida pelo inconsciente tendem na mesma dire??o, no sentido de ocasionar arepress?o. As duas possibilidades que s?o aqui isoladamente tratadas podem, talvez, ser menosnitidamente diferen?adas na prática, e a distin??o entre elas pode depender simplesmente domaior ou menor grau em que os instintos primariamente reprimidos contribuem para o resultado. (3) A terceira fase, e a mais importante no que se refere aos fen?menos patológicos, é ado fracasso da repress?o, da irrup??o, do retorno do reprimido. Esta irrup??o toma seu impulso doponto de fixa??o, e implica uma regress?o do desenvolvimento libidinal a esse ponto. Já aludimos [Ver a partir de [1].] à multiplicidade dos pontos possíveis de fixa??o; existemna realidade, tantos quantos s?o os estádios no desenvolvimento da libido. Devemos estarpreparados para encontrar uma multiplicidade semelhante de mecanismos da repress?opropriamente dita e de mecanismos de irrup??o (ou de forma??o de sintomas), e já podemoscome?ar a suspeitar que n?o será possível remontar todas essas multiplicidades somente àhistória desenvolvimental da libido.42. ? fácil perceber que esse exame está come?ando a invadir o problema da ‘escolha daneurose’, que, contudo, n?o pode ser abordado até que um trabalho preliminar de outro tipo tenhasido realizado. Mantenhamos em mente, por enquanto, que já tratamos da fixa??o, e que adiamoso assunto da forma??o de sintomas; e restrinjamo-nos à quest?o de saber se a análise do caso deSchreber lan?a alguma luz sobre o mecanismo da repress?o propriamente dita que predomina naparanóia. No clímax de sua moléstia, sob a influência de vis?es que eram ‘parcialmente de caráterterrificante, mas em parte, também, de grandeza indescritível’ (73), Schreber convenceu-se daiminência de uma grande catástrofe, do fim do mundo. Vozes disseram-lhe que o trabalho dos14.000 anos passados viera agora a dar em nada, e que o período de vida concedido à Terra eraapenas 212 anos mais (71); durante a última parte de sua estada na clínica de Flechsig, acreditouque esse período já havia passado. Ele próprio era ‘o único homem real deixado vivo’ e as poucasformas humanas que ainda via - o médico, os assistentes, os outros pacientes - explicava-as como‘miraculadas, homens apressadamente improvisados.’ Ocasionalmente, a corrente inversa desentimento também aparecia: foi colocado em suas m?os um jornal no qual havia um comunicadode sua própria morte (81); ele próprio existia sob forma secundária, inferior, e sob esta formasecundária, certo dia tranqüilamente faleceu (73). Mas a forma de seu delírio, em que seu ego eramantido e o mundo sacrificado, mostrou ser, de longe, a mais poderosa. Ele tinha várias teoriassobre a causa da catástrofe. Certa ocasi?o, teve em mente um processo de glacia??o devido aretirada do Sol; em outra, seria a destrui??o por um terremoto, ocorrência na qual ele, com suacapacidade de ‘vidente de espíritos’, deveria representar papel dominante, tal como se alega queoutro vidente desempenhou no terremoto de Lisboa de 1755. (91.) Ou, ent?o, Flechsig era oculpado, visto que através de suas artes mágicas semeara o medo e o terror entre os homens,destruíra os fundamentos da religi?o e disseminara distúrbios nervosos gerais e imoralidades, demodo que pestilências devastadoras se haviam abatido sobre a humanidade. (91.) Em qualquercaso, o fim do mundo era a conseqüência do conflito que irrompera entre ele Flechsig ou, deacordo com a etiologia adotada na segunda fase de seu delírio, do vínculo indissolúvel que seformara entre ele e Deus; era, na realidade, o resultado inevitável de sua doen?a. Anos após,quando o Dr. Schreber retornou à sociedade humana, e n?o podia encontrar os livros, naspartituras musicais ou nos outros artigos de uso cotidiano que lhe caíam mais uma vez nas m?ostra?o algum que corroborasse sua teoria de que tinha havido um hiato de imensa dura??o nahistória da humanidade, ele admitiu que sua opini?o n?o era mais sustentável: ‘N?o posso maisevitar reconhecer que, considerado externamente, tudo está como costumava ser. Se, todavia, n?opode ter havido uma profunda mudan?a interna é uma quest?o a que retornarei mais tarde.’ (84-5.)Ele n?o se podia permitir duvidar que, durante sua moléstia, o mundo havia chegado ao fim e que,apesar de tudo, aquele que agora via diante de si era um mundo diferente. Uma catástrofe mundial deste tipo n?o é infreqüente durante o estádio agitado em outroscasos de paranóia. Se nos basearmos em nossa teoria da catexia libidinal, e seguirmos a sugest?o43. dada pela vis?o que Schreber tinha das outras pessoas como ‘homens apressadamenteimprovisados’, n?o acharemos difícil explicar estas catástrofes. O paciente retirou das pessoas deseu ambiente, e do mundo externo em geral, a catexia libidinal que até ent?o havia dirigido paraelas. Assim, tudo tornou-se indiferente e irrelevante para ele, e tem de ser explicado através deuma racionaliza??o secundária, como ‘miraculado, apressadamente improvisado’. O fim do mundoé a proje??o dessa catástrofe interna; seu mundo subjetivo chegou ao fim, desde o retraimento deseu amor por ele. Após Fausto ter pronunciado as maldi??es que o liberam do mundo, o coro dos Espíritoscanta: Weh! Weh! Du hast sie zerstort, die sch?ne Welt, mit m?chtiger Faust! sie stürzt, sie zerf?llt! Ein Halbgott hat sie zerschlagen! ………………………………… M?chtiger der Erdens?hne, Pr?chtiger baue sie wieder, in deinem Busen baue sie auf! E o paranóico constrói-o de novo, n?o mais esplêndido, é verdade, mas pelo menos demaneira a poder viver nele mais uma vez. Constrói-o com o trabalho de seus delírios. A forma??odelirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa derestabelecimento, um processo de reconstru??o. Tal reconstru??o após a catástrofe é bemsucedida em maior ou menor grau, mas nunca inteiramente; nas palavras de Schreber, houve uma‘profunda mudan?a interna’ no mundo. Mas o indivíduo humano recapturou uma rela??o, efreqüentemente uma rela??o muito intensa, com as pessoas e as coisas do mundo, ainda que estaseja agora hostil, onde anteriormente fora esperan?osamente afetuosa. Podemos dizer, ent?o, queo processo da repress?o propriamente dita consiste num desligamento da libido em rela??o àspessoas - e coisas - que foram anteriormente amadas. Acontece silenciosamente; dele n?orecebemos informa??es, só podemos inferi-lo dos acontecimentos subseqüentes. O que se imp?et?o ruidosamente à nossa aten??o é o processo de restabelecimento, que desfaz o trabalho darepress?o e traz de volta novamente a libido para as pessoas que ela havia abandonado. Naparanóia, este processo é efetuado pelo método da proje??o. Foi incorreto dizer que a percep??osuprimida internamente é projetada para o exterior; a verdade é, pelo contrário, como agorapercebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora. O exame completo do44. processo de proje??o, que adiamos para outra ocasi?o, esclarecerá as dúvidas remanescentessobre o assunto. Entrementes, contudo, constitui fonte de alguma satisfa??o descobrir que o conhecimentoque acabamos de adquirir nos envolve em várias argumenta??es adicionais. (1) Nossa primeira reflex?o revelar-nos-á que n?o é possível que esse desligamento dalibido ocorra exclusivamente na paranóia; tampouco pode acontecer que, em outra parte queocorra, tenha as mesmas conseqüências desastrosas. ? bem possível que um desligamento dalibido seja o mecanismo essencial e regular de toda repress?o. N?o podemos ter conhecimentopositivo sobre esse ponto até que as outras perturba??es que se baseavam na repress?o tenhamsido similarmente examinadas. Mas é certo que, na vida mental normal (e n?o apenas em períodosde luto), estamos constantemente desligando nossa libido, desta maneira, de pessoas ou de outrosobjetos, sem cairmos enfermos. Quando Fausto se libertou do mundo pela enuncia??o de suasmaldi??es, o resultado n?o foi uma paranóia ou qualquer outra neurose, mas simplesmente umaexata estrutura geral da mente. Por conseguinte, o desligamento da libido n?o pode, em si próprio,ser o fator patogênico na paranóia; tem de haver alguma característica especial que distinga odesligamento paranóico da libido dos outros tipos. N?o é difícil sugerir qual possa ser essacaracterística. Que emprego se faz da libido após ela ter sido liberada pelo processo dedesligamento? Uma pessoa normal come?ará imediatamente a procurar um substituto para aliga??o perdida e, até que esse substituto seja encontrado, a libido liberada será mantida emsuspenso dentro da mente, e aí dará origem a tens?es e alterará o seu humor. Na histeria, a libidoliberada transforma-se em inerva??es somáticas ou em ansiedade. Na paranóia, porém, aevidência clínica vai demonstrar que a libido, após ter sido retirada do objeto, é utilizada de modoespecial. Recordar-se-á [ver em [1]] que a maioria dos casos de paranóia exibe tra?os demegalomania, e que a megalomania pode, por si mesma, constituir uma paranóia. Disto pode-seconcluir que, na paranóia, a libido liberada vincula-se ao ego e é utilizada para o engrandecimentodeste. Faz-se assim um retorno ao estádio do narcisismo (que reconhecemos como estádio dodesenvolvimento da libido), no qual o único objeto sexual de uma pessoa é seu próprio ego. Combase nesta evidência clínica, podemos supor que os paranóicos trouxeram consigo uma fixa??o noestádio do narcisismo, e podemos asseverar que a extens?o do retrocesso do homossexualismosublimado para o narcisismo constitui medida da quantidade de regress?o característica daparanóia. (2) Obje??o igualmente plausível pode-se basear na história clínica de Schreber, bemcomo em muitas outras. Pois pode-se alegar que os delírios de persegui??o (que eram dirigidoscontra Flechsig) inquestionavelmente surgiram em data anterior à da fantasia de fim do mundo; demaneira que o que se sup?e ter sido um retorno do reprimido, realmente precedeu a própriarepress?o … o que é absurdo patente. A fim de enfrentar esta obje??o, temos de abandonar ocampo elevado da generaliza??o e descer à considera??o pormenorizada das circunst?ncias45. concretas, que s?o, indubitavelmente, muitíssimo mais complicadas. Temos de admitir apossibilidade de que um desligamento da libido como o que estamos examinando pudesse sertanto parcial - um recuo a partir de algum complexo isolado - quanto geral. Um desligamentoparcial seria, de longe, o mais comum dos dois, e deveria preceder o geral, visto que, inicialmente,é apenas para o desligamento parcial que as influências da vida fornecem motivo. O processopode ent?o interromper-se no estádio de um desligamento parcial ou pode estender-se ao geral,que em alta voz proclamará sua presen?a nos sintomas da megalomania. Dessa maneira, odesligamento da libido em rela??o à figura de Flechsig pode, n?o obstante, ter constituído oelementar no caso de Schreber; foi imediatamente seguido pelo aparecimento do delírio, quetrouxe a libido de volta novamente para Flechsig (embora com sinal negativo, para assinalar o fatode que a repress?o se efetuara) e anulou assim o trabalho da repress?o. E ent?o a batalha darepress?o irrompe de novo, mas desta vez com armas mais poderosas. Na propor??o em que oobjeto de disputa se tornou a coisa mais importante do mundo externo, tentando, por um lado,arrastar a totalidade da libido para si, e, por outro, mobilizando todas as resistências contra si,assim também a luta que se trava em torno desse objeto único tornou-se cada vez maiscomparável a um conflito geral; até que, por fim, uma vitória para a for?as da repress?o expressou-se na convic??o de que o mundo chegara ao fim e de que somente o eu (self) sobrevivia. Sepassarmos em revista as engenhosas constru??es erigidas pelo delírio de Schreber no campo dareligi?o - a hierarquia de Deus, as almas provadas, as antes-salas do Céu, o Deus inferior e osuperior - podemos avaliar, retrospectivamente, a quantidade de sublima??es transformadas emruínas pela catástrofe do desligamento geral da libido. (3) Uma terceira considera??o que surge das opini?es desenvolvidas nestas páginas é aseguinte: devemos supor que um desligamento geral da libido do mundo externo constitua agenteeficaz o bastante para explicar o ‘fim do mundo’? Ou as catexias pelo ego ainda efetivas n?oteriam sido suficientes para manter rapport- com o mundo externo? Para enfrentar esta dificuldade,teríamos ou de presumir que aquilo que chamamos de catexia libidinal (isto é, um interesse queemana de fontes eróticas) coincide com o interesse em geral, ou de considerar a possibilidade deque um distúrbio muito disseminado na distribui??o da libido possa ocasionar perturba??ocorrespondente nas catexias pelo ego. Mas estes s?o problemas que ainda nos achamosinteiramente impotentes e incompetentes para resolver. Seria diferente se pudéssemos partir dealguma teoria bem fundamentada dos instintos, mas, na realidade, nada disso possuímos à nossadisposi??o. Consideramos o instinto como sendo o conceito sobre a fronteira entre o simático e omental, e vemos nele o representante psíquico de for?as org?nicas. Ademais, aceitamos adistin??o popular entre instintos do ego e instinto sexual, pois tal distin??o parece concordar com aconcep??o biológica de que o indivíduo possui dupla orienta??o, visando, por um lado, àautopreserva??o e, por outro, à preserva??o das espécies. Além disso, porém, existem apenashipóteses, que encampamos - e estamos inteiramente prontos a abandonar de novo - para que nos46. ajudassem a encontrar orienta??o no caso dos processos mais obscuros da mente. O queesperamos das investiga??es psicanalíticas dos processos patológicos mentais é exatamente quenos levem a algumas conclus?es sobre quest?es vinculadas à teoria dos instintos. Estasinvestiga??es, contudo, acham-se no come?o, e s?o realizadas apenas por pesquisadoresisolados, de maneira que as esperan?as que nelas depositamos devem ainda permanecerirrealizadas. N?o podemos mais p?r de lado a possibilidade de que distúrbios da libido reajamsobre as catexias pelo ego. Na verdade, é provável que processos deste tipo constituam acaracterística istintiva das psicoses. O quanto de tudo isso se pode aplicar à paranóia é impossíveldizer presentemente. Existe uma considera??o, contudo, que gostaria de acentuar. N?o se podeasseverar que um paranóico, mesmo no auge da repress?o, retire completamente seu interesse domundo externo - como se julga ocorrer em alguns outros tipos de psicose alucinatória (tais como aamência de Meynert). O paranóico percebe o mundo externo e leva em considera??o quaisqueraltera??es que nele possam acontecer, e o efeito que aquele lhe causa estimula-o a inventarteorias explanatórias (tais como os ‘homens apressadamente improvisados’, de Schreber). Parece-me, portanto, muito mais provável que a rela??o alterada do paranóico com o mundo deva serexplicada inteira ou principalmente pela perda de seu interesse libidinal. (4) ? impossível evitar perguntar, em vista da estreita vincula??o entre os dois distúrbios,até onde esta concep??o de paranóia afetará a nossa concep??o de demência precoce. Sou deopini?o que Kraepelin estava inteiramente justificado em tomar a medida de separar grande partedo que até ent?o havia sido chamado de paranóia e fundi-la, junto com a catatonia e certas outrasformas de doen?a, numa nova entidade clínica - embora ‘demência precoce’ fosse um nomeparticularmente infeliz de se escolher para ela. A designa??o escolhida por Bleuler para o mesmogrupo de formas - ‘esquizofrenia’ - acha-se também exposta à obje??o, de que o nome pareceapropriado contanto que esque?amos seu significado literal, pois, de outro modo, ele criapreven??o contra o assunto, visto basear-se numa característica da moléstia postuladateoricamente - característica, além disso, que n?o pertence exclusivamente a essa doen?a, e que,à luz de outras considera??es, n?o pode ser encarada como sendo a essencial. Em geral, contudo,n?o s?o de muito grande import?ncia as denomina??es, que damos aos quadros clínicos. O queme parece mais essencial é que a paranóia deve ser mantida com um tipo clínico independente,por mais freqüentemente que o quadro que ofere?a possa ser complicado pela presen?a decaracterísticas esquizofrênicas. Do ponto de vista da teoria da libido, embora se assemelhe àdemência precoce na medida em que a repress?o propriamente dita em ambas as moléstias teria omesmo aspecto principal - desligamento da libido, juntamente com sua regress?o para o ego -, elase distinguiria da demência precoce por ter sua fixa??o disposicional diferentemente localizada epor possuir um mecanismo diverso para o retorno do reprimido (isto é, para a forma??o desintomas). Parecer-me-ia plano mais conveniente dar à demência precoce o nome de parafrenia.Este termo n?o possui conota??o especial e serviria para indicar um relacionamento com aparanóia (nome que n?o pode ser modificado) e, além disso, relembraria a hebefrenia, entidade47. que hoje se acha fundida com a demência precoce. ? verdade que o nome já foi proposto paraoutros fins, mas isto n?o precisa nos preocupar, visto que as aplica??es alternativas ainda n?opassaram para uso geral. Abraham muito convincentemente demonstrou que o afastamento da libido do mundoexterno é uma característica particular e claramente marcada da demência precoce. Destacaracterística inferimos que a repress?o é efetuada por meio do desligamento da libido. Aqui, maisuma vez, podemos considerar a fase de alucina??es violentas como uma luta entre a repress?o euma tentativa de restabelecimento, por devolver a libido novamente a seus objetos. [Cf. em [1]].Jung, com extraordinário acume analítico, percebeu que os delírios (delíria) e estereótipos motoresque ocorrem nessa perturba??o s?o os resíduos de antigas catexias objetais, que se apegam comgrande persistência. Essa tentativa de restabelecimento, que os observadores equivocadamentetomam pela própria doen?a, n?o faz uso da proje??o, como na paranóia, mas emprega ummecanismo alucinatório (histérico). Este é um dos principais aspectos em que a demência precocedifere da paranóia e esta diferen?a pode ser geneticamente explicada a partir de outro ?ngulo. Asegunda diferen?a é demonstrada pelo resultado da doen?a naqueles casos em que o processon?o permaneceu demasiadamente restrito. O prognóstico, em geral, é mais desfavorável do quena paranóia. A vitória fica com a reconstru??o. A regress?o estende-se n?o simplesmente aonarcisismo (manifestando-se sob a forma de megalomania), mas a um completo abandono doamor objetal e um retorno ao auto-erotismo infantil. A fixa??o disposicional deve, portanto, achar-se situada mais atrás do que na paranóia, e residir em algum lugar no início do curso dodesenvolvimento entre o auto-erotismo e o amor objetal. Além disso, n?o é de modo algumprovável que impulsos homossexuais, t?o freqüentemente - talvez invariavelmente - encontradosna paranóia, desempenham papel igualmente importante na etiologia dessa enfermidade muitomais abrangente, a demência precoce. Nossas hipóteses quanto às fixa??es disposicionais na paranóia e na parafrenia tornamfácil perceber que um caso pode come?ar por sintomas paranóides e, apesar disso, transformar-seem demência precoce, e que fen?menos paranóides e esquizofrênicos podem achar-secombinados em qualquer propor??o. E podemos compreender como um quadro clínico como o deSchreber pode ocorrer, e merecer o nome de demência paranóide, a partir do fato de que, naprodu??o de uma fantasia de desejo e de alucina??es, ele apresenta tra?os parafrênicos, enquantoque, na causa ativadora, no emprego do mecanismo da proje??o, e no desfecho, exibe um caráterparanóide. Porque é possível que diversas fixa??es sejam abandonadas no curso dodesenvolvimento, e cada uma delas, sucessivamente, pode permitir uma irrup??o da libido quehavia sido impelida para fora - come?ando talvez com as últimas fixa??es adquiridas, e passando,à medida que a moléstia se desenvolve, às originais, que se acham mais perto do ponto de partida.Gostaríamos de saber a que condi??es o resultado relativamente favorável do presente caso sedeve; pois n?o podemos de bom grado atribuir toda a responsabilidade pelo desfecho a algo t?ocasual quanto a ‘melhora devido à mudan?a de domicílio’, que se estabeleceu após a remo??o do48. paciente da clínica de Flechsig. Mas nosso conhecimento insuficiente das circunst?ncias íntimasda história clínica torna impossível fornecer resposta a essa interessante quest?o. Pode-sesuspeitar, contudo, que aquilo que capacitou Schreber a reconciliar-se com sua fantasiahomossexual, e possibilitou à sua moléstia terminar em algo que se aproxima de umrestabelecimento, pode ter sido o fato de que seu complexo paterno se achava, principalmente,afinado de maneira positiva, e que, na vida real, os anos finais de seu relacionamento com um paiexcelente provavelmente n?o foram tempestuosos. Visto n?o temer a crítica dos outros nem esquivar-me de criticar a mim próprio, n?o tenhomotivos para evitar a men??o de uma semelhan?a que tem possibilidade de prejudicar nossa teoriada libido na opini?o de muitos de meus leitores. Os ‘raios de Deus’ de Schreber, que seconstituíam de uma condensa??o de raios de Sol, fibras nervosas e espermatozóides [ver em [1]],nada mais s?o, na realidade, que uma representa??o concreta e uma proje??o para o exterior decatexias libidinais, e emprestam assim a seus delírios uma conformidade marcante com nossateoria. A cren?a de que o mundo deveria acabar porque seu ego estava atraindo todos os raiospara si, a preocupa??o ansiosa num período posterior, durante o processo de reconstru??o, de queDeus rompesse Sua vincula??o de raios com ele - esses e muitos outros pormenores da estruturadelirante de Schreber soam quase como percep??es endo-psíquicas dos processos cuja existênciapresumi nestas páginas, como base de nossa explica??o da paranóia. Posso, n?o obstante,invocar um amigo e colega especialista para testemunhar que desenvolvi minha teoria da paranóiaantes de me familiarizar com o conteúdo do livro de Schreber. Compete ao futuro decidir se existemais delírio em minha teoria do que eu gostaria de admitir, ou se há mais verdade no delírio deSchreber do que outras pessoas est?o, por enquanto, preparadas para acreditar. Por fim, n?o posso concluir o presente trabalho - que, mais uma vez, constitui apenasfragmento de um todo maior - sem prenunciar as duas teses principais no sentido de cujoestabelecimento a teoria da libido das neuroses e das psicoses está avan?ando: a saber, que asneuroses surgem, principalmente, de um conflito entre o ego e o instinto sexual, e que as formasque elas assumem guardam a marca do curso do desenvolvimento seguido pela libido - e peloego. P?S-ESCRITO (1912 [1911]) Ao lidar com a história clínica do Senatspr?sident Schreber, propositadamente restringi-mea um mínimo de interpreta??o; e sinto-me confiante de que todo leitor com um conhecimento depsicanálise terá aprendido, a partir do material que apresentei, mais do que foi explicitamenteafirmado por mim, e que n?o terá encontrado dificuldade em juntar mais os fios e em chegar aconclus?es que apenas insinuei. Por um feliz acaso, o mesmo número da revista em que meupróprio artigo apareceu mostrou que a aten??o de alguns outros colaboradores fora dirigida para aautobiografia de Schreber e tornou fácil adivinhar quanto material mais resta a ser coletado do49. conteúdo simbólico das fantasias e delírios desse talentoso paranóico. Desde que publiquei meu trabalho sobre Schreber, uma aquisi??o fortuita de conhecimentocolocou-me em posi??o de apreciar mais adequadamente uma de suas cren?as delirantes e dereconhecer a riqueza de sua rela??o com a mitologia. Mencionei em [1] a estranha rela??o dopaciente com o Sol e fui levado a explicar este último como um ‘símbolo paterno’ sublimado. O Solcostumava falar-lhe em linguagem humana e assim se revelou a ele como ser vivo. Schreber tinhao hábito de vituperá-lo e de gritar-lhe amea?as; declara, além disso, que quando se detinha aencará-lo e falava alto, seus raios empalideciam perante ele. Após seu ‘restabelecimento’, gaba-sede poder olhá-lo fixamente sem qualquer dificuldade e sem ficar mais que ligeiramente ofuscado,coisa que, naturalmente, ter-lhe-ia sido impossível previamente. ? a este privilégio delirante de ser capaz de olhar fixamente o Sol sem ficar ofuscado que ointeresse mitológico se prende. Lemos em Reinach que os autores de histórias naturais daantigüidade atribuíam esse poder somente à águia, que, como moradora das mais altas regi?es doar, era colocada em rela??o especialmente íntima com os céus, com o Sol e com o rel?mpago.Aprendemos das mesmas fontes, ademais, que a águia submete seus filhotes a um teste, antes dereconhecê-los como sua descendência legítima: a menos que consigam olhar para o Sol sempiscar, s?o arrojados para fora do ninho. N?o pode haver dúvida sobre o significado deste mito animal. ? certo que ele estásimplesmente atribuindo a animais algo que constitui costume sagrado entre os homens. Oprocesso usado pela águia com seus filhotes é um ordálio, teste de linhagem, tal como étransmitido das mais diversas ra?as da antigüidade. Assim, os celtas, que viviam nas margens doReno, costumavam confiar seus bebês recém-nascidos às águas do rio, a fim de determinar seeles eram verdadeiramente do seu próprio sangue. O cl? dos psilos, que habitavam o que hoje éTrípoli, gabava-se de serem descendentes de serpentes e costumavam expor os filhos ao contatodestas; aqueles que eram filhos verdadeiramente nascidos do cl? n?o eram picados ourestabeleciam-se rapidamente dos efeitos da picada. A suposi??o subjacente a esses testesconduz-nos profundamente aos hábitos totêmicos de pensamento dos povos primitivos. O totem -um animal, ou uma for?a natural, animisticamente concebido, ao qual a tribo remonta sua origem -poupa os membros da tribo como sendo seus próprios filhos, tal como ele próprio é por esteshonrado como ancestral e por eles poupado. Chegamos aqui à considera??o de assuntos que,segundo me parece, podem tornar possível chegar-se a uma explica??o psicanalítica das origensda religi?o. A águia, pois, que faz os filhotes olharem para o Sol e deles exige que n?o sejamofuscados por sua luz, comporta-se como se ela própria fosse descendente do Sol e estivessesubmetendo os filhos a um teste de linhagem. E quando Schreber se gaba de poder olhar para oSol ileso e n?o ofuscado, redescobriu o método mitológico de expressar sua rela??o filial com oSol, e mais uma vez confirmou nossa opini?o de que o Sol é um símbolo do pai. Recordar-se-áque, durante sua enfermidade, Schreber deu livre express?o ao seu orgulho familiar, e que50. descobrimos no fato de sua falta de filhos um motivo humano para ele ter caído enfermo com umafantasia feminina dedesejo [ver em [1]]. Assim, a vincula??o entre seu privilégio delirante e aorigem de sua moléstia se torna evidente. Este breve pós-escrito à minha análise de um paciente paranóide pode servir parademonstrar que Jung tinha excelentes fundamentos para sua asser??o de que as for?as criadorasde mitos da humanidade n?o se acham extintas, mas que, até o dia de hoje, originam nasneuroses os mesmos produtos psíquicos que originaram nas mais remotas eras passadas.Gostaria de retomar uma sugest?o que eu próprio fiz há algum tempo, e acrescentar que a mesmaé válida para as for?as que constroem as religi?es. E sou de opini?o que em breve chegará a horapropícia para efetuarmos a amplia??o de uma tese que há muito tempo foi sustentada porpsicanalistas, e completar o que até aqui teve apenas aplica??o individual e ontogenéticaacrescentando-lhe o correspondente antropológico, que deve ser concebido filogeneticamente.‘Nos sonhos e nas neuroses”, assim dizia nossa tese, ‘deparamos mais uma vez com a crian?a eas peculiaridades que caracterizam suas modalidades de pensamento e sua vida emocional.’ ‘Edeparamos também com o selvagem‘, podemos agora acrescentar, ‘com o homem primitivo, talcomo se nos revela à luz das pesquisas da arqueologia e da etnologia.’ ARTIGOS SOBRE T?CNICA (1911-1915 [1914])51. INTRODU??O DO EDITOR INGL?S Em sua contribui??o a Estudos sobre a Histeria (1895d), Freud forneceu um relato muitocompleto do procedimento psicanalítico que havia desenvolvido com base nas descobertas deBreuer. Este pode ser descrito como a técnica de ‘press?o’ e ainda incluía consideráveiselementos de sugest?o, embora estivesse avan?ando rapidamente no sentido daquele que cedoele deveria chamar de método ‘psicanalítico’. Um exame da rela??o dos escritos técnicos de Freud,publicada adiante (ver em [1]), mostrará que, depois desse, a n?o ser por duas descri??es muitosuperficiais datadas de 1903 e 1904, ele n?o publicou nenhuma descri??o geral de sua técnica pormais de 15 anos. O pouco que sabemos de seus métodos durante este período tem de ser inferidoprincipalmente de observa??es ocasionais - por exemplo, em A interpreta??o de Sonhos (1900a) -e mais particularmente do que é revelado em suas três principais histórias clínicas do período,‘Dora’ (1905e [1901]), ‘Little Hans’ (1909b) e o “Rat Man’ (1909d). (As duas últimas,incidentalmente, muito próximo do final deste período de relativo silêncio.) Informa-nos o Dr. ErnestJones (1955, 258 e segs.) que já em 1908 Freud alimentava a idéia de escrever uma AllgemeineTechnik der Psychoanalyse (Exposi??o Geral da Técnica Psicanalítica). Deveria ter cerca de 50páginas, e 36 destas já haviam sido escritas ao final do ano. Neste ponto, porém, houve umainterrup??o, e ele decidiu adiar-lhe o término para as férias de ver?o de 1909. Quando estaschegaram, porém, havia o artigo do ‘Rat Man’ para completar e a visita aos Estados Unidos apreparar, e o trabalho sobre técnica foi mais uma vez deixado de lado. N?o obstante, durante essemesmo ver?o, Freud disse ao dr. Jones que estava planejando ‘um pequeno memorando sobremáximas e normas de técnicas’, que deveria ser distribuído privadamente apenas entre os seusmais chegados seguidores. Daí em diante, nada mais se ouviu sobre o assunto até o artigo sobre‘As Perspectivas Futuras da Psicanálise’, lido por ele no final de mar?o do ano seguinte para oCongresso de Nuremberg (1910d). Nesse trabalho, que aflorava a quest?o da técnica, anunciouFreud que pretendia, ‘em futuro próximo’, produzir uma Allgemeine Methodik der Psychoanalyse(Metodologia Geral da Psicanálise), presumivelmente um trabalho sistemático sobre técnica (Verem [1], 1970). Mais uma vez, porém, a n?o ser pelo comentário crítico sobre análise ‘silvestre’escrito alguns meses mais tarde (1910k), houve um atraso de mais de 18 meses, e foi somente emfins de 1911 que o trabalho foi iniciado, com a publica??o dos seis artigos seguintes. Os quatro princípios deles foram publicados em sucess?o bastante rápida durante os 15meses seguintes (entre dezembro de 1911 e mar?o de 1913). Houve ent?o outra pausa e os doisúltimos trabalhos da série apareceram em novembro de 1914 e janeiro de 1915. Estes dois, porém,foram na realidade terminados por volta do final de julho de 1914, exatamente antes dadeflagra??o da Primeira Guerra Mundial. Embora os seis artigos se achassem assim espalhadospor cerca de dois anos e meio. Freud parece tê-los considerado como formando uma série, comose verá pela nota de rodapé ao quarto artigo (Ver em [1]) e pelo fato de os últimos quatro52. originalmente partilharem um título comum; além disso, reimprimiu-os juntos em sua quartacompila??o de artigos breves, em 1918, sob o título ‘Zur Technik der Psychoanalyse’ (‘Sobre aTécnica da Psicanálise’). Portanto, achamos correto, neste caso, desprezar a cronologia e incluir asérie inteira no presente volume. Embora estes seis artigos abranjam grande número de temas importantes, dificilmentepodem ser descritos como mais exposi??o sistemática da técnica psicanalítica. Representam, noentanto, a abordagem mais aproximada de Freud sobre uma exposi??o desse tipo, pois, nos vinteanos que se seguiram à sua publica??o, ele n?o efetuou mais que um par de contribui??es maisexplícitas ao assunto: um exame dos métodos ‘ativos’ de tratamento, em seu artigo para ocongresso de Budapest (1919a [1918]), e alguns títulos de conselhos práticos sobre interpreta??ode sonhos (1923c). Fora estes, temos de nos apoiar principalmente, como antes, no materialincidental das histórias clínicas, em particular na análise do ‘Wolf Man’ (1918b [1914]), mais oumenos contempor?nea dos presentes artigos. Além disso, há, naturalmente, o longo enunciadodos princípios que fundamentam a terapia psicanalítica nas Conferências XXVII e XXVIII de suasConferências Introdutórias (1916-17), embora dificilmente possa ser encarado como contribui??odireta às quest?es de técnica. Na verdade, foi somente no fim da vida, em 1937, que mais uma vezele retornou a esse tópico, em dois importantes artigos de natureza explicitamente técnica (1937ce 1937d). A relativa escassez de trabalhos de Freud sobre técnica, bem como suas hesita??es edemoras para produzi-los, sugere que havia de sua parte um sentimento de relut?ncia em publicaresse tipo de material. E na verdade parece ter sido este o caso, por vários motivos. Antipatizavacertamente com a idéia de pacientes futuros virem a conhecer demais sobre os pormenores de suatécnica, e dava-se conta de que estes escrutinariam avidamente tudo aquilo que escrevesse sobreo assunto. (Este sentimento é exemplificado por sua proposta, mencionada acima, de restringir acircula??o do trabalho sobre técnica a número limitado de analistas.) Independentemente disso,porém, ele era altamente cético quanto ao valor, para principiantes, do que se poderia descrevercomo ‘Manuais para Jovens Analistas’. ? somente no terceiro e no quarto artigos desta série quealgo semelhante pode ser encontrado. Isto se deveu em parte, como nos diz no artigo ‘Sobre oInício do Tratamento’, ao fato de os fatores psicológicos envolvidos (inclusive a personalidade doanalista) serem complexos e variáveis demais para tornar possíveis regras rígidas e firmes. Taisregras só poderiam ter valor se suas raz?es fossem apropriadamente compreendidas e digeridas;e, de fato, grande parte destes trabalhos é dedicada a uma exposi??o do mecanismo da terapiapsicanalítica e, na verdade, da psicoterapia em geral. Uma vez apreendido este mecanismo,tornava-se possível explicar as rea??es do paciente (e do analista) e formar opini?o sobre osprováveis efeitos e méritos de qualquer artifício técnico específico. Depois de todos os seus estudos sobre técnica, contudo, Freud nunca deixou de insistirque um domínio apropriado do assunto só poderia ser adquirido pela experiência clínica e n?opelos livros. Experiência clínica com pacientes, sem dúvida, mas, acima de tudo, experiência53. clínica oriunda da própria análise do analista. Esta, como Freud cada vez mais se convenceu,constituía a necessidade fundamental de todo psicanalista militante. Apresentou a idéia de formabastante experimental a princípio, tal como, por exemplo, em ‘As Perspectivas Futuras daTerapêutica Psicanalítica’ (1910d), ver em [1], 1970; expressou-a mais definitivamente numtrabalho da presente série (Ver a partir de [2].); e, num de seus últimos trabalhos, ‘AnáliseTerminável e Interminável’ (1937c), estabelece que todo analista deveria, periodicamente, talvez acada cinco anos, reingressar em análise. Os artigos sobre técnica que se seguem têm obviamentede ser lidos sob a impress?o constante desta condi??o orientadora. Finalmente, pode-se observar que, na presente série de artigos, Freud n?o faz referência àquest?o de se a posse de uma qualifica??o médica constitui atributo n?o menos necessário a todopsicanalista. Nestes trabalhos, parece ser tomado como evidente que o analista será um médico eele é assim chamado com muito mais freqüência que o caso contrário: a palavra ‘Arzt‘ - ‘médico’ ou‘doutor’ - encontra-se em toda parte. A primeira publica??o de Freud a abordar o possívelsurgimento de psicanalistas n?o-médicos foi, de fato, contempor?nea do último destes trabalhos eserá encontrada adiante (Ver a partir de [1].), em sua introdu??o a um livro de autoria de Pfister.Seus principais estudos sobre o assunto vieram muito mais tarde na brochure sobre análise leiga(1926e) e no pós-escrito a esta (1927a). Pode-se conjeturar que, se houvesse escrito os presentesartigos em fase posterior de sua carreira, a palavra ‘Arzt‘ teria ocorrido com menos freqüência. Naverdade, nos dois últimos trabalhos sobre técnica (1937c e 1937d), ela n?o aparece de modoalgum; é substituída, em toda a parte, por ‘Analytiker‘ - ‘analista’.54. O MANEJO DA INTERPRETA??O DE SONHOS NA PSICAN?LISE (1911) NOTA DO EDITOR INGL?S DIE HANDHABUNG DER TRAUMDEUTUNG IN DER PSYCOANALYSE (a) EDI??ES ALEM?S: 1911 Zbl. Psychoan., 2, (3), 109-13. 1918 S. K. S. N., 4, 378-85 (1922, 2? ed.) 1924 Technik un Metapsychol., 45-52. 1925 G. S., 6, 45-52. 1931 Neurosenlehre und Technik, 321-8. 1943 G. W., 8, 350-7. (b) TRADU??O INGLESA: ‘The Employment of Dream-Interpretation in Psycho-Analysis’ 1924 C. P., 2, 305-11. (Trad. de Joan Riviere.) A presente tradu??o inglesa é vers?o modificada, com o título ligeiramente alterado, dapublicada em 1924. O artigo foi publicado pela primeira vez em dezembro de 1911. Seu tópico, como o títuloindica, é restrito: relaciona-se aos sonhos apenas como aparecem numa análise terapêutica.Outras constitui??es ao mesmo assunto ser?o encontradas nas Se??es I a VIII de ‘Considera??essobre a Teoria da Interpreta??o de Sonhos’ (1923c). O MANEJO DA INTERPRETA??O DE SONHOS NA PSICAN?LISE55. A Zentralblatt für Psychoanalyse n?o foi planejada apenas para manter os leitoresinformados dos progressos efetuados no conhecimento psicanalítico, e para publicar contribui??esao assunto relativamente breves; visa também a realizar as tarefas adicionais de apresentar aoestudioso um esbo?o claro do que já é conhecido e de economizar tempo e esfor?os dosprincipiantes na prática analítica, oferecendo-lhes instru??es apropriadas. Doravante, portanto,artigos de natureza didática e sobre assuntos técnicos, n?o necessariamente contendo matérianova, aparecer?o também neste periódico. A quest?o de que pretendo agora tratar n?o é a da técnica de interpreta??o de sonhos:nem os métodos pelos quais os sonhos devem ser interpretados nem o emprego de taisinterpreta??es, quando efetuadas, ser?o considerados, mas apenas a maneira pela qual o analistadeve utilizar a arte da interpreta??o de sonhos no tratamento psicanalítico dos pacientes. Existemindubitavelmente maneiras diferentes de trabalhar no assunto, mas por outro lado a resposta aquest?es de técnica em análise nunca é coisa rotineira. Embora haja talvez mais de um bomcaminho a seguir, existem ainda muitíssimos maus, e uma compara??o entre os diversos métodosn?o deixa de ser esclarecedora, mesmo que n?o conduza a uma decis?o em favor de algumespecificamente. Quem passar da interpreta??o de sonhos para a clínica analítica conservará o interesse noconteúdo dos sonhos, e tenderá a interpretar t?o completamente quanto possível cada sonhorelatado pelo paciente. Mas cedo observará que está trabalhando agora sob condi??esinteiramente diversas e que, se tentar levar a cabo sua inten??o, entrará em choque com astarefas mais imediatas do tratamento. Mesmo que o primeiro sonho de uma paciente se mostreadmiravelmente adequado para a introdu??o das primeiras explica??es, outros sonhosprontamente aparecer?o, t?o longos e obscuros, que seu significado completo n?o poderá serextraído no limitado período de um dia de trabalho. Se o médico continuar o trabalho deinterpreta??o durante os dias posteriores, produzir-se-?o, nesse meio tempo, novos sonhos queter?o de ser postos de lado, até que ele possa considerar o primeiro sonho como finalmentesolucionado. A produ??o de sonhos é às vezes t?o copiosa, e o progresso do paciente no sentidode sua compreens?o t?o hesitante, que surgirá no analista a suspeita de que o aparecimento domaterial, dessa maneira, pode ser simplesmente uma manifesta??o da resistência do paciente, quese aproveita da descoberta de que o método é incapaz de dominar o que é assim apresentado.Além do mais, nesse ínterim o tratamento ter-se-á distanciado bastante do presente e terá perdidoo contato com a atualidade. Em oposi??o a tal técnica, levanta-se a regra de que é da maiorimport?ncia para o tratamento que o analista esteja sempre c?nscio da superfície da mente dopaciente, em qualquer momento, que saiba que complexos e resistências est?o ativos nele naocasi?o e que rea??o consciente a eles lhe orientará o comportamento. Quase nunca é corretosacrificar este objetivo terapêutico a um interesse na interpreta??o de sonhos. Qual, ent?o, se tivermos em mente esta regra, deve ser a nossa atitude ao interpretar56. sonhos na análise? Mais ou menos a seguinte. A interpreta??o que possa ser realizada em umasess?o deve ser aceita como suficiente e n?o se deve considerar prejuízo que o conteúdo dosonho n?o seja inteiramente descoberto. No dia seguinte, a interpreta??o do sonho n?o deve serretomada novamente, como coisa natural, até que se tenha tornado evidente que nada mais,nesse meio tempo, abriu caminho para o primeiro plano dos pensamentos do paciente. Dessemodo, nenhuma exce??o, em favor de uma interpreta??o de sonhos interrompida, deve ser feita àregra de que a primeira coisa que vem à cabe?a do paciente é a primeira coisa a ser tratada. Senovos sonhos ocorrem antes que os anteriores tenham sido examinados, as produ??es maisrecentes devem ser atendidas e nenhum constrangimento se precisa sentir por negligenciar asmais antigas. Se os sonhos se tornam por demais difusos e volumosos, toda a esperan?a dedecifrá-los deve ser tacitamente abandonada desde o início. Devemos em geral evitar demonstrarinteresse muito especial na interpreta??o de sonhos, ou despertar no paciente a idéia de que otrabalho se interromperia se ele n?o apresentasse sonhos; de outra maneira, há o perigo de aresistência ser dirigida para a produ??o de sonhos, com a conseqüente cessa??o destes. Pelocontrário, o paciente deve ser levado a crer que a análise invariavelmente encontra material parasua continua??o, independentemente de ele apresentar ou n?o sonhos, ou da aten??o que lhes édedicada. Perguntar-se-á agora se n?o estaremos abandonando material excessivamente valioso,que poderia lan?ar luz sobre o inconsciente, se a interpreta??o de sonhos só puder ser realizadasujeita a tais restri??es de método. A resposta a isto é que a perda de modo algum é t?o grandequanto poderia parecer a um exame superficial do assunto. Inicialmente, tem-se de reconhecerque, em casos de neurose grave, quaisquer produ??es oníricas elaboradas devem, pela naturezadas coisas, ser encaradas como incapazes de solu??o completa. Um sonho deste tipo amiúde sebaseia em todo o material patogênico do caso, ainda desconhecido tanto do médico quanto dopaciente (os chamados ‘sonhos programáticos’ e sonhos biográficos), sendo às vezes equivalentea uma tradu??o, em linguagem onírica, de todo o conteúdo da neurose. Na tentativa de interpretartal sonho, todas as resistências latentes, ainda intocadas, ser?o postas em atividade e logoestabelecer?o um limite à sua compreens?o. A interpreta??o completa deste sonho coincidirá como término de toda a análise; se se tomar nota dele, no início, talvez seja possível compreendê-lo aofinal, muitos meses mais tarde. ? o mesmo que acontece com a elucida??o de um sintoma isolado(o sintoma principal, talvez). ? preciso a análise completa para explicá-lo; no decorrer dotratamento, temos de esfor?ar-nos por apreender primeiro este, depois aquele fragmento dosignificado do sintoma, um após outro, até que possam ser todos reunidos. Semelhantemente, n?ose pode esperar mais de um sonho que ocorre nos primeiros estádios da análise; temos decontentar-nos se a tentativa de interpreta??o traz à luz um único impulso patogênico de desejo. Assim, n?o se abandona nada que se pode obter, se se desiste da idéia de umainterpreta??o de sonhos completa; tampouco nada se perde, via de regra, se interrompemos ainterpreta??o de um sonho relativamente antigo e voltamo-nos para uma mais recente.57. Descobrimos, em ótimos exemplos de sonhos inteiramente analisados, que diversas cenassucessivas de um só sonho podem ter o mesmo conteúdo, o qual pode nelas ser expresso comcrescente clareza, e aprendemos também que diversos sonhos que ocorrem em uma mesma noiten?o passam de tentativas, manifestadas sob várias formas, de representar um só significado. Emgeral, podemos ficar certos de que todo impulso de desejo que cria hoje um sonho reapareceránoutros sonhos, enquanto n?o tiver sido compreendido e retirado do domínio do inconsciente. Porisso acontece freqüentemente que a melhor maneira de completar a interpreta??o de um sonhoseja abandoná-lo e dedicar a aten??o a um sonho novo, que pode conter o mesmo material sobforma possivelmente mais acessível. Sei que é pedir muito, n?o apenas do paciente mas tambémdo médico, esperar que abandonem seus propósitos conscientes durante o tratamento eentreguem-se a uma orienta??o que, apesar de tudo, ainda nos parece ‘acidental’. Mas possoresponder que se é recompensado toda vez que se resolve ter fé nos próprios princípios teóricos ese persuade a n?o discutir a orienta??o do inconsciente ao estabelecer elos de liga??o. Advirto, portanto, que a interpreta??o de sonhos n?o deve ser perseguida no tratamentoanalítico como arte pela arte, mas que seu manejo deve submeter-se àquelas regras técnicas queorientam a dire??o do tratamento como um todo. Ocasionalmente, é natural, pode-se agir de outramaneira e permitir um pouco de liberdade de a??o ao próprio interesse teórico; mas deve-sesempre estar c?nscio do que se está fazendo. Outra situa??o a ser considerada é a que surgiudesde que adquirimos mais confian?a em nossa compreens?o do simbolismo onírico, e n?odependemos tanto das associa??es do paciente. Um intérprete onírico excepcionalmente hábilencontrar-se-á às vezes em posi??o de poder perscrutar cada um dos sonhos de um paciente, semexigir que este passe pelo tedioso e demorado processo de elaborá-los. Um analista desse tipoacha-se assim livre de qualquer conflito entre as exigências da interpreta??o de sonhos e as dotratamento. Além disso, ficará tentado a fazer pleno uso da interpreta??o de sonhos em todaocasi?o, dizendo ao paciente tudo o que detectou em seus sonhos. Assim procedendo, contudo,terá adotado um método de tratamento que se afasta consideravelmente do estabelecido, comoindicarei em rela??o a outro assunto. Os principiantes na clínica psicanalítica, de qualquer modo,s?o aconselhados a n?o tomarem este caso excepcional por modelo. Todo analista se encontra na posi??o do intérprete de sonhos superior que estivemosimaginando, com referência aos primeiríssimos sonhos que os pacientes trazem, antes de teremaprendido algo da técnica de traduzi-los. Estes sonhos iniciais podem ser descritos como n?orefinados; revelam muito ao ouvinte, tal como os sonhos das chamadas pessoas sadias. Surgeent?o a quest?o de saber se o analista deve imediatamente traduzir para o paciente tudo o que lêneles. N?o é este, porém, o lugar para responder a esta quest?o, pois ela evidentemente faz partede outra mais ampla: em que estádio do tratamento e com que rapidez deve o analista deixar opaciente conhecer o que jaz oculto em sua mente? Quanto mais o paciente aprende da prática dainterpreta??o de sonhos, mais obscuros, geralmente, se tornam seus sonhos posteriores. Todo oconhecimento adquirido sobre sonhos serve também para colocar em guarda o processo de58. constru??o onírica. Nas obras ‘científicas’ sobre sonhos, que, apesar de seu repúdio da interpreta??o desonhos, receberam da psicanálise novo estímulo, descobrimos com freqüência que um cuidadoescrupuloso é desnecessariamente concedido à preserva??o acurada do texto do sonho. Sup?e-seque este precise de prote??o contra deforma??es e atritos, nas horas que seguem imediatamenteo despertar. Alguns psicanalistas até, ao darem ao paciente instru??es para anotar cada sonhologo após acordar, n?o parecem confiar consistentemente em seu conhecimento das condi??es deforma??o onírica. No trabalho terapêutico, essa regra é supérflua, e os pacientes alegram-se emfazer uso dela para perturbar o próprio sono e demonstrar grande zelo quando este é inútil. Pois,mesmo que o texto de um sonho seja dessa maneira arduamente salvo do esquecimento, ébastante fácil convencer-nos de que nada foi conseguido para o paciente. N?o surgir?oassocia??es no texto e o resultado será igual ao que haveria se o sonho n?o houvesse sidopreservado. Indubitavelmente, o médico adquiriu um conhecimento que de outro modo n?o teriaconseguido, mas n?o é a mesma coisa se o analista sabe de algo ou se o paciente o sabe; aimport?ncia desta distin??o para a técnica da psicanálise será mais amplamente consideradaalhures. Em conclus?o, mencionarei um tipo específico de sonho que, conforme o caso, ocorreapenas no decurso do tratamento psicanalítico, e pode desconcertar ou desorientar osprincipiantes. Trata-se dos sonhos corroborativos que, por assim dizer, ‘v?o no rastro’; s?ofacilmente acessíveis à análise e sua tradu??o simplesmente apresenta o que o tratamento jáinferiu, durante os últimos dias, do material das associa??es diárias. Quando isto acontece, é comose o paciente houvesse sido amável o bastante para trazer, sob forma onírica, exatamente o quelhe havíamos estado ‘sugerindo’ pouco antes. O analista mais experiente achará sem dúvida difícilatribuir amabilidade desse tipo ao paciente; ele aceita tais sonhos como confirma??es esperadas ereconhece que só s?o observados sob certas condi??es ocasionadas por influência do tratamento.A grande maioria dos sonhos antecipa-se à análise, de maneira que, após subtrair deles tudo quejá é sabido e compreendido, resta ainda uma alus?o mais ou menos clara a algo que até ent?oestivera oculto. A DIN?MICA DA TRANSFER?NCIA (1912) NOTA DO EDITOR INGL?S ZUR DYNAMIK DER ?BERTRAGUNG59. (a) EDI??ES ALEM?S: 1912 Zbl. Psychoan., 2, (4), 167-73. 1918 S. K. S. N., 4, 388-98. (1922, 2? ed.) 1924 Technik und Metapsychol., 53-63. 1925 G. S., 6, 53-63. 1931 Neurosenlehre und Technik, 328-40. 1943 G. W., 8, 364-74. (b) TRADU??O INGLESA: ‘The Dynamics of Transference’ 1924 C. P., 2, 312-22. (Trad. de Joan Riviere.) A presente tradu??o inglesa, da autoria de James Strachey, aparece aqui pela primeiravez. Embora Freud incluísse este artigo (publicado em janeiro de 1912) na série sobre técnica,ele é na verdade mais um exame teórico do fen?meno da transferência e da maneira pela qualesta opera no tratamento analítico. Freud já havia abordado o assunto em breves considera??esao final da história clínica de ‘Dora’ (1905e [1901]), ver em [1], 1972. Tratou dele muito maisamplamente na segunda metade da Conferência XXVII e na primeira metade da ConferênciaXXVIII de suas Conferências Introdutórias (1916-17); e, perto do fim da vida, fez vários importantescomentários sobre o tema no decurso de seu longo artigo ‘Análise Terminável e Interminável’(1937c). A DIN?MICA DA TRANSFER?NCIA O tópico quase inexaurível da transferência foi recentemente tratado por Wilhelm Stekel[1911b] nesse periódico, em estilo descritivo. Gostaria de, nas páginas seguintes, acrescentaralgumas considera??es destinadas a explicar como a transferência é necessariamente ocasionadadurante o tratamento psicanalítico, e como vem ela a desempenhar neste seu conhecido papel. Deve-se compreender que cada indivíduo, através da a??o combinada de sua disposi??oinata e das influências sofridas durante os primeiros anos, conseguiu um método específico própriode conduzir-se na vida erótica - isto é, nas precondi??es para enamorar-se que estabelece, nosinstintos que satisfaz e nos objetivos que determina a si mesmo no decurso daquela. Isso produz oque se poderia descrever como um clichê estereotípico (ou diversos deles), constantementerepetido - constantemente reimpresso - no decorrer da vida da pessoa, na medida em que ascircunst?ncias externas e a natureza dos objetos amorosos a ela acessíveis permitam, e que60. decerto n?o é inteiramente incapaz de mudar, frente a experiências recentes. Ora, nossasobserva??es demonstraram que somente uma parte daqueles impulsos que determinam o cursoda vida erótica passou por todo o processo de desenvolvimento psíquico. Esta parte está dirigidapara a realidade, acha-se à disposi??o da personalidade consciente e faz parte dela. Outra partedos impulsos libidinais foi retida no curso do desenvolvimento; mantiveram-na afastada dapersonalidade consciente e da realidade, e, ou foi impedida de expans?o ulterior, exceto nafantasia, ou permaneceu totalmente no inconsciente, de maneira que é desconhecida pelaconsciência da personalidade. Se a necessidade que alguém tem de amar n?o é inteiramentesatisfeita pela realidade, ele está fadado a aproximar-se de cada nova pessoa que encontra comidéias libidinais antecipadas; e é bastante provável que ambas as partes de sua libido, tanto aparte que é capaz de se tornar consciente quanto a inconsciente, tenham sua cota na forma??odessa atitude. Assim, é perfeitamente normal e inteligível que a catexia libidinal de alguém que se achaparcialmente insatisfeito, uma catexia que se acha pronta por antecipa??o, dirija-se também para afigura do médico. Decorre de nossa hipótese primitiva que esta catexia recorrerá a protótipos, ligar-se-á a um dos clichês estereotípicos que se acham presentes no indivíduo; ou, para colocar asitua??o de outra maneira, a catexia incluirá o médico numa das ‘séries’ psíquicas que o pacientejá formou. Se a ‘imago paterna’, para utilizar o termo adequado introduzido por Jung (1911, 164),foi o fator decisivo no caso, o resultado concordará com as rela??es reais do indivíduo com seumédico. Mas a transferência n?o se acha presa a este protótipo específico: pode surgir tambémsemelhante à imago materna ou à imago fraterna. As peculiaridades da transferência para omédico, gra?as às quais ela excede, em quantidade e natureza, tudo que se possa justificar emfundamentos sensatos ou racionais, tornam-se inteligíveis se tivermos em mente que essatransferência foi precisamente estabelecida n?o apenas pelas idéias antecipadas conscientes, mastambém por aquelas que foram retidas ou que s?o inconscientes. Nada mais haveria a examinar ou com que se preocupar a respeito deste comportamentoda transferência, n?o fosse permanecerem inexplicados nela dois pontos que s?o de interesseespecífico para os psicanalistas. Em primeiro lugar, n?o compreendemos por que a transferência ét?o mais intensa nos indivíduos neuróticos em análise que em outras pessoas desse tipo que n?oest?o sendo analisadas. Em segundo, permanece sendo um enigma a raz?o por que, na análise, atransferência surge como a resistência mais poderosa ao tratamento, enquanto que, fora dela,deve ser encarada como veículo de cura e condi??o de sucesso. Pois nossa experiênciademonstrou - e o fato pode ser confirmado com tanta freqüência quanto o desejarmos - que, se asassocia??es de um paciente faltam, a interrup??o pode invariavelmente ser removida pela garantiade que ele está sendo dominado, momentaneamente, por uma associa??o relacionada com opróprio médico ou com algo a este vinculado. Assim que esta explica??o é fornecida, a interrup??oé removida ou a situa??o se altera, de uma em que as associa??es faltam para outra em que elasest?o sendo retidas. ? primeira vista, parece ser uma imensa desvantagem, para a psicanálise61. como método, que aquilo que alhures constitui o fator mais forte no sentido do sucesso nela setransforme no mais poderoso meio de resistência. Contudo, se examinarmos a situa??o mais deperto, podemos pelo menos dissipar o primeiro de nossos dois problemas. N?o é fato que atransferência surja com maior intensidade e ausência de coibi??o durante a psicanálise que foradela. Nas institui??es em que doentes dos nervos s?o tratados de modo n?o analítico, podemosobservar que a transferência ocorre com a maior intensidade e sob as formas mais indignas,chegando a nada menos que servid?o mental e, ademais, apresentando o mais claro coloridoerótico. Gabriele Reuter, com seus agudos poderes de observa??o, descreveu isso em época naqual n?o havia ainda uma coisa chamada psicanálise, num livro notável, que revela, sob todos osaspectos, a mais clara compreens?o interna (insight) da natureza e gênese das neuroses. Essascaracterísticas da transferência, portanto, n?o devem ser atribuídas à psicanálise, mas sim àprópria neurose. Nosso segundo problema - o problema de saber por que a transferência aparece napsicanálise como resistência - está por enquanto intacto; e temos agora de abordá-lo mais deperto. Figuremos a situa??o psicológica durante o tratamento. Uma precondi??o invariável eindispensável de todo desencadeamento de uma psiconeurose é o processo a que Jung deu onome apropriado de ‘introvers?o’. Isto equivale a dizer: a parte da libido que é capaz de se tornarconsciente e se acha dirigida para a realidade é diminuída, e a parte que se dirige para longe darealidade e é inconsciente, e que, embora possa ainda alimentar as fantasias do indivíduo,pertence todavia ao inconsciente, é proporcionalmente aumentada. A libido (inteiramente ou emparte) entrou num curso regressivo e reviveu as imagos infantis do indivíduo. O tratamentoanalítico ent?o passa a segui-la; ele procura rastrear a libido, torná-la acessível à consciência e,enfim, útil à realidade. No ponto em que as investiga??es da análise deparam com a libido retiradaem seu esconderijo, está fadado a irromper um combate; todas as for?as que fizeram a libidoregredir se erguer?o como ‘resistências’ ao trabalho da análise, a fim de conservar o novo estadode coisas. Pois, se a introvers?o ou regress?o da libido n?o houvesse sido justificada por umarela??o específica entre o indivíduo e o mundo externo - enunciado, em termos mais gerais, pelafrustra??o da satisfa??o - e se n?o se tivesse, no momento, tornado mesmo conveniente, n?o teriaabsolutamente ocorrido. Mas as resistências oriundas desta fonte n?o s?o as únicas ou, emverdade, as mais poderosas. A libido à disposi??o da personalidade do indivíduo esteve sempresob a influência da atra??o de seus complexos inconscientes (ou mais corretamente, das partesdesse complexos pertencentes ao inconsciente), e encontrou num curso regressivo devido ao fatode a atra??o da realidade haver diminuído. A fim de liberá-la, esta atra??o do inconsciente tem deser superada, isto é, a repress?o dos instintos inconscientes e de suas produ??es, queentrementes estabeleceu no indivíduo, deve ser removida. Isto é responsável, de longe, pela maiorparte da resistência, que t?o amiúde faz a doen?a persistir mesmo após o afastamento darealidade haver perdido sua justifica??o temporária. A análise tem de lutar contra as resistênciasoriundas de ambas essas fontes. A resistência acompanha o tratamento passo a passo. Cada62. associa??o isolada, cada ato da pessoa em tratamento tem de levar em conta a resistência erepresenta uma concilia??o entre as for?as que est?o lutando no sentido do restabelecimento e asque se lhe op?em, já descritas por mim. Se acompanharmos agora um complexo patogênico desde sua representa??o noconsciente (seja ele óbvio, sob a forma de um sintoma, ou algo inteiramente indiscernível) até suaraiz no inconsciente, logo ingressaremos numa regi?o em que a resistência se faz sentir t?oclaramente que a associa??o seguinte tem de levá-la em conta a aparecer como uma concilia??oentre suas exigências e as do trabalho de investiga??o. ? neste ponto, segundo prova nossaexperiência, que a transferência entra em cena. Quando algo no material complexivo (no temageral do complexo) serve para ser transferido para a figura do médico, essa transferência érealizada; ela produz a associa??o seguinte e se anuncia por sinais de resistências - por umainterrup??o, por exemplo. Inferimos desta experiência que a idéia transferencial penetrou naconsciência à frente de quaisquer outras associa??es possíveis, porque ela satisfaz a resistência.Um evento deste tipo se repete inúmeras vezes no decurso de um análise. Reiteradamente,quando nos aproximamos de um complexo patogênico, a parte desse complexo capaz detransferência é empurrada em primeiro lugar para a consciência e defendida com a maiorobstina??o. Depois que ela for vencida, a supera??o das outras partes do complexo quase n?oapresenta novas dificuldades. Quanto mais um tratamento analítico demora e mais claramente opaciente se dá conta de que as deforma??es do material patogênico n?o podem, por si próprias,oferecer qualquer prote??o contra sua revela??o, mais sistematicamente faz ela uso de um tipo dedeforma??o que obviamente lhe concede as maiores vantagens - a deforma??o mediante atransferência. Essas circunst?ncias tendem para uma situa??o na qual, finalmente, todo conflitotem de ser combatido na esfera da transferência. Assim, a transferência, no tratamento analítico, invariavelmente nos aparece, desde oinício, como a arma mais forte da resistência, e podemosconcluir que a intensidade e persistênciada transferência constituem efeito e express?o da resistência. Ocupamo-nos do mecanismo datransferência, é verdade, quando o remontamos ao estado de prontid?o da libido, que conservouimagos infantis, mas o papel que a transferência desempenha no tratamento só pode ser explicadose entrarmos na considera??o de suas rela??es com as resistências. Como é possível que a transferência sirva t?o admiravelmente de meio de resistência?Poder-se-ia pensar que a resposta possa ser fornecida sem dificuldade, pois é claro que se tornaparticularmente difícil de admitir qualquer impulso proscrito de desejo, se ele tem de ser reveladodiante desse tipo dá origem a situa??es que, no mundo real, mal parecem possíveis. Mas éprecisamente a isso que o paciente visa, quando faz o objeto de seus impulsos emocionaiscoincidir com o médico. Uma nova considera??o, no entanto, mostra que essa vitória aparente n?opode fornecer a solu??o do problema. Na verdade, uma rela??o de dependência afetuosa ededicada pode, pelo contrário, ajudar uma pessoa a superar todas as dificuldades de fazer uma63. confiss?o. Em situa??es reais análogas, as pessoas geralmente dir?o: ‘Na sua frente, n?o sintovergonha: posso dizer-lhe qualquer coisa.’ Assim, a transferência para o médico poderia, de modoigualmente simples, servir para facilitar as confiss?es, e n?o fica claro por que deve tornar ascoisas mais difíceis. A resposta à quest?o que foi t?o amiúde repetida nestas páginas n?o pode ser alcan?adapor nova reflex?o, mas pelo que descobrimos quando examinamos resistências transferenciaisparticulares que ocorrem durante o tratamento. Percebemos afinal que n?o podemos compreendero emprego da transferência como resistência enquanto pensarmos simplesmente em‘transferência’. Temos de nos resolver a distinguir uma transferência ‘positiva’ de uma ‘negativa’, atransferência de sentimentos afetuosos da dos hostis e tratar separadamente os dois tipos detransferência para o médico. A transferência positiva é ainda divisível em transferência desentimentos amistosos ou afetuosos, que s?o admissíveis à consciência, e transferência deprolongamentos desses sentimentos no inconsciente. Com referência aos últimos, a análisedemonstra que invariavelmente remontam a fontes eróticas. E somos assim levados à descobertade que todas as rela??es emocionais de simpatia, amizade, confian?a e similares, das quaispodemos tirar bom proveito em nossas vidas, acham-se geneticamente vinculadas à sexualidade ese desenvolveram a partir de desejos puramente sexuais, através da suaviza??o de seu objetivosexual, por mais puros e n?o sensuais que possam parecer à nossa autopercep??o consciente.Originalmente, conhecemos apenas objetos sexuais, e a psicanálise demonstra-nos que pessoasque em nossa vida real s?o simplesmente admiradas ou respeitadas podem ainda ser objetossexuais para nosso inconsciente. Assim, a solu??o do enigma é que a transferência para o médico é apropriada para aresistência ao tratamento apenas na medida em que se tratar de transferência negativa ou detransferência positiva de impulsos eróticos reprimidos. Se “removermos’ a transferência por torná-la consciente, estamos desligando apenas, da pessoa do médico, aqueles dois componentes doato emocional; o outro componente, admissível à consciência e irrepreensível, persiste,constituindo o veículo de sucesso na psicanálise, exatamente como o é em outros métodos detratamento. Até este ponto admitimos prontamente que os resultados da psicanálise baseiam-se nasugest?o; por esta, contudo, devemos entender, como o faz Ferenczi (1909), a influencia??o deuma pessoa por meio dos fen?menos transferenciais possíveis em seu caso. Cuidamos daindependência final do paciente pelo emprego da sugest?o, a fim de fazê-lo realizar um trabalhopsíquico que resulta necessariamente numa melhora constante de sua situa??o psíquica. Pode-se levantar ainda a quest?o de saber por que os fen?menos de resistência datransferência só aparecem na psicanálise e n?o em formas indiferentes de tratamento (eminstitui??es, por exemplo). A resposta é que eles também se apresentam nestas outras situa??es,mas têm de ser identificados como tal. A manifesta??o de uma transferência negativa é, narealidade, acontecimento muito comum nas institui??es. Assim que um paciente cai sob o domínioda transferência negativa, ele deixa a institui??o em estado inalterado ou agravado. A transferência64. erótica n?o possui efeito t?o inibidor nas institui??es, visto que nestas, tal como acontece na vidacomum, ela é encoberta ao invés de revelada. Mas se manifesta muito claramente comoresistência ao restabelecimento, n?o, é verdade, por levar o paciente a sair da institui??o - pelocontrário, retém-no aí - mas por mantê-lo a certa dist?ncia da vida. Pois, do ponto de vista dorestabelecimento, é completamente indiferente que o paciente supere essa ou aquela ansiedadeou inibi??o na institui??o; o que importa é que ele fique livre dela também na vida real. A transferência negativa merece exame pormenorizado, que n?o pode ser feito dentro doslimites do presente trabalho. Nas formas curáveis de psiconeurose, ela é encontrada lado a ladocom a transferência afetuosa, amiúde dirigidas simultaneamente para a mesma pessoa. Bleuleradotou o excelente termo ‘ambivalência’ para descrever este fen?meno. Até certo ponto, umaambivalência de sentimento deste tipo parece ser normal; mas um alto grau dela é, certamente,peculiaridade especial de pessoas neuróticas. Nos neuróticos obsessivos, uma separa??oantecipada dos ‘pares de contrários’ parece ser característica de sua vida instintual e uma de suasprecondi??es constitucionais. A ambivalência nas tendências emocionais dos neuróticos é amelhor explica??o para sua habilidade em colocar as transferências a servi?o da resistência. Ondea capacidade de transferência tornou-se essencialmente limitada a uma transferência negativa,como é o caso dos paranóicos, deixa de haver qualquer possibilidade de influência ou cura. Em todas estas reflex?es, porém, lidamos até agora com apenas um dos lados dofen?meno da transferência; temos de voltar nossa aten??o para outro aspecto do mesmo assunto.Todo aquele que fa?a uma aprecia??o correta da maneira pela qual uma pessoa em análise, assimque entra sob o domínio de qualquer resistência transferencial considerável, é arremessada parafora de sua rela??o real com o médico, como se sente ent?o em liberdade para desprezar a regrafundamental da psicanálise, que estabelece que tudo que lhe venha à cabe?a deve sercomunicado sem crítica, como esquece as inten??es com que iniciou o tratamento, e como encaracom indiferen?a argumentos e conclus?es lógicas que, apenas pouco tempo antes, lhe haviamcausado grande impress?o - todo aquele que tenha observado tudo isso achará necessárioprocurar uma explica??o de sua impress?o em outros fatores além dos que já foram aduzidos. Eesses fatores n?o se acham longe; originam-se, mais uma vez, da situa??o psicológica em que otratamento coloca o paciente. No processo de procurar a libido que fugira do consciente do paciente, penetramos noreino do inconsciente. As rea??es que provocamos revelam, ao mesmo tempo, algumas dascaracterísticas que viemos a conhecer a partir do estudo dos sonhos. Os impulsos inconscientesn?o desejam ser recordados da maneira pela qual o tratamento quer que o sejam, mas esfor?am-se por reproduzir-se de acordo com a atemporalidade do inconsciente e sua capacidade dealucina??o. Tal como acontece aos sonhos, o paciente encara os produtos do despertar de seusimpulsos inconscientes como contempor?neos e reais; procura colocar suas paix?es em a??o semlevar em conta a situa??o real. O médico tenta compeli-lo a ajustar esses impulsos emocionais aonexo do tratamento e da história de sua vida, a submetê-los à considera??o intelectual e a65. compreendê-los à luz de seu valor psíquico. Esta luta entre o médico e o paciente, entre o intelectoe a vida instintual, entre a compreens?o e a procura da a??o, é travada, quase exclusivamente,nos fen?menos da transferência. ? nesse campo que a vitória tem de ser conquistada - vitória cujaexpress?o é a cura permanente da neurose. N?o se discute que controlar os fen?menos datransferência representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas n?o se deve esquecerque s?o precisamente eles que nos prestam o inestimável servi?o de tornar imediatos e manifestosos impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente. Pois, quando tudo está dito e feito, éimpossível destruir alguém in absentia ou in effligie. RECOMENDA??ES AOS M?DICOS QUE EXERCEM A PSICAN?LISE (1912) NOTA DO EDITOR INGL?S RATSCHL?GE F?R DEN ARZT BEI DER PSYCHOANALYTISCHEN BEHANDLUNG (a) EDI??ES ALEM?S: 1912 Zbl. Psychoan., 2 (9), 483-9. 1918 S. K. S. N., 4, 399-411. (1922, 2? ed.) 1924 Technik und Metapsychol., 64-75.66. 1925 G. S., 6, 64-75. 1931 Neurosenlehre und Technik, 340-51. 1943 G. W., 8, 376-87. (b) TRADU??O INGLESA: ‘Recommendations for Physicians on the Psycho-AnalyticMethod of Treatment’ 1924 C. P., 2, 323-33. (Trad. de Joan Riviere) A presente tradu??o inglesa, com o título alterado, constitui vers?o modificada dapublicada em 1924. Este artigo apareceu pela primeira vez em junho de 1912. RECOMENDA??ES AOS M?DICOS QUE EXERCEM A PSICAN?LISE As regras técnicas que estou apresentando aqui alcancei-as por minha própria experiência,no decurso de muitos anos, após resultados pouco afortunados me haverem levado a abandonaroutros métodos. Ver-se-á facilmente que elas (ou, pelo menos, muitas delas) podem ser resumidasnum preceito único [cf. em [1]]. Minha esperan?a é que a observa??o delas poupe aos médicosque exercem a psicanálise muito esfor?o desnecessário e resguarde-os contra algumasinadvertências. Devo, contudo, tornar claro que o que estou asseverando é que esta técnica é aúnica apropriada à minha individualidade; n?o me arrisco a negar que um médico constituído demodo inteiramente diferente possa ver-se levado a adotar atitude diferente em rela??o a seuspacientes e à tarefa que se lhe apresenta. (a) O primeiro problema com que se defronta o analista que está tratando mais de umpaciente por dia lhe parecerá o mais árduo. Trata-se da tarefa de lembrar-se de todos osinumeráveis nomes, datas, lembran?as, pormenorizadas e produtos patológicos que cada pacientecomunica no decurso de meses e anos de tratamento, e de n?o confundi-los com materialsemelhante produzido por outros pacientes em tratamento, simult?nea ou previamente. Se nos éexigido analisar seis, oito ou mesmo mais pacientes diariamente, o esfor?o de memória que istoimplica provocará incredulidade, espanto ou até mesmo comisera??o em observadores poucoinformados. De qualquer modo, sentir-se-á curiosidade pela técnica que torna possível dominar talabund?ncia de material, e a expectativa será de que alguns expedientes especiais sejam exigidospara esse fim. A técnica, contudo, é muito simples. Como se verá, ela rejeita o emprego de qualquerexpediente especial (mesmo de tomar notas). Consiste simplesmente em n?o dirigir o reparo paraalgo específico e em manter a mesma ‘aten??o uniformemente suspensa’ (como a denominei) emface de tudo o que se escuta. Desta maneira, poupamos de esfor?o violento nossa aten??o, a qual,de qualquer modo, n?o poderia ser mantida por várias horas diariamente, e evitamos um perigo67. que é inseparável do exercício da aten??o deliberada. Pois assim que alguém deliberadamenteconcentra bastante a aten??o, come?a a selecionar o material que lhe é apresentado; um pontofixar-se-á em sua mente com clareza particular e algum outro será, correspondentemente,negligenciado, e, ao fazer essa sele??o, estará seguindo suas expectativas ou inclina??es. Isto,contudo, é exatamente o que n?o deve ser feito. Ao efetuar a sele??o, se seguir suas expectativas,estará arriscado a nunca descobrir nada além do que já sabe; e, se seguir as inclina??es,certamente falsificará o que possa perceber. N?o se deve esquecer que o que se escuta, namaioria, s?o coisas cujo significado só é identificado posteriormente. Ver-se-á que a regra de prestar igual reparo a tudo constitui a contrapartida necessária daexigência feita ao paciente, de que comunique tudo o que lhe ocorre, sem crítica ou sele??o. Se omédico se comportar de outro modo, estará jogando fora a maior parte da vantagem que resulta deo paciente obedecer à ‘regra fundamental da psicanálise’. A regra para o médico pode ser assimexpressa: ‘Ele deve conter todas as influências conscientes da sua capacidade de prestar aten??oe abandonar-se inteiramente à ‘memória inconsciente”.’ Ou, para dizê-lo puramente em termostécnicos: ‘Ele deve simplesmente escutar e n?o se preocupar se está se lembrando de algumacoisa.’ O que se consegue desta maneira será suficiente para todas as exigências durante otratamento. Aqueles elementos do material que já formam um texto coerente ficar?o à disposi??oconsciente do médico; o resto, ainda desconexo e em desordem caótica, parece a princípio estarsubmerso, mas vem rapidamente à lembran?a assim que o paciente traz à baila algo de novo, aque se pode relacionar e pelo qual pode ser continuado. O cumprimento imerecido de ter ‘umamemória excepcionalmente boa’, que o paciente nos presta quando reproduzimos algum pormenorapós mais de ano, pode ent?o ser aceito com um sorriso, enquanto que uma determina??oconsciente de relembrar o assunto provavelmente teria resultado em fracasso. Equívocos neste processo de recorda??o ocorrem apenas em ocasi?es e lugares em quenos achamos perturbados por alguma considera??o pessoal (ver em [1]) - isto é, quando se caiuseriamente abaixo do padr?o de um analista ideal. Confus?o com material trazido por outrospacientes muito raramente ocorre. Quando há uma discuss?o com o paciente quanto a se ou comoele disse alguma coisa específica, o médico geralmente está com a raz?o. (b) N?o posso aconselhar a tomada de notas integrais, a manuten??o de um registroestenográfico etc., durante as sess?es analíticas. ? parte a impress?o desfavorável que isto causaem certos pacientes, as mesmas considera??es que foram apresentadas com referência à aten??oaplicam-se também aqui. Far-se-á necessariamente uma sele??o prejudicial do material enquantose escrevem ou se taquigrafam as notas, e parte de nossa própria atividade mental acha-se dessamaneira presa, quando seria mais bem empregada na interpreta??o do que se ouviu. Nenhumaobje??o pode ser levantada a fazerem-se exce??es a esta regra no caso de datas, texto desonhos, ou eventos específicos dignos de nota, que podem ser facilmente desligados de seucontexto e s?o apropriados para uso independente, como exemplos. Mas tampouco tenho o hábito68. de fazer isto. Quanto aos exemplos, anoto-os, de memória, à noite, após o trabalho se encerrar;quanto aos textos de sonhos a que dou import?ncia, fa?o o paciente repeti-los, após havê-losrelatado, de maneira a que eu possa fixá-los na mente. (c) Tomar notas durante a sess?o com o paciente poderia ser justificado pela inten??o depublicar um estudo científico do caso. Em fundamentos gerais, isto dificilmente pode ser negado.N?o obstante, deve-se ter em mente que relatórios exatos de histórias clínicas analíticas s?o demenor valor do que se poderia esperar. Estritamente falando, possuem apenas a exatid?oostensiva de que a psiquiatria ‘moderna’ fornece-nos alguns exemplos marcantes. S?o, via deregra, fatigantes para o leitor e ainda n?o conseguem substituir sua presen?a concreta em umaanálise. A experiência invariavelmente demonstra que, se os leitores est?o dispostos a acreditarnum analista, ter?o confian?a em qualquer revis?o ligeira a que ele tenha submetido o material; se,por outro lado, n?o est?o dispostos a levar a sério análise e analista, tampouco prestar?o aten??oa acurados registros literais do tratamento. N?o é esta, segundo parece, a maneira de remediar afalta de provas convincentes em relatórios psicanalíticos. (d) Uma das reivindica??es da psicanálise em seu favor é indubitavelmente, o fato de que,em sua execu??o, pesquisa e tratamento coincidem; n?o obstante, após certo ponto, a técnicaexigida por uma op?e-se à requerida pelo outro. N?o é bom trabalhar cientificamente num casoenquanto o tratamento ainda está continuando - reunir sua estrutura, tentar predizer seu progressofuturo e obter, de tempos em tempos, um quadro do estado atual das coisas, como o interessecientífico exigiria. Casos que s?o dedicados, desde o princípio, a propósitos científicos, e assimtratados, sofrem em seu resultado; enquanto os casos mais bem sucedidos s?o aqueles em que seavan?a, por assim dizer, sem qualquer intuito em vista, em que se permite ser tomado de surpresapor qualquer nova reviravolta neles, e sempre se o enfrenta com liberalidade, sem quaisquerpressuposi??es. A conduta correta para um analista reside em oscilar, de acordo com anecessidade, de uma atitude mental para outra, em evitar especula??o ou medita??o sobre oscasos, enquanto eles est?o em análise, e em somente submeter o material obtido a um processosintético de pensamento após a análise ter sido concluída. A distin??o entre as duas atitudes seriasem sentido se já possuíssemos todo o conhecimento (ou, pelo menos, o conhecimento essencial)sobre a psicologia do inconsciente e a estrutura das neuroses que podemos obter do trabalhopsicanalítico. Atualmente, ainda nos achamos longe desse objetivo e n?o devemos cercear-nos apossibilidade de conferir o que já sabemos e ampliar mais nosso conhecimento. (e) N?o posso aconselhar insistentemente demais os meus colegas a tomarem comomodelo, durante o tratamento psicanalítico, o cirurgi?o, que p?e de lado todos os sentimentos, atémesmo a solidariedade humana, e concentra suas for?as mentais no objetivo único de realizar aopera??o t?o competentemente quanto possível. Nas condi??es atuais, o sentimento maisperigoso para um psicanalista é a ambi??o terapêutica de alcan?ar, mediante este método novo emuito discutido, algo que produza efeito convincente sobre outras pessoas. Isto n?o apenas ocolocará num estado de espírito desfavorável para o trabalho, mas torna-lo-á impotente contra69. certas resistências do paciente, cujo restabelecimento, como sabemos, depende primordialmenteda a??o recíproca de for?as nele. A justificativa para exigir essa frieza emocional no analista é queela cria condi??es mais vantajosas para ambas as partes: para o médico, uma prote??o desejávelpara sua própria vida emocional, e, para o paciente, o maior auxílio que lhe podemos hoje dar. Umcirurgi?o dos tempos antigos tomou como divisa as palavras: ‘Je le pansai, Dieu le guérit.’ Oanalista deveria contentar-se com algo semelhante. (f) ? fácil perceber para que objetivo as diferentes regras que apresentei convergem. [Verem [1].] Todas elas se destinam a criar, para o médico, uma contrapartida à ‘regra fundamental dapsicanálise’ estabelecida para o paciente. Assim como o paciente deve relatar tudo o que sua auto-observa??o possa detectar, e impedir todas as obje??es lógicas e afetivas que procuram induzi-loa fazer uma sele??o dentre elas, também o médico deve colocar-se em posi??o de fazer uso detudo o que lhe é dito para fins de interpreta??o e identificar o material inconsciente oculto, semsubstituir sua própria censura pela sele??o de que o paciente abriu m?o. Para melhor formulá-lo:ele deve voltar seu próprio inconsciente, como um órg?o receptor, na dire??o do inconscientetransmissor do paciente. Deve ajustar-se ao paciente como um receptor telef?nico se ajusta aomicrofone transmissor. Assim como o receptor transforma de novo em ondas sonoras asoscila??es elétricas na linha telef?nica, que foram criadas por ondas sonoras, da mesma maneira oinconsciente do médico é capaz, a partir dos derivados do inconsciente que lhe s?o comunicados,de reconstruir esse inconsciente, que determinou as associa??es livres do paciente. Mas se o médico quiser estar em posi??o de utilizar seu inconsciente desse modo, comoinstrumento da análise, deve ele próprio preencher determinada condu??o psicológica em altograu. Ele n?o pode tolerar quaisquer resistências em si próprio que ocultem de sua consciência oque foi percebido pelo inconsciente; doutra maneira, introduziria na análise nova espécie desele??o e deforma??o que seria muito mais prejudicial que a resultante da concentra??o daaten??o consciente. N?o basta para isto que ele próprio seja uma pessoa aproximadamentenormal. Deve-se insistir, antes, que tenha passado por uma purifica??o psicanalítica e ficado cientedaqueles complexos seus que poderiam interferir na compreens?o do que o paciente lhe diz. N?opode haver dúvida sobre o efeito desqualificante de tais defeitos no médico; toda repress?o n?osolucionada nele constitui o que foi apropriadamente descrito por Stekel como um ‘ponto cego’ emsua percep??o analítica. Há alguns anos, dei como resposta à pergunta de como alguém se pode tornar analista:‘Pela análise dos próprios sonhos’ Esta prepara??o, fora de dúvida, é suficiente para muitaspessoas, mas n?o para todos que desejam aprender análise. Nem pode todo mundo conseguirinterpretar seus próprios sonhos sem auxílio externo. Enumero como um dos muitos méritos daescola de análise de Zurique terem eles dado ênfase aumentada a este requisito, e terem-nocorporificado na exigência de que todos que desejem efetuar análise em outras pessoas ter?oprimeiramente de ser analisados por alguém com conhecimento técnico. Todo aquele que tome otrabalho a sério deve escolher este curso, que oferece mais de uma vantagem; o sacrifício que70. implica revelar-se a outra pessoa, sem ser levado a isso pela doen?a, é amplamenterecompensado. N?o apenas o objetivo de aprender a saber o que se acha oculto na própria menteé muito mais rapidamente atingido, e com menos dispêndio de afeto, mas obter-se-?o, em rela??oa si próprio, impress?es e convic??es que em v?o seriam buscadas no estudo de livro e naassistência a palestras. E, por fim, n?o devemos subestimar a vantagem que deriva do contatomental duradouro que, via de regra, se estabelece entre o estudioso e seu guia. Uma análise como esta, de alguém particamente sadio, permanecerá incompleta, como sepode imaginar. Todo aquele que possa apreciar o alto valor do autoconhecimento e aumento deautocontrole assim adquiridos continuará, quando ela terminar, o exame analítico de suapersonalidade sob a forma de auto-análise, e ficará contente em compreender que, tanto dentro desi quanto no mundo externo, deve sempre esperar descobrir algo de novo. Mas quem n?o se tiverdignado tomar a precau??o de ser analisado n?o só será punido por ser incapaz de aprender umpouco mais em rela??o a seus pacientes, mas correrá também perigo mais sério, que pode setornar perigo também para os outros. Cairá facilmente na tenta??o de projetar para fora algumasdas peculiaridades de sua própria personalidade, que indistintamente percebeu, no campo daciência, como uma teoria de validade universal; levará o método psicanalítico ao descrédito edesencaminhará os inexperientes. (g) Acrescentarei agora algumas outras regras, que servir?o como uma transi??o daatitude do médico para o tratamento do paciente. Os psicanalistas jovens e ávidos indubitavelmente ficar?o tentados a colocar sua própriaindividualidade livremente no debate, a fim de levar o paciente com eles e de erguê-lo sobre asbarreiras de sua própria personalidade limitada. Poder-se-ia esperar que seria inteiramentepermissível e, na verdade, útil, com vistas a superar as resistências do paciente, conceder-lhe omédico um vislumbre de seus próprios defeitos e conflitos mentais e, fornecendo-lhe informa??esíntimas sobre sua própria vida, capacitá-lo a p?r-se ele próprio, paciente, em pé de igualdade. Umaconfidência merece outra e todo aquele que exige intimidade de outra pessoa deve estarpreparado para retribuí-la. Mas nas rela??es psicanalíticas as coisas amiúde acontecem de modo diferente do que apsicologia da consciência poderia levar-nos a esperar. A experiência n?o fala em favor de umatécnica afetiva deste tipo. Tampouco é difícil perceber que ela envolve um afastamento dosprincípios psicanalíticos e beira o tratamento por sugest?o. Ela pode induzir o paciente aapresentar mais cedo, e com menos dificuldade, coisas que já conhece, mas que, de outramaneira, esconderia por certo tempo, mediante as resistências convencionais. Mas esta técnican?o consegue nada no sentido de revelar o que é inconsciente ao paciente. Torna-o ainda maisincapaz de superar suas resistências mais profundas e, em casos mais graves, invariavelmentefracassa, por incentivar o paciente a ser insaciável: ele gostaria de inverter a situa??o, e acha aanálise do médico mais interessante que a sua. A solu??o da transferência, também - uma dastarefas principais do tratamento -, é dificultada por uma atitude íntima por parte do médico, de71. maneira que qualquer proveito que possa haver no princípio é mais que superado ao final. N?ohesito, portanto, em condenar este tipo de técnica como incorreto. O médico deve ser opaco aosseus pacientes e, como um espelho, n?o mostrar-lhes nada, exceto o que lhe é mostrado. Naprática, é verdade, nada se pode dizer contra um psicoterapeuta que combine uma certaquantidade de análise com alguma influência sugestiva, a fim de chegar a um resultado perceptívelem tempo mais curto - tal como é necessário, por exemplo, nas institui??es. Mas é lícito insistir emque ele próprio n?o se ache em dúvida quanto ao que está fazendo e saiba que o seu método n?oé o da verdadeira psicanálise. (h) Outra tenta??o surge da atividade educativa que, no tratamento psicanalítico, incumbeao médico, sem qualquer inten??o deliberada de sua parte. Quando as inibi??es evolucionáriasest?o solucionadas, acontece, espontaneamente, que o médico se encontra na posi??o de indicarnovos objetivos para as inclina??es que foram liberadas. N?o é, ent?o, nada mais que ambi??onatural que ele se esforce por transformar em especialmente excelente uma pessoa que ele lutoupara livrar da neurose, e que determine altos propósitos para seus desejos. Mas novamente aqui omédico deve controlar-se e guiar-se pelas capacidades do paciente em vez de por seus própriosdesejos. Nem todo neurótico possui grande talento para sublima??o; pode-se presumir que muitosdeles de modo algum teriam caído enfermos se possuíssem a arte de sublimar seus instintos. Seos pressionarmos indevidamente no sentido da sublima??o e lhes cercearmos as satisfa??esinstintuais mais acessíveis e convenientes, geralmente tornar-lhe-emos a vida ainda mais árdua doque a sentem ser, de qualquer modo. Como médico, tem-se acima de tudo de ser tolerante com afraqueza do paciente, e contentar-se em ter reconquistado certo grau de capacidade de trabalho edivertimento para uma pessoa mesmo de valor apenas moderado. A ambi??o educativa é de t?opouca utilidade quanto a ambi??o terapêutica. Deve-se, ademais, manter em mente que muitaspessoas caem enfermas exatamente devido à tentativa de sublimar os seus instintos além do graupermitido por sua organiza??o e que, naqueles que possuem capacidade de sublima??o, oprocesso geralmente se dá espontaneamente, assim que as suas inibi??es s?o superadas pelaanálise. Em minha opini?o, portanto, invariavelmente, esfor?os no sentido de usar o tratamentoanalítico para ocasionar a sublima??o do instinto - embora, fora de dúvida, sempre louváveis -est?o longe de ser aconselháveis em todos os casos. (i) Até que ponto deve-se buscar a coopera??o intelectual do paciente no tratamento? ?difícil dizer algo de aplicabilidade geral sobre este ponto: a personalidade do paciente é o fatordeterminante. Em todos os casos, porém, cautela e autodomínio devem ser observados a esterespeito. ? errado determinar tarefas ao paciente, tais como coligir suas lembran?as ou pensarsobre um período específico de sua vida. Pelo contrário, ele tem de aprender, acima de tudo - oque nunca acontece facilmente com alguém -, que atividades mentais, tais como refletir sobre algoou concentrar a aten??o, n?o solucionam nenhum dos enigmas de uma neurose; isto só pode serefetuado ao se obedecer pacientemente à regra psicanalítica, que imp?e a exclus?o de toda crítica72. do inconsciente ou de seus derivados. Deve-se ser especialmente inflexível a respeito daobediência a essa regra com pacientes que praticam a arte de desviar-se para o debate intelectualdurante o tratamento, que teorizam muito e com freqüência muito sabiamente sobre o seu estadoe, dessa maneira, evitam fazer algo para superá-lo. Por esta raz?o, n?o gosto de utilizar-me deescritos analíticos como assistência a meus pacientes; exijo que aprendam por experiênciapessoal e asseguro-lhes que adquirir?o conhecimento mais amplo e valioso do que toda aliteratura da psicanálise poderia transmitir-lhes. Todavia, reconhe?o que, em condi??esinstitucionais, pode ser de grande vantagem empregar a leitura como prepara??o para pacientesem análise e como meio de criar uma atmosfera de influência. Devo fazer a mais séria advertência contra qualquer tentativa de conquistar a confian?a ouapoio de pais ou parentes dando-lhes livros psicanalíticos para ler, de natureza introdutória ouavan?ada. Esta medida bem intencionada geralmente tem o efeito de fazer surgir prematuramentea oposi??o natural dos parentes ao tratamento - oposi??o fadada a aparecer, mais cedo ou maistarde - de maneira que o tratamento nunca é sequer iniciado. Permitam-me expressar a esperan?a de que a experiência crescente da psicanálise cedoconduza à concord?ncia sobre quest?es de técnica e sobre o método mais eficaz de tratar ospacientes neuróticos. Com referência ao tratamento de seus parentes, tenho de confessar-meinteiramente perplexo e, em geral, deposito pouca fé no seu tratamento individual.73. SOBRE O IN?CIO DO TRATAMENTO (NOVAS RECOMENDA??ES SOBRE A T?CNICA DA PSICAN?LISE I ) (1913) NOTA DO EDITOR INGL?S ZUR EINLEITUNG DER BEHANDLUNG (a) EDI??ES ALEM?S: 1913 Int. Z. Psychoanal., 1 (1), 1-10 e (2), 139-46. 1918 S. K. S. N., 4, 412-40. (1922, 2? ed.) 1924 Technik und Metapsychol., 84-108. 1925 G. S., 6, 84-108. 1931 Neurosenlehre und Technik, 359-85. 1943 G. W., 8, 454-78. (b) TRADU??O INGLESA: ‘Further Recommendations in the Technique of Psycho-Analysis: On Beginning theTreatment. The Question of the First Communications. The Dynamics of the Cure’74. 1924 C. P., 2, 342-65. (Trad. de Joan Riviere.) A presente tradu??o inglesa, com o título alterado, é vers?o modificada da publicada em1924. Este artigo foi publicado em duas partes, em janeiro e mar?o de 1913. A primeira parte,terminando com as palavras ‘com que material deve o tratamento come?ar?’ (ver em [1]), tinha otítulo de ‘Weitere Ratschl?ge zur Technik der Psychoanalyse: I. Zur Einleitung der Behandlung’. Asegunda tinha o mesmo título, mas com as palavras adicionais: ‘- Die Frage der ersten Mitteilungen- Die Dynamik der Heilung’. Este título completo é o traduzido na primeira vers?o inglesa, tal comofornecido acima. Todas as edi??es alem?s, de 1924 em diante, adotaram o título curto ‘ZurEinleitung der Behandlung’, sem quaisquer acréscimos. Na opini?o original do autor (como édemonstrado por seu manuscrito), o artigo dividia-se em três se??es, correspondentes ao título. Aprimeira destas, ‘Sobre o Início do Tratamento’, termina em [1]; a segunda, ‘A Quest?o dasPrimeiras Comunica??es’, em [2], onde a terceira, ‘A Din?mica da Cura’, come?a. SOBRE O IN?CIO DO TRATAMENTO (NOVAS RECOMENDA??ES SOBRE A T?CNICADA PSICAN?LISE I) Todo aquele que espera aprender o nobre jogo de xadrez nos livros, cedo descobrirá quesomente as aberturas e os finais de jogos admitem uma apresenta??o sistemática exaustiva e quea infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a abertura desafia qualquer descri??odesse tipo. Esta lacuna na instru??o só pode ser preenchida por um estudo diligente dos jogostravados pelos mestres. As regras que podem ser estabelecidas para o exercício do tratamentopsicanalítico acham-se sujeitas a limita??es semelhantes. No que segue, esfor?ar-me-ei por reunir, para uso de psicanalistas militantes, algumas dasregras para o início do tratamento. Entre elas est?o algumas que podem parecer pormenoresinsignificantes, como na verdade s?o. Sua justificativa é serem simplesmente regras que adquiremimport?ncia por sua rela??o com o plano geral do jogo. Penso estar sendo prudente, contudo, emchamar estas regras de ‘recomenda??es’ e n?o reivindicar qualquer aceita??o incondicional paraelas. A extraordinária diversidade das constela??es psíquicas envolvidas, a plasticidade de todosos processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes op?em-se a qualquer mecaniza??o datécnica; e ocasionam que um curso de a??o que, via de regra, é justificado possa, às vezes,mostrar-se ineficaz, enquanto outro que habitualmente é err?neo possa, de vez em quando,conduzir ao fim desejado. Estas circunst?ncias, contudo, n?o nos impedem de estabelecer para o75. médico um procedimento que, em média, é eficaz. Há alguns anos especifiquei as indica??es mais importantes para a sele??o de pacientese, portanto, n?o as repetirei aqui. Nesse meio tempo, elas foram aprovadas por outrospsicanalistas. Mas posso acrescentar que desde ent?o tornei hábito meu, quando conhe?o poucosobre um paciente, só aceitá-lo a princípio provisoriamente, por um período de uma ou duassemanas. Se se interrompe o tratamento dentro deste período, poupa-se ao paciente a impress?oaflitiva de uma tentativa de cura que falhou. Esteve-se apenas empreendendo uma ‘sondagem’, afim de conhecer o caso e decidir se ele é apropriado para a psicanálise. Nenhum outro tipo deexame preliminar, exceto este procedimento, encontra-se à nossa disposi??o; os mais extensosdebates e questionamentos, em consultas comuns, n?o lhe ofereceriam substituto. Esteexperimento preliminar, contudo, é, ele próprio, o início de uma psicanálise e deve conformar-se àsregras desta. Pode-se talvez fazer a distin??o de que, nele, se deixa o paciente falar quase todo otempo e n?o se explica nada mais do que o absolutamente necessário para fazê-lo prosseguir noque está dizendo. Existem também raz?es diagnósticas para come?ar o tratamento por um período deexperiência deste tipo, a durar uma ou duas semanas. Com bastante freqüência, quando se vêuma neurose com sintomas histéricos ou obsessivos, que n?o é excessivamente acentuada e n?oexiste há muito tempo - isto é, exatamente o tipo de caso que se consideraria apropriado paratratamento - tem-se de levar em conta a possibilidade de que ela possa ser um estádio preliminardo que é conhecido por demência precoce (‘esquizofrenia’, na terminologia de Bleuler; ‘parafrenia’,como propus chamá-la) e que, mais cedo ou mais tarde, apresentará um quadro bem pronunciadodessa afec??o. N?o concordo que seja sempre possível fazer a distin??o t?o facilmente. Estouciente de que existem psiquiatras que hesitam com menos freqüência em seu diagnósticodiferencial, mas convenci-me de que, com a mesma freqüência, cometem equívocos. Cometer umequívoco, além disso, é de muito mais gravidade para o psicanalista que para o psiquiatra clínico,como este é chamado, pois o último n?o está tentando fazer algo que seja de utilidade, seja qualfor o tipo de caso. Ele simplesmente corre o risco de cometer um equívoco teórico e seudiagnóstico n?o tem mais que um interesse acadêmico. No que concerne ao psicanalista, contudo,se o caso é desfavorável, ele cometeu um erro prático; foi responsável por despesasdesnecessárias e desacreditou o seu método de tratamento. Ele n?o pode cumprir sua promessade cura se o paciente está sofrendo, n?o de histeria ou neurose obsessiva, mas de parafrenia, e,portanto, tem motivos particularmente fortes para evitar cometer equívocos no diagnóstico. Numtratamento experimental de algumas semanas, ele amiúde observará sinais suspeitos que possamdeterminá-lo a n?o levar além a tentativa. Infelizmente, n?o posso asseverar que uma tentativadeste tipo sempre nos capacite a chegar à decis?o certa; trata-se apenas de uma sábia precau??oa mais. Longos debates preliminares antes do início do tratamento analítico, tratamento prévio por76. outro método e também conhecimento anterior entre o médico e o paciente que deve seranalisado, têm conseqüências desvantajosas especiais, para as quais se tem de estar preparado.Elas resultam em o paciente encontrar o médico com uma atitude transferencial já estabelecida eque o médico deve, em primeiro lugar, revelar lentamente, em vez de ter a oportunidade deobservar o crescimento e o desenvolvimento da transferência desde o início. Desta maneira, opaciente obtém sobre nós uma dianteira temporária, que n?o lhe concederíamos voluntariamenteno tratamento. Deve-se desconfiar de todos os pacientes em perspectiva que querem esperar um poucoantes de come?ar o tratamento. A experiência demonstra que, quando a ocasi?o combinadachega, eles deixam de aparecer, ainda que o motivo para o atraso - isto é, a racionaliza??o de suainten??o - pare?a ao n?o iniciado acima de qualquer suspeita. Dificuldades especiais surgem quando o analista e seu novo paciente, ou suas famílias,acham-se em termos de amizade ou têm la?os sociais um com o outro. O psicanalista chamado aencarregar-se do tratamento da esposa ou do filho de um amigo deve estar preparado para queisso lhes custe esta amizade, qualquer que seja o resultado do tratamento; todavia, terá de fazer osacrifício, se n?o puder encontrar um substituto merecedor de confian?a. Tanto o público leigo quanto os médicos - ainda prontos a confundir a psicanálise com otratamento por sugest?o - inclinam-se a atribuir grande import?ncia às expectativas que o pacientetraz para o novo tratamento. Amiúde acreditam, no caso de determinado paciente, que n?o darámuito trabalho, pois tem grande confian?a na psicanálise e acha-se plenamente convicto de suaverdade e eficácia; ao passo que, no caso de outro, acham que ele indubitavelmente mostrará sermais difícil, por ter uma concep??o cética, e n?o acreditará em nada até haver experimentado osresultados bem sucedidos em sua própria pessoa. Todavia, na realidade, esta atitude por parte dopaciente tem muito pouca import?ncia. Sua confian?a ou desconfian?a inicial é quase desprezível,comparada às resistências internas que mantêm a neurose firmemente no lugar. ? verdade que aconfian?a alegre do paciente torna nosso primeiro relacionamento com ele muito agradável;ficamos-lhe gratos por isso, mas advertimo-lo de que sua impress?o favorável será destruída pelaprimeira dificuldade que surgir na análise. Ao cético, dizemos que análise n?o exige fé, que elepode ser t?o crítico e desconfiado quanto queira e que n?o encaramos sua atitude de modo algumcomo sendo efeito de seu julgamento, pois ele n?o se acha em posi??o de formar um juízofidedigno sobre esses assuntos; sua desconfian?a é apenas um sintoma, como os seus outrossintomas, e n?o constituirá interferência, desde que conscienciosamente execute o que dele requera regra do tratamento. Ninguém que esteja familiarizado com a natureza da neurose ficará espantado em ouvirque mesmo um homem que é muito bem capaz de realizar uma análise em outras pessoas possacomportar-se como qualquer outro mortal e ser capaz de produzir as mais intensas resistências,assim que ele próprio se torna objeto da investiga??o analítica. Quando isto acontece, somos maisuma vez relembrados da dimens?o da profundidade da mente, e n?o nos surpreende descobrir77. que a neurose tem suas raízes em estratos psíquicos nos quais o conhecimento intelectual daanálise n?o penetrou. Pontos de import?ncia no início do tratamento s?o os acordos quanto a tempo e dinheiro. Com referência ao tempo, atenho-me estritamente ao princípio de ceder uma horadeterminada. A cada paciente é atribuída uma hora específica de meu dia de trabalho disponível;pertence a ele que é responsável por ela, mesmo que n?o fa?a uso da mesma. Este acordo, que éaceito como natural para professores de música ou idiomas na sociedade, pode talvez parecerrigoroso demais num médico, ou até mesmo indigno de sua profiss?o. Tender-se-á a indicar osmuitos acidentes que podem impedir o paciente de comparecer todos os dias à mesma hora eesperar-se-á que sejam levadas em conta as numerosas indisposi??es intervenientes que podemocorrer no decurso de um tratamento analítico prolongado. A minha resposta, porém, é: nenhumaoutra maneira é praticável. Sob regime menos estrito, as faltas ‘ocasionais’ aumentam de tal formaque o médico vê sua existência material amea?ada; ao passo que, quando o acordo é seguido,acontece que impedimentos acidentais n?o ocorrem de modo algum, e moléstias intervenientes,apenas de modo muito raro. O analista quase nunca é colocado em posi??o de desfrutar de umahora de lazer pela qual é pago e da qual se envergonharia; e pode continuar seu trabalho seminterrup??es, sendo-lhe poupada a aflitiva e desconcertante experiência de descobrir que umintervalo pelo qual n?o se pode culpar está sempre sujeito a acontecer exatamente quando otrabalho promete ser especialmente importante e rico em conteúdo. Nada nos convence t?ofortemente da significa??o do fator psicogênico na vida cotidiana dos homens, da freqüência comque se simula doen?a e da inexistência do acaso, quanto alguns anos de prática da psicanálisesegundo o princípio estrito da hora marcada. Em casos de moléstias org?nicas indubitáveis, que,afinal de contas, n?o podem ser afastadas, pelo fato de o paciente ter interesse psíquico emcomparecer, interrompo o tratamento, considero-me no direito de empregar alhures a hora que ficalivre e aceito o paciente de volta novamente assim que ele se restabelece e disponho de outra horavaga. Trabalho com meus pacientes todos os dias, exceto aos domingos e feriados oficiais - istoé, geralmente seis dias por semana. Para casos leves ou continua??o de um tratamento que já seacha bem avan?ado, três dias por semana bastar?o. Quaisquer restri??es de tempo além destasn?o trazem vantagem, quer para o médico quer para o paciente; e, no início de um análise, sechama inteiramente fora de quest?o. Mesmo interrup??es breves têm efeito ligeiramenteobscurecedor sobre o trabalho. Costumávamos falar, por brincadeira, da ‘crosta da segunda-feira’,quando retomamos o trabalho, após o descanso dominical. Quando as horas de trabalho s?omenos freqüentes, há o risco de n?o se poder manter o passo com a vida real do paciente e de otratamento perder contato com o presente e ser for?ado a utilizar atalhos. Ocasionalmente,também, deparamos com pacientes a quem se tem de conhecer mais que o tempo médio de umahora por dia, porque a maior parte de uma hora já se passou antes que comecem a se abrir e a setornarem comunicativos.78. Uma pergunta importuna que o paciente faz ao médico, no início, é: ‘Quanto tempo duraráo tratamento? De quanto tempo o senhor precisará para aliviar-me de meu problema?’ Se seprop?s um tratamento experimental de algumas semanas, pode-se evitar fornecer resposta direta aesta pergunta, prometendo-se fazer um pronunciamento mais fidedigno ao final do período deprova. Nossa resposta assemelha-se à resposta dada pelo Filósofo ao Caminhante, na fábula deEsopo. Quando o caminhante perguntou quanto tempo teria de jornada, o Filósofo simplesmenterespondeu ‘Caminha”! e justificou sua resposta aparentemente inútil, com o pretexto de queprecisava saber a amplitude do passo do Caminhante antes de lhe poder dizer quanto tempo aviagem duraria. Este expediente auxilia-nos a superar as primeiras dificuldades, mas acompara??o n?o é boa, pois o neurótico pode facilmente alterar o passo e, às vezes, fazer apenasprogresso muito lento. Na verdade, a pergunta relativa à dura??o provável de um tratamento équase irrespondível. Como resultado conjunto de falta de compreens?o interna (insight) por parte dos pacientese falta de engenhosidade por parte dos médicos, espera-se que a análise atenda às exigênciasmais ilimitadas, e isso no tempo mais curto. Permitam-me, como exemplo, fornecer algunspormenores de uma carta que recebi, há alguns dias, de uma senhora da Rússia. Ela conta 53anos de idade, sua doen?a come?ou há 23 anos e, durante os últimos dez anos, n?o p?de maisfazer qualquer trabalho continuado. ‘O tratamento em várias institui??es para casos nervosos’ n?oconseguiu tornar-lhe possível uma ‘vida ativa’. Ela espera ser completamente curada pelapsicanálise, sobre a qual leu, mas sua enfermidade já custou à família tanto dinheiro que ela n?opode conseguir vir a Viena por mais de seis semanas ou dois meses. Outra dificuldade aacrescentar é que deseja, desde o início, ‘explicar-se’, apenas por escrito, visto que qualquerexame de seus complexos causar-lhe-ia uma explos?o de sentimento ou ‘torná-la-iatemporariamente incapaz de falar’. Ninguém espera que um homem levante uma pesada mesacom dois dedos, como se fosse uma leve banqueta, ou construa uma grande casa no tempo quelevaria para levantar uma cabana de madeira; mas assim que se trata de uma quest?o deneuroses - que n?o parecem, até agora haver encontrado lugar apropriado no pensamentohumano -, mesmo pessoas inteligentes esquecem que uma propor??o necessária tem de serobservada entre tempo, trabalho e sucesso. Isto, incidentalmente, constitui resultadocompreensível da profunda ignor?ncia que predomina a respeito da etiologia das neuroses. Gra?asa esta ignor?ncia, a neurose é encarada como uma espécie de ‘donzela vinda de longe’. ‘Ninguémsabia donde ela viera’, de maneira que esperavam que um dia desapareceria. Os médicos emprestam apoio a estas v?s esperan?as. Mesmo os bem informados dentreeles deixam de avaliar corretamente a gravidade das perturba??es nervosas. Um amigo e colegameu, para cujo maior crédito conto o fato de que, após várias décadas de trabalho científicosegundo outros princípios, converteu-se aos méritos da psicanálise, escreveu-me certa vez:‘Precisamos é de um tratamento curto, conveniente e externo para a neurose obsessiva.’ N?o lhe79. pude fornecer e senti-me envergonhado; ent?o tentei desculpar-me com o comentário de quetambém os especialistas em doen?as internas ficariam contentes com um tratamento paratuberculose ou carcinoma que combinasse essas vantagens. Para falar claramente, a psicanálise é sempre quest?o de longos períodos de tempo, demeio ano ou de anos inteiros - de períodos maiores do que o paciente espera. ? nosso dever,portanto, dizer-lhe isso antes que ele se decida finalmente sobre o tratamento. Considero muitomais honroso, e também mais conveniente, chamar sua aten??o - sem tentar assustá-lo, mas bemno come?o - para as dificuldades e sacrifícios que o tratamento analítico envolve, e, desta maneira,privá-lo de qualquer direito de dizer mais tarde que foi enganado para um tratamento de cujaextens?o e implica??es n?o se deu conta. Um paciente que se deixa dissuadir por esta informa??omostrar-se-ia, de qualquer modo, inadequado posteriormente. ? bom o progresso do entendimentoentre pacientes, o número daqueles que enfrentam com êxito este primeiro teste aumenta. N?o obrigo os pacientes a continuar o tratamento por um certo período de tempo; permitoa cada qual interrompê-lo quando quiser. Mas n?o escondo dele que, se o tratamento éinterrompido após somente um pequeno trabalho ter sido feito, ele n?o será bem sucedido, epoderá facilmente, como uma opera??o inacabada, deixá-lo em estado insatisfatório. Nos primeirosanos de minha clínica psicanalítica, costumava ter a maior dificuldade em persuadir meuspacientes a continuarem sua análise. Esta dificuldade há muito tempo foi substituída e hoje tenhode me dar aos maiores trabalhos para induzi-los a abandoná-la. Abreviar o tratamento analítico é um desejo justificável, e sua realiza??o, comoaprenderemos, está sendo tentada dentro de várias orienta??es. Infelizmente, op?e-se-lhe um fatormuito importante, a saber, a lentid?o com que se realizam as mudan?as profundas na mente - emúltima inst?ncia, fora de dúvida, a ‘atemporalidade’ de nossos processos inconscientes. Quando ospacientes se defrontam com a dificuldade do grande dispêndio de tempo exigido pela análise, n?oraro conseguem propor uma saída para ela. Dividem os seus achaques e descrevem alguns comoinsuportáveis e outros como secundários, e ent?o dizem: ‘Se apenas o senhor me aliviasse deste(uma dor de cabe?a ou um medo específico, por exemplo), eu poderia lidar com o outro sozinho,em minha vida normal.’ Fazendo isto, contudo, sobrestimam o poder seletivo da análise. O analistaé certamente capaz de fazer muito, mas n?o pode determinar de antem?o exatamente quais osresultados que produzirá. Ele coloca em movimento um processo, o processo de solucionamentodas repress?es existentes. Pode supervisar este processo, auxiliá-lo, afastar obstáculos em seucaminho, e pode indubitavelmente invalidar grande parte dele. Mas, em geral, uma vez come?ado,segue sua própria rota e n?o permite que quer a dire??o que toma quer a ordem em que colheseus pontos lhe sejam prescritas. O poder do analista sobre os sintomas da doen?a pode, assim,ser comparado à potência sexual masculina. Um homem pode, é verdade, gerar uma crian?ainteira, mas mesmo o homem mais forte n?o pode criar no organismo feminino só uma cabe?a, ouum bra?o, ou uma perna; n?o pode sequer determinar de antem?o o sexo da crian?a. Também ele80. coloca em movimento um processo altamente complicado, determinado por eventos no passadoremoto, processo que termina pela separa??o entre a crian?a e a m?e. Também a neurose tem ocaráter de um organismo. Suas manifesta??es n?o s?o independentes umas das outras;condicionam-se mutuamente e d?o-se apoio recíproco. Uma pessoa padece apenas de umaneurose, nunca de várias que acidentalmente se tenham reunido num indivíduo isolado. Libertadoo paciente, conforme seu desejo, de determinado sintoma insuportável, poderia ele facilmentedescobrir que um sintoma anteriormente insignificante aumentara agora e tornara-se insuportável.O analista que deseja que o tratamento deva seu êxito t?o pouco quanto possível a seuselementos de sugest?o (isto é, a transferência) fará bem em abster-se de fazer uso até de vestígiode influência seletiva sobre os resultados da terapia que talvez possa lhe ser acessível. Ospacientes destinados a serem mais bem acolhidos s?o aqueles que lhe pedem para dar-lhes saúdecompleta, na medida em que esta é atingível, e colocam à sua disposi??o tanto tempo quanto foinecessário para o processo de restabelecimento. Condi??es favoráveis como estas, é natural,devem ser esperadas apenas em alguns casos. O próximo ponto a ser decidido no início do tratamento é o do dinheiro, dos honorários domédico. Um analista n?o discute que o dinheiro deve ser considerado, em primeira inst?ncia, comomeio de autopreserva??o e de obten??o de poder, mas sustenta que, ao lado disto, poderososfatores sexuais acham-se envolvidos no valor que lhe é atribuído. Ele pode indicar que as quest?esde dinheiro s?o tratadas pelas pessoas civilizadas da mesma maneira que as quest?es sexuais -com a mesma incoerência, pudor de hipocrisia. O analista, portanto, está determinado desde oprincípio a n?o concordar com esta atitude, mas, em seus negócios com os pacientes, a tratar deassuntos de dinheiro com a mesma franqueza natural com que deseja educá-los nas quest?esrelativas à vida sexual. Demonstra-lhes que ele próprio rejeitou uma falsa vergonha sobre essesassuntos, ao dizer-lhes voluntariamente o pre?o em que avalia seu tempo. O bom senso comum,ademais, adverte-o a n?o permitir que grandes somas de dinheiros se acumulem, mas a solicitarpagamento a intervalos regulares bastante curtos - mensalmente, talvez. (Constitui fato conhecidoque o valor do tratamento n?o se real?a aos olhos do paciente, se forem pedidos honorários muitobaixos.) Esta, naturalmente, n?o é a prática usual dos especialistas em nervos e outros médicosem nossa sociedade européia. Mas o psicanalista deve colocar-se na posi??o do cirurgi?o, que éfranco e caro por ter à sua disposi??o métodos de tratamento que podem ser úteis. Parece-memais respeitável e eticamente menos objetável reconhecer os próprios direitos e necessidadesreais do que, como ainda é costume entre os médicos, desempenhar o papel do filantropodesinteressado - posi??o que n?o se pode, na realidade, ocupar, sob pena de ficar-sesecretamente prejudicado, ou queixar-se em alta voz da falta da considera??o e do desejo deexplora??o evidenciado pelos pacientes. Ao fixar os honorários, o analista deve também consideraro fato de que, por mais que trabalhe, nunca poderá ganhar tanto quanto outros especialistasmédicos. Pela mesma raz?o, deve também abster-se de fornecer tratamento gratuito e n?o fazer81. exce??es em favor de colegas ou suas famílias. Esta última recomenda??o parecerá umatransgress?o às vantagens profissionais. Deve-se lembrar, contudo, que um tratamento gratuitosignifica muito mais para um psicanalista do que para qualquer outro médico; significa o sacrifíciode uma parte considerável - um sétimo ou um oitavo, talvez - do tempo de trabalho de que disp?epara ganhar a vida, durante um período de muitos meses. Um segundo tratamento gratuitoefetuado ao mesmo tempo privá-lo-ia de um quarto ou de um ter?o de sua capacidade de ganho, oque seria comparável ao prejuízo infligido por um grave acidente. Surge ent?o a quest?o de saber se a vantagem obtida pelo paciente n?o contrabalan?aria,até certo ponto, o sacrifício feito pelo médico. Posso aventurar-me a formar julgamento sobre isto,visto que, durante dez anos ou mais separei, uma hora por dia, e às vezes duas, para tratamentosgratuitos, porque desejaria, a fim de penetrar nas neuroses, trabalhar frente a t?o pouca resistênciaquanto possível. As vantagens que busquei por este meio n?o apareceram. O tratamento gratuitoaumenta enormemente algumas das resistências do neurótico - em mo?as, por exemplo, atenta??o inerente à sua rela??o transferencial, e, em mo?os, sua oposi??o à obriga??o de sesentirem gratos, oposi??o oriunda de seu complexo paterno e que apresenta um dos maisperturbadores obstáculos à aceita??o de auxílio médico. A ausência do efeito regulador oferecidopelo pagamento de honorários ao médico torna-se, ela própria, muito penosamente sentida; todo orelacionamento é afastado do mundo real e o paciente é privado de um forte motivo para esfor?ar-se por dar fim ao tratamento. Pode-se estar muito longe da vis?o ascética do dinheiro como sendo uma maldi??o eainda lamentar que a terapia analítica seja quase inacessível às pessoas pobres, tanto por raz?esexternas quanto internas. Pouco se pode fazer para remediar isto. Talvez haja verdade na cren?adisseminada de que aqueles que s?o for?ados, pela necessidade, a uma vida de árdua labuta s?omenos facilmente dominados pela neurose. Por outro lado, porém, a experiência demonstra, semqualquer dúvida, que quando um homem pobre produz uma neurose, só com dificuldade permiteser livrado dela. Ela lhe presta ótimo servi?o na luta pela existência; o livro secundário da doen?a,que ela lhe traz, é demasiadamente importante. Ele agora reivindica, por direito de sua neurose, apiedade que o mundo lhe recusou à aplica??o material, e pode ent?o eximir-se da obriga??o decombater sua pobreza por meio do trabalho. Todo aquele, portanto, que teme tratar da neurose deuma pessoa pobre pela psicoterapia, geralmente descobre que o que é aqui exigido dele é umaterapia prática do tipo muito diferente - o tipo que, segundo nossa tradi??o local, costumava serdispensado pelo Imperador José II. Ocasionalmente, é natural, deparamos com pessoasmerecedoras que se acham desamparadas sem culpa alguma de sua parte, nas quais otratamento n?o remunerado n?o se defronta com nenhum dos obstáculos mencionados e conduz aexcelentes resultados. No que concerne às classes médias, a despesa envolvida na psicanálise é excessivaapenas na aparência. Inteiramente à parte do fato de nenhuma compara??o ser possível entre asaúde e a eficiência restauradas, por um lado, e um moderado dispêndio financeiro por outro,82. quando adicionamos os custos incessantes das casas de saúde e do tratamento médico econtrastamo-los com o aumento de eficiência e de capacidade de ganhar a vida que resulta deuma análise inteiramente bem sucedida, temos o direito de dizer que os pacientes fizeram um bomnegócio. Nada na vida é t?o caro quanto a doen?a - e a estupidez. Antes de concluir estas considera??es sobre o início do tratamento analítico, tenho dedizer uma palavra sobre um certo cerimonial que concerne à posi??o na qual o tratamento érealizado. Atenho-me ao plano de fazer com que o paciente se deite num div?, enquanto me sentoatrás dele, fora de sua vista. Esta disposi??o possui uma base histórica: é o remanescente dométodo hipnótico, a partir do qual a psicanálise se desenvolveu. Mas ele merece ser mantido pormuitas raz?es. A primeira é um motivo pessoal, mas que outros podem partilhar comigo. N?oposso suportar ser encarado fixamente por outras pessoas durante oito horas (ou mais) por dia.Visto que, enquanto estou escutando o paciente, também me entrego à corrente de meuspensamentos inconscientes; n?o desejo que minhas express?es faciais dêem ao paciente materialpara interpreta??o ou influenciem-no no que me conta. Em geral, o paciente encara a obriga??o deadotar essa posi??o como um inc?modo e rebela-se contra ele, especialmente se o instinto deolhar (escopofilia) desempenhar papel importante em sua neurose. Insisto nesse procedimento,contudo, pois seu propósito e resultado s?o impedir que a transferência se mistureimperceptivelmente às associa??es do paciente, isolar a transferência e permitir-lhe que apare?a,no devido tempo, nitidamente definida como resistência. Sei que muitos analistas trabalham demodo diferente, mas n?o sei se esta varia??o se deve mais a um anseio de agir diferentemente oua alguma vantagem que pensem obter dela. [Ver também em [1].] Havendo as condi??es de tratamento sido reguladas desta maneira, surge a quest?o: emque ponto e com que material deve o tratamento come?ar? O material com que se inicia o tratamento é, em geral, indiferente - a história da vida dopaciente, ou a história de sua doen?a, ou suas lembran?as de inf?ncia. Mas, em todos os casos,deve-se deixar que o paciente fale e ele deve ser livre para escolher em que ponto come?ará.Dessa maneira, dizemos-lhe: ‘Antes que eu possa lhe dizer algo, tenho de saber muita coisa sobrevocê; por obséquio, conte-me o que sabe a respeito de si próprio.’ A única exce??o a isto refere-se à regra fundamental da técnica psicanalítica, que opaciente tem de observar. Isto lhe deve ser comunicado bem no come?o: ‘Uma coisa mais, antesque você comece. O que me vai dizer deve diferir, sob determinado aspecto, de uma conversacomum. Em geral, você procura, corretamente, manter um fio de liga??o ao longo de suasobserva??es e exclui quaisquer idéias intrusivas que lhe possam ocorrer, bem como quaisquertemas laterais, de maneira a n?o divagar longe demais do assunto. Neste caso, porém, deveproceder de modo diferente. Observará que, à medida que conta coisas, ocorrer-lhe-?o diversospensamentos que gostaria de p?r de lado, por causa de certas críticas e obje??es. Ficará tentado adizer a si mesmo que isto ou aquilo é irrelevante aqui, ou inteiramente sem import?ncia, ouabsurdo, de maneira que n?o há necessidade de dizê-lo. Você nunca deve ceder a estas críticas,83. mas dizê-lo apesar delas - na verdade, deve dizê-lo exatamente porque sente avers?o a fazê-lo.Posteriormente, você descobrirá e aprenderá a compreender a raz?o para esta exorta??o, que érealmente a única que tem de seguir. Assim, diga tudo o que lhe passa pela mente. Aja como se,por exemplo, você fosse um viajante sentado à janela de um vag?o ferroviário, a descrever paraalguém que se encontra dentro as vistas cambiantes que vê lá fora. Finalmente, jamais esque?aque prometeu ser absolutamente honesto e nunca deixar nada de fora porque, por uma raz?o ououtra, é desagradável dizê-lo. Os pacientes que datam sua enfermidade de um momento específico geralmente seconcentram na causa precipitante. Outros, que por si reconhecem a vincula??o entre sua neurosee a inf?ncia, amiúde come?am pelo relato de toda a história de sua vida. Nunca se deve esperaruma narrativa sistemática e nada deve ser feito para incentivá-la. Cada pormenor da história teráde ser repetido mais tarde e é apenas com estas repeti??es que aparecerá material adicional parasuprir as importantes associa??es que s?o desconhecidas do paciente. Há pacientes que, desde as primeira horas, preparam com cuidado o que ir?o comunicar,aparentemente de maneira a se certificarem de que est?o fazendo o melhor uso do tempodedicado ao tratamento. O que assim se disfar?a como avidez é resistência. Qualquer prepara??odeste tipo n?o deve ser recomendada, pois ela é empregada apenas para impedir quepensamentos desagradáveis venham à superfície. Por mais sinceramente que o paciente possaacreditar em suas excelentes inten??es, a resistência desempenhará seu papel neste métododeliberado de prepara??o e providenciará para que o material mais valioso escape à comunica??o.Cedo se descobrirá que o paciente planeja ainda outros meios pelos quais o que é exigido possaser negado ao tratamento. Ele pode distribuir o tratamento todo o dia com um amigo íntimo, etrazer a este debate todos os pensamentos que deveriam apresentar-se na presen?a do médico. Otratamento possui assim um vazamento que deixa passar exatamente o que é mais valioso.quando isto acontece, o paciente deve, sem muita demora, ser aconselhado a considerar a análisecomo um assunto entre ele e seu método e a excluir todos ou demais de partilhar o conhecimentodaquela, por íntimos que possam ser, os indagadores. Em estádios posteriores do tratamento, opaciente geralmente n?o fica sujeito a tenta??es deste tipo. Certos pacientes querem que seu tratamento seja mantido secreto, freqüentemente porquemantiveram secreta sua neurose, e n?o lhes ponho obstáculos. O fato de que, em conseqüênciadisso, o mundo nada saiba de algumas das curas mais bem sucedidas é, naturalmente,considera??o que n?o pode ser levada em conta. ? evidente que a decis?o de um paciente emfavor do segredo já revela uma característica de sua história secreta. Ao aconselhar o paciente, no início do tratamento, a contar ao menor número de pessoaspossível a respeito dele, protegemo-lo também até certo ponto, das muitas influências hostis queprocurar?o atraí-lo para longe da análise. Tais influências podem ser muito daninhas no come?o dotratamento; mais tarde, geralmente n?o têm import?ncia ou s?o até mesmo úteis, por colocarem84. em evidência resistências que est?o tentando ocultar-se. Se, no decorrer da análise, o paciente necessitar temporariamente de algum outrotratamento médico ou especializado, é muito mais sensato chamar um colega n?o analista do quefornecermos esse outro tratamento. Tratamentos combinados para distúrbios neuróticos, que têmpoderosa base org?nica, s?o quase sempre impraticáveis. Os pacientes afastam o interesse daanálise assim que lhes é mostrado mais de um caminho que promete levá-los à saúde. O melhorplano é adiar o tratamento org?nico até que o tratamento psíquico se complete; se aquele fossetentado primeiro, na maioria dos casos n?o encontraria êxito. Retornando ao início do tratamento, encontram-se ocasionalmente pacientes que iniciam otratamento assegurando-nos que n?o conseguem pensar em nada para dizer, embora todo ocampo da história de sua vida e da história de sua doen?a se lhes ache aberto para escolher. Suasolicita??o de que lhes digamos sobre o que falar n?o deve ser atendida nesta primeira ocasi?o,n?o mais do que em qualquer outra, posterior. Temos de ter em mente o que se acha aquienvolvido. Uma forte resistência adiantou-se, a fim de defender a neurose; temos de aceitar odesafio, ent?o e aí, e enfrentá-la. Afirma??es enérgicas e repetidas ao paciente de que éimpossível que n?o lhe ocorra idéia alguma ao início, e de que o que se acha em pauta é umaresistência contra a análise, cedo obrigam-no a efetuar as admiss?es esperadas ou a revelar umaprimeira amostra de seus complexos. ? mau sinal ele confessar que, enquanto escutava a regrafundamental de análise, fez a reserva mental de que, n?o obstante, guardaria isto ou aquilo para si;já n?o é t?o sério se tudo o que tem a nos dizer é qu?o desconfiado se acha da análise ou dascoisas horripilantes que ouviu a respeito dela. Se negar essas e outras possibilidadessemelhantes, quando lhe s?o apresentadas, pode ser levado, por nossa insistência, a reconhecerque todavia desprezou certos pensamentos que lhe ocupavam a mente. Pensara no tratamento emsi, embora nada de definido a seu respeito, ou estivera ocupado com a aparência da sala em queestava, ou n?o pudera deixar de pensar nos objetos do consultório e no fato de lá se achar deitadonum div? - tudo que substituíra pela palavra ‘nada’. Estas indica??es s?o bastante inteligíveis: tudoque é relacionado com a situa??o atual representa uma transferência para o médico, que semostra apropriada para servir como uma primeira resistência. Somos assim obrigados a come?arpor descobrir esta transferência; e um caminho que dela parte fornecerá rápido acesso ao materialpatogênico do paciente. Mulheres que est?o preparadas, por acontecimentos em sua históriapassada, para serem submetidas a agress?o sexual, e homens com homossexualismo reprimidoexcessivamente forte s?o os mais aptos a reterem desta maneira as idéias que lhes ocorrem noinício da análise. Os primeiros sintomas ou a??es fortuitas do paciente, tal como sua primeira resistência,podem possuir interesse especial e revelar um complexo que dirige sua neurose. Um arguto ejovem filósofo, com delicada sensibilidade estética, apressar-se-á a endireitar os vincos das cal?asantes de deitar-se para a sua primeira hora; está-se revelando como um ex-coprófilo do mais altorequinte - o que era de se esperar do recente esteta. Uma mo?a, na mesma conjuntura,85. apressadamente puxará a barra da saia sobre os tornozelos expostos; assim procedendo, estárevelando a essência do que sua análise mais tarde demonstrará: um orgulho narcísico de suabeleza física e inclina??es ao exibicionismo. Um número particularmente grande de pacientes n?o gosta de que lhes seja pedido paradeitar, enquanto o médico se senta atrás dele, fora de sua vista. Pedem que lhe seja concedidopassar o tratamento em alguma outra posi??o, na maioria dos casos por estarem ansiosos por n?oserem privados da vis?o do médico. A permiss?o é geralmente recusada, mas n?o se pode impedi-los de darem um jeito de dizer algumas frases antes do início da ‘sess?o’ real ou após ter-seindicado que ela terminou e eles terem se levantado do div?. Deste modo, dividem o tratamento,no seu ponto de vista, em uma parte oficial, na qual se comportam principalmente de maneiramuito inibida, e em uma parte informal e ‘amistosa’ na qual falam realmente de modo livre e dizemtoda espécie de coisas que eles próprios n?o encaram como fazendo parte do tratamento. Omédico n?o aceita esta divis?o por muito tempo. Toma nota do que é dito antes ou depois dasess?o e apresenta na primeira oportunidade, derrubando assim a divis?o que o paciente tentouerguer. Esta divis?o, mais uma vez, terá sido formada a partir do material de uma resistênciatransferencial. Enquanto as comunica??es e idéias do paciente fluírem sem qualquer obstru??o, o temada transferência n?o deve ser aflorado. Deve-se esperar até que a transferência, que é o maisdelicado de todos os procedimentos, tenha-se tornado uma resistência. A outra pergunta com que nos defrontamos levanta uma quest?o de princípio. ? ela:Quando devemos come?ar a fazer nossas comunica??es ao paciente? Qual é o momento pararevelar-lhe o significado oculto das idéias que lhe ocorrem, e para iniciá-los nos postulados, eprocedimentos técnicos da análise? A resposta a isto só pode ser: somente após uma transferência eficaz ter-se estabelecidono paciente, um rapport apropriado com ele. Permanece sendo o primeiro objetivo do tratamentoligar o paciente a ele e à pessoa do médico. Para assegurar isto, nada precisa ser feito, excetoconceder-lhe tempo. Se se demonstra um interesse sério nele, se cuidadosamente se dissipam asresistências que vêm à tona no início e se evita cometer certos equívocos, o paciente por si própriofará essa liga??o e vinculará o médico a uma das imagos das pessoas por quem estavaacostumado a ser tratado com afei??o. ? certamente possível sermos privados deste primeirosucesso se, desde o início, assumirmos outro ponto de vista que n?o o da compreens?o simpática,tal como um ponto de vista moralizador, ou se nos comportarmos como representantes ouadvogados da parte litigante - o outro c?njuge, por exemplo. Esta resposta, naturalmente, implica uma condena??o de qualquer linha de conduta quenos levasse a dar ao paciente uma tradu??o de seus sintomas assim que nós próprios aadivinhássemos, ou mesmo a considerar triunfo especial lan?ar-lhe essas ‘solu??es’ ao rosto naprimeira entrevista. N?o é difícil para um analista treinado ler claramente os desejos secretos dopaciente nas entrelinhas de suas queixas e da história de sua doen?a; mas quanta vaidade e falta86. de reflex?o deve possuir aquele que, com o mais breve conhecimento, pode informar a umestranho, inteiramente ignorante de todos os princípios da análise, que ele se acha ligado à m?epor la?os incestuosos, que abriga desejos de morte da esposa, a quem parece amar, que ocultauma inten??o de trair seu superior, e assim por diante! Ouvi dizer que há analistas que sevangloriam destes tipos de diagnósticos-rel?mpago e tratamentos ‘expressos’, mas tenho deprevenir a todos contra seguir tais exemplos. Um comportamento deste tipo desacreditarácompletamente a nós e ao tratamento aos olhos do paciente e nele despertará a mais violentaoposi??o, tenha o nosso palpite sido verdadeiro ou n?o; na verdade, quanto mais verdadeiro for,mas violenta será a resistência. Via de regra, o efeito terapêutico será nenhum, mas odesencorajamento do paciente quanto à análise será definitivo. Mesmo nos estádios posteriores daanálise, tem-se de ter cuidado em n?o fornecer ao paciente a solu??o de um sintoma ou atradu??o de um desejo até que ele esteja t?o próximo delas que só tenha de dar mais um passopara conseguir a explica??o por si próprio. Em anos anteriores, com freqüência tive ocasi?o dedescobrir que a comunica??o prematura de uma solu??o punha ao tratamento um fimintempestivo, devido n?o apenas às resistências que assim subitamente despertava, mas tambémao alívio que a solu??o trazia consigo. Neste ponto, porém, levantar-se-á uma obje??o. Será ent?o nossa tarefa alongar otratamento e n?o, pelo contrário, lhe dar fim t?o rapidamente quanto possível? N?o s?o osachaques do paciente devidos à sua falta de conhecimento e compreens?o e n?o constitui umdever esclarecê-lo t?o pronto quanto possível - isto é, t?o logo o próprio médico conhe?a asexplica??es? A resposta a esta pergunta exige uma breve digress?o sobre o significado deconhecimento e o mecanismo de cura na análise. ? verdade que nos primórdios da técnica analítica assumíamos uma vis?o intelectualistada situa??o. Dávamos alto valor ao conhecimento, pelo paciente, do que havia esquecido, e nistomal fazíamos distin??o entre o nosso conhecimento e o dele. Pensávamos ser uma verdadeirasorte se poderíamos obter informa??es sobre um esquecido trauma infantil a partir de outras fontes- dos pais, babás ou do próprio sedutor, por exemplo - como em alguns casos foi possível fazer; eapressávamo-nos a transmitir a informa??o e as provas de sua exatid?o ao paciente, naexpectativa certa de assim dar um fim rápido à neurose e ao tratamento. Era um sériodesapontamento quando o sucesso esperado n?o vinha. Como era possível que o paciente, queagora sabia a respeito de sua experiência traumática, todavia se comportasse ainda como sesobre ela n?o soubesse mais do que antes? Na verdade, contar e descrever-lhe o traumareprimido nem mesmo resultava em que alguma recorda??o dele lhe viesse à mente. Em um caso específico, a m?e de uma mo?a histérica confidenciou-me a experiênciahomossexual que contribuíra grandemente para fixa??o das crises da mo?a. A própria m?e haviasurpreendido a cena, mas a paciente esquecera-a completamente, embora houvesse ocorridoquando ela já se aproximava da puberdade. Pude ent?o efetuar uma observa??o muito instrutiva.Cada vez que eu repetia à mo?a a história da m?e, ela reagia com uma crise histérica após a qual87. esquecia mais uma vez a história. N?o há dúvida de que a paciente estava expressando umaresistência violenta contra o conhecimento que lhe estava sendo imposto. Por fim, simulouimbecilidade e uma completa perda de memória, a fim de proteger-se contra o que eu lhe haviacontado. Após isto, n?o havia, escolha exceto deixar de atribuir ao fato de saber, em si, aimport?ncia que anteriormente lhe havia sido concedida e p?r a ênfase nas resistências que, nopassado, haviam ocasionado o estado de desconhecimento e que ainda se achavam prontas paradefender esse estado. O conhecimento consciente, mesmo quando n?o era subseqüentementeexpulso outra vez, era impotente contra essas resistências. A estranha conduta dos pacientes, por serem capazes de combinar um conhecimentoconsciente com o desconhecimento, permanece inexplicável pela chamada psicologia normal.Para a psicanálise, entretanto, que reconhece a existência do inconsciente, ela n?o apresentadificuldade. O fen?meno que descrevemos, ademais, fornece o melhor apoio do ?ngulo dadiferencia??o topográfica. Os pacientes conhecem agora a experiência reprimida em seupensamento consciente, mas falta a este pensamento qualquer vincula??o com o lugar em que alembran?a reprimida, de uma ou outra maneira, está contida. Nenhuma mudan?a é possível atéque o processo consciente de pensamento tenha penetrado até esse lugar e lá superado asresistências da repress?o. ? exatamente como se fosse promulgado pelo Ministério da Justi?a umdecreto no sentido de que os delitos juvenis fossem tratados de modo decididamente demente.Enquanto esse decreto n?o chegar ao conhecimento dos magistrados locais, ou no caso de elesn?o pretenderem obedecê-lo, mas preferirem administrar a justi?a segundo suas próprias luzes,nenhuma mudan?a pode ocorrer no tratamento de determinados delinqüentes juvenis. Todavia, abem da completa exatid?o, dever-se-ia acrescentar que a comunica??o do material reprimido àconsciência do paciente n?o fica, entretanto, sem efeito. Ela n?o produz o resultado desejado deacabar com os sintomas, mas tem outras conseqüências. A princípio, desperta resistências, masdepois, quando estas foram superadas, estabelece um processo de pensamento no decorrer doqual a influência esperada da recorda??o inconsciente acaba por realizar-se. ? tempo, agora, que empreendamos um levantamento do jogo de for?as colocado em a??opelo tratamento. A for?a motivadora primária na terapia é o sofrimento do paciente e o desejo deser curado que deste se origina. A intensidade desta for?a motivadora é diminuída por diversosfatores - que n?o s?o descobertos até que a análise se acha em andamento -, sobretudo pelo quechamamos de ‘livro secundário da doen?a’; e mas ela deve ser mantida até o fim do tratamento.Cada melhora efetua uma sua diminui??o. Sozinha, porém, esta for?a motivadora n?o é suficientepara livrar-se da doen?a. Duas coisas lhe faltam para isto: n?o sabe que caminhos seguir parachegar a esse fim a n?o possui a necessária cota da energia para se opor às resistências. Otratamento analítico ajuda a remediar ambas as deficiências. Fornece as quantidades de energianecessárias para superar as resistências, pela mobiliza??o das energias que est?o prontas para atransferência; e, dando ao paciente informa??es no momento correto, mostra-lhe os caminhos aolongo dos quais deve dirigir essas energias. Com bastante freqüência, a transferência é capaz de88. remover os sintomas da doen?a por si mesma, mas só por pouco tempo - apenas enquanto elaprópria perdura. Neste caso, o tratamento é por sugest?o, e n?o, de modo algum, a psicanálise. Sómerece o último nome se a intensidade da transferência foi utilizada para a supera??o dasresistências. Somente ent?o a enfermidade tornou-se impossível, mesmo quando a transferênciafoi mais uma vez desfeita, o que é seu destino. No decurso do tratamento, ainda é estimulado outro fator útil, que é o interesse e acompreens?o intelectuais do paciente. Mas ele, sozinho, mal entra em considera??o, comparadoàs outras for?as que se acham empenhadas na luta, pois está sempre em perigo de perder seuvalor, em resultado da perturba??o de juízo que se origina das resistências. Assim, as novas fontesde for?a pelas quais o paciente é grato ao analista reduzem-se à transferência e à instru??o(através das comunica??es que lhe s?o feitas). O paciente, contudo, só faz uso da instru??o namedida em que é induzido a fazê-lo pela transferência; é por esta raz?o que nossa primeiracomunica??o deve ser retida até que uma forte transferência se tenha estabelecido. E isto,podemos acrescentar, vale para todas as comunica??es subseqüentes. Em cada caso, temos deesperar até que a perturba??o da transferência pelo aparecimento sucessivo de resistênciastransferenciais tenha sido removida.89. RECORDAR, REPETIR E ELABORAR (NOVAS RECOMENDA??ES SOBRE A T?CNICA DA PSICAN?LISE II) (1914) NOTA DO EDITOR INGL?S ERINNERN, WIEDERHOLEN UND DURCHARBEITEN (a) EDI??ES ALEM?S: 1914 Int. Z. Psychoanal., 2 (6), 485-91. 1918 S. K. S. N., 4, 441-52, (1922, 2? ed.) 1924 Technik und Metapsychol., 109-19 1925 G. S., 6, 109-19. 1931 Neurosenlehre und Technik, 385-96. 1946 G. W., 10, 126-36. (b) TRADU??O INGLESA: ‘Further Recommendations in the Technique of Psycho-Analysis: Recollection, Repetitionand Working-Through’90. 1924 C. P., 2, 366-76. (Trad. de Joan Riviere.) A presente tradu??o inglesa, com o título alterado, é vers?o modificada da publicada em1924. Em seu aparecimento original (ao final de 1914), o título deste artigo era: ‘WeitereRatschl?ge zur Technik der Psychoanalyse (II): Erinnern, Wiederholen und Durcharbeiten.’ O títuloda vers?o inglesa de 1924, citado acima, é tradu??o deste. De 1924 em diante, as edi??es alem?sadotaram o título mais curto. Este trabalho é digno de nota, à parte seu interesse técnico, por conter o primeiroaparecimento dos conceitos da ‘compuls?o à repeti??o’ (ver em [1]) e da ‘elabora??o’ (ver em [2]). RECORDAR, REPETIR E ELABORAR (NOVAS RECOMENDA??ES SOBRE A T?CNICADA PSICAN?LISE II) N?o me parece desnecessário continuar a lembrar aos estudiosos as altera??es degrandes conseqüências que a técnica psicanalítica sofreu desde os primórdios. Em sua primeirafase - a da catarse de Breuer - ela consistia em focalizar diretamente o momento em que o sintomase formava, e em esfor?ar-se persistentemente por reproduzir os processos mentais envolvidosnessa situa??o, a fim de dirigir-lhes a descarga ao longo do caminho da atividade consciente.Recordar e ab-reagir, com o auxílio, era a que, àquela época, se visava. A seguir, quando ahipnose foi abandonada, a tarefa transformou-se em descobrir, a partir das associa??es livres dopaciente, o que ele deixava de recordar. A resistência deveria ser contornada pelo trabalho dainterpreta??o e por dar a conhecer os resultados desta ao paciente. As situa??es que haviamocasionado a forma??o do sintoma e as outras anteriores ao momento em que a doen?a irrompeuconservaram seu lugar como foco de interesse; mas o elemento da ab-rea??o retrocedeu parasegundo plano e pareceu ser substituído pelo dispêndio de trabalho que o paciente tinha de fazerpor ser obrigado a superar sua censura das associa??es livres, de acordo com a regrafundamental da psicanálise. Finalmente, desenvolveu-se a técnica sistemática hoje utilizada, naqual o analista abandona a tentativa de colocar em foco um momento ou problema específicos.Contenta-se em estudar tudo o que se ache presente, de momento, na superfície da mente dopaciente, e emprega a arte da interpreta??o principalmente para identificar as resistências que láaparecem, e torná-las conscientes ao paciente. Disto resulta um novo tipo de divis?o de trabalho: omédico revela as resistências que s?o desconhecidas ao paciente; quando essas tiverem sidovencidas, o paciente amiúde relaciona as situa??es e vincula??es esquecidas sem qualquerdificuldade. O objetivo destas técnicas diferentes, naturalmente, permaneceu sendo o mesmo.Descritivamente falando, trata-se de preencher lacunas na memória; dinamicamente, é superarresistências devidas à repress?o.91. Ainda devemos ser gratos à velha técnica hipnótica por ter-nos apresentado processospsíquicos únicos de análise sob forma isolada ou esquemática. Somente isto poder-nos-ia ter dadoa coragem para criar situa??es mais complicadas no tratamento analítico e mantê-las claras diantede nós. Nesses tratamentos hipnóticos, o processo de recordar assumia forma muito simples. Opaciente colocava-se de volta numa situa??o anterior, que parecia nunca confundir com a atual, efornecia um relato dos processos mentais a ela pertencentes, na medida em que permaneciamnormais; acrescentava ent?o a isso tudo o que podia surgir como resultado da transforma??o dosprocessos, que na época haviam sido inconscientes, em conscientes. Neste ponto, interpolarei algumas considera??es que todo analista já viu confirmadas emsuas observa??es. Esquecer impress?es, cenas ou experiências quase sempre se reduz ainterceptá-las. Quando o paciente fala sobre estas coisas ‘esquecidas’, raramente deixa deacrescentar: ‘Em verdade, sempre o soube; apenas nunca pensei nisso.’ Amiúde expressadesapontamento por n?o lhe vierem à cabe?a coisas bastantes que possa chamar de ‘esquecidas’- em que nunca pensou desde que aconteceram. N?o obstante, mesmo este desejo é realizado,especialmente no caso das histerias de convers?o. O ‘esquecer’ torna-se ainda mais restritoquando avaliamos em seu verdadeiro valor as lembran?as encobridoras que t?o geralmente seacham presentes. Em certos casos, tive a impress?o de que a conhecida amnésia infantil, queteoricamente nos é t?o importante, é completamente contrabalan?ada pelas lembran?asencobridoras. N?o apenas algo, mas a totalidade do que é essencial na inf?ncia foi retido nessaslembran?as. Trata-se simplesmente de saber como extraí-lo delas pela análise. Elas representamos anos esquecidos da inf?ncia t?o adequadamente quanto o conteúdo manifesto de um sonhorepresenta os pensamentos oníricos. O outro grupo de processos psíquicos - fantasias, processos de referência, impulsosemocionais, vincula??es de pensamento - que, como atos puramente internos, n?o podem sercontrastados com impress?es e experiências, deve, em sua rela??o com o esquecer e o recordar,ser considerado separadamente. Nestes processos, acontece com extraordinária freqüência ser‘recordado’ algo que nunca poderia ter sido ‘esquecido’, porque nunca foi, em ocasi?o alguma,notado - nunca foi consciente. Com referência ao curso tomado pelos eventos psíquicos, parecen?o fazer nenhuma diferen?a se determinada ‘vincula??o de pensamento’ foi consciente e depoisesquecida ou se nunca, de modo algum, conseguiu tornar-se consciente. A convic??o que opaciente alcan?a no decurso de sua análise é inteiramente independente deste tipo de lembran?a. Nas muitas formas diferentes da neurose obsessiva, em particular, o esquecer restringe-seprincipalmente à dissolu??o das vincula??es de pensamento, ao deixar de tirar as conclus?escorretas e isolar lembran?as. Há um tipo especial de experiências da máxima import?ncia, para a qual lembran?aalguma, via de regra, pode ser recuperada. Trata-se de experiências que ocorreram em inf?ncia92. muito remota e n?o foram compreendidas na ocasi?o, mas que subseqüentemente foramcompreendidas e interpretadas. Obtém-se conhecimento delas através dos sonhos e é-se obrigadoa acreditar neles com base nas provas mais convincentes fornecidas pela estrutura da neurose.Ademais, podemos certificar-nos de que o paciente, após suas resistências haverem sidosuperadas, n?o mais invoca a ausência de qualquer lembran?a delas (qualquer sensa??o defamiliaridade com elas) como fundamento para recusar-se a aceitá-las. Este assunto, contudo,exige tanta cautela crítica e introduz tanta coisa nova e espantosa que reservá-lo-ei para umexame separado, juntamente com material apropriado. Sob a nova técnica, muito pouco, e com freqüência nada resta deste deliciosamente calmocurso de acontecimentos. Há certos casos que se comportam como aqueles sob a técnicahipnótica até certo ponto e só mais tarde deixam de fazê-lo, mas outros conduzem-sediferentemente desde o início. Se nos limitarmos a este segundo tipo, a fim de salientar adiferen?a, podemos dizer que o paciente n?o recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu,mas expressa-o pela atua??o ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz n?o como lembran?a, mascomo a??o; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo. Por exemplo, o paciente n?o diz que recorda que costumava ser desafiador e crítico emrela??o à autoridade dos pais; em vez disso, comporta-se dessa maneira para com o médico. N?ose recorda de como chegou a um impotente e desesperado impasse em suas pesquisas sexuaisinfantis; mas produz uma massa de sonhos e associa??es confusas, queixa-se de que n?oconsegue ter sucesso em nada e assevera estar fadado a nunca levar a cabo o que empreende.N?o se recorda de ter-se envergonhado intensamente de certas atividades sexuais e de ter tidomedo de elas serem descobertas; mas demonstra achar-se envergonhado do tratamento queagora empreendeu e tenta escondê-lo de todos. E assim por diante. Antes de mais nada, o paciente come?ará seu tratamento por uma repeti??o deste tipo.Quando anunciamos a regra fundamental da psicanálise a um paciente com uma vida cheia deacontecimentos e uma longa história de doen?a, e ent?o lhe pedimos para dizer-nos o que lhe vemà mente, esperamos que ele despeje um dilúvio de informa??es; mas, com freqüência, a primeiracoisa que acontece é ele nada ter a dizer. Fica silencioso e declara que nada lhe ocorre. Isto,naturalmente, é simplesmente a repeti??o de uma atitude homossexual que se evidencia comouma resistência contra recordar alguma coisa [ver em [1]]. Enquanto o paciente se acha emtratamento, n?o pode fugir a esta compuls?o à repeti??o; e, no final, compreendemos que esta é asua maneira de recordar. O que nos interessa, acima de tudo, é, naturalmente, a rela??o desta compuls?o àrepeti??o com a transferência e com a resistência. Logo percebemos que a transferência é, elaprópria, apenas um fragmento da repeti??o e que a repeti??o é uma transferência do passadoesquecido, n?o apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos da situa??oatual. Devemos estar preparados para descobrir, portanto, que o paciente se submete àcompuls?o, à repeti??o, que agora substitui o impulso a recordar, n?o apenas em sua atitude93. pessoal para com o médico, mas também em cada diferente atividade e relacionamento quepodem ocupar sua vida na ocasi?o - se, por exemplo, se enamora, incumbe-se de uma tarefa ouinicia um empreendimento durante o tratamento. Também o papel desempenhado pela resistênciaé facilmente identificável. Quanto maior a resistência, mais extensivamente a atua??o (acting out)(repeti??o) substituirá o recordar, pois o recordar ideal do que foi esquecido, que ocorre nahipnose, corresponde a um estado no qual a resistência foi posta completamente de lado. Se opaciente come?a o tratamento sob os auspícios de uma transferência positiva branda eimpronunciada, ela lhe torna possível, de início, desenterrar suas lembran?as tal como o faria sobhipnose, e, durante este tempo, seus próprios sintomas patológicos acham-se inativos. Mas se, àmedida que a análise progride, a transferência se torna hostil ou excessivamente intensa e,portanto, precisando de repress?o, o recordar imediatamente abre caminho à atua??o (acting out).Daí por diante, as resistências determinam a seqüência do material que deve ser repetido. Opaciente retira do arsenal do passado as armas com que se defende contra o progresso dotratamento - armas que lhe temos de arrancar, uma por uma. Aprendemos que o paciente repete ao invés de recordar e repete sob as condi??es daresistência. Podemos agora perguntar o que é que ele de fato repete ou atua (acts out). A respostaé que repete tudo o que já avan?ou a partir das fontes do reprimido para sua personalidademanifesta - suas inibi??es, suas atitudes inúteis e seus tra?os patológicos de caráter. Repetetambém todos os seus sintomas, no decurso do tratamento. E podemos agora ver que, ao chamaraten??o para a compuls?o à repeti??o, n?o obtivemos um fato novo, mas apenas uma vis?o maisampla. Só esclarecemos a nós mesmos que o estado de enfermidade do paciente n?o pode cessarcom o início de sua análise, e que devemos tratar sua doen?a n?o como um acontecimento dopassado, mas como uma for?a atual. Este estado de enfermidade é colocado, fragmento porfragmento, dentro do campo e alcance do tratamento e, enquanto o paciente o experimenta comoalgo real e contempor?neo, temos de fazer sobre ele nosso trabalho terapêutico, que consiste, emgrande parte, em remontá-lo ao passado. O recordar, tal como era induzido pela hipnose, só podia dar a impress?o de umexperimento realizado em laboratório. O repetir, tal como é induzido no tratamento analítico,segundo a técnica mais recente, implica, por outro lado, evocar um fragmento da vida real; e, poressa raz?o, n?o pode ser sempre inócuo e irrepreensível. Esta considera??o revela todo oproblema do que é t?o amiúde inevitável - a ‘deteriora??o durante o tratamento’. Primeiro e antes de tudo, o início do tratamento em si ocasiona uma mudan?a na atitudeconsciente do paciente para com sua doen?a. Ele habitualmente se contentava em lamentá-la,desprezá-la como absurda e subestimar sua import?ncia; quanto ao resto, estendeu àsmanifesta??es dela a política de avestruz de repress?o que adotara em rela??o às suas origens.Assim, pode acontecer que n?o saiba corretamente em que condi??es sua fobia se manifesta, n?oescute o fraseado preciso de suas idéias obsessivas ou n?o apreenda o intuito real de seu impulsoobsessivo. O tratamento, naturalmente, n?o é auxiliado por isto. O paciente tem de criar coragem94. para dirigir a aten??o para os fen?menos de sua moléstia. Sua enfermidade em si n?o mais deveparecer-lhe desprezível, mas sim tornar-se um inimigo digno de sua têmpera, um fragmento de suapersonalidade, que possui sólido fundamento para existir e da qual coisas de valor para sua vidafutura têm de ser inferidas. Acha-se assim preparado o caminho, desde o início, para umareconcilia??o com o material reprimido que se está expressando em seus sintomas, enquanto, aomesmo tempo, acha-se lugar para uma certa toler?ncia quanto ao estado de enfermidade. Se estanova atitude em rela??o à doen?a intensifica os conflitos e p?e em evidência sintomas que atéent?o haviam permanecido vagos, podemos facilmente consolar o paciente mostrando-lhe que setrata apenas de agravamentos necessários e temporários e que n?o se pode vencer um inimigoausente ou fora de alcance. A resistência, contudo, pode explorar a situa??o para seus própriosfins e abusar da licen?a de estar doente. Ela parece dizer: ‘Veja o que acontece se eu realmentetransijo com tais coisas. N?o tinha raz?o em confiá-las à repress?o?’ Pessoas jovens e pueris, emparticular, inclinam-se a transformar a necessidade, imposta pelo tratamento, de prestar aten??o àsua doen?a, numa desculpa bem-vinda para regalar-se em seus sintomas. Outros perigos surgem do fato de que, no curso do tratamento, novos e mais profundosimpulsos instintuais, que até ent?o n?o se haviam feito sentir, podem vir a ser ‘repetidos’.Finalmente, é possível que as a??es do paciente, fora da transferência, possam causar-lhe danotemporário em sua vida normal, ou até mesmo terem sido escolhidos para invalidarpermanentemente suas perspectivas de restabelecimento. As táticas a serem adotadas pelo médico, nesta situa??o, s?o facilmente justificadas. Paraele, recordar à maneira antiga - reprodu??o no campo psíquico - é o objetivo a que adere, aindaque saiba que tal objetivo n?o pode ser atingido na nova técnica. Ele está preparado para uma lutaperpétua com o paciente, para manter na esfera psíquica todos os impulsos que este últimogostaria de dirigir para a esfera motora; e comemora como um triunfo para o tratamento o fato depoder ocasionar que algo que o paciente deseja descarregar em a??o seja utilizado através dotrabalho de recordar. Se a liga??o através da transferência transformou-se em algo de modo algumutilizável, o tratamento é capaz de impedir o paciente de executar algumas das a??es repetitivasmais importantes e utilizar sua inten??o de assim proceder, in statu nascendi, como material para otrabalho terapêutico. Protege-se melhor o paciente de prejuízos ocasionados pela execu??o de umde seus impulsos, fazendo-o prometer n?o tomar quaisquer decis?es importantes que lhe afetem avida durante o tempo do tratamento - por exemplo, n?o escolher qualquer profiss?o ou objetoamoroso definitivo - mas adiar todos os planos desse tipo para depois de seu restabelecimento. Ao mesmo tempo, deixa-se voluntariamente intocado um tanto da liberdade pessoal dopaciente quanto é compatível com estas restri??es, e n?o se o impede de levar a cabo inten??essem import?ncia, mesmo que sejam tolas; n?o nos esque?amos de que, na realidade, é apenasatravés de sua própria experiência e infortúnios que uma pessoa se torna sagaz. Há tambémpessoas a quem n?o se pode impedir de mergulharem em algum projeto inteiramente indesejáveldurante o tratamento e que somente depois ficam prontas para a análise ou a esta acessíves.95. Ocasionalmente, também, está sujeito a acontecer que os instintos indomados se afirmem antesque haja tempo de colocar-lhes as rédeas da transferência, ou que os la?os que ligam o pacienteao tratamento sejam por ele rompidos numa a??o repetitiva. Como exemplo extremo disto, possocitar o caso de uma senhora de idade que havia repetidamente fugido de casa e do marido emestado crepuscular e ido para onde ninguém sabia, sem sequer tornar-se consciente de seu motivopara partir desta maneira. Ela chegou ao tratamento com uma acentuada transferência afetuosaque cresceu em intensidade com misteriosa rapidez nos primeiros dias; ao final da semana, havia-me abandonado também, antes que tivesse tempo de dizer-lhe algo que pudesse ter impedido estarepeti??o. Toda vida, o instrumento principal para reprimir a compuls?o do paciente à repeti??o etransformá-la num motivo para recordar reside no manejo da transferência. Tornamos a compuls?oinócua, e na verdade útil, concedendo-lhe o direito de afirmar-se num campo definido. Admitimo-laà transferência como a um playground no qual se espera que nos apresente tudo no tocante ainstintos patogênicos, que se acha oculto na mente do paciente. Contanto que o pacienteapresente complacência bastante para respeitar as condi??es necessárias da análise, alcan?amosnormalmente sucesso em fornecer a todos os sintomas da moléstia um novo significadotransferencial e em substituir sua neurose comum por uma ‘neurose de transferência’, da qualpode ser curado pelo trabalho terapêutico. A transferência cria, assim, uma regi?o intermediáriaentre a doen?a e a vida real, através da qual a transi??o de uma para a outra é efetuada. A novacondi??o assumiu todas as características da doen?a, mas representa uma doen?a artificial, que é,em todos os pontos, acessível à nossa interven??o. Trata-se de um fragmento de experiência real,mas um fragmento que foi tornado possível por condi??es especialmente favoráveis, e que é denatureza provisória. A partir das rea??es repetitivas exibidas na transferência, somos levados aolongo dos caminhos familiares até o despertar das lembran?as, que aparecem sem dificuldade, porassim dizer, após a resistência ter sido superada. Poder-me-ia deter neste ponto, n?o fosse o título deste artigo, que me obriga a debaterainda um ponto na técnica analítica. O primeiro passo para superar as resistências é dado, comosabemos, pelo fato de o analista revelar a resistência que nunca é reconhecida pelo paciente, efamiliarizá-lo com ela. Ora, parece que os principiantes na clínica analítica inclinam-se a encarareste passo introdutório como a totalidade do seu trabalho. Amiúde me têm sido pedidos conselhossobre casos em que o médico se queixou de ter apontado a resistência ao paciente e, n?oobstante, mudan?a alguma ter-se efetuado; na verdade, a resistência tornou-se ainda mais forte etoda situa??o ficou mais obscura do que nunca. O tratamento parecia n?o progredir. Esteprenúncio sombrio sempre se mostrou err?neo. O tratamento, via de regra, progredia muitosatisfatoriamente. O analista simplesmente se havia esquecido de que o fato de dar à resistênciaum nome poderia n?o resultar em sua cess?o imediata. Deve-se dar ao paciente tempo paraconhecer melhor esta resistência com a qual acabou de se familiarizar, para elaborá-la, parasuperá-la, pela continua??o, em desafio a ela, do trabalho analítico segundo a regra fundamental96. da análise. Só quando a resistência está em seu auge é que pode o analista, trabalhando emcomum com o paciente, descobrir os impulsos instintuais reprimidos que est?o alimentando aresistência; e é este tipo de experiência que convence o paciente da existência e do poder de taisimpulsos. O médico nada mais tem a fazer sen?o esperar e deixar as coisas seguirem seu curso,que n?o pode ser evitado nem continuamente apressado. Se se apegar a esta convic??o, amiúdeser-lhe-á poupada a ilus?o de ter fracassado, quando, de fato, está conduzindo o tratamentosegundo as linhas corretas. Esta elabora??o das resistências pode, na prática, revelar-se uma tarefa árdua para osujeito da análise e uma prova de paciência para o analista. Todavia, trata-se da parte do trabalhoque efetua as maiores mudan?as no paciente e que distingue o tratamento analítico de qualquertipo de tratamento por sugest?o. De um ponto de vista teórico, pode-se correlacioná-la com a ‘ab-rea??o’ das cotas de afeto estranguladas pela repress?o - uma ab-rea??o sem a qual o tratamentohipnótico permanecia ineficaz.97. OBSERVA??ES SOBRE O AMOR TRANSFERENCIAL (NOVAS RECOMENDA??ES SOBRE A T?CNICA DA PSICAN?LISE III) (1915 [1914]) NOTA DO EDITOR INGL?S BEMERKUNGEN ?BER DIE ?BERTRAGUNGSLIEBE (a) EDI??ES ALEM?S: 1915 Int. Z. Psychoanl., 3, (1), 1-11. 1918 S. D. S. N., 4, 453-69. (1922, 2? ed.) 1924 Technik und Metapsychol. 120-35. 1925 G. S., 6, 120-35. 1931 Neurosenlehre und Technik, 385-96. 1946 G. W., 10, 306-21. (b) TRADU??O INGLESA: ‘Further Recommendations in the Technique of Psycho-Analysis: Observations onTransference-Love’ 1924 C.P., 2, 377-91. (Trad. de Joan Riviere.) A presente traduc?o inglesa, com o título alterado, é vers?o modificada da publicada em1924.98. Quando este artigo foi publicado pela primeira vez (em come?os de 1915), seu título era:‘Weitere Ratschl?ge zur Technik der Psychoanalyse (III): Bemerkungen über die?bertragungsliebe.’ O título da vers?o inglesa de 1924, tal como fornecido acima, é tradu??o disto.As edi??es alem?s, de 1924 em diante, adotaram o título mais curto. O Dr. Erneste Jones nos conta (1955, 266) que Freud considerava este o melhor dapresente série de trabalhos técnicos. Uma carta escrita por Freud a Ferenczi, em 13 de dezembrode 1931, com respeito às inova??es técnicas introduzidas pelo último, constitui interessante pós-escrito a este artigo. Ela foi publicada pelo Dr. Jones quase no final do Capítulo IV de seu terceirovolume da biografia de Freud (1957, 174 e segs.) OBSERVA??ES SOBRE O AMOR TRANSFERENCIAL (NOVAS RECOMENDA??ESSOBRE A T?CNICA DA PSICAN?LISE III) Todo principiante em psicanálise provavelmente se sente alarmado, de início, pelasdificuldades que lhe est?o reservadas quando vier a interpretar as associa??es do paciente e lidarcom a reprodu??o do reprimido. Quando chega a ocasi?o, contudo, logo aprende a encarar estasdificuldades como insignificantes e, ao invés, fica convencido de que as únicas dificuldadesrealmente sérias que tem de enfrentar residem no manejo da transferência. Entre as situa??es que surgem a este respeito, selecionarei uma que é muito nitidamentedefinida; e selecioná-la-ei, em parte, porque ocorre muito amiúde e é t?o importante em seusaspectos reais e em parte devido ao seu interesse teórico. O que tenho em mente é o caso em queuma paciente demonstra, mediante indica??es inequívocas, ou declara abertamente, que seenamorou, como qualquer outra mulher mortal poderia fazê-lo, do médico que a está analisando.Esta situa??o tem seus aspectos aflitivos e c?micos, bem como os sérios. Ela é tambémdeterminada por tantos e t?o complicados fatores, é t?o inevitável e t?o difícil de esclarecer, queuma discuss?o sobre o assunto, para atender a uma necessidade vital da técnica analítica, já hámuito se fazia necessária. Mas visto que nós, que rimos das fraquezas de outras pessoas, nemsempre estamos livres delas, até agora n?o estivemos precisamente apressados em cumprir estatarefa. Deparamos constantemente com a obriga??o à discri??o profissional - discri??o que n?o sepode dispensar na vida real, mas que é inútil em nossa ciência. Na medida em que as publica??espsicanalíticas também fazem parte da vida real, temos aqui uma contradi??o insolúvel.Recentemente desprezei esta quest?o da discri??o a certa altura, e demonstrei como esta mesmasitua??o transferencial retardou o desenvolvimento da terapia psicanalítica durante sua primeira99. década. Para um leigo instruído (a pessoa civilizada ideal, em rela??o à psicanálise), as coisas quese relacionam com o amor s?o incomensuráveis; acham-se, por assim dizer, escritas numa páginaespecial em que nenhum outro texto é tolerado. Se uma paciente enamorou-se de seu médico,parece a tal leigo que s?o possíveis apenas dois desfechos. Um, que acontece de modocomparativamente raro, é que todas as circunst?ncias permitam uma uni?o legal e permanenteentre eles; o outro, mais freqüente, é que médico e paciente se separem e abandonem o trabalhoque come?aram e que deveria levar ao restabelecimento dela, como se houvesse sidointerrompido por algum fen?meno elementar. Há, sem dúvida, um terceiro desfecho concebível,que até mesmo parece compatível com a continua??o do tratamento. ? que eles iniciam umrelacionamento amoroso ilícito e que n?o se destina a durar para sempre. Mas esse caminho éimpossível por causa da moralidade convencional e dos padr?es profissionais. N?o obstante, onosso leigo implorará ao analista que lhe assegure, t?o inequivocamente quanto possível, que estaterceira alternativa se acha excluída. ? claro que um psicanalista tem de encarar as coisas de um ponto de vista diferente. Tomemos o caso do segundo desfecho da situa??o que estamos considerando. Após apaciente ter-se enamorado de seu médico, eles se separam; o tratamento é abandonado. Mas logoo estado da paciente obriga-a a fazer uma segunda tentativa de análise, com outro médico. O queacontece a seguir é que ela sente se ter enamorado deste segundo médico também; e, se rompercom ele e recome?ar outra vez, o mesmo acontecerá com o terceiro médico, e assim por diante.Este fen?meno, que ocorre constantemente e que é, como sabemos, um dos fundamentos dateoria psicanalítica, pode ser avaliado a partir de dois pontos de vista, o do médico e o da pacienteque dele necessita. Para o médico, o fen?meno significa um esclarecimento valioso e uma advertência útilcontra qualquer tendência a uma contratransferência que pode estar presente em sua própriamente. Ele deve reconhecer que o enamoramento da paciente é induzido pela situa??o analítica en?o deve ser atribuído aos encantos de sua própria pessoa; de maneira que n?o tem nenhummotivo para orgulhar-se de tal ‘conquista’, como seria chamada fora da análise. E é sempre bomlembrar-se disto. Para a paciente, contudo, há duas alternativas: abandonar o tratamentopsicanalítico ou aceitar enamorar-se de seu médico como um destino inelutável. N?o tenho dúvida de que os parentes e amigos da paciente se decidir?o enfaticamentepela primeira destas duas alternativas, assim como o analista optará pela segunda. Mas acho quetemos aqui um caso em que a decis?o n?o pode ser deixada ao terno - ou antes, egoísta eciumento - cuidado dos parentes. Somente o bem-estar da paciente deveria ser a pedra de toque;o amor dos parentes n?o pode insistir que é indispensável para a consecu??o de certos fins.Qualquer parente que adote a atitude de Tolstoi em rela??o ao problema pode permanecer naposse imperturbada de sua esposa ou filha; mas terá de tentar suportar o fato de que ela, de sua100. parte, mantém a neurose e a interferência com sua capacidade de amar que aquela acarreta. Asitua??o, afinal, é semelhante à de um tratamento ginecológico. Além disso, o pai ou maridociumento está grandemente equivocado se pensa que a paciente escapará de enamorar-se domédico se ele entregá-la a algum outro tipo de tratamento, que n?o a análise, para combater-lhe aneurose. Pelo contrário, a única diferen?a será que um amor deste tipo, fadado a permaneceroculto e n?o analisado, nunca poderá prestar ao restabelecimento da paciente a contribui??o que aanálise dele teria extraído. Chegou ao meu conhecimento que alguns médicos que praticam a análise preparamfreqüentemente suas pacientes para o surgimento da transferência erótica ou até mesmo asinstam a ‘ir em frente a enamorar-se do médico, de modo a que o tratamento possa progredir’.Dificilmente posso imaginar procedimento mais insensato. Assim procedendo, o analista priva ofen?meno do elemento de espontaneidade que é t?o convincente e cria para si próprio, no futuro,obstáculos difíceis de superar. ? primeira vista, certamente n?o parece que o fato de a paciente se enamorar natransferência possa resultar em qualquer vantagem para o tratamento. Por mais dócil que tenhasido até ent?o, ela repentinamente perde toda a compreens?o do tratamento e todo o interessenele, e n?o falará ou ouvirá a respeito de nada que n?o seja o seu amor, que exige que sejaretribuído. Abandona seus sintomas ou n?o lhes presta aten??o; na verdade, declara que está boa.Há uma completa mudan?a de cena; é como se uma pe?a de fingimento houvesse sidointerrompida pela súbita irrup??o da realidade - como quando, por exemplo, um grito de incêndiose erguer durante uma representa??o teatral. Nenhum médico que experimente isto pela primeiravez achará fácil manter o controle sobre o tratamento analítico e livrar-se da ilus?o de que otratamento realmente chegou ao fim. Uma pequena reflex?o capacita-nos a encontrar orienta??o. Primeiro e antes de tudo,mantém-se na mente a suspeita de que tudo que interfere com a continua??o do tratamento podeconstituir express?o da resistência. N?o pode haver dúvida de que a irrup??o de uma apaixonadaexigência de amor é, em grande parte, trabalho da resistência. Há muito notaram-se na pacientesinais de uma transferência afetuosa, e p?de-se ter certeza de que a docilidade dela, suaaceita??o das explica??es analíticas, sua notável compreens?o e o alto grau de inteligência queapresentava deveriam ser atribuídos a esta atitude em rela??o ao médico. Agora, tudo isto passou.Ela ficou inteiramente sem compreens?o interna (insight) e parece estar absorvida em seu amor.Ademais, esta modifica??o ocorre muito regularmente na ocasi?o precisa em que se está tentandolevá-la a admitir ou recordar algum fragmento particularmente aflitivo e pesadamente reprimido dahistória da sua vida. Ela esteve enamorada, portanto, por longo tempo; mas agora a resistênciaestá come?ando a utilizar seu amor a fim de estorvar a continua??o do tratamento, desviar todo oseu interesse do trabalho e colocar o analista em posi??o canhestra. Se se examinar a situa??o mais de perto, reconhece-se a influência de motivos quecomplicam ainda mais as coisas - dos quais, alguns acham-se vinculados ao enamoramento e101. outros s?o express?es específicas da resistência. Do primeiro tipo s?o os esfor?os da paciente emcertificar-se de sua irresistibilidade, em destruir a autoridade do médico rebaixando-o ao nível deamante e em conquistar todas as outras vantagens prometidas, que s?o incidentais à satisfa??o doamor. Com referência à resistência, podemos suspeitar que, ocasionalmente, ela faz uso de umadeclara??o de amor da paciente como meio de colocar à prova a severidade do analista, demaneira que, se ele mostra sinais de complacência, pode esperar se chamado à ordem por isso.Acima de tudo, porém, fica-se com a impress?o de que a resistência está agindo como um agentprovocateur; ela intensifica o estado amoroso da paciente e exagera sua disposi??o à rendi??osexual, a fim de justificar ainda mais enfaticamente o funcionamento da repress?o, ao apontar osperigos de tal licenciosidade. Todos estes motivos acessórios, que em casos mais simples podemn?o se achar presente, foram, como sabemos, encarados por Adler como parte essencial de todo oprocesso. Mas como deve o analista comportar-se, a fim de n?o fracassar nessa situa??o, se estiverpersuadido de que o tratamento deve ser levado avante, apesar desta transferência erótica, e quedeve enfrentá-la com calma? Ser-me-ia fácil enfatizar os padr?es universalmente aceitos de moralidade e insistir que oanalista nunca deve, em quaisquer circunst?ncias aceitar ou retribuir os ternos sentimentos que lhes?o oferecidos; que, ao invés disso, deve ponderar que chegou sua vez de apresentar à mulherque o ama as exigências da moralidade social e a necessidade de renúncia, conseguir fazê-lasabandonar seus desejos e, havendo dominado o lado animal do seu eu (self), prosseguir com otrabalho da análise. N?o atenderei, contudo, a estas expectativas - nem a primeira nem a segunda delas. Aprimeira, porque n?o estou escrevendo para pacientes, mas sim para médicos que têm sériasdificuldades com que lutar, e também porque, neste caso, posso remontar a prescri??o moral à suafonte, ou seja, a conveniência. Encontro-me, nesta ocasi?o, na feliz posi??o de poder substituir oimpedimento moral por considera??es de técnica analítica, sem qualquer altera??o no resultado. Ainda mais decididamente, contudo, recuso-me a atender à segunda das expectativas quemencionei. Instigar a paciente a suprimir, renunciar ou sublimar seus instintos, no momento em queela admitiu sua transferência erótica, seria, n?o uma maneira analítica de lidar com eles, mas umamaneira insensata. Seria exatamente como se, após invocar um espírito dos infernos, medianteastutos encantamentos, devêssemos mandá-lo de volta para baixo, sem lhe haver feito uma únicapergunta. Ter-se-ia trazido o reprimido à consciência, apenas para reprimi-lo mais uma vez, umsusto. N?o devemos iludir-nos sobre o êxito de qualquer procedimento desse tipo. Como sabemos,as paix?es pouco s?o afetadas por discursos sublimes. A paciente sentirá apenas humilha??o en?o deixará de vingar-se por ela. Tampouco posso eu advogar um caminho intermediário, que a certas pessoas serecomendaria como especialmente engenhoso. Consistiria em declarar que se retribuem osamorosos sentimentos da paciente, mas, ao mesmo tempo, em evitar qualquer complementa??o102. física desta afei??o, até que se possa orientar o relacionamento para canais mais calmos e elevá-lo a um nível mais alto. Minha obje??o a este expediente é que o tratamento analítico se baseia nasinceridade, e neste fato reside grande parte de seu efeito educativo e de seu valor ético. ?perigoso desviar-se deste fundamento. Todo aquele que se tenha embebido na técnica analítican?o mais será capaz de fazer uso das mentiras e fingimentos que um médico normalmente achainevitáveis; e se, com a melhor das inten??es, tentar fazê-lo, é muito provável que se traia. Vistoexigirmos estrita sinceridade de nossos pacientes, colocamos em perigo toda a nossa autoridade,se nos deixarmos ser por eles apanhados num desvio da verdade. Além disso, a experiência de sedeixar levar um pouco por sentimentos ternos em rela??o à paciente n?o é inteiramente semperigo. Nosso controle sobre nós mesmos n?o é t?o completo que n?o possamos subitamente, umdia, ir mais além do que havíamos pretendido. Em minha opini?o, portanto, n?o devemosabandonar a neutralidade para com a paciente, que adquirimos por manter controlada acontratransferência. Já deixei claro que a técnica analítica exige do médico que ele negue à paciente queanseia por amor a satisfa??o que ela exige. O tratamento deve ser levado a cabo na abstinê isto n?o quero significar apenas a abstinência física, nem a priva??o de tudo o que a pacientedeseja, pois talvez nenhuma pessoa enferma pudesse tolerar isto. Em vez disso, fixarei comoprincípio fundamental que se deve permitir que a necessidade e anseio da paciente nela persistam,a fim de poderem servir de for?as que a incitem a trabalhar e efetuar mudan?as, e que devemoscuidar de apaziguar estas for?as por meio de substitutos. O que poderíamos oferecer nunca seriamais que um substituto, pois a condi??o da paciente é tal que, até que suas repress?es sejamremovidas, ela é incapaz de alcan?ar satisfa??o real. Admitamos que este princípio fundamental de o tratamento ser levado a cabo naabstinência estenda-se muito além do caso isolado que estamos aqui considerando, e que elenecessite ser completamente debatido, a fim de podermos definir os limites de sua possívelaplica??o. Todavia, abordaremos agora este assunto, mas manter-nos-emos t?o próximos quantopossível da situa??o de que partimos. O que aconteceria se o médico se comportassediferentemente e, supondo que ambas as partes fossem livres, se aproveitasse dessa liberdadepara retribuir o amor da paciente e acalmar sua necessidade de afei??o? Se ele houvesse sido guiado pelo cálculo de que esta concord?ncia de sua parte lhegarantiria o domínio sobre a paciente e assim capacitá-lo-ia a influenciá-la a realizar as tarefasexigidas pelo tratamento e, dessa maneira, liberar-se permanentemente de sua neurose, ent?o aexperiência inevitavelmente mostrar-lhe-ia que seu cálculo estava errado. A paciente alcan?aria oobjetivo dela, mas ele nunca alcan?aria o seu. O que aconteceria ao médico e à paciente seriaapenas o que aconteceu, segundo a divertida anedota, ao pastor e ao corretor de seguros. Ocorretor de seguros, livre pensador, estava à morte e seus parentes insistiram em trazer umhomem de deus para convertê-lo antes de morrer. A entrevista durou tanto tempo que aqueles que103. esperavam do lado de fora come?aram a ter esperan?as. Por fim, a porta do quarto do doente seabriu. O livre pensador n?o havia sido convertido, mas o pastor foi embora com um seguro. Se os avan?os da paciente fossem retribuídos, isso constituiria grande triunfo para ela,mas uma derrota completa para o tratamento. Ela teria alcan?ado sucesso naquilo por que todosos pacientes lutam na análise - teria tido êxito em atuar (acting out), em repetir na vida real o quedeveria apenas ter lembrado, reproduzido como material psíquico e mantido dentro da esfera doseventos psíquicos. No curso ulterior do relacionamento amoroso, ela expressaria todas as inibi??ese rea??es patológicas de sua vida erótica, sem que houvesse qualquer possibilidade de corrigi-las;e o episódio penoso terminaria em remorso e num grande fortalecimento de sua propens?o àrepress?o. O relacionamento amoroso, em verdade, destrói a suscetibilidade da paciente àinfluência do tratamento analítico. Uma combina??o dos dois seria impossível. ?, portanto, t?o desastroso para a análise que o anseio da paciente por amor sejasatisfeito, quanto que seja suprimido. O caminho que o analista deve seguir n?o é nenhum destes;é um caminho para o qual n?o existe modelo na vida real. Ele tem de tomar cuidado para n?o seafastar do amor transferencial, repeli-lo ou torná-lo desagradável para a paciente; mas deve, demodo igualmente resoluto, recusar-lhe qualquer retribui??o. Deve manter um firme domínio doamor transferencial, mas tratá-lo como algo irreal, como uma situa??o que se deve atravessar notratamento e remontar às suas origens inconscientes e que pode ajudar a trazer tudo que se achamuito profundamente oculto na vida erótica da paciente para sua consciência e, portanto, paradebaixo de seu controle. Quanto mais claramente o analista permite que se perceba que ele está àprova de qualquer tenta??o, mais prontamente poderá extrair da situa??o seu conteúdo analítico. Apaciente, cuja repress?o sexual naturalmente ainda n?o foi removida, mas simplesmenteempurrada para segundo plano, sentir-se-á ent?o segura o bastante para permitir que todas assuas precondi??es para amar, todas as fantasias que surgem de seus desejos sexuais, todas ascaracterísticas pormenorizadas de seu estado amoroso venham à luz. A partir destas, ela própriaabrirá o caminho para as raízes infantis de seu amor. Existe, é verdade, determinada classe de mulheres com quem esta tentativa de preservara transferência erótica para fins do trabalho analítico, sem satisfazê-la, n?o logrará êxito. Trata-sede mulheres de paix?es poderosas, que n?o toleram substitutos. S?o filhas da natureza que serecusam a aceitar o psíquico em lugar do material e que, nas palavras do poeta, s?o acessíveisapenas à ‘lógica da sopa, com bolinhos por argumentos’. [‘Suppenlongik mit Kn?delgründen’, de‘Die Wanderraten’ de Heine. (Transcrito erradamente por Freud: ‘Kn?delargumenten’.)] Com taispessoas tem-se de escolher entre retribuir seu amor ou ent?o acarretar para si toda a inimizade deuma mulher desprezada. Em nenhum dos casos se podem salvaguardar os interesses dotratamento. Tem-se de bater em retirada, sem sucesso, e tudo o que se pode fazer é revolver naprópria mente o problema de como é que uma capacidade de neurose se liga a t?o obstinadanecessidade de amor. Muitos analistas indubitavelmente estar?o de acordo sobre o método pelo qual outras104. mulheres, menos violentas em seu amor, podem ser gradativamente levadas a adotar a atitudeanalítica. O que fazemos, acima de tudo, é acentuar para a paciente o elemento inequívoco deresistência nesse ‘amor’. O amor genuíno, dizemos, torná-la-ia dócil e intensificaria sua prestezaem solucionar os problemas de seu caso, simplesmente porque o homem de quem estáenamorada espera isso dela. Em tal caso, ela alegremente escolheria a estrada da conclus?o dotratamento, a fim de adquirir valor aos olhos do médico e preparar-se para a vida real, onde estesentimento de amor poderia encontrar lugar adequado. Em vez disso, apontamos nós, ela estámostrando um espírito teimoso e rebelde, abandonou todo o interesse no tratamento e claramenten?o sente respeito pelas convic??es bem fundadas do médico. Está assim expressando umaresistência, sob o disfarce de estar enamorada dele; e, além disso, n?o se compunge por colocá-lonuma situa??o difícil. Pois, se ele recusa seu amor, como o dever e a compreens?o compelem-noa fazer, ela pode representar o papel de mulher desprezada e ent?o afastar-se de seus esfor?osterapêuticos por vingan?a e ressentimento, exatamente como agora está fazendo por amorostensivo. Como segundo argumento contra a genuinidade desse amor, apresentamos o fato de queele n?o exibe uma só característica nova que se origine da situa??o atual, mas comp?e-seinteiramente de repeti??es e cópias de rea??es anteriores, inclusive infantis. Prometemos provarisso mediante uma análise pormenorizada do comportamento da paciente no amor. Se se acrescenta a dose necessária de paciência a estes argumentos, é geralmentepossível superar a difícil situa??o e continuar o trabalho com um amor que foi moderado outransformado; o trabalho visa ent?o a desvendar a escolha objetal infantil da paciente e asfantasias tecidas ao redor dela. Todavia, gostaria agora de examinar estes argumentos com olhos críticos e levantar aquest?o de saber se, apresentando-os à paciente, estamos realmente dizendo a verdade, ou sen?o nos estamos valendo, em nosso desespero, de ocultamentos e deturpa??es. Em outraspalavras: podemos verdadeiramente dizer que o estado de enamoramento que se manifesta notratamento analítico n?o é real? Acho que dissemos à paciente a verdade, mas n?o toda a verdade, sem atentar para asconseqüências. Dos nossos dois argumentos, o primeiro é o mais forte. O papel desempenhadopela resistência no amor transferencial é inquestionável e muito considerável. Entretanto, aresistência, afinal de contas, n?o cria esse amor; encontra-o pronto, à m?o, faz uso dele e agravasuas manifesta??es. Tampouco a genuinidade do fen?meno deixa de ser provada pela resistência.O segundo argumento é muito mais débil. ? verdade que o amor consiste em novas adi??es deantigas características e que ele repete rea??es infantis. Mas este é o caráter essencial de todoestado amoroso. N?o existe estado deste tipo que n?o reproduza protótipos infantis. ?precisamente desta determina??o infantil que ele recebe seu caráter compulsivo, beirando, como ofaz, o patológico. O amor transferencial possui talvez um grau menor de liberdade do que o amor105. que aparece na vida comum e é chamado de normal; ele exibe sua dependência do padr?o infantilmais claramente e é menos adaptável e capaz de modifica??o; mas isso é tudo, e n?o o que éessencial. Por que outros sinais pode a genuinidade de um amor ser reconhecida? Por sua eficácia,sua utilidade em alcan?ar o objetivo do amor? A esse respeito, o amor transferencial n?o pareceficar devendo nada a ninguém; tem-se a impress?o de que se poderia obter dele qualquer coisa. Resumamos, portanto. N?o temos o direito de contestar que o estado amoroso que faz seuaparecimento no decurso do tratamento analítico tenha o caráter de um amor ‘genuíno’. Se parecet?o desprovido de normalidade, isto é suficientemente explicado pelo fato de que estar enamoradona vida comum, fora da análise, é também mais semelhante aos fen?menos mentais anormais queaos normais. N?o obstante, o amor transferencial caracteriza-se por certos aspectos que lheasseguram posi??o especial. Em primeiro lugar, é provocado pela situa??o analítica; em segundo,é grandemente intensificado pela resistência, que domina a situa??o; e, em terceiro, falta-lhe emalto grau considera??o pela realidade, é menos sensato, menos interessado nas conseqüências emais ego em sua avalia??o da pessoa amada do que estamos preparados para admitir no caso doamor normal. N?o devemos esquecer, contudo, que esses afastamentos da norma constituemprecisamente aquilo que é essencial a respeito de estar enamorado. Quanto à linha de a??o do analista, é a primeira destas três características do amortransferencial que constitui o fator decisivo. Ele evocou este amor, ao instituir o tratamento analíticoa fim de curar a neurose. Para ele, trata-se de conseqüência inevitável de uma situa??o médica, talcomo a exposi??o do corpo de um paciente ou a comunica??o de um segredo vital. ?-lhe, portanto,evidente que n?o deve tirar qualquer vantagem pessoal disso. A disposi??o da paciente n?o fazdiferen?a; simplesmente lan?a toda a responsabilidade sobre o próprio analista. Na verdade, comoele deve saber, a paciente n?o se preparara para nenhum outro mecanismo de cura. Após todasas dificuldades haverem sido triunfantemente superadas, ela muitas vezes confessará ter tido umafantasia antecipatória na ocasi?o em que come?ou o tratamento, no sentido de que, se secomportasse bem, seria recompensada no final pela afei??o do médico. Para o médico, motivos éticos unem-se aos técnicos para impedi-lo de dar à paciente seuamor. O objetivo que tem de manter em vista é que a essa mulher, cuja capacidade de amor acha-se prejudicada por fixa??es infantis, deve adquirir pleno controle de uma fun??o que lhe é de t?oinestimável import?ncia; que ela n?o deve, porém, dissipá-lo no tratamento, mas mantê-la prontapara o momento em que, após o tratamento, as exigências da vida real se fazem sentir. Ele n?odeve encenar a situa??o de uma corrida de c?es em que o prêmio deveria ser uma guirlanda desalsichas, mas que algum humorista estragou ao atirar uma salsicha na pista. O resultado foi,naturalmente, que os c?es se atiraram sobre ela e esqueceram tudo sobre a corrida e sobre aguirlanda que os atraía à vitória muito distante. N?o quero dizer que é sempre fácil ao médico semanter dentro dos limites prescritos pela ética e pela técnica. Aqueles que ainda s?o jovens e n?oest?o ligados por fortes la?os podem, em particular, achá-lo tarefa árdua. O amor sexual é106. indubitavelmente uma das principais coisas da vida, e a uni?o da satisfa??o mental e física nogozo do amor constitui um de seus pontos culminantes. ? parte alguns excêntricos fanáticos, todossabem disso e conduzem sua vida dessa maneira; só a ciência é refinada demais para admiti-lo.Por outro lado, quando uma mulher solicita amor, rejeitá-la e recusá-la constitui papel penoso paraum homem desempenhar; e, apesar da neurose e da resistência, existe um fascínio incomparávelnuma mulher de elevados princípios que confessa sua paix?o. N?o s?o os desejos cruamentesensuais da paciente que constituem a tenta??o. ? mais provável que estes repugnem, e encará-los como fen?meno natural exigirá toda a toler?ncia do médico. S?o, talvez, os desejos de mulhermais sutis e inibidos em seu propósito que trazem consigo o perigo de fazer um homem esquecersua técnica e sua miss?o médica no interesse de uma bela experiência. E no entanto é inteiramente impossível para o analista ceder. Por mais alto que possaprezar o amor, tem de prezar ainda mais a oportunidade de ajudar sua paciente a passar por umestádio decisivo de sua vida. Ela tem de aprender com ele a superar o princípio do prazer, eabandonar uma satisfa??o que se acha à m?o, mas que socialmente n?o é aceitável, em favor deoutra mais distante, talvez inteiramente incerta, mas que é psicológica e socialmente irrepreensível.Para conseguir esta supera??o, ela tem de ser conduzida através do período primevo de seudesenvolvimento mental e, nesse caminho, tem de adquirir a parte adicional de liberdade mentalque distingue a atividade mental consciente - no sentido sistemático - da inconsciente. O psicoterapeuta analítico tem, assim, uma batalha tríplice a travar - em sua própria mente,contra as for?as que procuram arrastá-lo para abaixo do nível analítico; fora da análise, contraopositores que discutem a import?ncia que ele dá às for?as instintuais sexuais e impedem-nos defazer uso delas em sua técnica científica; e, dentro da análise, contra as pacientes, que a princípiocomportam-se como opositores, mas, posteriormente, revelam a supervaloriza??o da vida sexualque as domina e tentam torná-lo cativo de sua paix?o socialmente indomada. O público, leigo, sobre cuja atitude em rela??o à psicanálise falei no início,indubitavelmente apossar-se-á deste debate do amor transferencial como mais outra oportunidadede dirigir a aten??o do mundo para o sério perigo desse método terapêutico. O psicanalista sabeque está trabalhando com for?as altamente explosivas e que precisa avan?ar com tanto cautela eescrúpulo quanto um químico. Mas quando foram os químicos proibidos, devido ao perigo, demanejar subst?ncias explosivas, que s?o indispensáveis, por causa de seus efeitos? ? digno denota que a psicanálise tenha de conquistar para a própria, de novo, todas as liberdades que hámuito tempo foram concebidas a outras atividades médicas. Certamente n?o sou favorável aabandonar os métodos inócuos de tratamento. Para muitos casos, eles s?o suficientes e, quandotudo está dito, a sociedade humana n?o tem mais uso para o furor senandi do que para qualqueroutro fanatismo. Mas acreditar que as neuroses podem ser vencidas pela administra??o deremediozinhos inócuos é subestimar grosseiramente esses distúrbios, tanto quanto à sua origemquanto à sua import?ncia prática. N?o; na clínica médica sempre haverá lugar para o ‘ferrum‘ epara o ‘ignis‘, lado a lado com as ‘medicinas‘; e, da mesma maneira, nunca seremos capazes de107. passar sem uma psicanálise estritamente regular e forte, que n?o tenha medo de manejar os maisperigosos impulsos mentais e de obter domínio sobre eles, em benefício do paciente. AP?NDICE: RELA??O DOS TRABALHOS DE FREUD QUE TRATAM PRINCIPALMENTEDA T?CNICA PSICANAL?TICA E DA TEORIA DA PSICOTERAPIA [A data ao início de cada título é a do ano durante o qual o trabalho em apre?o foiprovavelmente escrito. A data ao final é a da publica??o, e sob esta data pormenores maiscompletos da obra ser?o encontrados na Biblio-grafia e ?ndice Remissivo de Autores.] 1888 * Crítica de Der Hypnotismus, de Forel (1889a) 1888 * Introdu??o à tradu??o de De la suggestion, de Bernheim (1888-9) 1890 * ‘Tratamento Psíquico (ou Mental)’ (1890a) 1891 * ‘Hipnose’ em Therapeutisches Lexikon, de Bum (1891d) 1892 * ‘Um Caso de Tratamento Bem Sucedido pelo Hipnotismo’ (1892-93b) 1895 Estudos sobre a Histeria, Parte IV (1895d) 1898 ‘A Sexualidade na Etiologia das Neuroses’ (última parte) (1898a) 1899 A Interpreta??o de Sonhos, Capítulo H (primeira parte) (1900a) 1901 ‘Fragmento de uma Análise de um Caso de Histeria’, Capítulo IV (1905e) 1903 ‘O Procedimento Psicanalítico de Freud’ (1904a) 1904 ‘Sobre a Psicoterapia’ (1905a) 1910 ‘As Perspectivas Futuras da Terapia Psicanalítica’ (1910d) 1910 ‘Psicanálise “Silvestre”’ (1910k) 1911 ‘O Manejo da Interpreta??o de Sonhos na Psicanálise’ (1911e) 1912 ‘A Din?mica da Transferência’ (1912b) 1912 ‘Recomenda??es aos Médicos que Exercem a Psicanálise’ (1912e) 1913 ‘Sobre o Início do Tratamento’ (1913c) 1914 ‘Fausse Reconnaissance (“déjà raconté”) no Tratamento Psicanalítico’ (1914a) 1914 ‘Recordar, Repetir e Elaborar’ (1914g) 1914 ‘Observa??es sobre o Amor Transferencial’ (1915a) 1917 Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Conferências XXVII e XXVIII (1916-17) 1918 ‘Linhas de Avan?o na Terapia Psicanalítica’ (1919a) 1920 Além do Princípio de Prazer, Capítulo III (1920g) 1923 ‘Considera??es sobre a Teoria e Prática da Interpreta??o de Sonhos’ (1923c) 1926 A Quest?o da Análise Leiga, Capítulo V (1926e) 1932 Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Conferência XXXIV (últimaparte) (1933a)108. 1937 ‘Análise Terminável e Interminável’ (1937c)1937 ‘Constru??es em Análise’ (1937d)1938 Compêndio de Psicanálise, Capítulo VI (1940a)OS SONHOS NO FOLCLORE (FREUD E OPPENHEIM) (1957 [1911])NOTA DO EDITOR INGL?STR?UME IM FOLKLORE(a) EDI??O ALEM?:(1911 Data provável da composi??o.) 1958 Dreams in Folklore, Parte II, Nova Iorque, International Universities Press, pp.109. 69-111. (b) TRADU??O INGLESA: ‘Dreams in Folklore’ 1958 Id., Parte I, Nova Iorque, International Universities Press,pp. 19-65, (Trad. de A. M. O.Richards; intr. de J. Strachey.) A presente tradu??o inglesa constitui reimpress?o da publicada em Nova Iorque, comalgumas mudan?as muito pequenas. O artigo recebeu originalmente o número de referência1957a, da Standard Edition, e pensou-se ser melhor mantê-lo, embora a publica??o real do artigofosse inesperadamente adiada para 1958. A existência deste artigo, escrito conjuntamente por Freud e o Professor D. E. Oppenheim,de Viena, foi com efeito ignorada até o ver?o de 1956, quando a Sra. Liffman, filha de Oppenheim,morando ent?o na Austrália, trouxe-o ao conhecimento de um livreiro de Nova Iorque. Logo depois,o manuscrito foi adquirido em nome dos Arquivos Sigmund Freud pelo Dr. Bernard L. Pacella, e égra?as à sua generosidade e à ajuda infalível do Dr. K. R. Eissler, Secretário dos Arquivos, quepodemos incluir o trabalho na Standard Edition. David Ernst Oppenheim, colaborador de Freud neste artigo, nasceu em Brünn, no que hojeé a Tchecoslováquia, em 1881. Foi um erudito clássico e tornou-se professor de AkademischesGymnasium, escola secundária de Viena, onde ensinou grego e latim. O Dr. Ernest Jones (1955,16) menciona-o entre os que assistiram às conferências universitárias de Freud em 1906, massuas rela??es com este aparentemente datam apenas de 1909. No outono desse ano, parece terenviado a Freud cópia de um artigo que tratava da mitologia clássica, de maneira que demonstravaconhecimento da literatura psicanalítica, pois há uma carta de Freud (datada de 28 de outubro de1909) agradecendo-lhe por ele em termos muito cordiais e sugerindo que colocasse seuconhecimento dos clássicos a servi?o dos estudos psicanalíticos. O resultado foi, evidentemente, aassocia??o de Oppenheim com a Sociedade Psicanalítica de Viena, da qual (novamente segundoJones, loc. cit.) tornou-se membro em 1910. Em 20 de abril desse ano, abriu um simpósio daSociedade de Viena sobre o suicídio (particularmente entre escolares), que foi publicado sob formade brochura (1910; ver também Freud, 1910g). A contribui??o de Oppenheim lá será encontradasob a assinatura ‘Unus Multorum’, mas ela foi reimpressa sob seu próprio nome alguns anos maistarde, num trabalho coletivo, Heilen und Bilden, coordenado por Adler e Furtmüller (1914). Asminutas publicadas da Sociedade de Viena demonstram que lá ele leu três ‘comunica??es breves’durante 1910 e 1911, a primeira das quais, sobre ‘Material Folclórico Relacionado ao SimbolismoOnírico’ (16 de novembro de 1910), possui rela??o evidente com o presente trabalho. Naprimavera de 1911, Freud publicou a terceira edi??o de A Interpreta??o de Sonhos e nela inseriuuma nota de rodapé mencionando o trabalho de Oppenheim com rela??o a sonhos no folclore e110. declarando que um artigo sobre o assunto deveria aparecer brevemente (Ver em [1], 1972). Estanota foi omitida em todas as edi??es posteriores. A omiss?o, bem como o desaparecimento dopresente artigo s?o indubitavelmente explicados pelo fato de, logo depois, Oppenheim haver-setornado um adepto de Adler e, juntamente com cinco outros membros, ter-se demitido daSociedade Psicanalítica de Viena, em 11 de outubro de 1911. Morreu durante a Segunda GuerraMundial no campo de concentra??o de Theresienstadt, no qual ele e sua esposa haviam sidointernados. Após a guerra, a esposa emigrou para a Austrália, levando consigo o manuscrito; quepudera preservar. De acordo com seus desejos, a publica??o dele foi retida até depois de suamorte. ? possível datar a participa??o de Freud neste artigo dentro de limites bastante restritos.Ele n?o pode ter sido escrito antes da primeira parte de 1911, como se demonstra por umareferência do mesmo ao Die Sprache des Traumes, de Stekel, publicado por volta do início desseano (Ver em [1].); e deve ter sido completado antes do rompimento final com Adler no mesmover?o. Embora o manuscrito, tal como agora o possuímos, n?o tenha sofrido uma revis?o final porparte dos autores, ele de fato exige apenas uma organiza??o editorial muito pequena e fornece-nos um meio claro de ajuizar a parte que nele coube aos dois autores. O material bruto foievidentemente coligido por Oppenheim e deriva em grande parte da revista Anthropophyteia(Leipzig, 1904-1913), editada por F. S. Krauss, na qual Freud sempre tivera interesse especial. (Cf.sua carta aberta ao editor da mesma, 1910f, e seu prefácio a Scatalogic Rites of All Nations [RitosEscatológicos de Todas as Na??es], da autoria de Bourke, 1913k, p. 423 adiante, especialmentepertinente ao presente artigo.) Oppenheim copiou este material, parte à máquina e parte à m?o(acrescentando breves observa??es), e submeteu-o a Freud, que ent?o o disp?s em seqüênciaapropriada, colou as laudas de Oppenheim nas suas, muito maiores, e interpolou-as com profusoscomentários. Freud deve ter ent?o devolvido todo o manuscrito a Oppenheim, que parece maisuma vez ter adicionado duas ou três outras notas (algumas delas taquigrafadas). Na vers?o apresentada a seguir, portanto, as contribui??es dos dois autores s?oautomaticamente distinguidas, se n?o levarmos em considera??o qualquer interc?mbio prévio deidéias. Todo material bruto, impresso aqui em tipo um pouco menor, deve ser atribuído aOppenheim; Freud é responsável por tudo o mais - a introdu??o, os comentários, a conclus?o etoda a disposi??o do material. A única modifica??o efetuada pelos coordenadores foi transferir asreferências do corpo do texto para as notas de rodapé. As poucas observa??es marginais deOppenheim foram também impressas como notas de rodapé, com a especifica??o, de sua autoria.Algumas delas, contudo, infelizmente, haviam-se tornado ilegíveis. Nenhuma tentativa se fez, na tradu??o, de reproduzir os diversos dialetos em que muitasdas histórias originais acham-se redigidas. Adotou-se um idioma convencional, de um tipogeralmente associado aos contos folclóricos. Onde possível, as referências foram conferidas e111. nelas corrigidos vários erros. OS SONHOS NO FOLCLORE Por Sigm. Freud e Prof. Ernst Oppenheim (Viena) ‘Celsi praetereunt austera poemata Ramnes.’Pérsio, Sátiras. Um de nós (O.) em seus estudos do folclore, efetuou duas observa??es com referênciaaos sonhos ali narrados que lhe pareceram dignas de serem comunicadas. Em primeiro lugar, queo simbolismo empregado nesses sonhos coincide inteiramente com o aceito pela psicanálise, e,em segundo, que grande número desses sonhos s?o entendidos pelo povo comum da mesmamaneira que seriam interpretados pela psicanálise, isto é, n?o como premoni??es sobre um futuroainda n?o revelado, mas como realiza??o de desejos, satisfa??o de necessidades que surgemdurante o estado de sono. Certas peculiaridades desses sonhos geralmente indecentes, contadoscomo anedotas c?micas, incentivaram o segundo de nós (Fr.) a tentar uma interpreta??o deles, aqual os fez parecer mais sérios e mais merecedores de aten??o. I - SIMBOLISMO DO P?NIS EM SONHOS QUE OCORREM NO FOLCLORE O sonho que apresentamos em primeiro lugar, embora n?o contenha representa??essimbólicas, soa quase como uma ridiculariza??o do profético e um apelo em favor da interpreta??opsicológica dos sonhos. UMA INTERPRETA??O DE SONHO Uma mo?a levantou-se da cama e disse à m?e que tivera um sonho muito estranho. ’E o que foi que você sonhou? - perguntou a m?e. ‘Como lhe contar? Eu própria n?o sei o que era - uma espécie de coisa comprida,vermelha e rombuda.’ ‘Comprida quer dizer uma estrada’, disse a m?e, reflexivamente, ‘uma estrada comprida;vermelho quer dizer alegria, mas n?o sei o que pode significar rombuda.’ O pai da mo?a, que nesse meio tempo se vestia e escutava tudo o que a m?e e a filhaestavam dizendo, ante isso murmurou, mais ou menos para si próprio: ‘Parece-se mais com o meu peru.’ ? muito mais conveniente estudar o simbolismo onírico no folclore do que nos sonhosreais. Estes s?o obrigados a esconder coisas e só entregar seus segredos à interpreta??o;contudo, estas anedotas c?micas disfar?adas em sonhos visam a ser comunica??es destinadas adar prazer à pessoa que as conta assim como à que as escuta, e, portanto, a interpreta??o se112. acrescenta bastante desavergonhadamente ao símbolo. Estas histórias deleitam-se em revelar ossímbolos ocultadores. No quarteto seguinte, o pênis aparece como um cetro: Noite passada sonhei Que era o rei da regi?o E qu?o alegre eu estava Com um peru na m?o. Compare-se isto com os exemplos, nos quais o mesmo simbolismo é empregadoexternamente a um sonho. Amo uma rapariga, Que é bonita mas n?o minha; Por-te-ei um cetro na m?o E serás uma rainha. ‘Recorda-te, meu rapaz’, disse Napole?o, O imperador que n?o falava à toa, ‘Enquanto o peru for o cetro, A boceta será a coroa’. Uma variante diferente desta exalta??o simbólica dos órg?os genitais é favorecida naimagina??o dos artistas. Uma bela gravura da autoria de Félicien Rops, com o título ‘tout est grandchez les rois‘ [‘Tudo nos reis é grande’], mostra a figura nua de um rei com as fei??es do Roi Soleil[Luíz XIV], cujo pênis gigantesco, que se ergue ao nível do bra?o, porta, ele próprio, uma coroa. Am?o direita equilibra o cetro, enquanto a esquerda agarra uma grande orbe, que, em virtude deuma fenda central, apresenta semelhan?a inequívoca com outra parte do corpo que é objeto dedesejos eróticos. O dedo indicador da m?o esquerda acha-se inserido neste sulco. Na can??o folclórica que se segue, na Silésia, o sonho só é inventado para ocultar umaocorrência diferente. O pênis aparece aqui como um verme (‘gorda minhoca’) que se esgueiroupara dentro da mo?a, e, na ocasi?o apropriada, arrasta-se de novo para fora, como um vermezinho(bebê). CAN??O DA MINHOCA Deitada na relva, certo dia, uma jovem, Susana seu nome, com paix?o sonhava; E, a dormir, um sorriso no rosto lhe dan?ava, Enquanto em seu zagal e nos ardis dele pensava.113. Mas, enquanto dormia - ó sonho de temor! -Sonhou que seu amor se havia transformado,De belo e encantador, numa gorda minhoca,E que esta dentro dela havia pavor no cora??o, assustada despertou;Rápida, em dire??o à aldeia, se lan?ouE que uma minhoca corpo a dentro lhe entraraA chorar a todos, mo?os e velhos, contou.Dos lamentos e prantos o som chegouAos ouvidos da m?e, que muito praguejou;Pressentindo desgra?a, ao quarto acorreuE mui completamente a donzela examinou.A minhoca buscava, mas nada achou -Infelicidade de desanimar.E assim, sem delongas, se apressou,Em auxílio à cartomante solicitar.Esta com perícia as cartas botouE falou: ‘Ainda temos de esperar.‘O Valete, indagado, resposta n?o deu;‘Mais forte o Rei Vermelho há de se mostrar.‘Aquilo que temeis Rei Vermelho confirmou:‘O verme, realmente, nela penetrou;‘Mas, como em tudo, há de se dar tempo ao tempo,‘A hora de apanhá-lo ainda n?o chegou.’Quando as funestas palavras Susana escutou,Cheia de tristeza no quarto se encerrou,Até que chegou a pavorosa hora, e, para fora,Alegremente o vermezinho se esgueirou.Alertadas assim, ó donzelas, ficai,De a sorte de Susana por guia tomar,Pois sen?o, para vossa pena e pesar,114. Uma gorda minhoca em vós há de penetrar. A mesma simboliza??o do pênis por um verme é encontrada em diversas piadasobscenas. No sonho que agora se segue o pênis é simbolizado por uma adaga; a mulher que o sonhaestá puxando uma adaga a fim de apunhalar-se, quando é acordada pelo marido e exortada a n?oarrancar fora seu membro. UM SONHO MAU Uma mulher sonhou que as coisas haviam chegado a tal ponto que nada tinham paracomer antes do feriado de fim de ano e tampouco podiam comprar coisa alguma. O marido haviabebido todo o dinheiro. Sobrava apenas um bilhete de loteria e até este realmente teriam depenhorar. Mas o homem ainda o estava guardando, porque a extra??o deveria realizar-se no dia 2de janeiro. Disse ele: ‘Mulher, a extra??o será amanh?; deixemos o bilhete esperar mais um pouco.Se n?o ganharmos, ent?o teremos de vendê-lo ou penhorá-lo.’ - ‘Bem, que o diabo o leve; tudo oque você comprou foi aborrecimento e tirou tanto dele quanto leite de um bode.’ Ent?o, o diaseguinte chegou e lá veio o jornaleiro. Ele o fez parar, apanhou um exemplar e come?ou a olhar alista. Passou os olhos pelos números, correu todas as colunas seu número n?o se achava nelas.N?o confiou nos próprios olhos, examinou-as novamente e, desta vez, realmente, deu com onúmero de seu bilhete. O número era o mesmo, mas o número da série n?o conferia. Mais umavez n?o confiou em si mesmo e pensou consigo: ‘Deve ser um engano. Espera um pouco, irei ao banco e certificar-me-ei de qualquermaneira.’ E lá se foi, cabisbaixo. No caminho, encontrou um segundo jornaleiro. Comprou outroexemplar de um segundo jornal, conferiu atentamente a lista e logo encontrou o número de seubilhete. O número da série também era o mesmo que se achava no bilhete. Coubera-lhe o prêmiode 5.000 rublos. Irrompeu banco a dentro, correu para cima e pediu-lhes que pagassemimediatamente o bilhete premiado. O banqueiro disse-lhe que n?o poderiam pagar-lhe ainda,somente dentro de uma semana ou duas. O homem come?ou a implorar e a rogar: ‘Por favor, sejabondoso! Dê-me mil, pelo menos; posso receber o resto depois!’ O banqueiro recusou-se, masaconselhou-o a procurar o vendedor que lhe havia fornecido o bilhete premiado. Que fazer agora?Exatamente ent?o, como se houvesse saído do ch?o, apareceu um pequeno judeu. Este cheirouum bom negócio e fez-lhe a oferta de pagar o dinheiro imediatamente, só que, ao invés de 5.000,apenas 4.000. Os outros mil seria a sua cota. O homem ficou encantado com sua boa sorte edecidiu dar ao judeu os 1.000 rublos, de maneira a obter o dinheiro no ato. Recebeu o dinheiro dojudeu e entregou-lhe o bilhete; depois foi para casa. No caminho, entrou numa estalagem, tomouum trago e de lá seguiu direto para casa. Caminhava sorrindo e trauteando uma can??o. Suamulher o viu pela janela e pensou: ‘Ele certamente vendeu o bilhete de loteria; pode-se ver comoestá alegre. Provavelmente fez uma visita à estalagem e embebedou-se, porque estava sesentindo infeliz.’ Aí o homem entrou, colocou o dinheiro sobre a mesa da cozinha e procurou amulher para dar-lhe a boa notícia de que havia ganho e conseguido o dinheiro. Enquanto se115. abra?avam e beijavam, com alegria no cora??o por serem t?o felizes, a filha de três anos apanhouo dinheiro e jogou-o no fog?o. Aí, eles vieram contar o dinheiro e este n?o se achava mais lá. Oúltimo ma?o de notas já estava pegando fogo. Enfurecido, o homem apanhou a meninazinha pelaspernas e arremessou-a contra o fog?o. Ela caiu morta. A desgra?a era evidente, agora n?o haviameio de fugir à Sibéria. Apanhou o revólver e - bang! - deu um tiro no peito e caiu morto.Horrorizada por tal calamidade, a mulher agarrou uma adaga e ia apunhalar-se. Tentou tirá-la parafora da bainha, mas n?o conseguia, por mais que tentasse. Escutou ent?o uma voz, como seproviesse do Céu: ‘Chega, pára! O que está fazendo?’ Ela acordou e viu que n?o estava puxandoda adaga, mas sim do instrumento do marido, que lhe dizia: ‘Chega, larga, sen?o você vai arrancá-lo fora!’ A representa??o do pênis por uma arma, faca de corte, adaga etc., é-nos familiar a partirdos sonhos de ansiedade das mulheres abstinentes em geral, achando-se também na raiz denumerosas fobias em pessoas neuróticas. O complicado disfarce do presente sonho, contudo,exige que fa?amos uma tentativa de torná-lo mais claro para nós mediante uma interpreta??opsicanalítica baseada em interpreta??es já efetuadas. Assim procedendo, n?o estamosdesprezando o fato de que iremos além do material apresentado no próprio conto folclórico e que,conseqüentemente, nossas conclus?es perder?o em certeza. Visto este sonho terminar num ato de agress?o sexual efetuado pela mulher como umaa??o onírica. Isto sugere que devemos tomar o estado de necessidade material do conteúdo dosonho como substituto de um estado de necessidade sexual. Só a compuls?o libidinal maisextrema pode justificar tal agressividade por parte de uma mulher. Outros fragmentos do conteúdoonírico apontam em dire??o bastante definida e diferente. A culpa por este estado de necessidadeé atribuída ao homem. (Ele bebera todo o dinheiro.) O sonho prossegue livrando-se do homem eda filha e, astuciosamente, foge ao senso de culpa ligado a estes desejos, fazendo com que a filhaseja morta pelo homem, que, ent?o, comete suicídio devido ao remorso. Visto ser este o conteúdodo sonho, somos levados a concluir, de muitos exemplos análogos, que aqui está uma mulher quen?o se acha satisfeita com o marido e que, em suas fantasias, anseia por outro casamento. ? amesma coisa para a interpreta??o encararmos esta insatisfa??o da pessoa que sonha como umestado permanente de carência ou simplesmente como express?o de um estado temporário. Aloteria, que no sonho ocasionou um efêmero estado de felicidade, talvez pudesse ser entendidacomo referência simbólica ao casamento. Este símbolo ainda n?o foi identificado com certeza notrabalho psicanalítico, mas o povo tem o hábito de dizer que o casamento é um jogo de azar, queno matrim?nio se tira o bilhete premiado ou ent?o um em branco. Os números, que foramenormemente ampliados pela elabora??o onírica, bem poderiam corresponder, neste caso, aonúmero de repeti??es do ato satisfatório que s?o desejadas. Damo-nos assim conta de que o atode puxar o membro do homem n?o apenas tem o significado de uma provoca??o libidinal, mastambém o sentido adicional de crítica desdenhosa, como se a mulher quisesse arrancar o membrofora - como o homem corretamente presumiu - por ele n?o ser bom, n?o cumprir suas obriga??es.116. N?o nos teríamos demorado na interpreta??o deste sonho e investigado-o além de seusimbolismo aberto, n?o fosse pelo fato de que outros sonhos, que da mesma maneira terminampor uma a??o onírica, demonstram que o povo comum identificou aqui uma situa??o típica que,onde quer que ocorra, é suscetível da mesma explica??o. (Cf. em [1].) II - SIMBOLISMO DAS FEZES E A??ES ON?RICAS RELACIONADAS A psicanálise ensinou-nos que, no mais primitivo período da inf?ncia, as fezes constituemsubst?ncia muito apreciada, em rela??o à qual os instintos coprófilos encontram satisfa??o. Com arepress?o destes instintos, que é acelerada tanto quanto possível pela educa??o, essa subst?nciacai em desprezo e ent?o serve a propósitos conscientes como meio de expressar desdém emenosprezo. Certas formas de atividade mental, tais como o chiste, ainda s?o capazes de tornar afonte obstruída de prazer acessível por um breve momento, e assim demonstram quanto da estimaque os seres humanos outrora dedicaram a suas fezes ainda continua preservada no inconsciente.O remanescente mais importante desta antiga estima é, porém, que todo o interesse que a crian?ateve nas fezes transfere-se, no adulto, para outro material, que aprende na vida a colocar acima dequase tudo o mais - o ouro. Qu?o antiga é esta vincula??o entre excremento e ouro pode-se ver apartir de uma observa??o de Jeremias: o ouro, segundo antiga mitologia oriental, é o excrementodo inferno. Nos sonhos do folclore, o ouro é visto, da maneira menos ambígua, como símbolo dasfezes. Se o que dorme sente necessidade de defecar, sonha com ouro, com tesouros. O disfarcedo sonho, que se destina a induzi-lo erradamente a satisfazer suas necessidades na cama,geralmente faz o monte defezes servir de sinal para assinalar o lugar em que o tesouro pode serencontrado; o que equivale a dizer que o sonho - como se através de uma percep??o endopsíquica- afirma diretamente, ainda que em forma invertida, ser o ouro um sinal ou símbolo das fezes. Um simples sonho de tesouro ou defeca??o deste tipo é o seguinte, relatado nas Facetiae,de Poggio. OURO DE SONHO Certo homem contou em um grupo que sonhara haver encontrado ouro. Imediatamente,outro homem suplantou-o com esta história. (O que se segue é citado literalmente). ‘Meu vizinho um dia sonhou que o Diabo conduziu-o a um lugar, para escavar em busca deouro, mas ele n?o encontrou nada. Ent?o o Diabo disse “Está aí, certamente; somente você n?opode desenterrá-lo agora; mas tome nota do lugar, de modo a poder reconhecê-lo de novo,sozinho.” ‘Quando o homem perguntou se o lugar deveria ser identificado por algum sinal, o Diabosugeriu: ‘‘Basta cagar nele; assim, n?o ocorrerá a ninguém que haja ouro escondido aí e vocêpoderá reconhecer o lugar exato.” O homem assim fez e ent?o acordou imediatamente e viu que117. havia feito um grande monte na cama.’ (Damos a conclus?o em resumo.) Enquanto deixava apressadamente a casa, p?s um bonéem que um gato havia feito suas necessidades durante a mesma noite. Teve de lavar a cabe?a eos cabelos. ‘E assim o ouro de seu sonho transformou-se em imundície.’ Trarasevsky (1909, 194, n? 232) relata um sonho semelhante, oriundo da Ucr?nia, no qualo camponês recebe um tesouro do Diabo, a quem acendera uma vela, e p?e um monte de fezespara assinalar o lugar. N?o precisamos surpreender-nos com que o Diabo aparece nestes dois sonhos comooutorgante de tesouros e sedutor, pois o Diabo - ele próprio anjo expulso do Paraíso - ‘certamentenada mais é que a personifica??o da vida instintual reprimida e inconsciente.’ Os motivos por trás destas simples anedotas c?micas sobre sonhos parecem esgotar-senum deleite cínico, na sujeira e numa satisfa??o maliciosa pelo constrangimento do que sonha.Noutros sonhos sobre tesouros, porém, a forma assumida pelo sonho é variada [‘Variirt‘ no MS -transcrito incorretamente como ‘verwirrt‘ no texto alem?o.] sob todos os aspectos e inclui diversosconstituintes cuja origem e significa??o bem podemos investigar; pois n?o encararemos nemmesmo estes conteúdos oníricos, destinados a fornecer uma justifica??o racionalista para aobten??o da satisfa??o, como inteiramente arbitrários e sem sentido. Nos dois exemplos seguintes, o sonho n?o é atribuído a uma pessoa a dormir sozinha,mas a uma de duas pessoas - dois homens - que partilham um só leito. Como resultado do sonho,o sonhador suja seu companheiro de cama. UM SONHO V?VIDO Dois viajantes chegaram cansados a uma estalagem e solicitaram acomoda??es para anoite. ‘Sim’ respondeu o estalajadeiro, ‘se n?o tiverem medo, poder?o conseguir um quarto, masele é mal-assombrado. Se quiserem ficar, está bem, e o pernoite nada lhes custará, no que dizrespeito ao quarto. Os rapazes se perguntaram: ‘Você tem medo?’ ‘N?o’. Ent?o apanharam outrolitro de vinho e foram para o quarto que lhes fora destinado. Mal se haviam deitado quando a porta se abriu e uma figura branca deslizou através doquarto. Um dos companheiros perguntou ao outro: ‘Você viu algo?’ ‘Vi’. ‘E por que n?o dissenada?’ ‘Espere, ela vai atravessar de novo o quarto.’ E, realmente, a figura deslizou para dentro denovo. Um dos rapazes pulou da cama rapidamente, mas mais rápido ainda o fantasma deslizoupara fora através da abertura da porta. O rapaz, muito rápido, escancarou a porta e viu a figura,uma bela mulher, já a meio caminho escadas abaixo. ‘O que está fazendo aqui?’ gritou-lhe o rapaz.A figura parou, virou e falou: ‘Agora estou livre. Muito tempo tive de vagar. Como recompensa,fique com o tesouro que se acha exatamente no lugar onde você está parado.’ O rapaz ficou t?oassustado quanto deliciado e, a fim de assinalar o lugar, levantou sua camisa de dormir e deixou118. cair um belo monte, porque pensava que ninguém limparia aquele sinal. Mas, exatamente quandose achava no melhor da coisa, sentiu alguém subitamente agarrá-lo. ‘Seu porco sujo’, berraram-lheno ouvido, você está cagando na minha camisa.’ Ante essas grosseiras palavras, o feliz sonhadordespertou de sua boa sorte de mentira para descobrir-se rudemente arremessado para fora doleito. CAGOU NA SEPULTURA Dois cavalheiros chegaram a um hotel, comeram a ceia, beberam e, por fim, quiseramrecolher-se. Perguntaram ao encarregado se podia conseguir-lhes um quarto. Como os quartos seachavam todos tomados, o encarregado cedeu-lhes o seu, em que ambos deveriam pernoitar, poislogo encontraria um lugar para dormir noutra parte. Os dois homens deitaram-se na mesma cama.Um espírito apareceu a um deles em sonho, acendeu uma vela e conduziu-o ao cemitério. Oport?o se abriu e o espírito, com a vela na m?o e o homem atrás dele, caminhou até a sepultura deuma virgem. Quando lá chegaram, a vela subitamente se apagou. ‘O que farei agora? Comopoderei dizer qual é a sepultura da donzela amanh?, quando for dia?’ perguntou ele no sonho.Ent?o uma idéia lhe veio em salva??o; abaixou as cal?as e cagou na sepultura. Quando acabou decagar, seu companheiro, que dormia ao lado, esbofeteou-o primeiro numa face e depois na outra:‘O quê? e você me caga bem na cara?’ Nestes dois sonhos, em lugar do Dem?nio aparecem outras figuras sobrenaturais, a saber,fantasmas - isto é, espírito de mortos. O espírito do segundo sonho conduz realmente o que sonhaaté o cemitério, onde deve assinalar uma sepultura específica defecando sobre ela. Uma partedesta situa??o é muito fácil de entender. Quem dorme sabe que a cama n?o é lugar apropriadopara satisfazer suas necessidades; daí, no sonho, faz-se afastar dela e arranja uma pessoa quemostra a seu impulso oculto o caminho certo para outro lugar onde lhe é permitido satisfazê-las e,na verdade, as circunst?ncias lhe exigem que o fa?a. O espírito do segundo sonho utiliza uma velaao conduzi-lo, como um criado faria se estivesse levando um estranho à privada, à noite, quandoestá escuro. Mas por que estes representantes da exigência de uma mudan?a de cena, que apessoa adormecida pregui?osamente deseja evitar a todo custo, s?o indivíduos t?o sinistros comofantasmas e espíritos de mortos? Por que o espírito do segundo sonho mostra o caminho até ocemitério, como para profanar uma sepultura? Afinal de contas, estes elementos nada parecem tera ver com a premência de defecar e a simboliza??o das fezes pelo ouro. Há neles indica??o deuma ansiedade que talvez pudesse ser remontada a um esfor?o para suprimir a realiza??o dasatisfa??o na cama; mas esta ansiedade n?o explicaria a natureza específica do conteúdo onírico,ou seja, sua referência à morte. Abster-nos-emos de efetuar uma interpreta??o neste ponto eacentuaremos ainda, como a necessitar de explica??o, o fato de que em ambas as situa??es, emque dois homens est?o dormindo juntos, o elemento sinistro do guia fantasmagórico acha-seassociado a uma mulher. O espírito do primeiro sonho é logo revelado como sendo uma belamulher, que sente ter sido agora libertada, e o do segundo mostra o caminho até a sepultura deuma mo?a, na qual a marca assinaladora deve ser colocada.119. Voltemo-nos, em busca de maiores esclarecimentos, para alguns outros sonhos dedefeca??o deste tipo, em que os companheiros de leito n?o s?o mais dois homens, mas sim umhomem e uma mulher, um casal. O ato de satisfa??o realizado no sono, em resultado do sonho,parece aqui particularmente repelente, mas talvez por essa própria raz?o oculte um sentidoespecial. Em primeiro lugar, porém apresentaremos um sonho (por causa de sua vincula??o emconteúdo com o que o seguem) que, estritamente falando, n?o se ajusta no plano que acabamosde formular. Ele é incompleto, visto que um elemento, isto é, o sonhador a sujar seu companheirode leito, a esposa, acha-se ausente. Por outro lado, a vincula??o entre a premência de defecar etemor da morte é extremamente evidente. O camponês, descrito como casado, sonha que foiatingido por um raio e que sua alma ascendeu ao Céu. Lá em cima, implora que lhe seja permitidoretornar mais uma vez à Terra, a fim de ver a mulher e os filhos, obtém permiss?o paratransformar-se numa aranha e deixar-se cair pelo fio tecido por ele próprio. O fio é curto demais e oesfor?o para emitir ainda mais fio do corpo resulta em defeca??o. SONHO E REALIDADE Um camponês deitou-se e teve um sonho. Viu-se no campo com os seus bois, arando.Ent?o repentinamente, caiu um raio e o matou. Depois sentiu muito claramente sua alma flutuandopara cima, até que, por fim, chegou ao Céu. S?o Pedro estava parado nos port?es de entrada e iamandar o camponês entrar sem mais conversa, mas esse implorou que lhe fosse permitido descerà Terra uma vez mais, a fim de poder, pelo menos, despedir-se da mulher e dos filhos. Mas S?oPedro disse que n?o poderia fazê-lo, pois uma vez um homem chegue ao Céu n?o lhe é permitidoretornar ao mundo. Ante isto, o camponês chorou e implorou lastimosamente, até que, por fim, S?oPedro concordou. Entretanto, só havia uma maneira possível de o camponês ver sua família denovo e essa era S?o Pedro transformá-lo num animal e enviá-lo para baixo. Assim, o camponês foitransformado numa aranha e teceu um longo fio, pelo qual se deixou cair. Quando chegouexatamente em cima de seu lar, ao nível das chaminés e já podia ver as crian?as brincando noprado, para seu horror notou que n?o podia mais fiar. Naturalmente, seu medo foi grande, poiscertamente queria chegar até o ch?o. Ent?o se espremeu e espremeu para fazer o fio maiscomprido. Espremeu-se com toda a for?a - houve um ruído alto - e o camponês acordou. Algomuito humano havia-lhe acontecido enquanto dormia. Encontramos aqui o fio tecido como um novo símbolo para fezes evacuadas, embora apsicanálise n?o nos forne?a nenhu correspondente para essa simboliza??o mas, pelo contrário,atribua outro significado simbólico a fio. Esta contradi??o será resolvida posteriormente. [Ver em[1].] O sonho seguinte, ricamente elaborado e mordazmente narrado, poderia ser descrito como‘sociável’; ele termina com a esposa sendo sujada. Seus pontos de concord?ncia com o sonhoanterior, no entanto, s?o muito marcantes. O Camponês, é verdade, n?o está morto, mas se acha120. no Céu, quer retornar à Terra e experimenta a mesma dificuldade em ‘fiar’ um fio suficientementelongo para permitir-lhe chegar em baixo. Todavia, n?o tece este fio para si mesmo como umaaranha, de seu próprio corpo, mas, de maneira menos fantástica, de tudo que pode amarrar, e,como o fio ainda n?o é bastante longo para chegar, os anjinhos efetivamente o aconselham adefecar e a encompridar a corda com os excrementos. A ASCENS?O DO CAMPON?S AO C?U Um camponês teve o seguinte sonho. Ele escutara que o trigo no Céu estava muitovalorizado, de maneira que pensou que gostaria de levar seu trigo para lá. Carregou a carro?a,arreou o cavalo e p?s-se a caminho. Viajou muito tempo até que viu a estrada do Céu e a seguiu.Assim chegou aos port?es do Céu e - vejam só! - eles estavam abertos. Avan?ou direto, a fim de irparar lá dentro, mas mal havia dirigido a carro?a para eles quando - blam! - os port?es se fecharamcom estrondo. Ent?o, come?ou a implorar: ‘Deixem-me entrar, por favor, sejam bondosos!’ Mas osanjos n?o o deixaram entrar e disseram-lhe que havia chegado tarde. Ent?o, ele viu que nada tinhaa fazer ali, que n?o havia nada para ele, de modo que deu meia volta. Mas - imaginem! - a estradapela qual havia viajado desaparecera. O que deveria fazer? Dirigiu-se novamente aos anjos:‘Queridinhos, por favor, sejam bonzinhos e levem-me de volta à Terra, se for possível! Dêem-meuma estrada, a fim de que possa voltar a casa com meu cavalo e minha carro?a!’ Mas os anjosresponderam: ‘N?o, filho do homem, seu cavalo e sua carro?a ficam aqui e você pode descer comoquiser.’ ‘Mas como é que vou descer.’ Ent?o, ele apanhou as rédeas. Desceu, desceu, e ent?oolhou para baixo - a Terra ainda estava muito longe. Subiu novamente e encompridou a corda quehavia atado, acrescentando-lhe a cilha e os tirantes. Depois, come?ou a descer novamente, masmesmo assim ainda n?o alcan?ava a Terra; de modo que atou também os varais e o corpo dacarro?a. Ainda era curto. O que fazer agora? Deu tratos à bola e ent?o pensou: ‘Ah, vouencompridá-la com o casaco, as cal?as, a camisa e depois com o cinto’. E foi o que fez; atou tudoe desceu. Quando chegou ao final do cinto, a Terra ainda se achava longe. E aí n?o soube o quefazer; n?o tinha mais nada para atar e pular era perigoso; poderia quebrar o pesco?o. Implorounovamente aos anjos: ‘Sejam gentis, levem-me de volta para a Terra!’ Os anjos responderam:‘Cague, que o estrume dará uma corda.’ E ele cagou e cagou quase meia hora, até n?o lhe sobrarmais nada para cagar. Deu uma longa corda e ele desceu por ela. Desceu, desceu e chegou aofim da corda, mas a Terra ainda se achava longe. Come?ou ent?o a implorar de novo aos anjosque o levassem de volta para a Terra. Mas os anjos responderam: ‘Ora, filho do homem, mije, queo mijo dará um cord?o de seda!’ O camponês mijou e mijou, sem parar, até n?o poder mais. Viuque o mijo se havia realmente transformado num cord?o de seda e agarrou-se nele. Desceu,desceu e chegou ao fim do cord?o; olhou e este n?o chegava ainda à Terra: eram necessáriasainda uma bra?a e meia ou duas. Mais uma vez implorou aos anjos que o levassem para baixo,mas os anjos responderam: ‘N?o, irm?o, agora n?o tem mais ajuda; pula!’ O camponês balan?ou-se indeciso na corda; n?o conseguia reunir coragem para pular. Mas, ent?o, viu que n?o lherestava outra saída e - bum! - em vez de pular do Céu, caiu voando da estufa e só recobrou os121. sentidos no meio do quarto. Aí acordou e gritou: ‘Mulher, mulher, onde é que você está?’ A esposaacordou, pois escutara o alarido, e disse ‘Diabos o levem, está ficando maluco?’ Apalpou em voltae viu a sujeira: o marido havia cagado e mijado em cima dela. Come?ou a xingá-lo e a repreendê-lo severamente. O camponês perguntou: ‘Por que está reclamando? Já temos amola??esbastantes, de qualquer jeito. O cavalo está perdido, ficou lá no Céu, e eu quase morri. Deus sejalouvado que ainda me acho vivo, pelo menos!’ ‘que besteiras está falando? Você andou bebendodemais. O cavalo está no estábulo, você estava em cima da estufa e me sujou toda e depois puloulá de cima’. Foi ent?o que o homem recobrou o domínio e somente aí come?ou a compreender quehavia simplesmente sonhado aquilo tudo e ent?o contou à mulher o sonho, de como havia viajadoaté o Céu e, de lá, descera novamente à Terra. Neste ponto, contudo, a psicanálise imp?e-nos uma interpreta??o que altera toda nossavis?o desta espécie de sonhos. Objetos extensíveis, assim nos diz a experiência de interpreta??ode sonhos, s?o normalmente símbolos de ere??o. Em ambas estas anedotas de sonhos, a ênfasereside no elemento de o fio recusar-se a ficar suficientemente longo e a ansiedade no sonho acha-se também ligada ao mesmo elemento. O fio, além disso, como todas as coisas a ele análogas(cordel, corda, barbante etc.), é um símbolo do sêmem. O camponês, pois, está-se esfor?ando porproduzir uma ere??o e somente quando esta n?o é bem sucedida é que recorre à defeca??o.Surge imediatamente, nestes sonhos, uma necessidade sexual por trás da excremencial. Esta necessidade sexual, porém, é muito mais adequada para explicar os constituintesremanescentes do conteúdo do sonho. Somos for?ados a admitir, se estivermos prontos apresumir que estes sonhos fictícios s?o, em essência, corretamente construídos, que a a??oonírica pela qual terminam deve ter um significado, o significado pretendido pelos pensamentoslatentes do sonhador. Se este defeca sobre a mulher no final, ent?o todo sonho deve ter isto porobjetivo e fornecer o motivo para tal desenlace. Este motivo n?o pode significar sen?o um insulto àesposa, ou, estritamente falando, uma rejei??o a ela. ? ent?o fácil estabelecer associa??o entreisto e a significa??o mais profunda da ansiedade expressa no sonho. A situa??o, a partir da qual este último sonho se desenvolve, pode ser explicada de acordocom as sugest?es seguintes. A pessoa adormecida é dominada por uma intensa necessidadeerótica, indicada por símbolos bastante claros no início do sonho (ele ouvira dizer que o trigo -provavelmente equivalente ao sêmen - estava muito valorizado. Avan?ou, a fim de passar com seucavalo e carro?a - símbolos genitais - pelos port?es abertos do Céu). Mas este impulso libidinalprovavelmente se aplica a um objeto inatingível. Os port?es se fecham, ele abandona sua inten??oe quer retornar à Terra. Mas a esposa, deitada a seu lado, n?o o atrai; esfor?a-se em v?o porconseguir uma ere??o com ela. O desejo de livrar-se dela, a fim de substituí-la por outra mulhermelhor é, no sentido infantil, um desejo de morte. Quando alguém acalenta tais desejos em seuinconsciente contra uma pessoa que, n?o obstante, é realmente amada, eles se transformam, paraesse alguém, em medo da morte, temor por sua própria vida. Daí a presen?a, nestes sonhos, doestado de morto, da ascens?o ao Céu, do desejo hipócrita de ver mulher e filhos novamente. Mas122. a libido sexual desapontada encontra libera??o ao longo do caminho da regress?o, no impulso dedesejo excremencial, que injuria e emporcalha o objeto sexual imprestável. Se este sonho específico torna plausível uma interpreta??o deste tipo, ent?o, em vista daspeculiaridades do material que o sonho contém, só podemos conseguir testar a interpreta??oaplicando-a a toda uma sucess?o de sonhos com conteúdo afim. Com este objetivo em vista,retornemos aos sonhos anteriormente mencionados, onde encontramos a situa??o de um homemque dorme com outro como companheiro de leito. A presen?a da mulher nestes sonhos adquireagora, retrospectivamente, significado adicional. O que dorme, dominado por um impulso libidinal,rejeita o homem; quer vê-lo longe e uma mulher em seu lugar. Um desejo de morte, dirigido contrao companheiro de cama masculino e indesejado, é certo que n?o é t?o severamente punido pelacensura moral quanto um dirigido contra a esposa, mas a rea??o é suficientemente ampla parafazer voltar o desejo contra si próprio ou contra o objeto feminino desejado. O próprio sonhador élevado pela morte; e n?o é o homem que está morto, mas a mulher pela qual o sonhador anseia.Todavia, no final, a rejei??o do objeto sexual masculino encontra um escoadouro noemporcalhamento deste, e isto é sentido e vingado pelo outro como uma afronta. Nossa interpreta??o adapta-se, assim, a este grupo de sonhos. Se retornarmos agora aossonhos acompanhados pelo emporcalhamento da mulher, estaremos preparados para descobrirque elementos ausentes ou apenas sugeridos no sonho que tomamos como exemplo s?oinequivocamente expressos em outros sonhos semelhantes. No sonho de defeca??o seguinte, o emporcalhamento da mulher n?o é enfatizado, mas é-nos dito muito claramente, tanto quanto possível no reino do simbolismo, que o impulso libidinal seacha dirigido para outra mulher. A pessoa que sonha n?o deseja sujar seu próprio campo, maspretende defecar na terra do vizinho. EST?PIDO! Um camponês sonhou que estava trabalhando em seu campo de trevos. Foi surpreendidopor uma necessidade urgente e, visto n?o querer sujar seu próprio trevo, correu até a árvore quese erguia no campo do vizinho, baixou as cal?as e deixou cair uma rodela de bom tamanho sobre och?o. Finalmente, quando satisfeito acabou, quis limpar-se e come?ou a arrancar grama comvontade. Mas, o que era aquilo? Nosso camponês acordou de seu sono com um tranco e agarrousua bochecha dolorida, que alguém havia acabado de esbofetear. ‘Seu estúpido velho e surdo’ -voltando a si, ouviu a mulher, a seu lado na cama, a xingá-lo. ‘Quer parar de puxar os meus pêlos,quer?’ Arrancar cabelos (grama), que aqui toma o lugar de emporcalhar, está mencionado ao ladodeste no sonho seguinte. A experiência psicanalítica demonstra que se origina do grupo desímbolos relativos à masturba??o (ausreissen, abreissen [sacar, arrancar]). O desejo de morte da pessoa que sonha, dirigido contra a esposa, pareceria ser o quemais exige confirma??o em nossa interpreta??o. Mas no sonho que se segue, o sonhador123. realmente enterra a esposa (hipocritamente designada como um tesouro), ao enterrar o recipienteque contém o ouro na terra e, como é comum nos sonhos sobre tesouro, ao deixar cair um montede fezes em cima, para assinalar o lugar. Durante a escava??o, ele está com as m?os ocupadasna vagina da mulher. O SONHO DO TESOURO Certa vez um camponês teve um sonho terrível. Pareceu-lhe que era tempo de guerra eque todo o distrito estava sendo saqueado pelos soldados inimigos. Mas ele possuía um tesouroem rela??o ao qual se achava t?o assustado que n?o sabia bem o que fazer com ele nem mesmoonde, na verdade, deveria escondê-lo. Por fim, pensou em enterrá-lo no jardim, onde sabia de umlugar bom e apropriado. E sonhou ainda que saiu e foi até o lugar onde queria cavar a terra, demaneira a colocar grande pote no buraco. Mas, ao procurar uma ferramenta para escavar, n?oencontrou nada em volta e afinal teve de usar as m?os. Assim, cavou o buraco com as m?os nuas,nele depositou o pote de barro com o dinheiro e cobriu tudo novamente com terra. Já ia embora,mas deteve-se lá um instante e pensou consigo mesmo: ‘Mas, quando os soldados se forem denovo, como farei para encontrar o tesouro, se n?o puser uma marca aqui?’ E imediatamentecome?ou a procurar; procurou aqui e acolá, em cima e em baixo, em todo o lugar. N?o, no finalnada encontrou, em parte alguma que lhe pudesse indicar novamente o lugar em que enterrara odinheiro. Logo em seguida, porém, sentiu uma necessidade. ‘Ah’, disse consigo, ‘é isso mesmo,posso cagar em cima’. De maneira que abaixou as cal?as imediatamente e fez um belo monte nolugar em que enterrara o pote. Viu ent?o perto dele, um pouco de grama e ia arrancá-la, de modo apoder limpar-se com ela. Nesse momento, porém, recebeu uma bofetada tal que, por um segundo,ficou inteiramente tonto e olhou em volta espantado. Logo em seguida escutou a esposa, fora de side raiva, a gritar-lhe: ‘Seu bastardo atrevido, seu imprestável! Pensa que tenho de aturar tudo quevem de você? Primeiro mexe com as duas m?o na minha boceta, depois caga em cima dela eagora quer até arrancar-lhe os pêlos!’ Com este exemplo, retornamos aos sonhos de tesouro com que come?amos, eobservamos que estes sonhos de defeca??o que se relacionam a tesouros contêm pouco ounenhum medo da morte, enquanto que os outros, nos quais a rela??o com a morte é diretamenteexpressa (sonhos de uma ascens?o ao Céu), desprezam o tesouro e motivam a defeca??o deoutras maneiras. ? quase como se a transforma??o hipócrita da esposa num tesouro evitasse apuni??o pelo desejo de morte. Um desejo de morte dirigido contra a mulher é muito claramente admitido em outro sonhode ascens?o ao Céu, o qual, contudo, n?o termina pela defeca??o sobre o corpo da mulher, maspor uma atividade sexual que inclui seus órg?os genitais, como já acontecera no sonho anterior. Apessoa que sonha realmente encurta a vida da esposa, a fim de alongar a sua, ao passar óleo dal?mpada da vida dela para a sua própria. Como compensa??opor esta hostilidade indisfar?ada,aparece no final do sonho algo semelhante a uma tentativa de carícia. A LUZ DA VIDA124. S?o Pedro apareceu a um homem quando este se achava profundamente adormecido elevou-o para o Paraíso. O homem concordou em ir de toda boa vontade e partiu com S?o Pedro.Passearam pelo Paraíso longo tempo e chegara a um bosque, grande e espa?oso mas mantidoem perfeita ordem, onde l?mpadas dependuradas ardiam em cada árvore. O homem perguntou aS?o Pedro o que significava aquilo. S?o Pedro respondeu que eram l?mpadas que só ardiamenquanto um homem vivia; assim que o óleo se gastava e a l?mpada se apagava, o homemtambém tinha de morrer ao mesmo tempo. Isto interessou muito ao homem e ele perguntou a S?oPedro se podia levá-lo até sua própria L?mpada. S?o Pedro deferiu-lhe o pedido e conduziu-o atéa l?mpada da esposa; ao lado desta, achava-se a l?mpada do homem. Este viu que a l?mpada daesposa ainda tinha bastante óleo, mas que havia muito pouco na sua e isto o deixou muito triste,pois teria de morrer cedo, e perguntou se S?o Pedro podia despejar um pouco mais de óleo na sual?mpada. S?o Pedro respondeu que era Deus que colocava o óleo, no momento em que umhomem nascia e determinava para cada um a dura??o da vida. Isto deixou o homem muito abatidoe ele chorou e lamentou-se ao lado de sua l?mpada. S?o Pedro lhe disse: ‘Fique aí, mas eu tenhode ir - tenho mais o que fazer.’ O homem rejubilou-se com isto e, mal S?o Pedro se achava fora devista, come?ou a mergulhar o dedo na l?mpada da mulher e a pingar o óleo na sua própria. Fezisto diversas vezes e, quando S?o Pedro se aproximou, ele deu um pulo, aterrorizado, acordou dosonho, e viu que estivera enfiando o dedo na boceta da mulher e depois fazendo-o pingar dentroda boca e lambendo o dedo. Nota. Segundo uma vers?o contada por um viajante de Sarajevo, o homem desperta apóslevar da mulher um bofet?o nos ouvidos, pois a havia acordado ao mexer em suas partespudendas. Nesta vers?o, S?o Pedro acha-se ausente e, ao invés de l?mpadas pendentes, hávidros com óleo a queimar. De acordo com uma terceira vers?o, que escutei de um estudante emMostar, um venerável homem de barbas brancas mostra ao homem diversas velas a arder. A deleé muito delgada, e a da mulher enormemente espessa. A fim de alongar sua vida, o homemcome?a ent?o, com ardente entusiasmo, a lamber a vela grossa. Mas leva ent?o uma tremendabofetada. ’Eu sabia que você era um bobo, mas, honestamente, n?o sabia que fosse um porcotambém’, disse-lhe a mulher, porque, no sono, ele lhe estava lambendo a boceta. A história é extraordinariamente difundida na Europa. Este é o momento de relembrar o ‘sonho mau’ da mulher que terminou por ela puxar oórg?o de seu marido, como se quisesse arrancá-lo [Ver a partir de [1].]. A interpreta??o que vimosraz?o para efetuar naquele caso concorda inteiramente com a interpreta??o dos sonhos dedefeca??o dos homens, tal como é exposta aqui. No sonho da esposa insatisfeita, também eladescaradamente se livra do marido (e da filha), como obstáculos existentes no caminho dasatisfa??o. Outro sonho de defeca??o, sobre cuja interpreta??o n?o podemos, talvez, estarcompletamente certos, sugere, contudo, que devemos admitir existirem certas diferen?as na125. inten??o desses sonhos, e lan?a nova luz sobre sonhos como os que acabamos de mencionar esobre alguns que ainda devem se seguir, nos quais a a??o onírica consiste na manipula??o dosórg?os genitais da mulher. ‘DE MEDO’ O Paxá passou a noite com o Bei. Quando chegou o dia seguinte, o Bei ficou deitado nacama e n?o quis levantar-se. O Bei perguntou ao Paxá: ‘O que foi que você sonhou?’ ‘Sonhei quesobre o minarete havia outro minarete.’ ‘Poderia ser?’ ficou pensando o Bei. ‘E que mais vocêsonhou?’ ‘Sonhei’, disse ele, ‘que sobre o minarete havia um c?ntaro de cobre e que havia água noc?ntaro. O vento soprou e o c?ntaro de cobre balan?ou. Agora, o que teria feito você, se houvessesonhado isso?’ ‘Teria me mijado, e cagado também, de medo.’ ‘Veja você, eu só me mijei.’ Este sonho exige uma interpreta??o simbólica, por seu conteúdo manifesto serinteiramente incompreensível, embora os símbolos sejam inequivocamente claros. Por que deveriao sonhador senti-se realmente assustado pela vis?o de um c?ntaro de água a balan?ar-se naponta de um minarete? Mas um minarete é otimamente adequado para ser símbolo do pênis e oreceptáculo de água a mover-se ritmicamente parece um bom símbolo dos órg?os genitaisfemininos no ato da copula??o. O Paxá teve portanto um sonho de copula??o e, se seu hospedeirosugere a defeca??o com rela??o a ele, é provável que a interpreta??o deva ser buscada nacircunst?ncia de ambos serem homens velhos e impotentes, em quem a velhice ocasionou amesma proverbial substitui??o do prazer sexual pelo excremencial que, como vimos, surgiu nosoutros devido à falta de um objeto sexual apropriado. Para um homem que n?o mais pode copular,diz o povo com seu grosseiro amor pela verdade, ainda resta o prazer de cagar; podemos dizer detal homem que há uma volta do erotismo anal, que existia antes do erotismo genital, e foi reprimidoe substituído por este último impulso. Os sonhos de defeca??o podem assim ser também sonhosde impotência. A diferen?a entre as interpreta??es n?o é t?o pronunciada como poderia parecer à primeiravista. Também os sonhos de defeca??o, nos quais a vítima é uma mulher, tratam da impotência -uma impotência relativa, pelo menos, quanto à pessoa específica que n?o mais possui qualqueratra??o para o que sonha. Uma sonho de defeca??o torna-se assim o sonho de um homem quen?o mais pode satisfazer uma mulher, bem como de um homem a quem uma mulher n?o maissatisfaz. A mesma interpreta??o (de sonhos de impotência) também pode ser aplicada a um sonhodas Facetiae, de Poggio, que, manifestamente, se apresenta como o sonho de um homemciumento - isto é, na realidade, de um homem que n?o acha que possa satisfazer sua mulher. O ANEL DA FIDELIDADE Franciscus Philelphus tinha ciúmes da mulher e, atormentado pelo grande temor de queela tivesse rela??es com outro homem, dia e noite lhe montava guarda. Visto que o que nos ocupana vigília costuma retornar nos sonhos, apareceu-lhe durante o sono um dem?nio que lhe disseque, se agisse de acordo com suas ordens, a mulher sempre lhe permaneceria fiel. No sonho,126. Franciscus respondeu-lhe que ficaria muito penhorado e prometeu-lhe uma recompensa. ’Toma este anel!’, respondeu o dem?nio, ‘ e usa-o em teu dedo com cuidado. Enquanto ousares, tua mulher n?o poderá deitar-se com nenhum outro homem sem o teu conhecimento.’ Enquanto acordava, excitado de alegria, sentiu que estava enfiando o dedo na vulva daesposa. Os ciumentos n?o tem melhor expediente; desta maneira, suas mulheres nunca se podemdeixar possuir por outro homem sem o conhecimento dos maridos. Esta anedota de Poggio é considerada como a fonte de uma história de Rabelais, que, soboutros aspectos muito semelhante, é mais clara, uma vez que realmente descreve o marido, jávelho, a trazer para casa uma jovem esposa, que ent?o lhe dá motivos para temores ciumentos. Hans Carvel era um homem instruído, experimentado e diligente; um homem de honra, deboa compreens?o e julgamento, benevolente, caridoso com os pobres, e um alegre filósofo. Alémdisso, era um bom companheiro, que gostava de uma tro?a, um tanto corpulento e instável, mastambém bem construído sob todos os aspectos. Na velhice, casou-se com a filha de Concordat, omeirinho, mulher jovem, bonita, boa, alegre, vivaz e agradável, apenas talvez um pouco amistosademais com os vizinhos e criados do sexo masculino. Assim, aconteceu que, ao fim de algumassemanas, ele se tornou ciumento como um tigre e desconfiou que ela estivesse dando suasvoltinhas por aí. Para resguardar-se disto, relatou-lhe toda uma série de agradáveis histórias decastigos por adultério, leu-lhe muitas vezes em voz alta encantadoras lendas de mulheresvirtuosas, pregou-lhe o evangelho da castidade, escreveu-lhe um pequeno volume de can??es emlouvor da fidelidade matrimonial, atacou com palavras mordazes e cáusticas a licenciosidade dasesposas indisciplinadas e, além disso tudo, ofertou-lhe um magnífico colar, cravejado de safirasorientais. Mas, independente disso, viu que ela se dava com os vizinhos de maneira t?o amistosa esociável que seu ciúme cresceu ainda mais. Certa noite, enquanto se achava deitado com ela nacama, em meio a estas penosas reflex?es, sonhou que falava com o Dem?nio Personificado elamentava seu pesar. Mas o Diabo o confortou, p?s-lhe um anel no dedo e disse-lhe: ‘Toma esteanel; enquanto o levares no dedo, nenhum outro homem terá conhecimento carnal de tua mulher,sem teu conhecimento e contra tua vontade.’ ‘Mil agradecimentos, ó Senhor Diabo!’ exclamouHans Carvel. ‘Renegarei Maomé antes de tirar este anel do dedo.’ O Diabo desapareceu: HansCarvel, porém, acordou com o cora??o feliz e descobriu que estava com o dedo enfiado naquelaparte de sua mulher. Esqueci-me de contar que a jovem esposa, ao senti-lo deu um pulo com as nádegas paratrás, como se dissesse: ‘Pare! N?o, n?o! N?o é isso o que se deve botar aí!’ - o que fez HansCarvel imaginar que alguém queria arrancar o seu anel.127. N?o é uma medida infalível? Creiam-me, ajam de acordo com este exemplo e tomemcuidado para, em todas as ocasi?es, ter o anel da mulher no dedo! O Dem?nio, que aparece aqui como conselheiro, como o faz nos sonhos de tesouro, dá-nos uma pista sobre algo dos pensamentos latentes do sonhador. Originalmente, pelo menos,imaginava-se que ele ‘tomasse’ a esposa infiel que é difícil de vigiar. Mostra, ent?o, no sonhomanifesto, um meio infalível de guardá-la permanentemente. Nisto também identificamos umaanalogia com o desejo de livrar-se de alguém (desejo de morte) dos sonhos de defeca??o. Concluiremos esta pequena compila??o de sonhos, acrescentando um sonho de loteria,cuja vincula??o com os outros é bastante ligeira, mas serve para confirmar a sugest?o queapresentamos anteriormente [ver em [1]], de que a loteria simboliza um contrato de casamento. N?O ADIANTA CHORAR SOBRE O LEITE DERRAMADO! Um mercador teve um estranho sonho. Sonhou que vira uma bunda de mulher, com tudo oque lhe é próprio. Numa das metades estava o número 1 e, na outra, um 3. Diante disso, omercador teve a idéia de comprar um bilhete de loteria. Pareceu-lhe que essa figura de seu sonhoconstituía um augúrio feliz. Sem esperar até a nona hora, a primeira coisa que fez foi correr até obanco, pela manh?, a fim de adquirir o bilhete. Chegado lá, sem deter-se para pensar, pediu obilhete n? 13, ou seja, os menos algarismos que havia visto no sonho. Após haver comprado obilhete, nem só um dia se passou sem que ele examinasse todos os jornais, para ver se seunúmero havia saído. Após uma semana, ou no máximo dez dias, surgiu a lista de extra??o.Quando a examinou, viu que seu número n?o havia saído, mas sim o número 103, série 8, quehavia ganho 200.000 rublos. O mercador quase arrancou os cabelos. ‘Devo ter cometido umengano! Há algo errado!’ Achava-se fora de si, quase inconsolável e n?o podia conceber qual araz?o de haver ele tido um sonho assim. Resolveu ent?o debater o assunto com um amigo, paraver se este n?o poderia explicar seu infortúnio. Encontrou o amigo e contou-lhe tudominuciosamente. Ent?o, o amigo disse: ‘Seu simplório! Ent?o você n?o viu o zero entre o número 1e o número 3 na bunda?!’ ‘Ah, diabos me levem, nunca me ocorreu que a bunda tinha um zero.’‘Mas estava lá claro e evidente, só que você n?o calculou certo o número da loteria. E o número 8,pertencente à série - a boceta lhe mostra isso - ela é como um número 8’. - N?o adianta chorarsobre o leite derramado! Nossa inten??o ao publicar este breve artigo foi dupla. Por um lado, desejávamos sugerirque n?o se deve deixar desencorajar pela natureza amiúde repulsivamente suja e indecente destematerial popular de nele buscar confirma??o valiosa das opini?es psicanalíticas. Assim, nestaocasi?o, pudemos estabelecer o fato de que o folclore interpreta os símbolos oníricos da mesmamaneira que a psicanálise, e que, ao contrário da altamente proclamada opini?o popular, deriva umgrupo de sonhos de necessidades e desejos que se tornaram imediatos. Por outro lado,gostaríamos de expressar a opini?o de que é cometer uma injusti?a com o povo comum supor queemprega esta forma de entretenimento simplesmente para satisfazer os desejos mais grosseiros.Parece antes que por trás destas feias fachadas se acham ocultas rea??es mentais a impress?es128. da vida que devem ser tomadas a sério, que até mesmo entristecem - rea??es a que o povocomum está pronto a entregar-se, desde que se fa?am acompanhar por uma produ??o de prazergrosseiro. SOBRE A PSICAN?LISE (1913 [1911]) NOTA DO EDITOR INGL?S129. (a) EDI??O ALEM?: (1911 Data de composi??o; n?o subsiste texto alem?o.) (b) TRADU??O INGLESA: ‘On Psycho-Analysis’ 1913 Congresso Médico Australasiano, Atas da Nona Sess?o, 2, Parte 8, 839-42. A presente tradu??o inglesa é uma vers?o modificada da publicada em 1913. No come?o de mar?o de 1911, Freud recebeu um convite do Dr. Andrew Davidson,secretário da Se??o de Medicina Psicológica e Neurologia, para enviar um artigo a ser lido peranteo Congresso Médico Australasiano, que se deveria reunir em Sidney em setembro daquele ano.Ele enviou o artigo em 13 de maio; foi devidamente lido e posteriormente publicado nas Atas doCongresso, juntamente com artigos (também sobre assuntos psicanalíticos) da autoria de Jung eHavelock Ellis. Nenhum texto alem?o p?de ser achado, mas parece improvável, a partir de evidênciasinternas, que a vers?o publicada possa ter sido escrita pelo próprio Freud em inglês. ? maisprovável que tenha sido traduzida de um original, alem?o, possivelmente na Austrália. N?o parecehaver raz?o específica, portanto, para ater-se ao texto publicado, e, por conseguinte, efetuamosnele algumas ligeiras modifica??es terminológicas e estilísticas. SOBRE A PSICAN?LISE Em resposta à amistosa solicita??o do Secretário de sua Se??o de Neurologia ePsiquiatria, aventuro-me a chamar a aten??o deste Congresso para o tema da psicanálise, queestá sendo extensamente estudada, na época atual, na Europa e nos Estados Unidos. A psicanálise constitui uma combina??o notável, pois abrange n?o apenas um método depesquisas das neuroses, mas também um método de tratamento baseado na etiologia assimdescoberta. Posso come?ar dizendo que a psicanálise n?o é fruto da especula??o mas sim oresultado da experiência; e, por essa raz?o, como todo novo produto da ciência, acha-seincompleta. ? viável a todos convencerem-se por suas próprias investiga??es da corre??o dasteses nelas corporificadas e auxiliar no desenvolvimento ulterior do estudo. A psicanálise come?ou com pesquisas sobre histeria, mas, com o decorrer dos anos,estendeu-se muito além desse campo de trabalho. Os Estudos sobre a Histeria, de autoria deBreuer e minha, publicados em 1895, foram os primórdios da psicanálise. Eles seguiram o rastrodo trabalho de Charcot sobre histeria ‘traumática’, as investiga??es dos fen?menos da hipnoseefetuadas por Liébeault e Bernheim e os estudos de Janet sobre os processos mentaisinconscientes. A psicanálise logo encontrou-se em nítida oposi??o com as opini?es de Janet, por130. (a) declinar de remontar a histeria diretamente à degenera??o hereditária congênita; (b) oferecer,ao invés de mera descri??o, uma explica??o din?mica baseada na a??o recíproca das for?aspsíquicas, e (c) atribuir a origem da dissocia??o psíquica (cuja import?ncia fora reconhecidatambém por Janet) n?o a uma [falha de] síntese mental resultante de incapacidade congênita, massim a um processo psíquico especial, conhecido como ‘repress?o’ (‘Verdr?ngung‘). Foi conclusivamente provado que os sintomas histéricos s?o resíduos (reminiscências) deexperiências profundamente comovedoras, afastadas da consciência cotidiana, e que sua forma édeterminada (de maneira que exclui a a??o deliberada) por pormenores dos efeitos traumáticosdas experiências. Segundo este ponto de vista, as perspectivas terapêuticas residem napossibilidade de livrar-se desta ‘repress?o’, de modo a permitir que parte do material psíquicoinconsciente se torne consciente e privá-la assim de seu poder patogênico. Esta vis?o é din?mica,na medida em que encara os processos psíquicos como deslocamentos de energia psíquica quepodem ser medidos pelo valor de seu efeito sobre os elementos afetivos. Isto é muito significativona histeria, onde o processo de ‘convers?o’ cria os sintomas pela transforma??o de umaquantidade de impulsos mentais em inerva??es somáticas. Os primeiros exames e tentativas psicanalíticas de tratamento foram feitos com o auxíliodo hipnotismo. Posteriormente, este foi abandonado e o trabalho foi efetuado pelo método da‘associa??o livre’, com o paciente em seu estado normal. Esta modifica??o teve a vantagem depermitir que o processo fosse aplicado a um número muito maior de casos de histeria, assim comoa outras neuroses e também a pessoas sadias. Tornou-se necessário, porém, o desenvolvimentode uma técnica especial de interpreta??o, a fim de tirar conclus?es das idéias expressadas pelapessoa em investiga??o. Estas interpreta??es estabeleceram com completa certeza o fato de queas dissocia??es psíquicas s?o inteiramente sustentadas por ‘resistências internas’. Parece portantojustificada a conclus?o de que as dissocia??es se originaram devido a conflito interno, queconduziu à ‘repress?o’ do impulso subjacente. Para superar este conflito e desta maneira curar aneurose, é necessária a m?o orientadora de um médico treinado em psicanálise. Ademais, demonstrou-se ser geralmente verdadeiro que, em todas as neuroses, ossintomas patológicos s?o realmente os produtos finais desses conflitos, que conduziram à‘repress?o’ e à ‘divis?o’ (splitting) da mente. Os sintomas s?o gerados por mecanismos diferentes:(a) seja como forma??es de substitui??o das for?as reprimidas, seja (b) como concilia??es entre asfor?as repressoras e reprimidas, seja (c) como forma??es reativas e salvaguardas contra as for?asreprimidas. As pesquisas estenderam-se ulteriormente às condi??es que determinam se os conflitospsíquicos conduzir?o ou n?o à ‘repress?o’ (isto é, à dissocia??o dinamicamente provocada), viston?o ser necessário dizer que um conflito psíquico, per se, pode ter também um desfecho normal. Aconclus?o a que a psicanálise chegou foi que tais conflitos davam-se sempre entre os instintossexuais (empregando a palavra ‘sexual’ em seu sentido mais amplo) e os desejos e tendências dorestante do ego. Nas neuroses, s?o os instintos sexuais que sucumbem à ‘repress?o’, e constituem131. assim a base mais importante para a gênese dos sintomas, que podem, por conseguinte, serencarados como substitutos de satisfa??es sexuais. Nosso trabalho sobre a quest?o da disposi??o às afec??es neuróticas acrescentou o fato‘infantil’ ao somático e ao hereditário, até ent?o identificados. A psicanálise foi obrigada a remontara vida mental dos pacientes até sua primeira inf?ncia, e chegou-se à conclus?o de que inibi??es dedesenvolvimento mental (‘infantilismos’) apresentam uma disposi??o à neurose. Especificamente,aprendemos, de nossas investiga??es da vida sexual, que existe realmente algo chamado‘sexualidade infantil’, que o instinto sexual é constituído de muitos componentes e atravessa umcomplicado curso de desenvolvimento, cujo desfecho final, após muitas restri??es etransforma??es, é a sexualidade ‘normal’ dos adultos. As enigmáticas pervers?es do instinto sexualque ocorrem em adultos parecem ser inibi??es de desenvolvimento, fixa??es ou crescimentosassimétricos. Assim, as neuroses s?o o negativo das pervers?es. O desenvolvimento cultural imposto à humanidade é o fator que torna inevitáveis asrestri??es e repress?es do instinto sexual, sendo exigidos sacrifícios maiores ou menores, deacordo com a constitui??o individual. O desenvolvimento quase nunca é conseguido de modosuave e podem ocorrer distúrbios (quer por causa da constitui??o individual ou de incidentessexuais prematuros) que deixem atrás de si uma disposi??o a futuras neuroses. Tais disposi??espodem permanecer inofensivas se a vida do adulto progride de modo satisfatório e tranqüilo, maspodem tornar-se patogênicas se as condi??es da vida madura proíbem a satisfa??o da libido ouexigem gravemente sua supress?o. Pesquisas sobre a atividade sexual de crian?as conduziram a outra concep??o do instintosexual, baseada n?o em seus intuitos, mas em suas fontes. O instinto sexual possui em alto grau acapacidade de ser desviado dos objetivos sexuais diretos e ser dirigido no sentido de metas maiselevadas, que n?o s?o mais sexuais (‘sublima??o’). O instinto fica assim capacitado a efetuarcontribui??es muito importantes às realiza??es sociais e artísticas da humanidade. O reconhecimento da presen?a simult?nea dos três fatores de ‘infantilismo’, ‘sexualidade’ e‘repress?o’ constitui a principal característica da teoria psicanalítica e assinala sua distin??o deoutras vis?es da vida mental patológica. Ao mesmo tempo, a psicanálise demonstrou que n?oexiste diferen?a fundamental, mas apenas de grau, entre a vida mental das pessoas normais, dosneuróticos e dos psicóticos. Uma pessoa normal tem de passar pelas mesmas repress?es e lutarcom as mesmas estruturas substitutas; a única diferen?a é que ela lida com estes acontecimentoscom menos dificuldade e mais sucesso. O método psicanalítico de investiga??o pode, porconseguinte, ser aplicado igualmente à explana??o dos fen?menos psíquicos normais e tornoupossível descobrir o estreito relacionamento existente entre produtos psíquicos patológicos eestruturas normais, tais como os sonhos, os pequenos erros da vida cotidiana, e fen?menos t?ovaliosos como chistes, mitos e obras da imagina??o. A explica??o foi conduzida mais longe nocaso dos sonhos e resultou aqui na seguinte fórmula geral: ‘O sonho é uma realiza??o, disfar?adade um desejo reprimido.’ A interpreta??o de sonhos tem por objetivo a remo??o do disfarce a que132. os pensamentos do que sonha foram submetidos. Constitui, além disso, auxílio altamente valioso àtécnica psicanalítica, porque é o método mais conveniente de obter uma compreens?o interna(insight) da vida psíquica inconsciente. Amiúde há uma tendência nos círculos médicos e, especialmente, nos círculospsiquiátricos, para contradizer as teorias da psicanálise sem nenhum estudo real ou aplica??oprática delas. Isto se deve n?o apenas à notável novidade destas teorias e ao contraste queapresentam com as opini?es até aqui sustentadas pelos psiquiatras, mas também ao fato de aspremissas e a técnica da psicanálise acharem-se relacionadas muito mais de perto com o campoda psicologia que com o da medicina. N?o se pode discutir, contudo, que os ensinamentospuramente médicos e n?o psicológicos até o presente muito pouco fizeram por uma compreens?oda vida mental. O progresso da psicanálise é ainda retardado pelo termo que o observador médiosente de ver-se a si mesmo em seu próprio espelho. Os homens de ciência tendem a enfrentarresistências emocionais com argumentos e, assim, satisfazem-se a si mesmos para sua própriasatisfa??o! Quem quer que deseje n?o ignorar uma verdade fará bem em desconfiar de suasantipatias e, se quiser submeter a teoria da psicanálise a um exame crítico, que primeiro se analisea si mesmo. N?o posso achar que nestas poucas frases tenha conseguido pintar um quadro claro dosprincípios e propósitos da psicanálise, mas a elas adicionarei uma rela??o das principaispublica??es sobre o assunto, cujo estudo fornecerá maiores esclarecimentos a quem quer que eupossa ter interessado. 1. Breuer e Freud, Studien über Hysterie, 1895, Fr. Deuticke, Viena. Uma parte deles foitraduzida para o inglês em ‘Selected Papers on Hysteria and other Psycho-neuroses’, do Dr. A. A.Brill, Nova Iorque, 1909. 2. Freud, Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie, Viena, 1905. Tradu??o inglesa do Dr.Brill, ‘Three Contributions to the Sexual Theory’, Nova Iorque, 1910. 3. Freud, i, S. Karger, Berlim, 3? edi??o. 1910. 4. Freud, Die Traumdeutung, Viena, 1900, 3? ed., 1911. 5. Freud, ‘The Origin and Development of Psycho-analysis’, Amer. Jour. of Psychology,abril, 1910. Também em alem?o: Ueber Psychoanalyse, Cinco conferências pronunciadas naUniversidade Clark, Worcester, Mass., 1909. 6. Freud, Der Witz und seine Beziehung zum Unbewussten, Viena, 1905. 7. Freud, Collection of minor papers on the Doctrine of Neuroses, 1893-1906. Viena,1906. 8. Idem, segunda compila??o. Viena, 1909. 9. Hitschmann, Freud’s Neurosenlehre, Viena, 1911. 10. C. G. Jung, Diagnostische Associationsstudien, dois volumes, 1906-1910.133. 11. C. G. Jung, ?ber die Psychologie der Dementia Praecox, 1907. 12. Jahrbuch für psycho-analytische und psychopathologische Forschungen, publicado porE. Bleuler e S. Freud, organizado por Jung. A partir de 1909. 13. Schriften zur angewandten Seelenkunde, Fr. Deuticke, Viena, a partir de 1907. Onzepartes, da autoria de Freud, Jung, Abraham, Pfister, Rank, Jones, Riklin, Graf, Sadger. 14. Zentralblatt für Psychoanalyse. Organizado por A. Adler e W. Stekel. J. Bergmann,Wiesbaden. A partir de setembro de 1910. FORMULA??ES SOBRE OS DOIS PRINC?PIOS DO FUNCIONAMENTO MENTAL (1911) NOTA DO EDITOR INGL?S FORMULIERUNGEN ?BER DIE ZWEI PRINZIPIEN DES PSYCHISCHEN GESCHEHENS (a) EDI??ES ALEM?S: 1911 Jb. psychoan. psychopath. Forsch., 3 (1), 1-8. 1913 S. K. S. N., 3, 271-9. (1921, 2? ed.) 1924 G. S., 5, 409-17. 1931 Theoretische Schriften, 5-14. 1943 G. W., 8, 230-8. (b) TRADU??O INGLESA: ‘Formulations Regarding the Two Principle in Mental Functioning’ 1925 C. P., 4, 13-21. (Trad. de M. N. Searl.) A presente tradu??o inglesa, com o título modificado, baseia-se na publicada em 1925,mas foi em grande parte redigida novamente. Informa-nos o Dr Ernest Jones que Freud come?ou a planejar este artigo em junho de1910, e que trabalhava nele simultaneamente com a história clínica de Schreber (1911c). Seuprogresso foi lento, mas, em 26 de outubro, falou sobre o assunto perante a SociedadePsicanalítica de Viena; achou a assistência indiferente, porém, e ele próprio se achava insatisfeitocom sua apresenta??o. Foi somente em dezembro que come?ou realmente a escrever o artigo.134. Achava-se pronto ao final de janeiro de 1911, mas n?o foi publicado sen?o no fim da primavera,quando apareceu no mesmo número do Jahrbuch que o caso Schreber. Com este notório artigo, que constitui um dos clássicos da psicanálise, e com a terceiraparte, quase contempor?nea, da história clínica de Schreber, Freud pela primeira vez, após umintervalo de mais de dez anos, novamente empreendeu o exame das hipóteses teóricas gerais quese achavam implícitas em suas descobertas clínicas. Sua primeira tentativa ampla de tal examefora feita em terminologia quase neurológica, em seu ‘Project for a Scientific Psychology’, de 1895,que, no entanto, n?o foi publicado durante a sua vida (Freud, 1950a). O Capítulo VII de AInterpreta??o de Sonhos (1900a) foi a exposi??o de um conjunto muito semelhante de hipótese,mas, desta vez, em termos puramente psicológicos. Grande parte do material do presente artigo(especialmente em sua primeira parte) deriva diretamente destas duas fontes. O trabalho dá aimpress?o de ter o caráter de um levantamento de estoque. ? como se Freud estivesse trazendo àsua própria inspe??o, por assim dizer, as hipóteses fundamentais de um período anterior epreparando-as para servir de base para os principais exames teóricos que se achavam adiante, nofuturo imediato: o artigo sobre narcisismo, por exemplo, e a grande série dos artigosmetapsicológicos. A presente exposi??o de suas opini?es é excessivamente condensada, n?o sendo fácil deassimilar, mesmo hoje. Embora saibamos agora que Freud muito pouco dizia nela que já n?o seachasse há muito tempo em sua mente, por ocasi?o de sua publica??o deve ter impresionado osleitores como desconcertantemente cheia de novidades. Os parágrafos assinalados (1), porexemplo, a partir de [1], seriam verdadeiramente obscuros para aqueles que n?o se achassemfamiliarizados com o ‘Projeto’ ou com os artigos metapsicológicos e que tivessem de retirar oesclarecimento que pudessem de um certo número de passagens quase igualmente condensadase muito pouco sistematizadas de A Interpreta??o de Sonhos. N?o é de surpreender que a primeiraassistência de Freud se mostrasse indiferente. O tema principal da obra é a distin??o entre os princípios reguladores (o princípio de prazere o princípio de realidade) que dominam, respectivamente, os processos mentais primário esecundário. A tese, na verdade, já fora enunciada na Se??o 1 da Parte I do ‘Projeto’ e elaboradanas Se??es 15 e 16 da Parte I e nas partes posteriores da Se??o I da Parte III. Foi novamenteexaminada no Capítulo VII de A interpreta??o de Sonhos (Ver a partir de [1] e [2], 1972), mas otratamento mais completo foi reservado para o artigo sobre a metapsicologia dos sonhos (1917d[1915]), escrito cerca de três anos após o presente. Um relato mais pormenorizado dodesenvolvimento das opini?es de Freud sobre a quest?o de nossa atitude mental para com arealidade pode ser encontrado na Nota do Editor Inglês a esse artigo (Ver a partir de [1], 1974). Perto do fim do trabalho, surgem vários outros tópicos relacionados, cujo desenvolvimentoulterior (como o do tema principal) é deixado para posterior investiga??o. Na verdade, todo o artigofoi (como o próprio Freud observa) de natureza preparatória e exploratória, mas n?o é menosinteressante por essa raz?o.135. A maior parte deste artigo, na vers?o de 1925, foi incluída em General Selection from theWorks of Simund Freud (1937, 45-53), de Rickman. FORMULA??ES SOBRE OS DOIS PRINC?PIOS DO FUNCIONAMENTO MENTAL Há muito tempo observamos que toda neurose tem como resultado e, portanto,provavelmente, como propósito arrancar o paciente da vida real, aliená-lo da realidade. N?opoderia um fato assim fugir à observa??o de Piere Janet; ele falou de uma perda de ‘la fonction duréel‘ [‘a fun??o da realidade’] como sendo característica especial dos neuróticos, mas semdescobrir a vincula??o deste distúrbio com as determinantes fundamentais da neurose. Pelaintrodu??o do processo de repress?o na gênese das neuroses, pudemos obter uma certacompreens?o interna (insight) com referência a isto. Os neuróticos afastam-se da realidade porachá-la insuportável - seja no todo ou em parte. O tipo mais extremo deste afastamento darealidade é apresentado por certos casos de psicose alucinatória que procuram negar o eventoespecífico que ocasionou o desencadeamento de sua insanidade (Griesinger). Mas, na verdade,todo neurótico faz o mesmo com algum fragmento da realidade. E defrontamo-nos agora com atarefa de investigar o desenvolvimento da rela??o dos neuróticos e da humanidade em geral com arealidade e, desta maneira, de trazer a significa??o psicológica do mundo externo e real para aestrutura de nossas teorias. Na psicologia que se baseia na psicanálise, acostumamo-nos a tomar como ponto departida os processos mentais inconscientes, com cujas peculiaridades nos tornamos familiarizadosatravés da análise. Consideramos que s?o os processos mais antigos, primários, resíduos de umafase de desenvolvimento em que eram o único tipo de processo mental. O propósito dominanteobedecido por estes processos primários é fácil de reconhecer; ele é descrito como o princípio deprazer-desprazer [Lust-Unlust], ou, mais sucintamente, princípio de prazer. Estes processosesfor?am-se por alcan?ar prazer; a atividade psíquica afasta-se de qualquer evento que possadespertar desprazer. (Aqui, temos a repress?o.) Nossos sonhos à noite e, quando acordados,nossa tendência a afastar-nos de impress?es aflitivas s?o resquícios do predomínio deste princípioe provas do seu poder. Retorno a linhas de pensamento já desenvolvidas noutra parte quando sugiro que o estadode repouso psíquico foi originalmente perturbado pelas exigências peremptórias das necessidadesinternas. Quando isto aconteceu, tudo que havia sido pensado (desejado) foi simplesmenteapresentado de maneira alucinatória, tal como ainda acontece hoje com nossos pensamentosoníricos a cada noite. Foi apenas a ausência da satisfa??o esperada, o desapontamentoexperimentado, que levou ao abandono desta tentativa de satisfa??o por meio da alucina??o. Emvez disso, o aparelho psíquico teve de decidir tomar uma concep??o das circunst?ncias reais nomundo externo e empenhar-se por efetuar nelas uma altera??o real. Um novo princípio defuncionamento mental foi assim introduzido; o que se apresentava na mente n?o era mais o136. agradável, mas o real, mesmo que acontecesse ser desagradável. Este estabelecimento doprincípio de realidade provou ser um passo momentoso. (1) Em primeiro lugar, as novas exigências efetuaram uma sucess?o de adapta??esnecessárias no aparelho psíquico, as quais, devido a nosso conhecimento insuficiente ou incerto,só podemos relatar muito superficialmente. A significa??o crescente da realidade externa elevou também a import?ncia dos órg?osensoriais, que se acham dirigidos para esse mundo externo, e da consciência a eles ligada. Aconsciência aprendeu ent?o a abranger qualidades sensórias, em acréscimo às qualidades deprazer e desprazer que até ent?o lhe haviam exclusivamente interessado. Institui-se uma fun??oespecial, que tinha de periodicamente pesquisar o mundo externo, a fim de que seus dados jápudessem ser conhecidos se uma urgente necessidade interna surgisse: a fun??o da aten??o. Suaatividade vai encontrar as impress?es sensórias a meio caminho, ao invés de esperar por seuaparecimento. Ao mesmo tempo, provavelmente, foi introduzido um sistema de nota??o, cuja tarefaera assentar os resultados desta atividade periódica da consciência - uma parte do que chamamosmemória. O lugar da repress?o, que excluía da catexia como produtoras de desprazer algumas dasidéias emergentes, foi assumido por uma passagem de julgamento imparcial, que tinha de decidirse determinada idéia era verdadeira ou falsa - isto é, se se achava ou n?o em concord?ncia com arealidade -, decis?o que era determinada efetuando-se uma compara??o com os tra?os dememória da realidade. Nova fun??o foi ent?o atribuída à descarga motora, que, sob o predomínio do princípio deprazer, servira como meio de aliviar o aparelho mental de adi??es de estímulos, e que realizaraesta tarefa ao enviar inerva??es para o interior do corpo (conduzindo a movimentos expressivos,mímica facial e manifesta??es de afeto). A descarga motora foi agora empregada na altera??oapropriada da realidade; foi transformada em a??o. A coibi??o da descarga motora (da a??o), que ent?o se tornou necessária, foiproporcionada através do processo do pensar, que se desenvolveu a partir da apresenta??o deidéias. O pensar foi dotado de características que tornavam possível ao aparelho mental toleraruma tens?o aumentada de estímulo, enquanto o processo de descarga era adiado. Ele éessencialmente um tipo experimental de atua??o acompanhado por deslocamento de quantidadesrelativamente pequenas de catexia, junto com menor dispêndio (descarga) destas. Para este fim,foi necessária a transforma??o de catexias livremente móveis em catexias vinculadas o que seconseguiu mediante eleva??o do nível de todo o processo catexial. ? provável que o pensar fosseoriginalmente inconsciente, na medida em que ultrapassava simples apresenta??es ideativas e eradirigido para as rela??es entre impress?es de objetos, e que n?o adquiriu outras qualidadesperceptíveis à consciência até haver-se ligado a resíduos verbais. (2) Uma tendência geral de nosso aparelho mental, que pode ser remontada ao princípio137. econ?mico de poupar consumo [de energia], parece encontrar express?o na tenacidade com quenos apegamos às fontes de prazer à nossa disposi??o e na dificuldade com que a elasrenunciamos. Com a introdu??o do princípio de realidade, uma das espécies de atividade depensamento foi separada; ela foi liberada no teste de realidade e permaneceu subordinadasomente ao princípio de prazer. Esta atividade é o fantasiar, que come?a já nas brincadeirasinfantis, e, posteriormente, conservada como devaneio, abandona a dependência de objetos reais. (3) A substitui??o do princípio de prazer pelo principio de realidade, com todas asconseqüências psíquicas envolvidas aqui esquematicamente condensadas numa só frase, n?o serealiza, na verdade, de repente; tampouco se efetua simultaneamente em toda a linha, pois,enquanto este desenvolvimento tem lugar nos instintos do ego, os instintos sexuais se desligamdeles de maneira muito significativa. Os instintos sexuais comportam-se auto-eroticamente aprincípio; obtêm sua satisfa??o do próprio corpo do indivíduo e, portanto, n?o se encontram nasitua??o de frustra??o que for?ou a institui??o do princípio de realidade. Quando, posteriormente,come?a o processo de encontrar um objeto, ele é logo interrompido pelo longo período de latênciaque retarda o desenvolvimento sexual até a puberdade. Estes dois fatores - auto-erotismo eperíodo de latência - ocasionam que o instinto sexual seja detido em seu desenvolvimento psíquicoe permane?a muito mais tempo sob o domínio do princípio de prazer, do qual, em muitas pessoas,nunca é capaz de se afastar. Em conseqüência dessas condi??es, surge uma vincula??o mais estreita entre o instintosexual e a fantasia, por um lado, e, por outro, entre os instintos do ego e as atividades daconsciência. Tanto em pessoas sadias quanto em neuróticos, esta vincula??o impressiona-noscomo muito íntima, embora as considera??es de psicologia genética que acabaram de serapresentadas levem-nos a identificá-la como secundária. A continuidade do auto-erotismo é quetorna possível reter por tanto tempo a satisfa??o moment?nea e imaginária mais simples emrela??o ao objeto sexual, em lugar da satisfa??o real, que exige esfor?o e adiamento. No campo dafantasia, a repress?o permanece todo-poderosa; ela ocasiona a inibi??o de idéias in statu nascendiantes que possam ser notadas pela consciência, se a catexia destas tiver probabilidade deocasionar uma libera??o de desprazer. Este é o ponto fraco de nossa organiza??o psíquica; e elepode ser empregado para restituir ao domínio do princípio de prazer processos de pensamentoque já se haviam tornado racionais. Parte essencial da disposi??o psíquica à neurose reside assimna demora em ensinar os instintos sexuais a considerar a realidade e, como corolário, nascondi??es que tornam possível esta demora. (4) Tal como o ego-prazer nada pode fazer a n?o ser querer, trabalhar para produzir prazere evitar o desprazer, assim o ego-realidade nada necessita fazer a n?o ser lutar pelo que é útil eresguardar-se contra danos. Na realidade, a substitui??o do princípio de prazer pelo princípio derealidade n?o implica a deposi??o daquele, mas apenas sua prote??o. Um prazer moment?neo,incerto quanto a seus resultados, é abandonado, mas apenas a fim de ganhar mais tarde, ao longodo novo caminho, um prazer seguro. Mas a impress?o endopsíquica causada por esta substitui??o138. foi t?o poderosa que se reflete num mito religioso especial. A doutrina da recompensa noutra vidapela renúncia - voluntária ou for?ada - dos prazeres terrenos nada mais é que uma proje??o míticadesta revolu??o na mente. Seguindo constantemente neste sentido, as religi?es puderam efetuaruma renúncia completa do prazer na vida, adiante a promessa de compensa??o numa existênciafutura; mas n?o realizaram, por este meio, uma conquista do princípio de prazer. ? a ciência quechega mais perto de obter êxito nessa conquista; ela, contudo, também oferece prazer intelectualdurante seu trabalho e promete um lucro prático ao final. (5) A educa??o pode ser descrita, sem mais, como um incentivo à conquista do princípiode prazer e à sua substitui??o pelo princípio de realidade; isto é, ela procura auxiliar o processo dedesenvolvimento que afeta o ego. Para este fim, utiliza uma oferta de amor dos educadores comorecompensa; e falha, portanto, se uma crian?a mimada pensa que possui esse amor de qualquerjeito e n?o pode perdê-lo, aconte?a o que acontecer. (6) A arte ocasiona uma reconcilia??o entre os dois princípios, de maneira peculiar. Umartista é originalmente um homem que se afasta da realidade, porque n?o pode concordar com arenúncia à satisfa??o instintual que ela a princípio exige, e que concede a seus desejos eróticos eambiciosos completa liberdade na vida de fantasia. Todavia, encontra o caminho de volta destemundo de fantasia para a realidade, fazendo uso de dons especiais que transformam suasfantasias em verdades de um novo tipo, que s?o valorizadas pelos homens como reflexospreciosos da realidade. Assim, de certa maneira, ele na verdade se torna o herói, o rei, o criador ouo favorito que desejava ser, sem seguir o longo caminho sinuoso de efetuar altera??es reais nomundo externo. Mas ele só pode conseguir isto porque outros homens sentem a mesmainsatisfa??o, que resulta da substitui??o do princípio de prazer pelo princípio de realidade; é em siuma parte da realidade. (7) Enquanto o ego passa por suas transforma??es, de ego-prazer para ego-realidade, osinstintos sexuais sofrem as altera??es que os levam de seu auto-erotismo original, através dediversas fases intermediárias, ao amor objetal a servi?o da procria??o. Se estamos certos empensar que cada passo destes dois cursos de desenvolvimento pode tornar-se local de umadisposi??o à doen?a neurótica posterior, é plausível supor que a forma assumida pela doen?asubseqüente (a escolha da neurose) dependerá da fase específica de desenvolvimento do ego eda libido na qual a inibi??o disposicional do desenvolvimento ocorreu. Assim, uma significa??oinesperada liga-se aos aspectos cronológicos dos dois desenvolvimentos (que ainda n?o foramestudados) e a possíveis varia??es em sua sincroniza??o. (8) A característica mais estranha dos processos inconscientes (reprimidos), à qualnenhum pesquisador se pode acostumar sem o exercício de grande autodisciplina, deve-se ao seuinteiro desprezo pelo teste de realidade; eles equiparam a realidade do pensamento com arealidade externa e os desejos com sua realiza??o - com o fato - tal como aconteceautomaticamente sob o domínio do antigo princípio de prazer. Daí também a dificuldade dedistinguir fantasias inconscientes de lembran?as que se tornaram inconscientes. Mas nunca nos139. devemos permitir ser levados erradamente a aplicar os padr?es da realidade a estruturas psíquicasreprimidas e, talvez por causa disso, a menosprezar a import?ncia das fantasias na forma??o dossintomas, sob o pretexto de elas n?o serem realidades, ou a remontar um sentimento neurótico deculpa a alguma outra fonte, por n?o haver provas de que qualquer crime real tenha sido cometido.Somos obrigados a empregar a moeda-corrente do país que estamos explorando; em nosso caso,uma moeda neurótica. Suponha-se, por exemplo, que estamos tentando solucionar um sonhocomo este. Um homem, que outrora cuidara do pai durante longa e penosa doen?a mortal, contou-me que nos meses seguintes à morte daquele havia repetidamente sonhado que o pai estavanovamente vivo e lhe falava da maneira costumeira. Mas ele achava excessivamente penoso queo pai houvesse realmente morrido, apenas sem sabê-lo O único modo de compreender este sonhoaparentemente absurdo é acrescentar ‘como aquele que sonhou quisera’ ou ‘em conseqüência deseu desejo’ após as palavras ‘que ele [o que sonhou] o desejaria’, às últimas palavras. Opensamento onírico é ent?o o seguinte: foi-lhe penosa a lembran?a de haver sido obrigado adesejar a morte do pai (como libera??o) enquanto este ainda se achava vivo, e qu?o terrível teriasido se o pai houvesse tido qualquer suspeita disso. As deficiências deste breve artigo, que é mais preparatório que expositivo, ser?o talvezdesculpadas, apenas em pequena parte, se eu alegar que s?o inevitáveis. Nestas poucasobserva??es sobre as conseqüências psíquicas da adapta??o ao princípio de realidade, fuiobrigado a esbo?ar opini?es que, no momento, teria preferido reter e cuja justifica??o certamenteexigirá esfor?o nada insignificante. Mas tenho esperan?a de que n?o escapará à observa??o doleitor benevolente como, nestas páginas também, o predomínio do princípio de realidade estácome?ando.140. TIPOS DE DESENCADEAMENTO DA NEUROSE (1912) NOTA DO EDITOR INGL?S ?BER NEUROTISCHE ERKRANKUNGSTYPEN (a) EDI??ES ALEM?S: 1912 Zbl. Psychoan., 2 (6), 297-302. 1913 S. K. S. N., 3, 306-13. (1921, 2? ed.) 1924 G. S., 5, 400-8. 1943 G. W., 8, 322-30. (b) TRADU??O INGLESA: ‘Types of Neurotic Nosogenesis’ 1924 C. P., 2, 113-21. (Trad. de E. C. Mayne.) A presente tradu??o inglesa, com título diferente, é nova, da autoria de James Strachey. Este artigo apareceu no número de mar?o de 1912 da Zentralblatt. Constitui umaamplia??o de observa??es contidas num parágrafo da análise de Schreber (1911c), pp. 83 e seg.,anteriores, e seu tema é a classifica??o das causas precipitantes das enfermidades neuróticas.Naturalmente, Freud já se ocupara muitas vezes com o assunto mas em seus primeiros escritos aposi??o foi obscurecida pela proeminência neles concedida aos eventos traumáticos. Após haverabandonado mais ou menos completamente a teoria do trauma, seu interesse focalizou-se emgrande parte [p. ex., no ‘Resumo’, ao final dos Três Ensaios (1905d), ver a partir de [1], 1972] nasdiversas causas predisponentes à neurose. As causas precipitantes s?o mencionadas em um oudois artigos contempor?neos, mas apenas nos termos mais gerais e, às vezes, depreciativos. [Ver,por exemplo, o artigo sobre a etiologia das neuroses (1906a), em [2]] ? verdade, contudo, que ano??o de ‘priva??o’ (‘Entbehrung‘) aparece ocasionalmente, p. ex. em ‘Sobre a Psicoterapia’(1905a), em [3], mas somente no sentido de priva??o devida a circunst?ncia externa. Apossibilidade de a neurose resultar de um obstáculo interno à satisfa??o surge em data um tantoposterior - no artigo, por exemplo, sobre os efeitos da moralidade ‘civilizada’ (1908d) - talvez, comoFreud sugere adiante (em [4]), sob o impacto do trabalho de Jung. No artigo por último141. mencionado, o termo ‘Versagung (frustra??o)’ é utilizado para descrever obstáculo interno.Reaparece, mas desta vez com referência apenas a obstáculos externos, na análise de Schreber,bastante anterior (1911c) (ver em [1] e [2]), bem como em dois artigos contempor?neos deste -sobre a din?mica da transferência (1912b), em [3], e sobre a tendência ao aviltamento no amor(1912d), ver em [4], 1970. No presente artigo, porém, Freud empregou a palavra pela primeira vez,a fim de introduzir um conceito mais abrangente, a abarcar ambos os tipos de obstáculos. Daqui por diante, ‘Frustra??o’, como principal causa precipitante da neurose, tornou-seuma das armas mais comumente usadas no arsenal clínico de Freud, e reaparece em muitos deseus escritos posteriores. O mais elaborado destes exames posteriores pode ser encontrado naConferência XXII das Conferências Introdutórias (1916-17). O caso aparentemente contraditório deuma pessoa cair doente no momento de alcan?ar êxito - o próprio oposto na frustra??o - foiapresentado e resolvido por Freud no decurso de um artigo sobre diversos tipos de caráter(1916d), ver a partir de [1], 1974, e ele retornou mais uma vez ao mesmo ponto em sua cartaaberta a Romain Rolland, que descreve uma visita à Acrópole (1936a). Numa passagem dahistória clínica do ‘Wolf Man’ (1918b), Freud mostrou existir uma omiss?o na presente rela??o detipo de desencadeamento da neurose - o tipo resultante de uma frustra??o narcísica (ver em [1]). A maior parte deste artigo, na vers?o de 1924, foi incluída na General Selection from theWorks of Sigmund Freud (1937, 70-8), de Rickman. TIPOS DE DESENCADEAMENTO DA NEUROSE Nas páginas que se seguem, descreverei, com bases em impress?es alcan?adasempiricamente, as mudan?as que as condi??es têm de experimentar a fim de ocasionar a irrup??ode uma doen?a neurótica numa pessoa com disposi??o a essa. Tratarei assim da quest?o dosfatores precipitantes das enfermidades e pouco terei a dizer sobre suas formas. O presente examedas causas precipitantes diferirá de outros pelo fato de que as mudan?as a serem enumeradasreferem-se exclusivamente à libido do indivíduo, pois a psicanálise nos ensinou que s?o asvicissitudes da libido que decidem em favor da saúde ou da moléstia nervosa. Neste sentido,tampouco se gastar?o palavras sobre o conceito de disposi??o. Foi precisamente a pesquisapsicanalítica que nos capacitou a demonstrar que a disposi??o neurótica reside na história dodesenvolvimento da libido, e a remontar os fatores operantes nesse desenvolvimento a variedadeinatas de constitui??o sexual e a influências do mundo externo experimentadas na primeirainf?ncia. (a) A causa precipitante mais óbvia, mais facilmente descobrível e mais inteligível de umdesencadeamento da neurose deve ser vista no fator externo que pode ser descrito, em termosgerais, como frustra??o. O indivíduo foi sadio enquanto sua necessidade de amor foi satisfeita porum objeto real no mundo externo; torna-se neurótico assim que esse objeto é afastado dele, semque um substituto ocupe seu lugar. Aqui, a felicidade coincide com a saúde e a infelicidade, com a142. neurose. ? mais fácil para o destino que para o médico ocasionar uma cura, pois aquele podeoferecer ao paciente um substituto para a possibilidade de satisfa??o que perdeu. Assim, para este tipo, ao qual indubitavelmente pertence a maioria dos seres humanos emgeral, a possibilidade de cair enfermo surge apenas quando há abstinência. E daí se pode avaliarque papel importante na causa??o das neuroses pode ser desempenhado pela limita??o impostapela civiliza??o ao campo das satisfa??es acessíveis. A frustra??o tem efeito patogênico porrepresar a libido e submeter assim o indivíduo a um teste de quanto tempo ele pode tolerar esteaumento de tens?o psíquica e que métodos adotará para lidar com ela. Há apenas duaspossibilidades de permanecer sadio quando existe uma frustra??o persistente de satisfa??o nomundo real. A primeira é transformar a tens?o psíquica em energia ativa, que permanece voltadapara o mundo externo e acaba por arrancar dele uma satisfa??o real da libido. A segunda érenunciar à satisfa??o libidinal, sublimar a libido represada e voltá-la para a consecu??o deobjetivos que n?o s?o mais eróticos e fogem à frustra??o. O fato de estas duas possibilidadesserem realizadas nas vidas dos homens prova que a infelicidade n?o coincide com a neurose eque a frustra??o n?o decide sozinha se sua vítima permanece sadia ou tomba enferma. O efeitoimediato da frustra??o reside em ela colocar em jogo os fatores disposicionais que até ent?ohaviam sido inoperantes. Onde estes se acham presentes e s?o desenvolvidos de modo suficientemente intenso, háo risco de a libido tornar-se ‘introvertida’. Ela vira as costas à realidade, que, devido à frustra??opersistente, perdeu o valor para o indivíduo, e volta-se para a vida da fantasia, na qual cria novasestruturas de desejo e revive os tra?os de outras anteriores, esquecidas. Em conseqüência daestreita vincula??o existente entre a atividade da fantasia e o material presente em todos, que éinfantil e reprimido e se tornou inconsciente, bem como gra?as à excepcional posi??o desfrutadapela vida de fantasia com referência ao teste de realidade, a libido pode, daí por diante, mover-senum curso retroativo; pode seguir o caminho da regress?o ao longo de linhas infantis e lutar porobjetivos que se coadunem com elas. Se estes esfor?os, que s?o incompatíveis com aindividualidade atual do paciente, adquirem intensidade suficiente, tem de resultar um conflito entreeles e a outra parte da personalidade, que manteve sua rela??o com a realidade. O conflito ésolucionado pela forma??o de sintomas e seguido pelo desencadeamento da doen?a manifesta. Ofato de todo o processo ter-se originado da frustra??o no mundo real reflete-se no resultado: ossintomas, nos quais o terreno da realidade é mais uma vez alcan?ado, representam satisfa??essubstitutas. (b) O segundo tipo de causas precipitante da enfermidade n?o é, de maneira alguma, t?oevidente quanto o primeiro e, em verdade, só foi possível descobri-lo através de minuciosasinvestiga??es analíticas que se seguiram à teoria dos complexos da escola de Zurique. Aqui oindivíduo n?o cai enfermo em resultado de uma mudan?a no mundo externo, que substituiu asatisfa??o pela frustra??o, mas em resultado de um esfor?o interno para conseguir a satisfa??o143. que lhe é acessível na realidade. Cai enfermo por causa de sua tentativa de adaptar-se à realidadee de atender às exigências da realidade - tentativa no curso da qual se defronta com dificuldadesinternas insuperáveis. ? aconselhável tra?ar uma distin??o nítida entre os dois tipos de desencadeamento deenfermidade, uma distin??o mais nítida do que a observa??o via de regra permite. No primeiro tipo,o proeminente é uma mudan?a no mundo externo; no segundo, a ênfase recai sobre umamudan?a interna. No primeiro, o indivíduo cai doente a partir de uma experiência; no segundo, apartir de um processo de desenvolvimento. No primeiro caso, defronta-se com a tarefa derenunciar à satisfa??o e cai enfermo devido à sua incapacidade de resistência; no segundo, suatarefa é trocar um tipo de satisfa??o por outro, e sucumbe devido à sua inflexibilidade. No segundocaso, o conflito entre o esfor?o do indivíduo para permanecer tal como é e o esfor?o paramodificar-se, a fim de atender a novos intuitos e novas exigências da realidade, acha-se presentedesde o início. No primeiro caso, o conflito só surge após a libido represada haver escolhidooutras, e incompatíveis, possibilidades de satisfa??o. O papel desempenhado pelo conflito e pelafixa??o anterior da libido é incomparavelmente mais óbvio no segundo tipo que no primeiro, ondetais fixa??es imprestáveis podem talvez surgir apenas como resultado da frustra??o externa. Um jovem que até ent?o tenha satisfeito sua libido por meio de fantasias que findem pelamasturba??o, e que agora busca substituir um regime que se aproxima do auto-erotismo pelaescolha de um objeto real - ou uma jovem que dedicou toda sua afei??o ao pai ou ao irm?o e quedeve agora, a bem de um homem que a está cortejando, permitir que seus desejos libidinaisincestuosos até ent?o inconscientes se tornem conscientes -, ou uma mulher casada, que gostariade renunciar a suas inclina??es polígamas e fantasias de prostitui??o, de modo a tornar-se umaconsorte fiel ao marido e perfeita m?e para o filho: todos estes caem enfermos devido aos maislouváveis esfor?os, se as fixa??es anteriores de suas libidos s?o suficientemente poderosas pararesistir a um deslocamento; e este ponto será decidido, uma vez mais, pelos fatores da disposi??o,da constitui??o e da experiência infantil. Todos eles, poder-se-ia dizer, defrontam-se com a sorteda arvorezinha do conto de fadas de Grimm, que queria ter folhas diferentes. Do ponto de vistahigiênico - que, certamente, n?o é o único a ser levado em considera??o - só se poderia desejarpara eles que continuassem a ser t?o subdesenvolvidos, inferiores e inúteis como o eram, antes decaírem enfermos. A mudan?a pela qual os pacientes se esfor?am, mas realizam apenasimperfeitamente ou de modo algum, tem invariavelmente o valor de um passo à frente do ponto devista da vida real. Mas é diferente se aplicarmos padr?es éticos; vemos as pessoas caíremenfermas t?o freqüentemente quando p?em de lado um ideal como quando buscam atingi-lo. Apesar das diferen?as muito claras entre os dois tipos de desencadeamento deenfermidade que descrevemos, eles, n?o obstante coincidem em seus pontos essenciais e podem,sem dificuldade, ser reunidos numa unidade. Cair doente devido à frustra??o também pode serencarado como uma incapacidade de adapta??o à realidade - isto é, no caso específico em que arealidade frustra a satisfa??o da libido. Cair enfermo sob as condi??es do segundo tipo conduz144. diretamente a um caso especial de frustra??o. ? verdade que a realidade n?o frustra aqui todos ostipos de satisfa??o, mas frustra aquele que o indivíduo declara ser o único possível. Tampouco afrustra??o provém imediatamente do mundo externo, mas, em primeiro lugar, de certas tendênciasno ego do indivíduo. N?o obstante, ela permanece sendo o fator comum e o mais abrangente. Emconseqüência do conflito que se estabelece imediatamente no segundo tipo, ambas as espécies desatisfa??o - tanto a habitual quanto a que se visa - s?o igualmente inibidas; dá-se umrepresamento da libido, com todas as suas conseqüências, tal como no primeiro caso. Os eventospsíquicos que conduzem à forma??o de sintomas s?o, se é que há alguma diferen?a, mais fáceisde acompanhar no segundo tipo que no primeiro; pois naquele as fixa??es patogênicas da libidon?o precisam ser recentemente estabelecidas, mas já se encontraram em vigor enquanto oindivíduo era sadio. Certa quantidade de introvers?o da libido em geral já se acha presente; epoupa-se parte da regress?o do indivíduo ao estádio infantil, devido ao fato de seudesenvolvimento n?o ter ainda completado seu curso. (c) O tipo seguinte, que descreverei como cair doente devido a uma inibi??o nodesenvolvimento, parece uma exagera??o do segundo, ou seja, cair doente devido às exigênciasda realidade. N?o existe raz?o teórica para distingui-lo, mas apenas prática, pois aqueles em quenos achamos interessados aqui s?o pessoas que caem enfermas logo que passam da idadeirresponsável da inf?ncia e que, assim, nunca atingiram uma fase de saúde - isto é, uma fase decapacidade de realiza??o e frui??o que é geralmente ilimitada. A característica essencial doprocesso disposicional é, nestes casos, muito simples. A libido nunca abandonou as fixa??esinfantis; as exigências da realidade n?o s?o subitamente feitas a uma pessoa integral ouparcialmente madura, mas originam-se do próprio fato de ficar mais velho, visto ser óbvio que elasconstantemente se alteram com a idade crescente do indivíduo. Assim, o conflito cai para osegundo plano, em compara??o com a insuficiência. Mas também aqui toda nossa outraexperiência leva-nos a postular um esfor?o de supera??o das fixa??es da inf?ncia; pois, de outramaneira, o resultado do processo nunca poderia ser a neurose, mas apenas um infantilismoestacionário. (d) Tal como o terceiro tipo apresentou-nos a determinante disposicional quase emisolamento, também o quarto tipo, que agora se segue, chama nossa aten??o para outro fator, queentra em considera??o em todo caso isolado e facilmente poderia, por essa própria raz?o, sernegligenciado num exame teórico. Vemos cair enfermas pessoas que até ent?o haviam sidosadias, que n?o se defrontaram com nenhuma experiência nova e cuja rela??o com o mundoexterno n?o sofreu altera??o, de maneira que o desencadeamento de sua moléstia inevitavelmentedá a impress?o de espontaneidade. Uma considera??o mais chegada desses casos, contudo,demonstra-nos que, n?o obstante, uma mudan?a realizou-se neles, mudan?a cuja import?nciatemos de avaliar em alto grau como causa de enfermidade. Em resultado de haverem atingido umperíodo específico da vida, e em conformidade com processos biológicos normais, a quantidade delibido em sua economia mental experimentou um aumento que em si é suficiente para perturbar o145. equilíbrio da saúde e estabelecer as condi??es necessárias para uma neurose. ? notório queaumentos mais ou menos súbitos de libido deste tipo acham-se habitualmente associados àpuberdade e à menopausa - quando as mulheres chegam a determinada idade; além disso, emalgumas pessoas, eles se podem manifestar em periodicidades que ainda s?o desconhecidas.Aqui, o represamento da libido é o fator primário; ele se torna patogênico em conseqüência de umafrustra??o relativa procedente do mundo externo, que ainda teria concedido satisfa??o a umareivindica??o menor por parte da libido. Esta, insatisfeita e represada, pode mais uma vez abrircaminhos para a regress?o e despertar os mesmos conflitos que demonstramos no caso dafrustra??o externa absoluta. Desse modo, lembramo-nos de que o fator qualitativo n?o deve sernegligenciado em qualquer considera??o das causas precipitantes da doen?a. Todos os outrosfatores - frustra??o, fixa??o, inibi??o de desenvolvimento - permanecem ineficientes, a menos queafetem determinada quantidade de libido e ocasionem um razoável represamento desta. ? verdadeque n?o podemos medir esta quantidade de libido que nos parece indispensável para um efeitopatogênico; só podemos postulá-la após a moléstia resultante haver come?ado. Só há uma dire??ona qual podemos determiná-la mais precisamente. Podemos supor que n?o se trata de umaquantidade absoluta, mas da rela??o entre a cota de libido em opera??o e a quantidade de libidocom que o ego individual é capaz de lidar - isto é, de manter sob tens?o, sublimar ou empregardiretamente. Por este motivo, um aumento relativo na quantidade de libido pode ter os mesmosefeitos que um aumento absoluto. Um debilitamento do ego, devido a doen?a org?nica ou aalguma exigência especial à sua energia, poderá causar o surgimento de neuroses que de outramaneira permaneceriam latentes, apesar de qualquer disposi??o que pudesse se achar presente. A import?ncia na causa??o de doen?as que deve ser atribuída à quantidade de libido acha-se em concord?ncia satisfatória com duas teses principais da teoria das neuroses a que apsicanálise nos levou; em primeiro lugar, a tese de que as neuroses derivam do conflito entre oego e a libido e, em segundo, a descoberta de que n?o existe distin??o qualitativa entre asdeterminantes da saúde e as da neurose, e que, pelo contrário, as pessoas sadias têm de avir-secom as mesmas tarefas de domina??o de sua libido - simplesmente, saíram-se melhor nelas. Resta dizer algumas palavras sobre a rela??o destes tipos com os fatos da observa??o. Sepassar em revista o conjunto de pacientes em cuja análise acho-me presentemente empenhado,tenho de registrar que nem um só deles constitui exemplo puro de qualquer dos quatro tipos dedesencadeamento. Em cada um, antes, encontro uma parte de frustra??o operando lado a ladocom uma parte de incapacidade a adaptar-se às exigências da realidade; a inibi??o nodesenvolvimento, que coincide, naturalmente, com a inflexibilidade das fixa??es, tem de ser levadaem conta em todos eles e, como já disse, a import?ncia da quantidade de libido nunca deve serdesprezada. Descubro, em verdade, que em diversos desses pacientes a doen?a apareceu emondas sucessivas, entre as quais houve intervalos sadios, e que cada uma dessas ondas foiremontável a um tipo diferente de causa precipitante. Dessa maneira, a formula??o desses quatrotipos n?o pode reivindicar qualquer valor teórico elevado; eles s?o simplesmente modos diferentes146. de estabeleceruma constela??o patogênica específica na economia mental - a saber, orepresamento da libido, que o ego n?o pode desviar sem danos com os meios à sua disposi??o.Mas esta situa??o em si apenas se torna patogênica em resultado de um fator quantitativo; ela n?ochega como novidade à vida mental e n?o é criada pelo impacto daquilo que se denomina ‘causada doen?a’. Determinada import?ncia prática pode ser prontamente concedida a estes tipos dedesencadeamento. Na verdade, devem ser encontrados em sua forma pura em casos individuais;n?o teríamos observado o terceiro e o quarto tipos se eles n?o houvessem, em certos indivíduos,constituído as únicas causas precipitantes da enfermidade. O primeiro tipo exp?e-nos a influênciaextraordinariamente poderosa do mundo externo, e o segundo, a influência n?o menos importante- e que se op?e à primeira - da individualidade peculiar do sujeito. A patologia n?o poderia fazerjusti?a ao problema dos fatores precipitantes nas neuroses enquanto estivesse simplesmentepreocupada em decidir se estas afec??es eram de natureza ‘endógena’ ou ‘exógena’. Era obrigadaa enfrentar toda observa??o que apontasse para a import?ncia da abstinência (no sentido mais altoda palavra) como causa precipitante, com a obje??o de que outras pessoas toleram as mesmasexperiências sem caírem enfermas. Se, contudo, buscasse enfatizar a individualidade peculiar dosujeito como sendo o fator decisivo essencial entre a doen?a e a saúde, estaria obrigada a tolerara ressalva de que pessoas que possuem esta peculiaridade podem permanecer sadiasindefinidamente, enquanto s?o capazes de mantê-la. A psicanálise alertou-nos de que devemosabandonar o contraste infrutífero entre fatores externos e internos, entre experiência e constitui??o,e ensinou-nos que invariavelmente encontraremos a causa do desencadeamento da enfermidadeneurótica numa situa??o psíquica específica que pode ser ocasionada de várias maneiras. CONTRIBUI??ES A UM DEBATE SOBRE A MASTURBA??O (1912) NOTA DO EDITOR INGL?S147. ZUR ONANIE-DISKUSSION (a)EDI??ES ALEM?S: 1912 Em Die Onanie (Diskussionen der Wiener Psychoanalytischen Vereinigung, 2), Wiesbaden: Bergmann, p. iii-iv e 132-40. 1925 G. S., 3 324-37. 1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 228-39. 1943 G. W., 8, 332-45. (b) TRADU??O INGLESA: ‘Masturbation’ 1921 Medical Critic and Guide (Nova Iorque), 24 (setembro), 327-34. (Omitindo a ‘Introdu??o’.) (Trad. de Eden Paul.) A presente tradu??o inglesa, nova, é da autoria de James Strachey. O debate sobre masturba??o realizado na Sociedade Psicanalítica de Viena foi muito maisprolongado que o anterior, sobre o suicídio; as contribui??es de Freud a este foram igualmentepublicadas (1910g). As minutas da Sociedade, impressas no Volume II do Zentralblatt fürPsychoanalyse (1911-12), mostram que 14 membros (incluindo Freud) tomaram parte nos debates,que ocuparam 9 noites, de 22 de novembro de 1911 a 24 de abril de 1912. Foi nesta últimaocasi?o que Freud fez suas observa??es finais, descritas nas minutas como ‘Epílogo’. A‘Introdu??o’ n?o foi pronunciada numa reuni?o, mas constitui simplesmente o prefácio ao opúsculoem que os artigos acabaram por ser publicados. Este trabalho contém, de longe, o exame mais amplo da masturba??o que pode serencontrado nos escritos de Freud, embora breves alus?es a ela sejam bastante freqüentes. Emseus primeiros artigos, a masturba??o figura principalmente por causa de sua rela??o com as‘neuroses atuais’ e, em particular, como agente causador da neurastenia. (Ver, por exemplo, aSe??o I de seu artigo em francês sobre a etiologia das neuroses, 1896a.) ? interessante descobrirFreud defendendo bravamente essa posi??o no presente trabalho e aproveitando a oportunidadepara efetuar um de seus poucos pronunciamentos posteriores sobre as ‘neuroses atuais’ em geral(ver em [1] e nota de rodapé do Editor Inglês ao artigo sobre psicanálise ‘silvestre’ (1910k), em [2],1970. Após estes primeiros artigos, a primeira descri??o importante da masturba??o, feita porFreud, apareceu na Se??o 4 do segundo de seus Três Ensaios (1905d), a partir de [1], 1972. Aquipela primeira vez, p?s ele em relevo a significa??o da masturba??o na primeira inf?ncia.Entretanto, foi apenas na terceira edi??o (1915) daquela obra (isto é, após a data do presente148. debate) que a existência de três fases distintas de masturba??o foi claramente demonstrada. (Verem [2].) Tampouco foi essa distin??o evidenciada na seguinte referência demorada ao assunto, porparte de Freud, na história clinica do ‘Rat Man’ (1909d), em [1]. Contudo, duas proposi??esimportantes foram demonstradas em artigos aproximadamente do mesmo período: a vincula??o damasturba??o com as fantasias, no artigo sobre fantasias histéricas (1908a), e sua conex?o com aamea?a de castra??o, no trabalho sobre teorias sexuais infantis (1908c), e, naturalmente, naanálise de ‘Little Hans’ (1909b). Uma curta passagem no artigo sobre os efeitos da moral‘civilizada’ (1908d) deve também ser mencionada, na qual as obje??es à masturba??o s?oapresentadas em linhas semelhantes às do presente trabalho. Incidentalmente, Freud aí observaque o comportamento sexual de uma pessoa amiúde ‘estabelece um padr?o’ para toda suamaneira de reagir ao mundo externo; e isto indubitavelmente explica a obscura referência adiante,no parágrafo (b), em [1], ao ‘estabelecimento de um padr?o psíquico’. ? fato curioso que, à parte seus exames dos sentimentos de culpa ligados à masturba??oe das características especiais desta em meninas, para a qual se chama a aten??o em notas derodapé adiante, em [1] e [2], quase todas as referências posteriores de Freud ao tópico ocorremem rela??o ao pavor da castra??o. Seu interesse nos outros aspectos do assunto parece ter-seexaurido na presente contribui??o. CONTRIBUI??ES A UM DEBATE SOBRE A MASTURBA??O I - INTRODU??O Nunca foi objetivo dos debates na Sociedade Psicanalítica de Viena afastar divergênciasou chegar a conclus?es. Os diferentes oradores, que se mantêm unidos por assumirem uma vis?ofundamental semelhante dos mesmos fatos, permitem-se dar a mais nítida express?o à variedadede suas opini?es individuais, sem considerar sequer a probabilidade de converterem alguém daplatéia que possa pensar de modo diverso. Pode haver muitos pontos nesses debates que forammal enunciados e mal compreendidos, mas o resultado final, n?o obstante, é que todos receberama mais clara impress?o das opini?es diferentes das suas e comunicaram suas próprias opini?esdiferentes a outras pessoas. O debate sobre masturba??o, do qual, na realidade, apenas fragmentos s?o publicadosaqui, durou diversos meses e foi conduzido segundo o plano de cada orador, por seu turno, ler umartigo, que era seguido de um debate exaustivo. Somente os artigos acham-se incluídos na atualpublica??o, n?o os debates, que foram altamente estimulantes e nos quais as diferentes opini?esforam expressas e defendidas. De outro modo, este opúsculo teria atingido dimens?es quecertamente o impediriam de ser amplamente lido e provar-se eficaz. A escolha do tópico n?o necessita justificativas, nestes dias em que por fim se faz umatentativa de submeter os problemas da vida sexual do homem a exame científico. Numerosas149. repeti??es dos mesmos pensamentos e assertivas foram inevitáveis; elas constituem,naturalmente, os sinais de concord?ncia entre os oradores. Com referência às muitas divergênciasde opini?es, n?o pode ser tarefa do coordenador harmonizá-las ou tentar ocultá-las. Espera-se queo interesse do leitor n?o seja recha?ado pelas repeti??es nem pelas contradi??es. Foi nosso intuito, nesta ocasi?o, indicar a dire??o em que o estudo do problema damasturba??o foi for?ado, pelo surgimento de método de abordagem psicanalítico. Até onde fomosbem sucedidos nesse propósito tornar-se-á evidente do aplauso dos leitores, ou talvez de modoainda mais claro, de sua desaprova??o. VIENA, ver?o de 1912. II - CONSIDERA??ES FINAIS SENHORES: os membros mais idosos deste grupo ser?o capazes de lembrar que, háalguns anos, fizemos uma tentativa prévia de um debate coletivo deste tipo - um ‘simpósio’, comonossos colegas americanos o chamam - sobre o assunto da masturba??o. Naquela ocasi?o, asopini?es expressas apresentavam divergências t?o importantes que n?o nos aventuramos a expornossas Atas ao público. Desde ent?o o mesmo grupo, juntamente com alguns recém-chegados,havendo estado ininterruptamente em contato com fatos observados e mantido um interc?mbioconstante de idéias uns com os outros, esclareceram suas opini?es e chegaram a um terrenocomum, de maneira que a aventura que havíamos anteriormente abandonado n?o mais parece t?otemerária. Tenho realmente a impress?o de que os pontos sobre os quais concordamos, emconex?o com a masturba??o, s?o hoje mais firmes e mais profundos que as divergências, emboraestas últimas inegavelmente existam. Algumas das aparentes contradi??es s?o apenas resultadodas muitas dire??es diferentes a partir das quais os senhores se aproximaram do assunto,enquanto que, na verdade, as opini?es em apre?o podem muito bem encontrar lugar lado a lado. Com sua permiss?o, apresentar-lhes-ei um resumo dos pontos sobre os quais parecemosachar-nos acordes ou divididos. Todos nós concordamos, acho eu, (a) sobre a import?ncia das fantasias que acompanham ou representam o atomasturbatório, (b) sobre a import?ncia do sentimento de culpa, qualquer que seja sua fonte, que se achaligado à masturba??o, e (c) sobre a impossibilidade de atribuir um determinante qualitativo aos efeitos prejudiciaisda masturba??o. (Sobre este último ponto, o acordo n?o é un?nime.) Diferen?as n?o solucionadas de opini?o apareceram (a) com respeito à nega??o de um fator somático nos efeitos da masturba??o, (b) com respeito a uma nega??o geral dos efeitos prejudiciais da masturba??o,150. (c) com respeito à origem do sentimento de culpa, que alguns dos senhores desejamatribuir diretamente à falta de satisfa??o, enquanto outros aduzem fatores sociais, além disso, ou àatitude da personalidade do indivíduo no momento, e (d) com respeito à ubiqüidade da masturba??o nas crian?as. Por fim, incertezas significativas existem (a) quanto ao mecanismo dos efeitos prejudiciais da masturba??o, se os houver, e (b) quanto à rela??o etiológica da masturba??o com as ‘neuroses atuais’. Com referência à maioria dos pontos de controvérsia entre nós, temos de agradecer ascríticas desafiantes de nosso colega, Wilhelm Stekel, baseadas em sua grande e independenteexperiência. N?o há dúvida de que deixamos muitíssimos pontos para serem estabelecidos eesclarecidos por algum grupo futuro de observadores e pesquisadores, mas podemos consolar-nosem saber que trabalhamos honestamente e sem espírito estreito, e que, assim procedendo,abrimos caminhos ao longo dos quais a pesquisa posterior poderá viajar. N?o devem esperar muito de minhas próprias contribui??es às quest?es em que estamosinteressados. Est?o cientes da minha preferência pelo tratamento fragmentário de um assunto,com ênfase nos pontos que me parecem mais bem estabelecidos. Nada tenho de novo a oferecer -nenhuma solu??o, só algumas repeti??es de coisas que já sustentei, algumas palavras em defesadessas velhas assertivas contra ataques a elas feitos por alguns dos senhores, e, além disso,alguns comentários que se devem inevitavelmente impor a quem quer que escute seus artigos. Como bem sabem, dividi a masturba??o segundo a idade do indivíduo em (1) masturba??oem bebês, que inclui todas as atividades auto-eróticas que servem ao intuito da satisfa??o sexual,(2) masturba??o em crian?as, que se origina diretamente do tipo precedente e já se fixou em certaszonas erógenas, e (3) masturba??o na puberdade, que continua a masturba??o da inf?ncia ou édela separada pelo período de latência. Em algumas das explica??es que ouvi dos senhores, plenajusti?a n?o foi inteiramente feita a esta divis?o temporal. A unidade ostensiva da masturba??o, queé nutrida pela terminologia médica costumeira, deu origem a certas generaliza??es em que umadiferencia??o segundo os três períodos da vida teria sido mais justificada. Foi também de lamentarn?o termos sido capazes de prestar tanta aten??o à masturba??o feminina quanto à masculina; amasturba??o feminina, acredito eu, é merecedora de estudo especial e em seu caso éparticularmente verdadeiro que uma ênfase especial resida nas modifica??es dela que aparecemem rela??o à idade do indivíduo. Chego agora às obje??es levantadas por Reitler ao meu argumento teleológico em favorda ubiqüidade da masturba??o na primeira inf?ncia. Admito que este argumento tem de serabandonado. Se mais uma edi??o de meus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade forexigida, ela n?o mais conterá a frase que se acha sob ataque. Renunciarei à minha tentativa deadivinhar os intuitos da Natureza e contentar-me-ei em descrever os fatos. Outra observa??o de Reitler, é, penso eu, significativa e importante. Foi ela no sentido deque certas disposi??es do aparelho genital, que s?o peculiares aos seres humanos, parecem151. tender a impedir a rela??o sexual na inf?ncia. Aqui, contudo, surgem minhas dúvidas. A oclus?o doorifício sexual feminino e a ausência de um os penis que garantisse a ere??o s?o, afinal de contas,dirigidos apenas contra o coito real, n?o contra excita??es sexuais em geral. Reitler parece-meassumir uma vis?o antropomórfica demais da maneira pela qual a Natureza persegue seusobjetivos - como se se tratasse de uma quest?o de ela sustentar um só propósito, como é o casoda atividade humana. Entretanto, até onde podemos ver, nos processos naturais grande númerode objetivos é perseguido, um ao lado de outro, sem interferir um com o outro. Se devemos falarda Natureza em termos humanos, teríamos de dizer que ela nos parece ser o que, no caso doshomens, chamaríamos de inconsistente. De minha parte, penso que Reitler n?o deveria dar tantopeso a seus próprios argumentos teleológicos. O emprego da teleologia como hipótese heurísticatem seu lado duvidoso: em determinadas ocasi?es, nunca se pode dizer se demos com uma‘harmonia’ ou uma ‘desarmonia’. ? o mesmo que acontece quando se enfia um prego na parede deuma sala; n?o podemos estar certos se vamos dar contra ripa, embo?o ou tijolo. Sobre a quest?o da rela??o da masturba??o e das emiss?es com a causa??o da chamada‘neurastenia’, descobri-me, como muito dos senhores, em oposi??o a Stekel, e, sujeito a umalimita??o que mencionarei dentro em pouco, sustento contra ele minhas opini?es anteriores. Nadavejo que nos obrigue a abandonar a distin??o entre ‘neuroses atuais’ e psiconeuroses, e n?o possoencarar a gênese dos sintomas, no caso das primeiras, sen?o como tóxica. Aqui, Stekel me parecerealmente estender demais a psicogenia. Minha opini?o ainda é a mesma da primeira ocasi?o, hámais de quinze anos: a saber, que as duas ‘neuroses atuais’ - a neurastenia e a neurose deangústia (e talvez devêssemos adicionar a hipocondria propriamente dita como uma terceira‘neurose atual’) - fornecem às psiconeuroses a necessária ‘submiss?o somática’; elas fornecem omaterial excitativo, que é ent?o psiquicamente selecionado e recebe um ‘revestimento psíquico’, demaneira que, falando de modo geral, o núcleo do sintoma psiconeurótico - o gr?o de areia nocentro da pérola - é formado de uma manifesta??o sexual somática. Isto é mais claro, é verdade,na neurose de angústia e sua rela??o com a histeria do que na neurastenia, sobre a qual nenhumainvestiga??o psicanalítica cuidadosa foi feita ainda. Na neurose de angústia, como amiúdepuderam convencer-se, há no fundo um pequeno fragmento de excita??o n?o descarregada,vinculada ao coito, que emerge como sintoma de ansiedade ou fornece o núcleo para a forma??ode um sintoma histérico. Stekel partilha com muitos autores psicanalíticos de uma inclina??o a rejeitar asdiferencia??es morfológicas que fizemos dentro da mixórdia das neuroses e a aglomerá-las todassob uma só denomina??o - psicastenia, talvez. Neste ponto freqüentemente o contradissemos eapegamo-nos à nossa expectativa de que as diferen?as morfológico-clínicas se mostrar?o valiosascomo indica??es ainda n?o compreendidas de processos essencialmente distintos. Quando ele -corretamente - nos mostra que encontrou regularmente os mesmos complexos presentes, tanto noque s?o chamados de neurastênicos como em outros neuróticos, seu argumento falha em atendero tema em debate. Há muito tempo sabemos que os mesmos complexos e conflitos devem ser152. procurados também em todas as pessoas normais e sadias. Na verdade, acostumamo-nos aatribuir a todo ser humano civilizado certa quantidade de repress?o e impulsos perversos,determinada cota de erotismo anal, de homossexualismo e assim por diante, bem como umapor??o de complexo paterno e complexo materno e de outros complexos fora esses, tal como naanálise química de uma subst?ncia org?nica esperamos encontrar certos elementos: carbono,oxigênio, hidrogênio, nitrogênio e tra?os de enxofre. O que distingue as subst?ncias org?nicasumas das outras s?o as quantidades relativas desses elementos e a maneira pela qual as liga??esentre eles se acham constituídas. Do mesmo modo, no caso das pessoas normais e neuróticas, oque se acha em debate n?o é se esses complexos e conflitos existem, mas se se tornarampatogênicos e, nesse caso, mediante que mecanismos assim se tornaram. A essência das teorias a respeito das ‘neuroses atuais’ que apresentei no passado e estoudefendendo hoje reside na minha declara??o, baseada em experimentos, de que seus sintomas,diferentemente dos psiconeuróticos, n?o podem ser analisados. Isto equivale a dizer que a pris?o-de-ventre, as dores de cabe?a e a fadiga do chamado neurastênico n?o admitem seremremontadas, histórica ou simbolicamente, a experiência operantes, e n?o podem sercompreendidas como substitutos da satisfa??o sexual ou como concilia??es entre impulsosinstintuais opostos, como é o caso dos sintomas psiconeuróticos (ainda que os últimos talvezpossam ter a mesma aparência). N?o acredito que seja possível contrariar esta declara??o com oauxílio da psicanálise. Por outro lado, admitirei hoje aquilo em que fui incapaz de acreditaranteriormente - que um tratamento analítico pode ter um efeito curativo indireto sobre sintomas‘atuais’. Ele pode consegui-lo, ou permitindo que os danos atuais sejam mais bem tolerados, oucapacitando a pessoa doente a escapar deste danos pela efetiva??o de uma mudan?a em seuregime sexual. Seriam perspectivas desejáveis, do ponto de vista de nosso interesse terapêutico. Se no final eu for condenado por estar errado sobre o problema teórico das ‘neurosesatuais’, poderei consolar-me com o progresso em nosso conhecimento, que deve desprezar asopini?es de um indivíduo. Podem perguntar ent?o por que, visto que fa?o uma estimativa t?olouvável das limita??es de minha própria infalibilidade, n?o cedo imediatamente a estas novassugest?es, mas prefiro representar de novo a familiar comédia de um velho a aferrar-seobstinadamente às suas opini?es. Minha resposta é que ainda n?o vejo nenhuma prova que meinduza a ceder. Anteriormente, efetuei várias altera??es em meus pontos de vista e n?o as oculteido público. Fui censurado por causa dessas mudan?as, tal como hoje sou censurado por causa demeu conservadorismo. N?o que fique intimado por uma censura ou pela outra, mas sei que tenhoum destino a cumprir. N?o posso fugir a ele e n?o preciso movimentar-me em sua dire??o. Esperá-lo-ei e, entrementes, conduzir-me-ei em rela??o a nossa ciência tal como a experiência anterior meensinou. Repugna-me assumir posi??o na quest?o, tratada t?o amplamente pelos senhores, danocividade da masturba??o, pois ela n?o oferece uma abordagem correta aos problemas que nosinteressam. Mas todos temos de fazê-lo, n?o há dúvida: o mundo n?o parece ter outro interesse na153. masturba??o. Lembrar-lhe-ei que, em nossa série anterior de debates sobre o assunto, tivemosentre nós, como visitante, um eminente pediatra vienense. O que foi que ele repetidamente pediu-nos para dizer-lhe? Simplesmente, até que ponto a masturba??o é prejudicial e por que elaprejudica certas pessoas e n?o outras. Dessa maneira, temos de for?ar nossas pesquisas a efetuarum pronunciamento para atender a esta exigência prática. Tenho de confessar que aqui, mais uma vez, n?o posso partilhar o ponto de vista deStekel, apesar das muitas observa??es corretas e corajosas que ele nos fez sobre o assunto. Aseu ver, a nocividade da masturba??o equivale apenas a um preconceito insensato que, devidosimplesmente a limita??es pessoais, n?o nos dispomos a rejeitar com suficiente cuidado. Acredito,contudo, que, se fixarmos nossos olhos sobre o problemas sine ira et studio - na medida, é claro,em que pudermos fazê-lo -, seremos antes obrigados a declarar que assumir tal posi??o contradiznossas opini?es fundamentais sobre a etiologia das neuroses. A masturba??o correspondeessencialmente à atividade sexual infantil e à sua reten??o subseqüente, em idade mais madura.Derivamos as neuroses de um conflito entre os impulsos sexuais de uma pessoa e suas outrastendências (do ego). Ora, alguém poderia dizer: ‘Em minha opini?o o fator patogênico nestarela??o etiológica reside unicamente na rea??o do ego à sua sexualidade.’ Com isto, estariaafirmando que qualquer um poderia manter-se livre da neurose, se apenas estivesse disposto apermitir uma satisfa??o irrestrita aos seus impulsos sexuais. Mas é evidentemente arbitrário, etambém sem sentido, chegar a tal decis?o, e n?o permitir que os próprios impulsos sexuais tomemqualquer parte no processo patogênico. Mas se admitirmos que os impulsos sexuais podem ter umefeito patogênico, n?o mais negaremos um significado semelhante à masturba??o, que afinalconsiste apenas em p?r em execu??o esses impulsos instintuais, do sexo. Em todos os casos queparecem demonstrar que a masturba??o é patogênica, poder?o sem dúvida remontar a opera??oainda mais longe - até os instintos que se manifestam na masturba??o e as resistências que s?odirigidas contra esses instintos. A masturba??o n?o é nada definitivo - somática oupsicologicamente -, n?o é um ‘agente’ real, mas simplesmente o nome para certas atividades.Entretanto, por mais que remontemos atrás, nossa opini?o sobre a causa??o da doen?acontinuará, n?o obstante, adequadamente ligada a essa atividade. E n?o esque?am que amasturba??o n?o deve ser igualada à atividade sexual em geral: ela é atividade sexual sujeita acertas condi??es limitantes. Assim também persiste a possibilidade de que sejam precisamenteessas peculiaridades da atividade masturbatória os veículos de seus efeitos patogênicos. Somos, portanto, mais uma vez trazidos dos argumentos para a observa??o clínica, e porela advertidos para n?o apagar o título ‘Efeitos Prejudiciais da Masturba??o’. Somos, pelo menos,confrontados nas neuroses com casos em que a masturba??o causou dano. Este dano parece ocorrer de três modos diferentes: (a) Um prejuízo org?nico pode ocorrer, mediante algum mecanismo desconhecido. Aquitemos de levar em conta as considera??es de excesso e satisfa??o inadequada, que foram amiúdemencionadas pelos senhores.154. (b) O prejuízo pode ocorrer através do estabelecimento de um padr?o psíquico, segundo oqual n?o há necessidade de tentar alterar o mundo externo a fim de satisfazer uma grandenecessidade. Todavia, onde se desenvolve uma rea??o de grande alcance contra este padr?o, osmais valiosos tra?os de caráter podem ser iniciados. (c) Uma fixa??o de objetivos sexuais infantis pode ser possível, e uma persistência deinfantilismo psíquico. Temos aqui a disposi??o para a ocorrência de uma neurose. Comopsicanalistas, n?o podemos deixar de estar grandemente interessados neste resultado damasturba??o - que neste caso significa, é claro, uma masturba??o que ocorre na puberdade econtinua posteriormente. Devemos lembrar a significa??o que a masturba??o adquire comorealizadora da fantasia - aquela regi?o a meio caminho, inserida entre a vida de acordo com oprincípio de prazer e a vida de acordo com o princípio de realidade e temos de lembrar-nos decomo a masturba??o possibilita efetuar desenvolvimentos e sublima??es sexuais na fantasia, que,n?o obstante, n?o s?o progressos, mas concilia??es prejudiciais - embora seja verdade, como umaimportante observa??o de Stekel apontou, que esta mesma concilia??o torna inofensivas gravesinclina??es perversas e previne as piores conseqüências da abstinência. Com base em minha experiência médica, n?o posso excluir uma redu??o permanente napotência como um dos resultados da masturba??o, embora assegure a Stekel que, em várioscasos, ela pode tornar-se apenas aparente. Este resultado específico da masturba??o, contudo,n?o pode ser classificado sem hesita??o entre os prejudiciais. Certa diminui??o da potênciamasculina e da brutal agressividade nela envolvida é muito apropositada, do ponto de vista daciviliza??o. Ela facilita a prática, pelos homens civilizados, das virtudes da modera??o e confian?asexual que lhes incumbem. A virtude acompanhada de plena potência é geralmente consideradatarefa árdua. Isto pode parecer-lhes cínico, mas podem ficar certos de que n?o há essa inten??o.Disp?e-se a ser apenas um fragmento de descri??o árida, sem considerar se pode causarsatisfa??o ou aborrecimento, pois a masturba??o, como tantas outras coisas, tem les défauts deses vertus e, por outro lado, les vertus de ses défauts. Se estamos deslindando um assuntocomplicado e complexo com um interesse prático unilateral em sua nocividade e empregos, temosde aturar descobertas desagradáveis. Além disso, penso que podemos distinguir com vantagem o que podemos descrever comoprejuízos diretos causados pela masturba??o daqueles que resultam indiretamente da resistência eindigna??o do ego contra essa atividade sexual. N?o me interessei por estas últimasconseqüências. E agora sou obrigado a acrescentar algumas palavras sobre a segunda das duas penosasquest?es que foram formuladas. Supondo que a masturba??o possa ser prejudicial, sob quecondi??es e em que pessoas ela prova sê-lo? Como a maioria dos senhores, acho-me inclinado a recusar dar uma resposta geral àquest?o. Ela coincide parcialmente com outra pergunta, mais abrangente: quando a atividade155. sexual em geral se torna patogênica para determinadas pessoas? Se colocarmos estaconsidera??o de lado, resta-nos uma quest?o de pormenor, referente às características damasturba??o, na medida em que representa uma maneira e forma especiais de satisfa??o sexual.Aqui seria o lugar para repetir o que já conhecemos e foi debatido em rela??o a outros assuntos -avaliar a influência do fator quantitativo e da opera??o combinada de diversos fatores patogênicos.Acima de tudo, contudo, deveríamos deixar amplo campo para o que se conhece comodisposi??es constitucionais de um indivíduo. Mas é preciso confessar que lidar com estas éocupa??o difícil, pois temos o hábito de formar nossa opini?o sobre as disposi??es individuais expost facto: atribuímos esta ou aquela disposi??o às pessoas após o evento, quando elas já caíramdoentes. N?o temos método de descobri-las de antem?o. Conduzimo-nos, em verdade, como o reiescocês de uma das novelas de Victor Hugo, que se gabava de possuir um método infalível deidentificar a feiti?aria. Ele fazia cozer a mulher acusada em água fervente e depois provava ocaldo. Segundo o gosto, julgava ent?o: ‘Esta era bruxa’, ou ‘Esta n?o era.’ Poderia chamar sua aten??o para outra quest?o, da qual muito pouco nos ocupamos emnossos debates: a da masturba??o ‘inconsciente’. Quero dizer a masturba??o durante o sono,durante estados anormais, ou crises. Lembrar-se-?o das muitas crises histéricas em que atosmasturbatórios tornam a acontecer de maneira disfar?ada ou irreconhecível, após o indivíduohaver renunciado a essa forma de satisfa??o, e dos muitos sintomas na neurose obsessiva quebuscam substituir e repetir este tipo de atividade sexual, que foi anteriormente proibido. Podemostambém falar de um retorno terapêutico da masturba??o. Muitos dos senhores ter?o descobertoocasionalmente, como eu, que representa um grande progresso se, durante o tratamento, opaciente se aventura a dedicar-se à masturba??o novamente, embora possa n?o ter inten??o deestacionar permanentemente neste ponto de parada infantil. Com respeito a isto, posso lembrar-lhes que número considerável precisamente dos mais graves padecedores de neuroses evitoutoda rememora??o da masturba??o no passado, enquanto que a psicanálise é capaz de provarque essa espécie de atividade sexual n?o lhes foi de forma alguma estranha durante o maisremoto e esquecido período de suas vidas. Mas penso que chegou a hora de parar, pois todos nós achamo-nos de acordo sobre umacoisa - que o assunto da masturba??o é inteiramente inexaurível.156. UMA NOTA SOBRE O INCONSCIENTE NA PSICAN?LISE (1912)NOTA DO EDITOR INGL?S157. A NOTE ON THE UNCONSCIOUS IN PSYCHO-ANALYSIS (a) EDI??ES INGLESAS: 1912 Atas da Sociedade de Pesquisas Psíquicas, 26 (Parte 66), 312-18. 1925 C. P., 4, 22-9. (b) TRADU??O ALEM?: ‘Einige Bemerkungen über den Begriff des Unbewussten in der Psychoanalyse’ 1913 Int. Z. Psychoanal., 1 (2), 117-23. 1918 S. K. S. N., 4, 157-67 (1922, 2? ed.) 1924 G. S., 5, 433-42. 1924 Technik und Metapsychol., 155-64. 1931 Theorestische Schriften, 15-24. 1943 G. W., 8, 430-39. Em 1912, Freud foi convidado pela Sociedade de Pesquisas Psíquicas de Londres acontribuir para uma ‘Parte Médica Especial’ de suas Atas, sendo o presente artigo o resultado. Foiescrito por Freud em inglês, mas revisado, segundo parece, na Inglaterra, antes de sua publica??oem novembro de 1912. Uma vers?o alem? do trabalho apareceu no número de mar?o de 1913 daZeitschrift. Nada existe nele que demonstre que n?o tenha sido também escrito pelo próprio Freud,mas explica-nos o Dr. Jones. (19155, 352) que constituiu de fato uma tradu??o do artigo inglês deFreud por um de seus principais seguidores, Hanns Sachs. Por último, deve-se acrescentar quequando o artigo foi reimpresso no Volume IV dos Collected Papers, em 1925, foi submetido a outraligeira ‘revis?o secundária’, que atualizou a terminologia. Em resultado disto tudo, ficamos sem nenhum texto completamente fidedigno do artigo.Indubitavelmente, tanto a revis?o quanto a tradu??o foram excelentemente realizadas e,provavelmente, o próprio Freud examinou a ambas. N?o obstante, temos de necessariamentepermanecer na incerteza onde há uma quest?o da escolha precisa de termos por Freud. Paratomar um exemplo de uma das dificuldades: o termo ‘concep??o’ é repetidamente utilizado nosparágrafos 2 a 5. Estaríamos inclinados a supor que Freud tivesse em mente a palavra alem?‘Vorstellung‘, que é geralmente vertida nesta tradu??o pela palavra inglesa ‘idea‘ (‘idéia’). E, defato, ‘Vorstellung‘ é a palavra empregada, nos lugares correspondentes, na tradu??o alem?. Aofinal do sétimo parágrafo e no oitavo, a palavra ‘idea‘ aparece no texto inglês, e a palavracorrespondente no alem?o é ‘Idee‘. Mas, no décimo e décimo primeiro parágrafos, onde mais umavez encontramos o inglês ‘idea‘, a tradu??o alem? é quase sempre ‘Gedanke‘ (que geralmentetraduzimos como ‘thought‘, ‘pensamento’), mas num dos lugares, ‘Vorstellung‘. Nas circunst?ncias, achamos ser o procedimento mais apropriado simplesmente reimprimira vers?o original inglesa, exatamente como apareceu nas Atas originais da S. P. P., com notas de158. rodapé ocasionais, onde a terminologia exige comentários. Nossa raz?o para lamentar esta incerteza textual será compreendida quando se lembrarque este se acha entre os mais importantes dos trabalhos teóricos de Freud. Aqui, pela primeiravez, forneceu ele uma longa e ponderada descri??o das premissas para sua hipótese deprocessos mentais inconscientes e especificou os diversos sentidos em que empregou o termo‘inconsciente’ O artigo constitui de fato um estudo para o trabalho maior sobre o mesmo assuntoque deveria escrever cerca de três anos mais tarde (1915e). Como o artigo anterior, ‘Sobre os DoisPrincípios do Funcionamento Mental’ (1911b), e a Se??o III da análise de Schreber (1911c), o atualconstitui prova do interesse renovado de Freud pela teoria psicanalítica. A discuss?o das ambigüidades inerentes à palavra ‘inconsciente’ é de particular interesse,com a distin??o entre os seus três empregos - o ‘descritivo’, o ‘din?mico’, e o ‘sistemático’. Opresente relato é mais elaborado e claro que o muito mais sucinto fornecido na Se??o II do artigomaior (Ver em [1], 1974). Neste apenas dois usos s?o diferenciados, o ‘descritivo’ e o ‘sistemático’,e nenhuma distin??o clara parece ser feita entre este último e o ‘din?mico’ - termo que, no presenteartigo, é aplicado ao inconsciente reprimido. Em dois exames posteriores do mesmo tópico, noCapítulo I de O Ego e o Id (1923b), e na Conferência XXXI das New Introductory Lectures (1933a),Freud retornou à distin??o tríplice feita aqui; e o terceiro emprego do termo, o ‘sistemático’(aflorado apenas ligeiramente ao final do presente trabalho), surgiu ent?o com um passo nosentido da divis?o estrutural da mente em ‘id’, ‘ego’, e ‘superego’, que muito deveria esclarecertoda a situa??o. A maior parte deste artigo, na vers?o de 1925, foi incluída na General Selection from theWorks of Sigmund Freud (1937, 54-62), da autoria de Rickman. UMA NOTA SOBRE O INCONSCIENTE NA PSICAN?LISE Desejo expor em poucas palavras e t?o simplesmente quanto possível o que o termo‘inconsciente’ veio a significar na Psicanálise e somente nesta. Uma concep??o - ou qualquer outro elemento psíquico - que se ache agora presente emminha consciência pode tornar-se ausente no momento seguinte, e novamente presente, após umintervalo, imutada, e, como dizemos, de memória, n?o como resultado de uma nova percep??o pornossos sentidos. ? este fato que estamos acostumados a explicar pela suposi??o de que, duranteo intervalo, a concep??o esteve presente em nossa mente, embora latente na consciência. Sobque forma ela pode ter existido enquanto presente na mente e latente na consciência n?o temosmeios de adivinhar. Neste exato momento, podemos estar preparados para enfrentar a obje??o filosófica deque a concep??o latente n?o existiu como objeto de psicologia, mas como uma disposi??o físicapara a repeti??o do mesmo fen?meno psíquico, isto é, da dita concep??o. Mas podemos replicarque isso é uma teoria que ultrapassa de muito o domínio da psicologia propriamente dita; que ela159. simplesmente incorre em peti??o de princípio ao asseverar que ‘consciente’ é um termo idêntico a‘psíquico’, e que está positivamente errada ao negar à psicologia o direito de explicar seus fatosmais comuns, tais como a memória, por seus próprios meios. Ora, permitam-nos chamar de ‘consciente’ a concep??o que está presente em nossaconsciência e da qual nos damos conta, e que este seja o único significado do termo ‘consciente’.Quanto às concep??es latentes, se temos qualquer raz?o para supor que elas existam na mente -como tínhamos, no caso da memória - que elas sejam designadas pelo termo ‘inconsciente’. Assim, uma concep??o inconsciente é uma concep??o da qual n?o estamos cientes, mascuja existência, n?o obstante, estamos prontos a admitir, devido a outras provas ou sinais. Esta poderia ser considerada uma amostra desinteressante de trabalho descritivo ouclassificatório se nenhuma outra experiência apelasse ao nosso julgamento sen?o os fatos damemória ou os casos de associa??o por vínculos inconscientes. Entretanto, o experimento bemconhecido da ‘sugest?o pós-hipnótica’ ensina-nos a insistir na import?ncia da distin??o entreconsciente e inconsciente, e parece aumentar o seu valor. Neste experimento, tal como realizado por Bernheim, uma pessoa é colocada em estadohipnótico e subseqüentemente despertada. Enquanto se encontrava no estado hipnótico, sob ainfluência do médico, foi-lhe ordenado executar determinada a??o num certo momento fixado apósseu despertar, digamos meia hora mais tarde. Ela desperta e parece plenamente consciente e emseu estado normal; n?o tem lembran?a do estado hipnótico e, contudo, no momentopredeterminado, aparece-lhe na mente o impulso a fazer tal tipo de coisa, e ela o fazconscientemente, embora sem saber por quê. Parece impossível fornecer qualquer outra descri??odo fen?meno a n?o ser dizer que a ordem esteve presente na mente da pessoa num estado delatência, ou que esteve presente inconscientemente, até que o momento determinado chegou, eent?o tornou-se consciente. Mas n?o foi sua totalidade que emergiu para a consciência: somente aconcep??o do ato a ser executado. Todas as outras idéias associadas a essa concep??o - aordem, a influência do médico, a recorda??o do estado hipnótico - permaneceram inconscientesmesmo ent?o. Mas temos mais a aprender deste experimento. Somos levados da vis?o puramentedescritiva a uma vis?o din?mica do fen?meno. A idéia da a??o ordenada na hipnose n?o apenastornou-se objeto de consciência em determinado momento, mas o aspecto mais notável do fato éque esta idéia tornou-se ativa; foi traduzida em a??o, assim que a consciência tornou-se ciente desua presen?a. Sendo a ordem do médico o estímulo real à a??o, é difícil n?o admitir que a idéia daordem do médico se tornou ativa também. Entretanto, esta última idéia n?o se revelou àconsciência, como o fez seu resultado, a idéia da a??o; permaneceu inconsciente e, assim, foiativa e inconsciente ao mesmo tempo. Uma sugest?o pós-hipnótica é uma produ??o de laboratório, um fato artificial. Mas, seadotarmos a teoria dos fen?menos histéricos, primeiramente apresentada por P. Janet e elaborada160. por Breuer e eu mesmo, n?o nos faltar?o muitos fatos naturais que mostram o caráter psicológicoda sugest?o pós-hipnótica ainda mais clara e distintamente. A mente do paciente histérico acha-se cheia de idéias ativas, porém inconscientes; todosos seus sintomas procedem de tais idéias. ?, na verdade, a característica mais marcante da mentehistérica ser governada por elas. Se a mulher histérica vomita, pode fazê-lo devido à idéia de estargrávida. Entretanto, ela n?o tem conhecimento desta idéia, embora possa ser facilmente detectadaem sua mente e tornada consciente mediante um dos processos técnicos da psicanálise. Se seacha executando os arrancos e movimentos que constituem seu ‘ataque’, ela nem mesmoconscientemente representa para si as a??es pretendidas e pode perceber estas a??es com ossentimentos desligados de um observador. N?o obstante, a análise demonstrará que estavadesempenhando seu papel na reprodu??o dramática de algum incidente de sua vida, cujalembran?a esteve inconscientemente ativa durante a crise. A mesma preponder?ncia de idéiasinconscientes ativas é revelada pela análise como sendo o fato essencial na psicologia de todas asoutras formas de neurose. Aprendemos, portanto, pela análise dos fen?menos neuróticos, que uma idéia latente ouinconsciente n?o é, necessariamente, uma idéia fraca, e que a presen?a dessa idéia na menteadmite provas indiretas do tipo mais convincente, equivalentes à prova direta fornecida pelaconsciência. Sentimo-nos justificados em fazer nossa classifica??o concordar com este acréscimoao nosso conhecimento, introduzindo uma distin??o fundamental entre diferentes tipos de idéiaslatentes ou inconscientes. Estávamos acostumados a pensar que toda idéia latente assim setornou por ser fraca e que se transformou em consciente logo que se tornou forte. Adquirimos hojea convic??o de que há algumas idéias latentes que n?o penetram na consciência, por mais fortesque possam se haver tornado. Assim, chamamos as idéias latentes do primeiro tipo de pré-conscientes, enquanto reservamos o termo inconsciente (propriamente dito) para o último tipo queviemos a estudar nas neuroses. O termo inconsciente, que foi empregado antes no sentidopuramente descritivo, vem agora a implicar algo mais. Designa n?o apenas as idéias latentes emgeral, mas especialmente idéias com certo caráter din?mico, idéias que se mantêm à parte daconsciência, apesar de sua intensidade e atividade. Antes de prosseguir com minha exposi??o, referir-me-ei a duas obje??es que têmprobabilidades de serem levantadas neste ponto. A primeira delas pode ser assim enunciada: aoinvés de concordar com a hipótese de idéias inconscientes, das quais nada sabemos, é melhorpresumir que a consciência pode ser dividida, de modo que certas idéias ou outros atos psíquicospossam constituir uma consciência separada, que se tornou desligada e separada da massa deatividade psíquica consciente. Casos patológicos famosos, como o do Dr. Azam [A referência é aocaso de Félida X, notável exemplo de personalidade alternada ou dupla, provavelmente o primeirodeste tipo a ser investigado e registrado minuciosamente. O caso foi descrito em váriaspublica??es por E. Azam, de Bordeaux. Seu primeiro relatório apareceu na Revue Scientifique, em26 de maio de 1876, e foi seguido, algumas semanas depois, por um artigo dos Annales médico-161. psychologiques. (Ver Azam, 1876, e seu último livro, 1887.)], parecem contribuir muito parademonstrar que a divis?o da consciência n?o constitui imagina??o fantasista. Aventuro-me a alegar contra essa teoria que ela é uma suposi??o gratuita, baseada nomau uso da palavra ‘consciente’. N?o temos o direito de estender o significado desta palavra aponto de fazê-la incluir uma consciência da qual seu próprio possuidor n?o se acha ciente. Se osfilósofos encontram dificuldade em aceitar a existência de idéias inconscientes, a existência deuma consciência inconsciente parece-me ainda mais objetável. Os casos descritos como divis?o(splitting) da consciência, como o do Dr. Azam, poderiam de preferência ser denominados dedeslocamento da consciência - essa fun??o ou o que quer que seja - que oscila entre doiscomplexos psíquicos diferentes que se tornam conscientes e inconscientes alternadamente. A outra obje??o que poderia ser levantada seria que aplicamos à psicologia normalconclus?es que s?o tiradas principalmente do estudo de estados patológicos. Estamos capacitadosa respondê-la por outro fato, cujo conhecimento devemos à psicanálise. De certas deficiências defun??o da mais freqüente ocorrência entre pessoas sadias, tais como por exemplo, lapsus linguae,erros de memória e de fala, esquecimento de nomes etc., pode-se facilmente demonstrar quedependem da a??o de fortes idéias inconscientes, da mesma maneira que os sintomas neuróticos.Apresentaremos outro argumento ainda mais convincente num estádio posterior deste estudo. Pela diferencia??o de idéias pré-conscientes e inconscientes, somos levados a abandonaro campo da classifica??o e a formar uma opini?o sobre as rela??es funcionais e din?micas na a??opsíquica. Encontramos uma atividade pré-consciente que passa para a consciência semdificuldade e uma atividade inconsciente que assim permanece e parece se achar isolada daconsciência. Ora, n?o sabemos se estes dois modos de atividade psíquica s?o idênticos ouessencialmente divergentes desde o início, mas podemos perguntar por que devem tornar-sediferentes no decorrer da a??o psíquica. A esta última quest?o, a psicanálise fornece uma respostaclara e firme. N?o é, de modo algum, impossível ao produto da atividade inconsciente penetrar naconsciência, mas para esta tarefa é necessária uma certa quantidade de esfor?o. Quandotentamos realizá-la em nós próprios, damo-nos conta de uma sensa??o distinta de repuls?o, quetem de ser dominada, e, quando a produzimos num paciente, obtemos os mais indiscutíveis sinaisdo que chamamos de sua resistência a ela. Assim, aprendemos que a idéia inconsciente acha-seexcluída da consciência por for?as vivas que se op?em à sua recep??o, embora n?o objetem aoutras idéias, as pré-conscientes. A psicanálise n?o deixa campo para dúvida de que a repuls?odas idéias inconscientes só é provocada pelas tendências incluídas na essência destas. A teoriamais provável que pode ser formulada, neste estádio de nosso conhecimento, é a seguinte. Ainconsciência é uma fase regular e inevitável nos processos que constituem nossa atividadepsíquica; todo ato psíquico come?a como um ato inconsciente e pode permanecer assim oucontinuar a evoluir para a consciência, segundo encontra resistência ou n?o. A distin??o entreatividade pré-consciente e inconsciente n?o é primária, mas vem a ser estabelecida após a162. repuls?o ter surgido. Somente ent?o a diferen?a entre idéias pré-conscientes, que podem aparecerna consciência e reaparecer a qualquer momento, e idéias inconscientes, que n?o podem fazê-lo,adquire um valor tanto teórico quanto prático. Uma analogia grosseira, mas n?o inadequada, a estasuposta rela??o da atividade consciente com a inconsciente poderia ser tra?ada com o campo dafotografia comum: a primeira etapa da fotografia é o ‘negativo’; toda imagem fotográfica tem depassar pelo processo negativo e alguns desses negativos, que se saíram bem no exame, s?oadmitidos ao ‘processo positivo’, que termina pelo retrato. Mas a distin??o entre atividade pré-consciente e inconsciente e o reconhecimento dabarreira que as mantêm apartadas n?o s?o o último ou o mais importante resultado dainvestiga??o psicanalítica da vida psíquica. Existe um produto psíquico encostando nas pessoasmais normais que, contudo, apresenta analogia muito marcante com as mais violentas produ??esda insanidade e n?o foi mais inteligível aos filósofos que a própria insanidade. Refiro-me aossonhos. A psicanálise se fundamenta na análise dos sonhos e a interpreta??o deles constitui aobra mais completa que a jovem ciência realizou até o presente. Um dos mais comuns deforma??o onírica pode ser descrito como segue: uma seqüência de pensamentos foi despertadapelo funcionamento da mente durante o dia e reteve um pouco de sua atividade, fugindo à inibi??ogeral de interesses que introduz o sono e constitui a prepara??o psíquica para o dormir. Durante anoite, a seqüência de pensamentos consegue encontrar vincula??es com uma das tendênciasinconscientes presentes desde a inf?ncia na mente do que sonha, mas ordinariamente reprimida eexcluída de sua vida consciente. Com a for?a tomada de empréstimo a esta ajuda inconsciente, ospensamentos, resíduo do trabalho do dia, tornam-se ent?o ativos novamente e surgem naconsciência sob a forma de sonho. Ora, três coisas aconteceram: (1) Os pensamentos sofreram uma mudan?a, um disfarce e uma deforma??o, querepresentam a parte do ajudante inconsciente. (2) Os pensamentos ocuparam a consciência numa ocasi?o em que n?o o deveriam. (3) Uma parte do inconsciente, que doutra maneira n?o teria podido fazê-lo, surgiu naconsciência. Aprendemos a arte de descobrir os ‘pensamentos residuais’, os pensamentos latentes dossonhos, e, comparando-os com o sonho aparente, pudemos formar opini?o sobre as modifica??esque experimentaram e a maneira pela qual estas foram ocasionadas. Os pensamentos latentes do sonho n?o diferem em nenhum aspecto dos produtos denossa atividade consciente habitual; merecem o nome de pensamentos pré-conscientes e, emverdade, podem ter sido conscientes em algum momento do estado de vigília. Entretanto, porentrarem em contato com as tendências inconscientes durante a noite, assimilaram-se a estas,degradaram-se, por assim dizer, à condi??o de pensamentos inconscientes, e ficaram sujeitos àsleis pelas quais a atividade inconsciente é dirigida. E aqui temos a oportunidade de aprender o quen?o poderíamos ter adivinhado pela especula??o, ou por outra fonte de informa??o empírica - queas leis da atividade inconsciente diferem amplamente daquelas da consciente. Inferimos163. pormenorizadamente quais s?o as peculiaridades do Inconsciente e podemos esperar aprenderainda mais sobre elas mediante investiga??o mais profunda dos processos da forma??o onírica. Essa investiga??o n?o se acha ainda nem na metade, e uma exposi??o dos resultadosobtidos até agora é pouco possível sem entrar nos problemas mais intocados da análise desonhos. N?o gostaria de interromper este exame, porém, sem indicar a mudan?a e o progresso emnossa compreens?o do inconsciente devido ao estudo psicanalítico dos sonhos. A inconsciência pareceu-nos, a princípio, apenas uma característica enigmática de um atopsíquico definido. Atualmente ela significa mais para nós. ? sinal de que este ato partilha danatureza de determinada categoria psíquica, que conhecemos por outras características maisimportantes, e que ele pertence a um sistema de atividade psíquica merecedor de nossa plenaaten??o. O valor índice do inconsciente ultrapassou de muito sua import?ncia como propriedade. Osistema assinalado pelo fato de seus atos isolados serem inconscientes é chamado ‘OInconsciente’, por falta de termo melhor e menos ambíguo. Em alem?o, proponho denotar essesistema pelas letras Ubw, abreviatura da palavra ‘Unbewusst‘. E este é o terceiro e maissignificativo sentido que o termo ‘inconsciente’ adquiriu na psicanálise. UM SONHO PROBAT?RIO (1913) NOTA DO EDITOR INGL?S EIN TRAUM ALS BEWEISMITTEL (a) EDI??ES ALEM?S: 1913 Int. Z. Psychoanal., 1 (1), 73-8. 1918 S. K. S. N., 4 177-188. (1922, 2? ed.) 1925 G. S., 3 267-77.164. 1925 Traumlehre, 11-21. 1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 316-26. 1946 G. W.,10, 12-22. (b) TRADU??O INGLESA: ‘A Dream which Bore Testimony’ 1924 C. P., 2, 133-43 (Trad. de E. Glover.) A presente tradu??o inglesa baseia-se na publicada em 1924. Em seu primeiro aparecimento na Zeitschrift (no come?o de 1913), este artigo foi oprimeiro de vários, escritos por diversos autores, incluídos sob o título geral ‘Beitr?ge zurTraumdeutung’ (‘Contribui??es à Intepreta??o de Sonhos’). O trabalho apresenta a peculiaridade de ser uma análise de sonhos, de segunda m?o.Independente disto, é digno de nota por contar uma descri??o excepcionalmente clara do papeldesempenhado pelos pensamentos oníricos latentes na forma??o de sonhos e por sua insistênciana necessidade de manter em mente a distin??o entre os pensamentos oníricos e o próprio sonho. UM SONHO PROBAT?RIO Uma senhora que padecia da mania dubitativa e cerimoniais obsessivos insistia em quesuas enfermeiras nunca a deixassem fora de suas vistas por um só momento: doutra maneira, elacome?aria a ruminar sobre a??es proibidas que poderia ter cometido enquanto n?o se achavasendo observada. Certa noite, enquanto repousava no sofá, pensou que vira a enfermeira deservi?o adormecer. Ela gritou: ‘Está me vendo?’ A enfermeira deu um pulo e respondeu:‘Naturalmente que estou.’ Isto forneceu à paciente motivo para nova dúvida e, após certo tempo,repetiu a pergunta, que a enfermeira respondeu com protestos renovados; exatamente nessemomento, outra assistente chegou, trazendo a ceia da paciente. Este incidente ocorreu numa sexta-feira à noite. Na manh? seguinte, a enfermeira relatouum sonho que teve o efeito de desfazer as dúvidas da paciente. SONHO - Alguém lhe havia confiado uma crian?a. A m?e da crian?a saíra de casa e ela [aque sonhou] perdera-a. Enquanto andava, indagava das pessoas na rua se haviam visto a crian?a.Depois, chegou a uma grande extens?o de água e cruzou uma estreita ponte para pedestres.(Houve um adendo: Subitamente apareceu-lhe à frente, sobre a ponte, como uma ‘fata Morgana’, afigura de outra enfermeira.) Ent?o, achou-se num lugar familiar, onde econtrou uma mulher queconhecera menina e que na época era vendedora numa loja de víveres e depois se casara.Perguntou à mulher, que estava parada em frente a sua porta: ‘Você viu a crian?a?’ A mulher n?oprestou aten??o à pergunta, mas informou-a de que se achava divorciada do marido, acresentando165. que tampouco o casamento é sempre feliz. Ela acordou sentindo-se tranqüilizada e pensou que acrian?a apareceria perfeitamente bem na casa de um vizinho. AN?LISE - A paciente presumiu que este sonho se referia ao cochilo que a enfermeirahavia negado. A partir de informa??es adicionais voluntariamente prestadas pela última, p?deinterpretar o sonho de maneira que, embora incompleta sob certos aspectos, foi suficiente paratodos os fins práticos. Eu próprio somente ouvi o relato da senhora e n?o entrevistei a enfermeira.Citarei primeiramente a interpreta??o da paciente e depois suplementá-la-ei com o que nossacompreens?o geral das leis que governam a forma??o onírica nos permitem acrescentar. ’A enfermeira contou-me que a crian?a do sonho fazia-a lembrar-se de um caso cujocuidado lhe dera a mais viva satisfa??o. Foi o de uma crian?a incapaz de enxergar devido a umainflama??o dos olhos (blenorréia). A m?e, contudo, n?o abandonava a casa: ajudava a cuidar dacrian?a. Por outro lado, recordo-me também que quando meu marido, que tem alta considera??opor esta enfermeira, partiu, deixou-me aos seus cuidados e ela prometeu cuidar de mim comocuidaria de uma crian?a.’ Além disso, sabemos pela análise da paciente que, ao insistir em nunca ser deixada forada vista, ela se recolocara na posi??o de ser outra vez crian?a. ‘Ter perdido a crian?a’, continuou a paciente, ‘significou que ela n?o me vira; perdera-mede vista. Isto constituiu sua admiss?o de que realmente adormecera por certo tempo e n?o mecontara a verdade posteriormente.’ Ignorava o significado do pequeno fragmento de sonho em que a enfermeira indagava daspessoas na rua se haviam visto a crian?a; por outro lado, foi capaz de elucidar os pormenoresposteriores do sonho manifesto. ‘A grande extens?o de água fez a enfermeira pensar no Reno; acrescentou, contudo, queera muito maior que o Reno. Ent?o lembrou-se de que na noite anterior eu lhe lera a história deJonas e a baleia, e lhe contara que, certa vez, eu própria vira uma baleia no Canal da Mancha.Imagino que a grande extens?o de água fosse o mar e constituísse uma alus?o à história deJonas. ‘Acho também que a estreita ponte para pedestres proveio da mesma história, que eradivertidamente escrita em dialeto. A anedota relata como um instrutor religioso descreveu a seusalunos as maravilhosas aventuras de Jonas, após o que um menino objetou que n?o podia serverdade, visto que o próprio professor lhes disssera antes que as baleias só podiam engolircriaturas minúsculas, devido à estreiteza de seus es?fagos. O professor escapou da dificuldadedizendo que Jonas era judeu e que os judeus se enfiavam em qualquer lugar. Minha enfermeira émuito piedosa mas inclinada a dúvidas religiosas, e censurei-me no caso de a história que lhe lerapoder tê-las suscitado. ‘Nessa ponte estreita, viu agora o aparecimento de outra enfermeira, a quem conhecia.Contou-me a história desta última: havia-se jogado no Reno por ter sido dispensada de um caso,166. devido a algo de que fora culpada. Ela própria temera, portanto, ser dispensada por haveradormecido. Ademais, no dia seguinte ao incidente e após relatar o sonho, a enfermeira chegouamargamente e, quando lhe perguntei o motivo, respondeu de modo bastante rude: “A senhorasabe por que t?o bem quanto eu e agora n?o vai mais confiar em mim!” Visto a apari??o da enfermeira afogada constituir um adendo, e um adendo especialmenteclaro, teríamos aconselhado a senhora a come?ar sua interpreta??o do sonho neste ponto.Segundo o relato daquela que sonhou, também esta primeira metade do sonho foi acompanhadapor aguda ansiedade; a segunda parte preparou o caminho para a sensa??o de tranqüilidade comque despertou. ‘Encaro a parte seguinte do sonho’, disse a senhora, continuando sua análise, ‘comocorrobora??o certa de minha opini?o de que o sonho tinha a ver com o que acontecera naquelanoite de sexta-feira, pois a pessoa que anteriormente fora vendedora numa loja de víveres só sepodia referir à atendente que trouxe a ceia naquela ocasi?o. Observei também que a enfermeira sehavia queixado de náuseas o dia todo. A pergunta que fez àquela mulher: “Viu a crian?a?” éobviamente remontável à minha pergunta: “Está me vendo?”, que lhe fiz pela segunda vezexatamente quando a atendente chegou com os pratos.’ Também no sonho a indaga??o a respeito da crian?a foi feita em duas ocasi?es. O fato dea mulher n?o responder - n?o prestar aten??o - pode ser por nós encarado como uma deprecia??odesta outra atendente, feita em favor da que sonhou; ela representou-se no sonho como superior àoutra mulher, exatamente porque ela própria tinha de enfrentar censuras devido à sua própria faltade aten??o. ‘A mulher que apareceu no sonho n?o era, na realidade, divorciada do marido. A situa??ofoi tirada de um incidente da vida da outra atendente, que se separara - “divorciara” - de umhomem, por ordem dos pais. A observa??o de que “tampouco o casamento sempre corre bem” foiprovavelmente uma consola??o utilizada no decurso da conversa entre as duas mulheres. Estaconsola??o prefigurou outra, com a qual o sonho terminou: “A crian?a aparecerá perfeitamentebem”. ‘Concluí deste sonho que, na noite em apre?o, a enfermeira realmente adormecera e queestava com medo de ser demitida por causa disso. Devido a isso, n?o mais senti qualquer dúvidasobre a corre??o de minha observa??o. Incidentalmente, após relatar o sonho, ela acrescentousentir muito n?o ter trazido um livro de sonhos com ela. Ao meu comentário de que tais livros seacham repletos das mais ignorantes supersti??es, respondeu que, embora n?o fosse de modoalgum supersticiosa, apesar disso todos os acontecimentos desagradáveis da sua vida haviamacontecido numa sexta-feira. Devo acrescentar que, atualmente, o tratamento que me dá n?o é demodo algum satisfatório; ela anda suscetível e irritável e faz cenas a respeito de nada.’ Acho que devemos reconhecer à senhora o mérito de ter interpretado e avaliadocorretamente o sonho de sua enfermeira. Como t?o amiúde acontece com a interpreta??o desonhos durante a análise, a tradu??o do sonho n?o depende unicamente dos produtos da167. associa??o, mas também temos de levar em conta as circunst?ncias de sua narra??o, ocomportamento do que sonhou antes e depois da análise do sonho, bem como toda observa??o erevela??o feita pelo que sonhou durante a mesma ocasi?o - durante a mesma sess?o analítica. Selevarmos em considera??o a suscetibilidade da enfermeira, sua atitude para com as sextas-feirasaziagas etc., confirmaremos a conclus?o de que o sonho continha uma admiss?o de que, apesarde sua negativa, ela havia realmente cochilado e estava com medo de ser mandada embora paralonge da ‘crian?a’ a seus cuidados. Enquanto, para a senhora que o relatou a mim, este sonho tinha significa??o prática, paranós ele estimula o interesse teórico em duas dire??es. ? verdade que terminou por umaconsola??o, mas, em geral, representou uma admiss?o importante com referência à rela??o daenfermeira com sua paciente. Como acontece que um sonho, que afinal de contas deve servir derealiza??o de um desejo, possa tomar o lugar de uma admiss?o que nem mesmo foi de qualquervantagem para a que sonhou? Devemos realmente admitir que, além de sonhos de realiza??o dedesejo (e de ansiedade), existem também sonhos de admiss?o, assim como de advertência,reflex?o, adapta??o etc.? Devo confessar que ainda n?o compreendo muito bem por que a posi??o que tomei contraqualquer tenta??o desse tipo, em A Interpreta??o de Sonhos, causou desconfian?as nas mentesde tantos psicanalistas, entre eles alguns bem conhecidos. Parece-me que a diferencia??o entresonhos de realiza??o de desejo, admiss?o, advertência, adapta??o etc. n?o tem muito maissentido que a diferencia??o, necessariamente aceita, dos especialistas médicos em ginecologistas,pediatras e dentistas. Permitam-me recapitular aqui, t?o sucintamente quanto possível, o que dissesobre este assunto em A Interpreta??o de Sonhos. Os chamados ‘resíduos diurnos’ podem atuar como perturbadores do sonho e construtoresde sonhos; eles s?o processos de pensamento afetivamente catexizados do dia do sonho, queresistiram ao rebaixamento geral [de energia] pelo sono. Estes resíduos diurnos s?o descobertospor remontarem o sonho manifesto aos pensamentos oníricos latentes; constituem por??es doúltimo e acham-se assim entre as atividades do estado de vigília - conscientes ou inconscientes -que conseguiram persistir no período de sono. Em conson?ncia com a multiplicidade de processosde pensamento no consciente e pré-consciente, estes resíduos diurnos têm os mais numerosos ediversos significados: eles podem ser desejos ou temores que n?o foram resolvidos, ou inten??es,reflex?es, advertências, tentativas de adapta??o a tarefas atuais etc. Até este ponto, aclassifica??o de sonhos que se acha em considera??o parece ser justificada pelo conteúdo que érevelado pela interpreta??o. Estes resíduos do dia, contudo, n?o s?o o próprio sonho: falta-lhes oelemento essencial principal de um sonho. De si próprios n?o s?o capazes de construir um sonho.S?o, estritamente falando, apenas o material psíquico para a elabora??o onírica, exatamente comoos estímulos sensórios e somáticos, quer acidentais quer produzidos sob condi??es experimentais,constituem o material somático para a elabora??o onírica. Conferir-lhes o papel principal naconstru??o de sonhos é simplesmente repetir, num ponto novo, o erro pré-analítico que explicava168. os sonhos atribuindo-os à má digest?o ou à press?o sobre a pele. Os erros científicos, emverdade, têm vida tenaz, e mesmo quando refutados acham-se prontos a insinuar-se novamente,sob novos disfarces. O estado atual de nosso conhecimento leva-nos a concluir que o fator essencial naconstru??o de sonhos é um desejo inconsciente - geralmente um desejo infantil, agora reprimido -que pode vir a se expressar nesse material somático ou psíquico (e também nos resíduos diurnos,portanto) e pode abastecer estes com uma for?a que os capacita a for?ar seu caminho em dire??oà consciência, mesmo durante a suspens?o do pensamento, à noite. O sonho é, em todos oscasos, uma realiza??o deste desejo inconsciente, seja o que for que possa conter mais -advertência, reflex?o, admiss?o, ou qualquer outra parte do rico conteúdo do estado de vigília pré-consciente que continuou, sem ser tratado, noite adentro. ? este desejo inconsciente que dá àelabora??o onírica seu caráter peculiar, como revis?o inconsciente do material pré-consciente. Umpsicanalista pode caracterizar como sonhos apenas os produtos da elabora??o onírica: apesar dofato de só se chegar aos pensamentos oníricos latentes a partir da interpreta??o do sonho, ele n?opode considerá-los como parte deste, mas apenas como parte da reflex?o pré-consciente. (Arevis?o secundária pela inst?ncia consciente é aqui considerada como parte da elabora??o onírica.Mesmo que devêssemos separá-la, isto n?o envolveria nenhuma altera??o em nossa concep??o.Teríamos ent?o de dizer: os sonhos, no sentido analítico, compreendem a elabora??o oníricapropriamente dita, juntamente com a revis?o secundária de seus produtos.) A conclus?o a sertirada destas considera??es é que n?o se pode colocar o caráter realizador de desejos dos sonhosno mesmo nível que seu caráter de advertência, admiss?o, tentativa de solu??o etc., sem negar oconceito de uma dimens?o psíquica de profundidade, o que equivale a dizer, sem negar o ponto devista da psicanálise. Retornemos agora ao sonho da enfermeira, a fim de demonstrar a qualidade deprofundidade na realiza??o de desejo nele contida. Já sabemos que a interpreta??o que a senhoradeu ao sonho n?o era, de modo algum, completa; havia partes dele a que ela foi incapaz de fazerjusti?a. Ademais, ela sofria de neurose obsessiva, condi??o que, pelo que observei, tornaconsideravelmente mais difícil compreender os símbolos oníricos, tal como a demência precocetorna-o mais fácil. N?o obstante, nosso conhecimento do simbolismo onírico capacita-nos a compreenderpartes n?o interpretadas deste sonho e descobrir uma significa??o mais profunda por trás dasinterpreta??es já fornecidas. N?o podemos deixar de notar que parte do material empregado pelaenfermeira provém do complexo de dar a luz, de ter filhos. A extens?o de água (o Reno, o Canalonde a baleia foi vista) era certamente a água da qual as crian?as provém. E depois, também, elaveio à água em busca de uma crian?a. A lenda de Jonas, fator de determina??o dessa água, apergunta de saber como Jonas (a crian?a) podia passar através de passagem t?o estreitapertencem ao mesmo complexo. E a enfermeira que se atirou no Reno por mortifica??o encontrou169. uma consola??o simbólico-sexual para seu desespero de vida na modalidade de sua morte -entrando na água. A estreita ponte para pedestres sobre a qual a apari??o a encontrou foi, comtoda probabilidade, também um símbolo genital, embora tenha de admitir que aqui nos falta aindaum conhecimento mais preciso. O desejo ‘quero ter um filho’ parece, portanto, ter sido o construtor onírico a partir doinconsciente; nenhum outro seria mais bem calculado para consolar a enfermeira pelo estadoaflitivo das coisas na vida real. ‘Serei dispensada: perderei a crian?a que está aos meus cuidados.Que importa? Em vez disso, arranjarei uma crian?a real, minha própria.’ A parte n?o interpretadado sonho, na qual ela pergunta a todos na rua sobre a crian?a, pode talvez caber aqui; ainterpreta??o ent?o seria: ‘E mesmo que tenha de me oferecer nas ruas, sei como arranjar um filhopara mim.’ Um laivo de desafio na que sonhou, até aqui disfar?ado, se revela subitamente nesteponto. Sua admiss?o encaixa-se aqui pela primeira vez: ‘Fechei os olhos e comprometi minhareputa??o profissional de pessoa conscienciosa; agora, vou perder meu lugar. Serei t?o tola deafogar-me, como a enfermeira X? N?o: abandonarei a enfermagem completamente e me casarei;serei uma mulher e terei um filho de verdade; nada me impedirá.’ Esta interpreta??o é justificadapela considera??ode que ‘ter filhos’ constitui realmente a express?o infantil de um desejo de terrela??es sexuais; na verdade, pode ter sido escolhida na consciência como express?o eufemísticadeste desejo objetável. Assim, a admiss?o desvantajosa da que sonhou, admiss?o para que mostrou inclina??omesmo no estado de vigília, tornou-se possível no sonho por ser empregada por um seu tra?olatente de caráter [o ‘laivo de desafio’], com o intuito de ocasionar a realiza??o de um desejoinfantil. Podemos presumir que este tra?o tinha uma vincula??o estreita - com referência tanto aépoca quanto a conteúdo - com o desejo de um filho e de prazer sexual. A inquiri??o subseqüente da senhora a quem devo a primeira parte desta interpreta??oforneceu algumas informa??es inesperadas sobre a vida anterior da enfermeira. Antes de dedicar-se à enfermagem desejara casar com um homem que estivera intensamente interessado nela, masabandonara o casamento projetado devido à oposi??o de uma tia, com quem suas rela??esconstituíam uma curiosa mistura de dependência e desafio. Esta tia que impedira o matrim?nio eraa superiora de uma Ordem dedicada à enfermagem. A que sonhou sempre a considerara comomodelo. Tinha esperan?as de ser sua herdeira e a ela achava-se ligada por esse motivo. N?oobstante opusera-se à tal, n?o ingressando na Ordem como aquela havia planejado. O desafioapresentado no sonho era, portanto, dirigido contra a tia. Atribuímos uma origem anal-erótica aeste tra?o caracterológico, e podemos levar em considera??o o fato de os interesses que atornavam dependente da tia serem de natureza financeira; lembramo-nos também de que ascrian?as favorecem a teoria anal de nascimento. Este fator de desafio infantil pode talvez permitir-nos presumir uma rela??o mais estreitaentre a primeira e a última cena do sonho. A antiga vendedora numa loja de víveres representa nosonho a atendente que trouxe a ceia da senhora para a sala exatamente quando essa fazia a170. pergunta: ‘Está me vendo?’ Parece, contudo, que ela foi destinada para o papel de rival hostil emgeral. A que sonhou depreciou sua capacidade como enfermeira fazendo-a n?o tomar o menorinteresse pela crian?a perdida, mas tratar apenas de assuntos particulares em sua resposta.Deslocou assim para esta figura a indiferen?a que come?ava a sentir pela crian?a a seus cuidados.O infeliz casamento e divórcio que ela própria deve ter temido em seus mais secretos desejosforam atribuídos à outra mulher. Sabemos, contudo, que fora a tiaque separara a que sonhou deseu noivo. Daí a ‘vendedora de víveres’ (figura n?o necessariamente sem significado infantilsimbólico) poder representar a superiora-tia, que na realidade n?o era muito mais idosa do que aque sonhou e que desempenhara o papel tradicional de rival-m?e em sua vida. Uma confirma??osatisfatória desta interpreta??o pode ser achada no fato de que o lugar ‘familiar’ em que elaencontrou essa pessoa, parada na frente da porta, era exatamente o lugar em que sua tia residia,como superiora. Devido à falta de contato entre o analista e a pessoa sob análise, n?o é aconselhávelpenetrar mais profundamente na estrutura do sonho. Entretanto podemos talvez dizer que, namedida em que foi acessível à interpreta??o, forneceu-nos muitas confirma??es bem como muitosnovos problemas. A OCORR?NCIA, EM SONHOS, DE MATERIAL ORIUNDO DE CONTOS DE FADAS (1913) NOTA DO EDITOR INGL?S M?RCHENSTOFFE IN TR?UMEN (a) EDI??ES ALEM?S: 1913 Int. Z. Psychoanal., 1 (2), 147-51. 1918 S. K. S. N., 4 168-76 (1922, 2? ed.) 1925 G. S., 3, 259-66. 1925 Traumlehre, 3-10. 1931 Sexualtheorie und Tramlehre, 308-15. 1946 G. W., 10, 2-9. (b) TRADU??O INGLESA: ‘The Occurrence in Dreams of Material from Fairy Tales’171. 1925 C. P., 4, 236-43 (Trad. de James Strachey.) A presente tradu??o inglesa é uma reimpress?o ligeiramente corrigida da publicada em1925. O segundo dos dois exemplos relatados neste artigo derivou da análise do caso do ‘WolfMan’, que ainda se achava em tratamento com Freud por ocasi?o de sua publica??o. A totalidadedesta parte do trabalho foi incluída literalmente na história clínica, escrita em 1914 mas sópublicada quatro anos depois - ‘From the History of on Infantile Neurosis’ (1918b). A análise dosonho é ali levada muito adiante (Ver a partir de [1].) A OCORR?NCIA, EM SONHOS, DE MATERIAL ORIUNDO DE CONTOS DE FADAS N?o é surpreendente descobrir que a psicanálise confirma nosso reconhecimento do lugarimportante que os contos de fadas populares alcan?aram na vida mental de nossos filhos. Emalgumas pessoas, a rememora??o de seus contos de fadas favoritos ocupa o lugar daslembran?as de sua própria inf?ncia; elas transformaram esses contos em lembran?asencobridoras. Elementos e situa??es derivados de contos de fadas podem também ser encontrados emsonhos. Interpretando as passagens em apre?o, o paciente produzirá o conto de fadas significativocomo associa??o. No presente artigo, darei dois exemplos desta ocorrência muito comum, masn?o será possível fazer mais que aludir às rela??es entre os contos de fadas e a história dainf?ncia do que sonhou e sua neurose, embora esta limita??o envolva o risco de romper vínculosque foram de máxima import?ncia para o analista. I Aqui temos o sonho de uma jovem casada, que recebera a visita do marido alguns diasantes: Ela se achava num quarto que era inteiramente castanho. Uma portinha levava ao alto deuma escada íngreme e, por esta escada, entrou no quarto um curioso homenzinho - pequeno, decabelos brancos, calvo no alto da cabe?a e de nariz vermelho. Ele dan?ou em volta do quarto nafrente dela, portou-se da maneira mais engra?ada e depois desceu pela escada novamente.Estava vestido com uma indumentária cinzenta, através da qual todas as partes de sua figuraachavam-se visíveis. (Subseqüentemente, foi feita uma corre??o: Estava usando um casaco pretocomprido e cal?as cinzentas.) A análise foi a seguinte. A descri??o da aparência pessoal do homúnculo ajustava-se aosogro da que sonhou, sem que nenhuma altera??o fosse necessária. Imediatamente depois,porém, ela pensou na história de ‘Rumpelstiltskin’, que dan?ou à roda da mesma maneiraengra?ada que o homem no sonho e, assim fazendo, revelou seu nome à rainha; mas por issoperdeu seu direito ao primeiro filho daquela, e, em sua fúria, rasgou-se em dois.172. No dia anterior ao do sonho, ela estivera do mesmo modo furiosa com o marido eexclamara: ‘Poderia rasgá-lo em dois’. O quarto castanho, a princípio, causou dificuldades. Tudo o que lhe ocorria era a sala dejantar dos pais, que tinha painéis dessa cor - em madeira castanha. Contou ent?o algumashistórias de cama que eram t?o inconfortáveis para duas pessoas dormirem. Poucos dias antes,quando o assunto da conversa fora camas de outros países, ela dissera algo muito mal à prop?s -de modo inteiramente inocente, segundo sustentava - e todos na sala haviam rido às gargalhadas. O sonho era agora quase inteligível. O quarto de madeira castanha era, em primeiro lugar,uma cama, e, através da vincula??o com a sala de jantar, um leito matrimonial. Ela, portanto,achava-se em sua cama de casal. O visitante deve ter sido seu jovem marido, que, após umaausência de vários meses, visitara-a para desempenhar seu papel na cama dupla. Masprimeiramente era o pai do marido, seu sogro. Por trás desta primeira interpreta??o, temos um vislumbre de material mais profundo epuramente sexual. Aqui, o quarto era a vagina. (O quarto estava nela - o que foi invertido nosonho.) O homenzinho que fazia caretas e comportava-se de modo t?o engra?ado era o pênis. Aporta estreita e a escada íngreme confirmavam a opini?o de que a situa??o era uma representa??oda rela??o sexual. Geralmente estamos acostumados a encontrar o pênis simbolizado por umacrian?a; mas descobriremos que havia boas raz?es para um pai ser introduzido para representar opênis, neste caso. A solu??o da parte remanescente do sonho confirmar-nos-á inteiramente estainterpreta??o. A que sonhou, ela própria, explicou a indumentária cinzenta transparente como umpreservativo. Podemos depreender que considera??es de preven??o de concep??o epreocupa??es sobre saber se aquela visita do marido n?o poderia ter lan?ado a semente de umsegundo filho, achavam-se entre as causas induzidoras do sonho. O casaco preto. Casacos deste tipo ficavam admiravelmente bem no marido. Ela queriapersuadi-lo a usá-los sempre, ao invés de suas roupas usuais. Vestido no casaco preto, portanto,seu marido era como ela gostava de vê-lo. O casaco preto e as cal?as cinzentas. Em dois níveisdiferentes, um acima do outro, isto tinha o mesmo significado: ‘Gostaria que você se vestisseassim. Gosto de você assim.’ Rumpelstiltskin estava vinculado aos pensamentos contempor?neos subjacentes ao sonho- os resíduos diurnos - por uma nítida rela??o antitética. No conto de fadas, ela chega a fim delevar o primeiro filho da rainha. No sonho, o homenzinho chega sob a forma de um pai, porquepresumivelmente trouxera consigo um segundo filho. Mas Rumpelstiltskin também forneceu acessoao estrato infantil, mais profundo, dos pensamentos oníricos. O c?mico sujeitinho, cujo próprionome é desconhecido, cujo segredo é t?o avidamente discutido, que pode realizar truquesextraordinários - no conto de fadas, transforma palha em ouro - a fúria contra ele, ou melhor, contraseu possuidor, que é invejado por possuí-lo (a inveja que a menina tem do pênis) - todos foram173. elementos cuja rela??o com os fundamentos da neurose da paciente mal podem, como disse, seraflorados neste artigo. Os cabelos cortados curtos do homenzinho do sonho achavam-seindubitavelmente vinculados também ao tema da castra??o. Se observarmos cuidadosamente, a partir de exemplos claros, a maneira pela qual ossonhadores utilizam os contos de fadas e o momento no qual os trazem à baila, podemos talvezconseguir recolher algumas sugest?es que nos ajudar?o a interpretar obscuridades remanescentesnos próprios contos de fadas. II Um jovem contou-me o sonho abaixo. Ele possuía uma base cronológica para suasprimeiras lembran?as na circunst?ncia de os pais terem-se mudado de uma propriedade rural paraoutra antes de ele completar cinco anos de idade; o sonho, que disse ser o seu mais antigo,ocorreu quando se achava ainda na primeira propriedade. ‘Sonhei que era noite e que eu estava deitado na cama. (Meu leito tem o pé da camavoltado para a janela: em frente da janela havia uma fileira de velhas nogueiras. Sei que erainverno quando tive o sonho, e de noite.) De repente, a janela abriu-se sozinha e fiquei aterrorizadoao ver que alguns lobos brancos estavam sentados na grande nogueira em frente da janela. Haviaseis ou sete deles. Os lobos eram inteiramente brancos e pareciam-se mais com raposas ou c?espastores, pois tinham caudas grandes, como as raposas, e orelhas empinadas, como c?es quandoprestam aten??o a algo. Com grande terror, evidentemente de ser comido pelos lobos, gritei eacordei. Minha babá correu até minha cama, para ver o que me havia acontecido. Levou muitotempo até que me convencesse de que fora apenas um sonho; tivera uma imagem t?o clara evívida da janela a abrir-se e dos lobos sentados na árvore. Por fim acalmei-me, senti-me como sehouvesse escapado de algum perigo e voltei a dormir. ‘A única a??o no sonho foi a abertura da janela, pois os lobos estavam sentados muitoquietos e sem fazer nenhum movimento sobre os ramos da árvore, à direita e à esquerda dotronco, e olhavam para mim. Era como se tivessem fixado toda a aten??o sobre mim. Acho que foimeu primeiro sonho de ansiedade. Tinha três, quatro, ou no máximo, cinco anos de idade naocasi?o. Desde ent?o, até contar onze ou doze anos, sempre tive medo de ver algo terrível emmeus sonhos.’ Ele acrescentou um desenho da árvore com os lobos, que confirmava sua descri??o. Aanálise do sonho trouxe à luz o seguinte material. Sempre vinculara este sonho à recorda??o de que, durante esses anos de inf?ncia, tinhaum medo tremendo da figura de um lobo num livro de contos de fadas. Sua irm? mais velha, queera muito mais idosa que ele, costumava apoquentá-lo segurando esta figura específica na suafrente, sob qualquer pretexto, para que ele ficasse aterrorizado e come?asse a gritar. Na figura, olobo achava-se ereto, dando um passo com uma das patas, com as garras estendidas e as orelhasempinadas. Achava que a figura deveria ter sido uma ilustra??o da história do ‘ChapeuzinhoVermelho’.174. Por que os lobos eram brancos? Isto fê-lo pensar nas ovelhas, grandes rebanhos dasquais eram mantidos nas vizinhan?as da propriedade. O pai ocasionalmente o levava a visitaresses rebanhos e, todas as vezes que isso acontecia, ele se sentia muito orgulhoso e feliz.Posteriormente - segundo indaga??es feitas, pode facilmente ter sido pouco antes da época dosonho - irrompeu uma epidemia entre as ovelhas. O pai mandou buscar um seguidor de Pasteur,que vacinou os animais, mas após a inocula??o morreram ainda mais delas que antes. Como os lobos apareceram na árvore? Isto fê-lo lembrar-se de uma história que ouvira oav? contar. N?o podia recordar-se se fora antes ou depois do sonho, mas seu assunto constituiargumento decisivo em favor da primeira opini?o. A história dizia assim: um alfaiate estava sentadotrabalhando em seu quarto, quando a janela se abriu e um lobo pulou para dentro. O Alfaiateperseguiu-o com seu bast?o - n?o (corrigiu-se), apanhou-o pela cauda e arrancou-a fora, de modoque o lobo fugiu correndo, aterrorizado. Algum tempo mais tarde, o alfaiate foi até a floresta esubitamente viu uma alcatéia de lobos vindo em sua dire??o; ent?o trepou numa árvore para fugir-lhes. A princípio, os lobos ficaram perplexos; mas o aleijado, que se achava entre eles e queriavingar-se do alfaiate, prop?s que trepassem uns sobre os outros, até que o último pudesseapanhá-lo. Ele próprio - tratava-se de um animal velho e vigoroso - ficaria na base da pir?mide. Oslobos fizeram como ele sugeria, mas o alfaiate reconhecera o visitante a que havia castigado e derepente gritou, como fizera antes: ‘Apanhem o cinzento pela cauda!’ O lobo sem rabo, aterrorizadopela recorda??o, correu, e todos os outros desmoronaram. Nesta história aparece a árvore sobre a qual os lobos se achavam sentados no sonho; mascontém também uma alus?o inequívoca ao complexo de castra??o. O lobo velho tivera a caudaarrancada pelo alfaiate. As caudas de raposa dos lobos do sonho eram provavelmentecompensa??es por esta falta de cauda. Por que havia seis ou sete lobos? N?o parecia haver resposta para esta pergunta, até eulevantar uma dúvida sobre saber se a figura que o assustava estava vinculada à história de‘Chapeuzinho Vermelho’. Este conto de fadas só oferece oportunidade para duas ilustra??es -Chapeuzinho Vermelho encontrando-se com o lobo na floresta e a cena em que o lobo se deita nacama, com o barrete de dormir da avó. Teria de haver, portanto, algum outro conto de fadas portrás de sua recorda??o da figura. Ele logo descobriu que só podia ser a história de ‘O Lobo e osSete Cabritinhos’. Nesta, ocorre o número sete, e também o número seis, pois o lobo só comeuseis dos cabritinhos, enquanto que o sétimo se escondeu na caixa do relógio. O branco tambémnela aparece, pois o lobo fizera branquear sua pata no padeiro, após o cabritinhos haverem-noreconhecido, em sua primeira visita, pela pata cinzenta. Além disso, os dois contos de fadaspossuem muito em comum. Em ambos existe o comer, a abertura da barriga, a retirada daspessoas que haviam sido comidas e sua substitui??o por pesadas pedras, e, finalmente, emambas o lobo mau perece. Além disso tudo, na história dos cabritinhos aparece a árvore. O lobodeitou-se sob uma árvore, após a refei??o, e roncou.175. Por uma raz?o especial, terei de tratar deste sonho novamente alhures, interpretá-lo ejulgar sua significa??o com maiores pormenores; pois ele é o mais antigo sonho de ansiedade queo jovem que sonhou recordou de sua inf?ncia, e seu conteúdo, tomado juntamente com outrossonhos que o seguiram pouco após e com certos acontecimentos de seus primeiros anos de vida,é de interesse muito especial. Temos de limitar-nos aqui à rela??o do sonho com os dois contos defadas que têm tanto em comum um com o outro, ‘Chapeuzinho Vermelho’ e ‘O Lobo e os SeteCabritinhos’. O efeito produzido por estas histórias foi demonstrado no pequeno que as sonhoumediante uma fobia animal comum. Esta fobia só se distinguia de outros casos semelhantes pelofato de o animal causador da ansiedade n?o ser um objeto facilmente acessível à observa??o (talcomo um cavalo ou um c?o), mas conhecido dele somente de histórias e livros de figuras. Examinarei em outra ocasi?o a explica??o destas fobias animais e a significa??o que selhes atribui. Observarei apenas, por antecipa??o, que essa explica??o se acha em completaharmonia com a característica principal apresentada pela neurose de que o atual sonhadorpadeceu mais tarde na vida. Seu medo do pai era o motivo mais forte para ele cair doente e suaatitude ambivalente em rela??o a todo representante paterno foi o aspecto dominante de sua vida,assim como de seu comportamento durante o tratamento. Se, no caso de meu paciente, o lobo foi simplesmente um primeiro representante paterno,surge a quest?o de saber se o conteúdo oculto nos contos de fadas do lobo que comeu oscabritinhos e de ‘Chapeuzinho Vermelho n?o pode ser simplesmente um medo infantil do pai. Alémdisso, o pai de meu paciente tinha a característica, apresentada por tantas pessoas em rela??oaos filhos, de permitir-se ‘amea?as afetuosas’; e é possível que, durante os primeiros anos dopaciente, o pai (embora se tornasse severo mais tarde) pudesse, mais de uma vez, enquantoacariciava o menininho ou com ele brincava, tê-lo amea?ado por brincadeira ‘de engoli-lo’. Uma deminhas pacientes contou-me que seus dois filhos nunca puderam chegar a gostar do av?, porque,no decurso de seus ruidosos e afetuosos brinquedos com eles, costumava assustá-los dizendoque lhes cortaria as barrigas.176. O TEMA DOS TR?S ESCR?NIOS (1913) NOTA DO EDITOR INGL?S DAS MOTIV DER K?STCHENWAHL (a) EDI??ES ALEM?S: 1913 Imago, 2 (3), 257-66. 1918 S. K. S. N., 4, 470-85 (1922, 2? ed.) 1924 G. S., 10, 243-56. 1924 Dichtung und Kunst, 15-28. 1946 G. W., 10, 24-37. (b) TRADU??O INGLESA: ‘The Theme of the Three Caskets’ 1925 C. P., 4, 244-56. (Trad. de C. J. M. Hubback.) A presente tradu??o inglesa baseia-se na de 1925. A correspondência de Freud (citada em Jones, 1955, 405) mostra que a idéia subjacente aeste artigo ocorreu-lhe em junho de 1912, embora o trabalho só fosse publicado um ano depois.Em carta a Ferenczi de 7 de julho de 1913, ele relacionou a ‘determinante subjetiva’ do artigo comsuas três filhas (Freud, 1960a). O TEMA DOS TR?S ESCR?NIOS I Duas cenas de Shakespeare, uma de uma comédia e a outra de uma tragédia,proporcionaram-me ultimamente ocasi?o para colocar e solucionar um pequeno problema. A primeira destas cenas é a escolha dos pretendentes entre os três escrínios, em OMercador de Veneza. A bela e sábia Portia está comprometida, a pedido do pai, a tomar como177. marido apenas aquele de seus pretendentes que escolha o escrínio certo entre os três que se lheacham à frente. Os três escrínios s?o de ouro, prata e chumbo: o certo é aquele que contém oretrato dela. Dois pretendentes já partiram sem sucesso; escolheram ouro e prata. Bassanio, oterceiro, decide-se em favor do chumbo; assim ganha a noiva, cuja afei??o já era sua antes dojulgamento da fortuna. Cada um dos pretendentes dá os motivos para sua escolha num discursoem que louva o metal que prefere e deprecia os outros dois. A tarefa mais difícil compete assim aoafortunado terceiro pretendente; o que ele encontra para dizer em glorifica??o do chumbo, contra oouro e a prata, é pouco e tem um cunho for?ado. Se, na clínica psicanalítica, nos defrontássemoscom tal discurso, suspeitaríamos que haveria motivos escondidos por trás das insatisfatóriasraz?es apresentadas. Shakespeare n?o inventou este oráculo da escolha de um escrínio; tirou-o de uma históriadas Gesta Romanorum, no qual uma mo?a tem de fazer a mesma escolha para conquistar o filhodo Imperador. Também aqui o terceiro metal, o chumbo, é o portador da fortuna. N?o é difíciladivinhar que temos aqui um tema antigo, que exige ser interpretado, explicado à sua origem. Umaprimeira conjectura quanto ao significado desta escolha entre ouro, prata e chumbo é rapidamenteconfirmada por uma afirma??o de Stucken, que efetuou um estudo do mesmo material num amplocampo. Escreve ele: ‘A identidade dos três pretendentes de Portia fica clara por sua escolha: oPríncipe de Marrocos escolhe o escrínio de ouro - ele é o Sol; o Príncipe de Arag?o escolhe oescrínio de prata - ele é a Lua; Bassanio escolhe o escrínio de chumbo - ele é o filho da estrela!’Em apoio de sua explica??o, cita um episódio da epopéia folclórica estoniana, ‘Kalewipoeg’, noqual os três pretendentes aparecem sem disfarce como os filhos do Sol, da Lua e estrelas (o últimosendo ‘o filho mais velho da Estrela Polar’) e, mais uma vez, a noiva cabe ao terceiro. Assim nosso pequeno problema conduziu-nos a um mito astral! Só é pena que, com estaexplica??o, n?o nos achemos no final da quest?o. Ela n?o está exaurida, pois n?o partilhamos dacren?a de alguns pesquisadores de que os mitos foram lidos nos céus e trazidos à Terra; estamosmais inclinados a julgar, com Otto Rank, que eles foram projetados para os céus após haveremsurgido alhures, sob condi??es puramente humanas. ? neste conteúdo humano que reside nossointeresse. Examinemos novamente nosso material. Na épica estoniana, tal como no conto oriundodas Gesta Romanorum, o tema é uma mo?a que escolhe entre três pretendentes; na cena de OMercador de Veneza, o assunto é aparentemente o mesmo, mas, ao mesmo tempo, nele aparecealgo com o caráter de uma invers?o do tema: um homem escolhe entre três - escrínios. Se aquiloem que estamos interessados fosse um sonho, ocorrer-nos-ia em seguida que os escrínios s?otambém mulheres, símbolos do que é essencial na mulher, e portanto da própria mulher - comoarcas, cofres, caixas, cestos etc. Se corajosamente presumirmos que há substitui??es simbólicasdo mesmo tipo também nos mitos, ent?o a cena do escrínio em O Mercador de Veneza tornar-serealmente a invers?o que suspeitamos. Com um aceno de varinha de cond?o, como seestivéssemos num conto de fadas, despojamos de nosso tema a indumentária astral e agora178. percebemos que ele é um tema humano, a escolha de um homem entre três mulheres. Este mesmo conteúdo, porém, pode ser encontrado noutra cena de Shakespeare, num deseus dramas mais poderosamente comoventes; n?o a escolha de uma noiva desta vez, mas ligadapor muitas semelhan?as ocultas à escolha do escrínio em O Mercador de Veneza. O velho ReiLear resolve dividir seu reino, enquanto ainda se acha vivo, entre as três filhas, em propor??o àquantidade de amor que cada uma delas expressar por ele. As duas mais velhas, Goneril e Regan,exaurem-se em assevera??es e louvores de seu amor por ele; a terceira, Cordélia, recusa-se afazê-lo. Ele deveria ter reconhecido o despretensioso e mudo amor da terceira filha e orecompensado, mas n?o o faz. Repudia Cordélia e divide o reino entre as outras duas, para suaprópria ruína e ruína geral. N?o é esta, mais uma vez, a cena de uma escolha entre três mulheres,das quais a mais jovem é a melhor, a mais excelsa? Imediatamente ocorrer-nos-?o outras cenas oriundas de mitos, contos de fadas e daliteratura, com a mesma situa??o por conteúdo. O pastor Páris tem de escolher entre três deusas,das quais declara ser a terceira a mais bela. Cinderela também é uma filha mais nova, preferidapelo príncipe às duas irm?s mais velhas. Psiqué, na história de Apulcio, é a mais jovem e bela detrês irm?s. Ela é, por um lado, reverenciada como Alfrodite em forma humana; por outro, é tratadapor esta deusa como Cinderela foi tratada por sua madrasta e é-lhe atribuída a tarefa de selecionarum monte de sementes misturadas, o que realiza com o auxílio de pequenas criaturas (pombas nocaso de Cinderela, formigas no de Psiqué). Quem quer que me preocupasse em fazer umlevantamento mais amplo do material descobriria indubitavelmente outras vers?es do mesmo tema,conservando as mesmas características essenciais. Contentemo-nos com Cordélia, Afrodite, Cinderela e Psiqué. Em todas as histórias, as trêsmulheres, das quais a terceira é a mais excelsa, devem seguramente ser encaradas como de certomodo semelhantes, se s?o representadas como irm?s. (N?o devemos deixar-nos desencaminharpelo fato de a escolha de Lear ser entre três filhas; isto pode n?o representar nada mais do que eleter de ser representado como um velho. Um velho n?o pode escolher muito bem entre trêsmulheres, de nenhuma outra maneira. Assim, elas se tornaram suas filhas.) Mas quem s?o estas três irm?s e por que deve a escolha recair na terceira? Se pudermosresponder esta pergunta, estaremos na posse da interpreta??o que estamos buscando. Já fizemosanteriormente uso de uma aplica??o da técnica psicanalítica, quando explicamos os três escríniossimbolicamente como três mulheres. Se tivermos a coragem de proceder da mesma maneira,estaremos iniciando um caminho que nos levará primeiro a algo inesperado e incompreensível,mas que talvez, por uma estrada indireta, nos conduzirá a um objetivo. Deve impressionar-nos que esta excelsa terceira mulher tenha, em diversos casos, certasqualidades peculiares, além de sua beleza. S?o qualidadesque parecem tender no sentido dealgum tipo de unidade e n?o devemos por certo esperar encontrá-las igualmente bem assinaladasem todos os exemplos. Cordélia torna-se irreconhecível, indistinguível como o chumbo, permanecemuda, ‘ama e cala’. Cinderela se esconde de maneira a n?o ser encontrada. Podemos talvez179. permitir-nos igualar ocultamento e mudez. Estes, naturalmente, seriam apenas dois exemplos, doscinco que escolhemos. Mas há uma insinua??o da mesma coisa a ser encontrada, de modobastante curioso, em dois outros casos. Decidimos comparar Cordélia, com sua recusa obstinada,ao chumbo. No breve discurso de Bassanio, enquanto está escolhendo o escrínio, diz ele dochumbo (sem, de maneira alguma, conduzir a fala para a observa??o): ‘Tua palidez comove-me mais que a eloqüência.’ Quer dizer: ‘Tua simplicidade comove-me mais que a natureza espalhafatosa dos outrosdois.’ Ouro e prata s?o ‘gritantes’; o chumbo é mudo - na verdade, como Cordélia, que ‘ama ecala’. Nos antigos relatos gregos do julgamento de Páris, nada se diz de tal reticência por partede Afrodite. Cada uma das três deusas fala ao jovem e tenta conquistá-lo através de promessas.Mas, de modo bastante esquisito, num tratamento inteiramente moderno da mesma cena, estacaracterística da terceira, que nos impressionou, faz seu aparecimento de novo. No libreto de LaBelle Hélène, de Offenbach, Páris, após falar das solicita??es das outras duas deusas, descreve aconduta de Afrodite na competi??o pelo prêmio da beleza: La troisième, ah! la troisième… La troisième ne dit rien. Elle eut le prix tout de même… Se nos decidirmos a encarar as peculiaridades de nossa ‘terceira’ como concentradas emsua ‘mudez’, ent?o a psicanálise nos dirá que, nos sonhos, a mudez é uma representa??o comumda morte. Há mais de dez anos, um homem muito inteligente me contou um sonho que desejavautilizar como prova da natureza telepática dos sonhos. Nele, vira um amigo ausente de quem n?ohavia recebido notícias por tempo muito longo, e censurara-o energicamente por seu silêncio. Oamigo n?o deu resposta. Posteriormente descobriu-se que havia encontrado a morte por suicídio,aproximadamente à época do sonho. Permitam-nos deixar o problema da telepatia de lado:entretanto, n?o parece haver qualquer dúvida de que aqui a mudez no sonho representava amorte. Esconder-se e n?o ser encontrado - algo com que o príncipe se defronta por três vezes nahistória de Cinderela - constitui outro símbolo inequívoco de morte nos sonhos; assim também umpalor acentuado, do qual a ‘palidez’ do chumbo em determinada variante do texto shakespereano éum lembrete. Ser-nos-ia muito mais fácil transpor estas interpreta??es da linguagem dos sonhospara a modalidade da express?o empregada no mito que agora está sendo considerada, sepudéssemos fazer parecer provável que a mudez deve ser interpretada como sinal de estar morto,em outras produ??es que n?o os sonhos. Neste ponto, escolheria a nona história dos Contos de Fadas de Grimm, a que tem o títulode ‘Os Doze Irm?os’. Um rei e uma rainha têm doze filhos, todos rapazes. O rei declara que se odécimo terceiro for uma menina, os rapazes ter?o de morrer. Na expectativa do nascimento dela,180. manda fazer doze ataúdes. Com o auxílio da m?e, os doze filhos buscam refúgio numa florestaescondida e juram dar morte a qualquer mo?a que possam encontrar. Nasce uma menina, cresce esabe um dia, por sua m?e, que teve doze irm?os. Decide procurá-los e, na floresta, encontra omais jovem; este a reconhece, mas fica ansioso por escondê-la, devido ao juramento dos irm?os. Airm? diz: ‘Morrerei alegremente, se assim puder salvar meus doze irm?os.’ Estes a acolhemafetuosamente porém, e ela fica com eles, tomando conta da casa. Num pequeno jardim ao ladoda casa crescem doze lírios. A mo?a os colhe e dá um a cada irm?o. Nesse momento, os irm?oss?o transformados em corvos e desaparecem, junto com a casa e o jardim. (Corvos s?o pássaros-espíritos; a morte dos doze irm?os pela irm? é representada pela colheita das flores, tal como o é,no come?o da história, pelos ataúdes e pelo desaparecimento dos irm?os.) ? mo?a, que mais umavez está pronta a salvar os irm?os da morte, é dito ent?o que, como condi??o, ela deve ficar mudapor sete anos e n?o pronunciar uma só palavra. Ela se submete ao teste, que a coloca em perigomortal; isto é, ela própria morre pelos irm?os, como prometera fazer antes de encontrá-los. Porpermanecer muda, consegue finalmente libertar os corvos. Na história de ‘Os Setes Cisnes’, os irm?os que foram transformados em pássaros s?olibertados exatamente da mesma maneira: s?o restituídos à vida pela mudez da irm?. A mo?atomou a firme resolu??o de liberar os irm?os, ‘mesmo que isso lhe custasse a vida’, e mais umavez (sendo esposa do rei) arrisca a própria vida ao recusar-se a abandonar sua mudez, a fim dedefender-se contra acusa??es perversas. Seria certamente possível coligar outras provas, nos contos de fadas, de que a mudezdeve ser compreendida como representando a morte. Estas indica??es levar-nos-iam a concluirque a terceira das irm?s entre as quais a escolha é feita é uma morta. Mas ela pode ser tambémalgo mais - a saber, a própria Morte, a Deusa da Morte. Gra?as a um deslocamento que está longede ser raro, as qualidades que uma divindade confere aos homens s?o atribuídas à própriadivindade. Um deslocamento assim surpreender-nos-ia ainda menos em rela??o à Deusa daMorte, visto que nas vers?es e representa??es modernas, que estas histórias estariam assimantecipando, a própria Morte nada mais é que um morto. Mas se a terceira das irm?s é a Deusa da Morte, as irm?s nós conhecemos. Trata-se dasParcas, das Moiras, das Nornas, a terceira das quais é chamada ?tropos, a inexorável. II Colocaremos de lado por enquanto a tarefa de inserir a interpreta??o encontrada em nossomito e escutaremos o que os mitólogos têm a ensinar-nos sobre o papel e a origem das Parcas. A primitiva mitologia grega (em Homero) conhecia apenas uma só g, a personificar odestino inevitável. O desenvolvimento ulterior desta Moira única num conjunto de três (ou, menosamiúde, duas) deusas-irm?s provavelmente efetuou-se com base noutras figuras divinas a que asMoiras se achavam estreitamente relacionadas - as Gra?as e as Horas [as Esta??es]. As Horas eram originalmente deusas das águas do céu, distribuidoras da chuva e do181. orvalho, e das nuvens das quais a chuva cai; visto as nuvens serem concebidas como algo quefora tecido, aconteceu que essas deusas fossem encaradas como fiandeiras, atributo que depoisse relacionou às Moiras. Nas terras mediterr?neas favorecidas pelo Sol, é da chuva que afertilidade do solo depende, e assim as Horas tornaram-se deusas da vegeta??o. A beleza dasflores e a abund?ncia dos frutos eram cria??es suas, e a elas era creditada abund?ncia de tra?osagradáveis e encantadores. Tornaram-se as representantes divinas das Esta??es, sendoprovavelmente devido a esta conex?o que havia três delas, se a natureza sagrada do número trêsn?o foi explica??o suficiente. Pois os povos da antigüidade a princípio distinguiam apenas trêsesta??es: inverno, primavera e ver?o. O Outono só foi acrescentado em período greco-romanoposterior, após o que as Horas foram muitas vezes representadas na arte em número de quatro. As Horas mantiveram sua rela??o com o tempo. Posteriormente, presidiram às horas dodia, como a princípio haviam feito às épocas do ano; e, por fim, seu nome veio a ser simplesmenteuma designa??o das horas (heure, ora). As Nornas da mitologia germ?nica s?o aparentadas comas Horas e as Moiras e apresentam esta significa??o de tempo em seus nomes. Era inevitável,contudo, que se viesse a ter uma vis?o mais profunda da natureza essencial desta deidades, e quesua essência fosse transposta para a regularidade com que as esta??es mudam. As Horas, assim,tornaram-se as guardi?s da lei natural e da Ordem divina que fazem a mesma coisa reaparecer naNatureza numa seqüência inalterável. Esta descoberta da Natureza reagiu sobre a concep??o da vida humana. O mito danatureza transformou-se num mito humano: as deusas do tempo tornaram-se deusas do Destino.Este aspecto das Horas, porém, encontrou express?o apenas nas Moiras, que vigiam a ordena??onecessária da vida humana t?o inexoravelmente quanto as Horas, a ordem normal da Natureza. Ainelutável severidade da Lei e sua rela??o com a morte e a dissolu??o, que haviam sido evitadasnas encantadoras figuras das Horas, estavam agora caracterizadas nas Moiras, como se oshomens só houvessem percebido toda a seriedade da lei natural quando tiveram de submeter suaspróprias personalidades a ela. Os nomes das três fiandeiras foi também significativamente explicado pelos mitólogos.Láquesis, o nome da segunda, parece designar ‘o acidental que se acha incluído na regularidadedo destino’ - ou, como diríamos, a ‘experiência’; tal como ?tropos representa ‘o inelutável’ - aMorte. A Cloto sobraria ent?o significar a disposi??o inata, com suas implica??es fatídicas. Mas já é tempo de retornar ao tema que estamos tentando interpretar - o tema da escolhaentre três irm?s. Ficaremos profundamente desapontados em descobrir qu?o ininteligíveis setornam as situa??es sob exame e que contradi??es resultam de seu conteúdo aparente, seaplicarmos a elas a interpreta??o que descobrimos. Segundo nossa suposi??o, a terceira dasirm?s é a Deusa da Morte, a própria Morte. Mas no Julgamento de Páris ela é a deusa por suabeleza; em O Mercador de Veneza, é a mais bela e sábia das mulheres; no Rei Lear, é a únicafilha leal. Podemos perguntar se pode existir contradi??o mais completa. Talvez, por improvável182. que possa parecer, haja outra ainda mais completa ao alcance da m?o. Na verdade, certamenteexiste, visto que, onde quer que nosso tema ocorra, a escolha entre as mulheres é livre e noentanto recai na morte. Afinal de contas, ninguém escolhe a morte e é apenas por fatalidade quese tomba vítima dela. Entrentanto, contradi??es de um certo tipo - substitui??es pelo contrário exato - n?ooferecem dificuldade séria ao trabalho da interpreta??o analítica. N?o apelaremos aqui para o fatode os contrários serem t?o amiúde representados por um só e mesmo elemento nos modos deexpress?o utilizados pelo inconsciente, tal como, por exemplo, nos sonhos. Mas lembraremos queexistem na vida mental for?as motivadoras que ocasionam a substitui??o pelo oposto, na forma doque é conhecido como forma??o reativa; e é precisamente na rela??o de for?as ocultas comoestas que procuramos a recompensa de nossa indaga??o. As Moiras foram criadas em resultadode uma descoberta que advertiu o homem de que ele também faz parte da natureza e, portanto,acha-se sujeito à imutável lei da morte. Algo no homem estava fadado a lutar contra esta sujei??o,pois é apenas com extrema má-vontade que ele abandona sua pretens?o a uma posi??oexcepcional. O homem, como sabemos, faz uso de sua atividade imaginativa a fim de satisfazer osdesejos que a realidade n?o satisfaz. Assim sua imagina??o rebelou-se contra o reconhecimentoda verdade corporificada no mito das Moiras e construiu em seu lugar o mito dele derivado, no quala Deusa da Morte foi substituída pela Deusa do Amor e pelo que lhe era equivalente em formahumana. A terceira das irm?s n?o era mais a Morte; era a mais bela, a melhor, a mais desejável eamável das mulheres. Tampouco foi esta substitui??o, de modo algum, tecnicamente difícil: ela foipreparada por uma antiga ambivalência e executada ao longo de uma linha primeva de conex?o,que n?o poderia ter sido há muito esquecida. A própria Deusa do Amor, que agora assumira olugar da Deusa da Morte, fora outrora idêntica a ela. Mesmo a Afrodite grega n?o abandonarainteiramente sua vincula??o com o mundo dos mortos, embora há muito tempo houvesseentregado seu papel ct?nico a outras figuras divinas, a Perséfone ou à triforme Artêmis-Hécate. Asgrandes deusas-M?es dos povos orientais, contudo, parecem todas ter sido tanto criadoras quantodestruidoras - tanto deusas da vida e da fertilidade quanto deusas da morte. Assim, a substitui??opor um oposto desejado em nosso tema retorna a uma identidade primeva. A mesma considera??o responde à pergunta de como a característica de uma escolhajuntou-se ao mito das três irm?s. Aqui também houve uma invers?o desejada. A escolha se colocano lugar da necessidade, do destino. Desta maneira, o homem supera a morte, que reconheceuintelectualmente. N?o é concebível maior triunfo da realiza??o de desejos. Faz-se uma escolhaonde, na realidade, há obediência a uma compuls?o; e o escolhido n?o é uma figura de terror, masa mais bela e desejável das mulheres. Numa inspe??o mais chegada observamos, sem dúvida, que o mito original n?o é t?ocompletamente deformado que tra?os dele n?o apare?am e revelem sua presen?a. A livre escolhaentre as três irm?s n?o é, propriamente falando, uma escolha livre, pois deve necessariamenterecair na terceira, do contrário todo tipo de malefício pode acontecer, como sucede em Rei Lear. A183. mais bela e melhor das mulheres, que assumiu o lugar da Deusa da Morte, manteve certascaracterísticas que beiram o sinistro, de maneira que, a partir delas, pudemos adivinhar o que jazpor baixo. Até aqui, estivemos acompanhando o mito e sua transforma??o, sendo de se esperar queindicamos corretamente as causas ocultas da transforma??o. Podemos agora voltar nossointeresse para a maneira pela qual o dramaturgo fez uso do tema. Ficamos com a impress?o deque uma redu??o do tema ao mito original está sendo realizada em seu trabalho, de maneira que,uma vez mais, temos a sensa??o da comovente significa??o que foi enfraquecida peladeforma??o. ? mediante esta redu??o da deforma??o, este retorno parcial ao original, que odramaturgo alcan?a seu efeito mais profundo sobre nós. Para evitar más interpreta??es, gostaria de dizer que n?o é minha inten??o negar que ahistória dramática do Rei Lear destina-se a inculcar duas sábias li??es: a própria vida e quedevemos guardar-nos de aceitar a lisonja pelo seu valor aparente. Estas advertências e outrassemelhantes s?o indubitavelmente postas em relevo pela pe?a; mas me parece inteiramenteimpossível explicar o irresistível efeito de Rei Lear a partir da impress?o que tal seqüência depensamento produziria, ou supor que os motivos pessoais do dramaturgo n?o foram além dainten??o de ensinar essas li??es. Sugere-se, também, que seu intuito foi apresentar a tragédia daingratid?o, cujo aguilh?o bem pode ter sentido no próprio cora??o, e que o efeito da pe?a repousano elemento puramente formal de sua apresenta??o artística; mas isto n?o pode, segundo meparece, tomar o lugar da compreens?o que nos foi trazida pela explica??o a que chegamos dotema da escolha entre as três irm?s. Lear é um homem velho. ? por esta raz?o, como já dissemos, que as três irm?s aparecemcomo filhas suas. O relacionamento de um pai com os filhos, que poderia ser uma fonte fecunda demuitas situa??es dramáticas, n?o recebe considera??o ulterior na pe?a. Mas Lear n?o é apenasum homem velho: é um homem moribundo. Desta maneira, a extraordinária premissa da divis?o desua heran?a perde toda sua estranheza. Mas o homem condenado n?o está disposto a renunciar oamor das mulheres; insiste em ouvir quanto é amado. Permitam-nos agora recordar a comoventecena final, um dos pontos culminantes da tragédia no teatro moderno. Lear carrega o corpo mortode Cordélia para o palco. Cordélia é a Morte. Se invertermos a situa??o, ela se torna inteligível efamiliar par nós. Ela é Deusa da Morte que, como as Valquírias na mitologia germ?nica, recolhe docampo de batalha o herói morto. A sabedoria eterna, vestida deste mito primevo, convida o velho arenunciar ao amor, escolher a morte e reconciliar-se com a necessidade de morrer. O dramaturgo nos leva mais próximo do tema antigo, por representar o homem que faz aescolha entre as três irm?s como idoso e moribundo. A revis?o regressiva que assim aplicou aomito, deformada como foi pela transforma??o prenhe de desejo, permite-nos vislumbres suficientesde seu significado original para capacitar-nos a chegar também a uma interpreta??o alegóricasuperficial das três figuras femininas do tema. Poderíamos argumentar que o que se acha184. representado aqui s?o as três inevitáveis rela??es que um homem tem com uma mulher - a mulherque o dá à luz, a mulher que é a sua companheira e a mulher que o destrói; ou que elas s?o astrês formas assumidas pela figura da m?e no decorrer da vida de um homem - a própria m?e, aamada que é escolhida segundo o modelo daquela, e por fim, a Terra M?e, que mais uma vez orecebe. Mas é em v?o que um velho anseia pelo amor de uma mulher, como o teve primeiro desua m?e; só a terceira das Parcas, a silenciosa Deusa da Morte, toma-lo-á nos bra?os.185. DUAS MENTIRAS CONTADAS POR CRIAN?AS (1913) NOTA DO EDITOR INGL?S ZWEI KINDERL?GEN (a) EDI??ES ALEM?S: 1913 Int. Z. Psychoanal., 1, (4), 359-62. 1918 S. K. S. N., 4, 189-94, (1922, 2? ed.) 1924 G. S., 5, 238-43. 1926 Psychoanalyse der Neurosen, 16-22. 1931 Neurosenlehre und Technik, 17-21. 1943 G. W., 8, 422-7. (b) TRADU??O INGLESA: ‘Infantile Mental Life: Two Lies Told by Children’ 1924 C. P., 2, 144-9. (Trad. de E. C. Mayne.) A presente tradu??o inglesa é vers?o modificada (sob um título abreviado) da publicadaem 1924. Em seu primeiro aparecimento na Zeitschrift (no ver?o de 1931), este artigo foi o primeirode vários, escritos por diversos autores, incluídos sob o título geral ‘Aus dem infantilenSeelenleben’. Este título foi incorporado à reimpress?o de 1918 do trabalho e também inserido notítulo da tradu??o inglesa de 1924; posteriormente, foi abandonado. DUAS MENTIRAS CONTADAS POR CRIAN?AS Podemos entender que as crian?as contem mentiras quando, assim procedendo, est?oimitando as mentiras ditas por adultos. Mas um certo número de mentiras contadas por crian?as186. bem educadas possuem significa??o especial e deveriam fazer com que seus responsáveisrefletissem, de preferência a ficarem zangados. Estas mentiras ocorrem sob a influência desentimentos excessivos de amor e se tornam momentosas quando conduzem a uma mácompreens?o entre a crian?a e a pessoa que ela ama. I Uma menina de sete anos (em seu segundo ano na escola) pedira ao pai dinheiro paracomprar tintas de pintar ovos de Páscoa. O pai recusara, dizendo que n?o o tinha. Pouco depois, amenina pediu-lhe dinheiro como contribui??o para uma coroa para o funeral da princesa reinante,que falecera recentemente. Cada um dos escolares deveria trazer cinqüenta pfennigs [seis pence].O pai deu-lhe dez marcos [dez xelins]; ela pagou sua contribui??o, colocou nove marcos naescrivaninha do pai e com os restantes cinqüenta pfennigs comprou algumas tintas, que escondeuem seu armário de brinquedos. Ao jantar, o pai suspeitosamente perguntou-lhe o que havia feitocom os cinqüenta pfennigs faltantes e se ela n?o havia comprado tintas com eles, afinal. Ela onegou, mas o irm?o, dois anos mais velho que ela, e com quem havia planejado pintar os ovos,traiu-a; as tintas foram encontradas no armário. O pai irado entregou a criminosa à m?e, para ocastigo, e este foi severamente administrado. Posteriormente, a m?e ficou, ela própria, muitoabalada, quando viu qu?o grande era o desespero da filha. Acariciou a menininha após a puni??oe levou-a para um passeio, a fim de consolá-la. Mas os efeitos da experiência, descritos pelaprópria paciente como o ‘ponto decisivo em sua vida’, mostraram ser inerradicáveis. Até ent?o, forauma crian?a brincalhona e autoconfiante; depois, tornou-se acanhada e tímida. Quando noivou esua m?e empreendeu a compra dos móveis e do enxoval, assumiu uma raiva incompreensível atémesmo para ela própria. Tinha a impress?o de que, afinal de contas, era o dinheiro dela, e queninguém mais deveria comprar nada com ele. Como recém-casada, acanhava-se de pedir dinheiroao marido para qualquer despesa com suas necessidades pessoais e efetuou uma distin??o n?oexigida entre o dinheiro ‘dela’ e o dele. Durante o tratamento, aconteceu ocasionalmente que asremessas do marido a ela se atrasassem, de modo que era deixada sem recursos numa cidadeestranha. Após haver-me contado isto uma vez, fi-la prometer que, se acontecesse de novo, elame pediria emprestada a pequena quantia necessária. Prometeu fazê-lo; mas, na ocasi?o seguintede dificuldades financeiras, n?o se ateve à promessa, mas preferiu empenhar suas jóias. Explicou-me que n?o poderia receber dinheiro de mim. A apropria??o dos cinqüenta pfennigs em sua inf?ncia tivera uma significa??o que o pain?o poderia adivinhar. Algum tempo antes de come?ar a ir à escola, fizera uma travessura singularcom dinheiro. Um vizinho, com quem mantinham rela??es amistosas, mandara a menina com umapequena soma de dinheiro, na companhia de seu próprio filho, que era ainda mais mo?o, compraralgo numa loja. Sendo a mais velha dos dois, ela trazia o troco de volta para casa; mas aoencontrar o criado do vizinho na rua, jogou o dinheiro sobre a cal?ada. Na análise desta a??o, queela própria achava inexplicável, ocorreu-lhe pensar em Judas, que jogara fora os trinta dinheiros deprata que recebera por trair o Mestre. Disse que certamente se achava familiarizada com a história187. da Paix?o, antes de freqüentar a escola. Mas de que maneira poderia ela identificar-se comJudas? Quando contava três anos e meio de idade, tivera uma babá de quem gostavaextremamente. Esta mo?a envolveu-se num caso amoroso com um médico cuja clínica cirúrgicaela visitou com a crian?a. Parece que, nessa ocasi?o, a crian?a assentiu a diversos atos sexuais.N?o é certo se ela viu o médico dar dinheiro à mo?a, mas n?o há dúvida de que, para assegurar-sedo silêncio da menina, a mo?a deu-lhe algumas moedinhas, com as quais compras foram feitas(provavelmente doces) no caminho para casa. ? também possível que o próprio médico,ocasionalmente, desse dinheiro à crian?a. N?o obstante, por ciúme, a menina traiu a mo?a à m?e.Brincou t?o ostensivamente com as moedas que trouxera para casa que a m?e n?o p?de deixar deperguntar: ‘Onde foi que você conseguiu esse dinheiro?’ A mo?a foi despedida. Tirar dinheiro de alguém veio assim a significar precocemente para ela uma rendi??ofísica, uma rela??o erótica. Tirar dinheiro do pai equivalia a uma declara??o de amor. A fantasia deque o pai era seu amante era t?o sedutora que, com seu auxílio, seu desejo pueril de tintas para osovos de Páscoa facilmente p?s-se em a??o, apesar da proibi??o. Ela n?o podia admitir, contudo,que se havia apropriado do dinheiro; foi obrigada a negá-lo, porque seu motivo para o feito,inconsciente para ela própria, n?o podia ser admitido. A puni??o do pai constituiu assim umarejei??o da ternura que ela lhe oferecia - uma humilha??o - e, dessa maneira, desencorajou-a.Durante o tratamento, ocorreu um período de grave depress?o (cuja explica??o levou-a a recordar-se dos acontecimentos aqui descritos) quando, em certa ocasi?o, fui obrigado a reproduzir essahumilha??o, ao pedir-lhe para n?o me trazer mais flores. Para os psicanalistas, mal preciso enfatizar o fato de que, nessa pequena experiência dacrian?a, temos diante de nós um daqueles casos extremamente comuns em que o erotismo analprimitivo persiste na vida erótica posterior. Mesmo o desejo dela de pintar ovos com tintas derivavada mesma fonte. II Uma mulher, que hoje se acha seriamente enferma em conseqüência de uma frustra??ona vida, foi, em outros tempos, uma mo?a particularmente capaz, amante da verdade, séria evirtuosa, e tornou-se uma esposa afetuosa. Mais cedo ainda, porém, nos primeiros anos de vida,havia sido uma crian?a descontente e cheia de vontades e, embora se houvesse transformado demodo bastante rápido numa menina excessivamente boa e conscienciosa, havia ocorrências emseus dias escolares que, quando caía enferma, provocavam-lhe profundas auto-acusa??es, e erampor ela encaradas como provas de deprava??o fundamental. Sua memória contou-lhe que,naqueles dias, amiúde gabara-se e mentira. Certa vez, no caminho para a escola, um colegadissera-lhe jactanciosamente: ‘Ontem tivemos gelo ao jantar.’ Ela replicou: ‘Ora, nós temos gelotodos os dias.’ Na realidade, n?o sabia o que gelo ao jantar poderia significar; só conhecia gelo noscompridos blocos em que é transportado, mas presumiu que deveria haver algo de grandioso emtê-lo ao jantar, de maneira que se recusou a ser suplantada pelo colega.188. Quando estava com dez anos de idade, receberam a incumbência, na aula de desenho, defazerem o desenho a m?o livre de um círculo. Ela, porém, usou um compasso, produzindo assimfacilmente um círculo perfeito, e mostrou sua realiza??o em triunfo ao vizinho de sala. A professorachegou, ouviu-a gabar-se, descobriu as marcas do compasso no círculo e interrogou a crian?a.Mas ela obstinadamente negou o que havia feito, n?o se rendeu a nenhuma prova e refugiou-senum silêncio embirrado. A professora consultou seu pai a respeito e foram ambos influenciadospelo comportamento geralmente bom da menina ao decidir n?o tomar outras medidas quanto aoassunto. Ambas as mentiras da crian?a foram estimuladas pelo mesmo complexo. Como a maisvelha de cinco filhos, a menininha cedo desenvolveu uma liga??o inusitadamente intensa com opai, que estava destinada, quando ela crescesse, a arruinar sua felicidade na vida. Mas ela n?opodia mais fugir à descoberta de que seu pai bem-amado n?o era uma personagem t?o grandequanto se achava inclinada a pensar. Ele tinha de lutar com dificuldades financeiras; n?o era t?opoderoso ou t?o distinto quanto ela imaginara. Mas ela n?o podia suportar esse afastamento doseu ideal. Visto que, como fazem as mulheres, ela baseara toda sua ambi??o no homem queamava, tornou-se intensamente dominada pelo motivo de apoiar seu pai contra o mundo. Assim,gabava-se a seus colegas de escola, a fim de n?o ter de diminuir o pai. Mais tarde, quandoaprendeu a traduzir gelo ao jantar por ‘glace‘, suas auto-acusa??es a respeito desta reminiscênciaconduziram-na facilmente a um pavor patológico de fragmentos ou estilhas de vidro. Seu pai era um excelente desenhista e amiúde despertara o prazer e a admira??o dosfilhos através de exibi??es de sua habilidade. Fora como uma identifica??o dela própria com o paique desenhara o círculo na escola - o que só p?de fazer com sucesso através de métodosenganosos. Era como se tivesse querido gabar-se: ‘Olhem o que meu pai pode fazer!’ A sensa??ode culpa que se achava ligada a seu afeto excessivo pelo pai encontrou express?o juntamentecom a mesma tentativa de burla; uma admiss?o era impossível pela mesma raz?o que foi dada naprimeira destas observa??es [ver em [1]]: inevitavelmente teria sido uma admiss?o de seu amoroculto e incestuoso. N?o devemos pensar levianamente em tais episódios da vida de crian?as. Seria sérioequívoco interpretar más a??es infantis como estas como prognóstico de desenvolvimento de ummau caráter. N?o obstante, elas se acham intimamente vinculadas às for?as motivadoras maispoderosas nas mentes das crian?as e anunciam disposi??es que levar?o a contingênciasposteriores em suas vidas ou a futuras neuroses.189. A DISPOSI??O ? NEUROSE OBSESSIVAUMA CONTRIBUI??O AO PROBLEMA DA ESCOLHA DA NEUROSE (1913) NOTA DO EDITOR INGL?S DIE DISPOSITION ZUR ZWANGSNEUROSE EIN BEITRAG ZUM PROBLEM DER NEUROSENWAHL (a) EDI??ES ALEM?S: 1913 Int. Z. Psychoanal., 1 (6), 525-32. 1918 S. K. S. N., 4, 113-24, (1922, 2? ed.) 1924 G. S., 5, 277-87.190. 1926 Psychonalyse der Neurosen, 3-15. 1931 Neurosenlehre und Technik, 5-16. 1943 G. W., 8, 442-52. (b) TRADU??O INGLESA: ‘The Predisposition to Obsessional Neurosis: A Contribution to the Problem of the Option ofNeurosis’ 1924 C. P., 2, 122-32. (Trad. de E. Glover e E. C. Mayne.) A presente tradu??o inglesa da autoria de James Strachey, com o título modificado,aparece aqui pela primeira vez. Este artigo foi lido por Freud perante o Quarto Congresso Psicanalítico Internacional,realizado em Munique em 7 e 8 de setembro de 1913, e publicado no final desse ano. Dois tópicos de import?ncia especial s?o nele examinados. Em primeiro lugar, há oproblema da ‘escolha da neurose’, que dá ao trabalho o seu subtítulo. Era um problema queapoquentava Freud desde tempos muito antigos. Três longos exames dele poder?o serencontrados entre os documentos de Fliess, datando de 1? de janeiro de 1896 (Freud, 1950a,Rascunho K), 30 de maio de 1896 (ibid., Carta 46, onde a própria express?o aparece), e 6 dedezembro de 1896 (ibid., Carta 52). Aproximadamente ao mesmo tempo que os dois primeirosdestes, referências ao assunto apareceram em três trabalhos publicados de Freud: em seu artigoem francês sobre a hereditariedade e a etiologia das neuroses (1896a), no segundo de seus doistrabalhos sobre as neuropsicoses de defesa (1896b) e no artigo sobre ‘The Aetiology of Hysteria’(1896c). Nestes primeiros exames do problema, pode-se distinguir duas solu??es diferentes, que seassemelhavam muito, contudo, por postular uma etiologia traumática para as neuroses.Primeiramente, houve a teoria passiva e ativa mencionada no presente artigo (ver em [1]), a teoriade que experiências sexuais passivas na primeira inf?ncia predispunham à histeria, e as ativas àneurose obsessiva. Dez anos depois, num exame do papel desempenhado pela sexualidade nasneuroses (1906a), Freud repudiou inteiramente essa teoria (Ver em [1], 1972). A segunda destas primitivas teorias, que n?o foi mantida completamente distinta daprimeira, atribuía o fator decisivo a considera??es cronológicas. Imaginava-se que a formaassumida por uma neurose dependesse do período da vida em que a experiência traumáticaocorrera, ou, noutra vers?o, dos períodos da vida em que se empreendeu a??o defensiva contra orevivescimento da experiência traumática. Numa carta a Fliess, de 24 de janeiro de 1897 (Freud,1950a, Carta 57), escreveu ele: ‘entrementes, a opini?o que até aqui havia sustentado, de que aescolha da neurose era determinada pela ocasi?o de sua gênese, está-se tornando menos segura;a escolha parece antes ser fixada na mais remota inf?ncia. Mas a decis?o ainda oscila entre a191. ocasi?o da gênese e a época da repress?o, embora prefira agora a última.’ E, alguns meses maistarde, em 14 de novembro de 1897 (ibid., Carta 75): ‘A escolha da neurose - a decis?o de se égerada histeria, neurose obsessiva ou paranóia - depende provavelmente da natureza da onda [dedesenvolvimento] (isto é, de sua situa??o cronológica) que torna possível a repress?o (isto é, quetransforma uma fonte de prazer interno noutra de repugn?ncia interna).’ Mas após outros dois anos, em 9 de dezembro de 1899 (ibid., Carta 125), surge umapassagem que parece prenunciar as opini?es posteriores de Freud: ‘Há n?o muito tempo, tive oque pode ter sido um primeiro vislumbre de algo novo. Tenho diante de mim o problema da“escolha da neurose’. Quando é que uma pessoa se torna histérica, ao invés de paranóica? Umaprimeira tentativa grosseira, feita numa ocasi?o em que estava tentando assaltar a cidadela àfor?a, apresentou a opini?o de que isso dependia da idade em que os traumas sexuais ocorreram -da idade do indivíduo na época da experiência. Abandonei isso há muito tempo e fiquei semnenhuma pista, até alguns dias atrás, quando comecei a perceber um vínculo com a teoria dasexualidade. ‘O estrato sexual mais baixo é o auto-erotismo, que passa sem qualquer objetivopsicossexual e exige apenas sensa??es locais de satisfa??o. Ele é sucedido pelo auto-erotismo(homo- e heteroerotismo); mas certamente também continua a existir como corrente separada. Ahisteria (e sua variante, a neurose obsessiva) é auto-erótica; seu principal caminho é aidentifica??o com a pessoa amada. A paranóia desfaz a identifica??o novamente; ela restabelecetodas as figuras amadas na inf?ncia, que foram abandonadas (cf. meu exame dos sonhosexibicionistas), e desfaz o próprio ego em figuras exteriores. Assim, vem a encarar a paranóiacomo uma onda dianteira da corrente auto-erótica, como um retorno ao ponto de vista ent?opredominante. A pervers?o correspondente a ela seria o que é conhecido como “paranóiaidiopática”. As rela??es especiais do auto-erotismo com o “ego” original lan?ariam luz clara sobre anatureza desta neurose. Neste ponto, o fio se rompe.’ Aqui Freud se aproximava da posi??o delineada nas páginas de encerramento de seusTrês Ensaios (1905d), a partir de [1], 1972. O complicado processo de desenvolvimento sexualsugerira uma nova vers?o da teoria cronológica; a no??o de uma sucess?o de possíveis ‘pontos defixa??o’, nos quais esse processo está sujeito a ser detido e aos quais uma regress?o se poderealizar, se s?o encontradas dificuldades na vida posterior. Deveria demorar vários anos, contudo,para que uma afirma??o explícita fosse feita quanto à rela??o entre esta sucess?o de pontos defixa??o e a escolha da neurose. Ela se deu no artigo sobre os dois princípios do funcionamentomental (1911b) , em [1], e (com muito maior extens?o) na análise de Schreber, quasecontempor?nea (1911c), a partir de [2], anteriores. (Parece provável que este último exame fosse oque Freud tinha em mente ao falar aqui (ver em [3]) de uma abordagem anterior ao problema.) Mastoda a quest?o é examinada em termos mais gerais no presente artigo. Isto nos conduz ao segundo tópico de import?ncia especial que ele examina - a saber, otópico das ‘organiza??es’ pré-genitais da libido. A no??o é hoje t?o familiar que nos192. surpreendemos em saber que ela fez seu primeiro aparecimento aqui; mas toda a se??o dos TrêsEnsaios que dela trata (Ver em [1], 1972) foi, em verdade, acrescentada somente em 1915, doisanos após este trabalho ter sido publicado. O conhecimento de haver instintos sexuaiscomponentes n?o genitais remonta, naturalmente, há muito mais atrás. Ele é proeminente naprimeira edi??o dos Três Ensaios (1905d) e sugerido, nas cartas de Fliess, mais cedo ainda. (Ver,por exemplo, a Carta 75, de 14 de novembro de 1897.) O que é novo é a idéia de haver, nodesenvolvimento sexual, estádios regulares, nos quais um ou outro dos instintos componentesdomina todo o quadro. Apenas um de tais estádios, o anal-sádico, é examinado no presente artigo. Freud,contudo, já distinguira dois estádios anteriores de desenvolvimento sexual; mas estes n?o eramcaracterizados pelo predomínio de nenhum instinto componente determinado. O mais primitivo detodos, o do auto-erotismo, antes de qualquer escolha objetal ter sido feita, aparece na primeiraedi??o dos Três Ensaios (Ver em [1], 1972), mas já fora especificado na carta a Fliess, de 1899,anteriormente citada (p. 394). O estádio seguinte, o primeiro em que ocorre escolha de objeto, masonde este é o próprio eu (self) da pessoa, fora apresentado por Freud, sob o nome de narcisismo,cerca de três ou quatro anos antes do presente artigo (ver em [1]). Restavam a ser descritos doisoutros estádios organizados no desenvolvimento da libido - um anterior e o outro posterior ao anal-sádico. O anterior, o estádio oral, mais uma vez demonstrou o predomínio de um instintocomponente; ele foi primeiramente mencionado na se??o da edi??o de 1915 dos Três Ensaios aque já se aludiu (Ver em [1], 1972). O estádio posterior, n?o mais pré-genital, mas ainda n?ointeiramente genital no sentido adulto, o estádio ‘fálico’, só apareceu em cena muitos anos depois,no artigo de Freud sobre ‘A Organiza??o Geral Infantil da Libido’ (1923e). Essa maneira, a ordem de publica??o dos achados de Freud sobre as sucessivasorganiza??es prematuras do instinto sexual pode ser assim resumida: estádio auto-erótico, 1905(já descrito em particular, em 1899); estádio narcísico, 1911 (em particular, 1909); estádio anal-sádico, 1913; estádio oral, 1915; estádio fálico, 1923. A DISPOSI??O ? NEUROSE OBSESSIVA UMA CONTRIBUI??O AO PROBLEMA DA ESCOLHA DA NEUROSE O problema de saber por que e como uma pessoa pode ficar doente de uma neuroseacha-se certamente entre aqueles aos quais a psicanálise deveria oferecer uma solu??o, masprovavelmente será preciso encontrar primeiro solu??o para outro problema, mais restrito - a saber,por que é que esta ou aquela pessoa tem de cair enferma de uma neurose específica e denenhuma outra. Este é o problema da ‘escolha da neurose’. O que sabemos, até o presente, sobre este problema? Estritamente falando, apenas umaúnica proposi??o geral pode ser asseverada com certeza sobre o assunto. Lembrar-se-á quedividimos os determinantes patogênicos que est?o envolvidos nas neuroses em aqueles que uma193. pessoa traz consigo, para a sua vida, e aqueles que a vida lhe traz - o constitucional e o acidental -mediante cuja opera??o combinada, somente, o determinante patogênico é via de regraestabelecido. Além disso, a proposi??o geral, à que aludi acima, estabelece que os motivos paradeterminar a escolha da neurose s?o inteiramente do primeiro tipo - isto é, que eles têm caráter dedisposi??es e s?o independentes de experiências que operam patogenicamente. Onde devemos procurar a fonte destas disposi??es? Tornamo-nos cientes de que asfun??es psíquicas envolvidas - sobretudo a fun??o sexual, mas também várias importantes fun??esdo ego - têm de passar por um longo e complicado desenvolvimento, antes de chegar ao estadocaracterístico do adulto normal. Podemos presumir que estes desenvolvimentos n?o s?o sempret?o serenamente realizados que a fun??o total atravesse esta modifica??o regular progressiva.Onde quer que uma parte dela se apegue a um estádio anterior resulta o que se chama ‘ponto defixa??o’, para o qual a fun??o pode regredir se o indivíduo ficar doente devido a algumaperturba??o externa. Assim, nossas disposi??es s?o inibi??es de desenvolvimento. Somos corroborados nestaopini?o pela analogia dos fatos da patologia geral de outras moléstias. Entretanto, ante a quest?ode saber que fatores podem ocasionar tais distúrbios de desenvolvimento, o trabalho dapsicanálise se interrompe: ela deixa o problema para a pesquisa biológica. Já há alguns anos arriscamo-nos, com o auxílio destas hipóteses, a abordar o problema daescolha da neurose. Nosso método de trabalho, que visa a descobrir condi??es normais peloestudo de suas perturba??es, levou-nos a adotar uma linha de ataque muito singular e inesperada.A ordem em que as principais formas de psiconeurose s?o geralmente enumeradas - Histeria,Neurose Obsessiva, Paranóia, Demência Precoce - corresponde (ainda que n?o de modointeiramente exato) à ordem das idades em que o desencadeamento destas perturba??es ocorre.Formas histéricas de doen?a podem ser observadas mesmo na mais primitiva inf?ncia; a neuroseobsessiva geralmente apresenta seus primeiros sintomas no segundo período da inf?ncia (entre asidades de seis e oito anos); enquanto as outras duas psiconeuroses, que reuni sob o título de‘parafrenia’, n?o aparecem sen?o depois da puberdade e durante a vida adulta. Estes distúrbios -os últimos a surgir - foram os primeiros a se mostrar acessíveis a nossa indaga??o sobre asdisposi??es que resultam na escolha da neurose. As características peculiares a ambos -megalomania, afastamento do mundo dos objetos, dificuldade aumentada na transferência -obrigaram-nos a concluir que sua fixa??o disposicional deve ser procurada num estádio dedesenvolvimento libidinal antes de a escolha objetal ter-se estabelecido - isto é, na fase do auto-erotismo e do narcisismo. Assim, estas formas de moléstia, que fazem seu aparecimento t?otardiamente, remontam a inibi??es e fixa??es muito primitivas. Isto, por conseguinte, nos levaria a supor que a disposi??o à histeria e à neuroseobsessiva, as duas neuroses de transferência propriamente ditas, que produzem seus sintomasbem cedo na vida, reside em fases posteriores de desenvolvimento libidinal. Mas em que ponto194. delas deveríamos encontrar uma inibi??o desenvolvimental? E, acima de tudo, qual seria adiferen?a de fases que determinaria uma disposi??o para a neurose obsessiva, em contraste coma histeria? Por longo tempo, nada deveria se aprender sobre isto, e minhas primeiras tentativas dedescobrir estas duas disposi??es - a no??o, por exemplo, de que a histeria poderia serdeterminada pela passividade e a neurose obsessiva pela atividade, na experiência infantil - tevede ser logo abandonada, por incorreta. Apoiar-me-ei agora, mais uma vez, na observa??o clínica de um caso individual. Durantelongo período estudou uma paciente cuja neurose experimentou uma mudan?a fora do e?ou, após uma experiência traumática, como uma histeria direta de ansiedade e manteveesse caráter por alguns anos. Certo dia, contudo, subitamente, transformou-se numa neuroseobsessiva do tipo mais grave. Um caso desta espécie n?o poderia deixar de ser significativo emmais de um sentido. Por um lado, poderia talvez reivindicar ser encarado como um documentobilingual e demonstrar como um conteúdo idêntico pode ser expresso, pelas duas neuroses, emlinguagens diferentes. Por outro lado, amea?ava contradizer completamente nossa teoria de que adisposi??o origina-se da inibi??o do desenvolvimento, a menos que estivéssemos preparados paraaceitar a suposi??o de que uma pessoa poderia possuir congenitamente mais de um ponto fracoem seu desenvolvimento libidinal. Disse a mim mesmo que n?o tínhamos o direito de desprezaresta última possibilidade, mas achava-me grandemente interessado em chegar a umacompreens?o do caso. Quando, no decurso da análise, isto aconteceu, fui for?ado a ver que a situa??o erainteiramente diferente do que havia imaginado. A neurose obsessiva n?o constituía outra rea??oao mesmo trauma que primeiramente provocara a histeria de ansiedade; era uma rea??o a umasegunda experiência, que havia apagado completamente a primeira. (Aqui, ent?o, temos umaexce??o - embora, é verdade, uma exce??o n?o indiscutível - à nossa proposi??o que afirma que aescolha da neurose é independente da experiência [ver em [1]].) Infelizmente, acho-me incapacitado, por raz?es familiares, para ingressar na história docaso até onde gostaria de fazê-lo e tenho de restringir-me à descri??o que se segue. Até a ocasi?oem que caiu doente, a paciente fora uma esposa feliz e quase completamente satisfeita. Queria terfilhos, por motivos baseados numa fixa??o infantil de seus desejos, e adoeceu quando soube queera impossível tê-los do marido que era o único objeto de seu amor. A histeria de ansiedade comque reagiu a esta frustra??o correspondia, como ela própria logo aprendeu a compreender, aorepúdio de fantasias de sedu??o em que seu firmemente implantado desejo de um filho encontravaexpress?o. Ela ent?o fez tudo o que p?de para impedir que o marido adivinhasse que caíraenferma devido à frustra??o de que era a causa. Mas tenho boas raz?es para asseverar que todospossuem, em seu próprio inconsciente, um instrumento com que podem interpretar as elocu??esdo inconsciente das outras pessoas. O marido compreendeu, sem qualquer admiss?o ouexplica??o da parte dela, o que a ansiedade de sua esposa significava; sentiu-se magoado, semdemonstrá-lo, e, por sua vez, reagiu neuroticamente, fracassando - pela primeira vez - nas195. rela??es sexuais com ela. Imediatamente depois, partiu para uma viagem. A esposa acreditou queele se havia tornado permanentemente impotente e produziu seus primeiros sintomas obsessivosno dia anterior ao seu esperado regresso. O conteúdo de sua neurose obsessiva era uma compuls?o por lavagem e limpezaescrupulosas, bem como medidas protetoras extremamente enérgicas contra danos graves quepensava que outras pessoas tinham raz?o para temer dela - isto é, forma??es reativas contra seuspróprios impulsos anal-eróticos e sádicos. Sua necessidade sexual foi obrigada a encontrarexpress?o nestas formas, após sua vida genital ter perdido todo o valor devido à impotência doúnico homem que lhe poderia importar. Este é o ponto de partida do pequeno e novo fragmento da teoria que formulei.Naturalmente, é apenas na aparência que ela se baseia nesta observa??o determinada; narealidade, reúne grande número de impress?es anteriores, embora uma compreens?o delas sótenha sido possibilitada por esta última experiência. Disse a mim mesmo que meu quadroesquemático do desenvolvimento da fun??o libidinal exigia uma inser??o suplementar. Paracome?ar, havia apenas distinguido, primeira, a fase do auto-erotismo, durante a qual os instintosparciais do indivíduo, cada um por sua conta, buscam a satisfa??o de seus desejos no própriocorpo, e, depois, a combina??o de todos os instintos componentes para a escolha de um objeto,sob a primazia dos órg?os genitais a agir em nome da reprodu??o. A análise das parafrenias,como sabemos, tornou necessária a inser??o entre elas de um estádio de narcisismo, durante oqual a escolha de um objeto já se realizou, mas esse objeto coincide com o próprio ego doindivíduo. E agora vemos a necessidade de outro estádio ainda ser inserido, antes que a formafinal seja alcan?ada, um estádio no qual os instintos componentes já se reuniram para a escolhade um objeto e este objeto é já algo extrínseco, em contraste com o próprio eu (self) do sujeito,mas no qual a primazia das zonas genitais ainda n?o foi estabelecida. Pelo contrário, os instintoscomponentes que dominam esta organiza??o pré-genital da vida sexual s?o anal-erótico e osádico. Estou ciente de que tais hipóteses soam estranhas a princípio. ? somente descobrindosuas rela??es com nosso conhecimento anterior que elas se nos tornam familiares; e, no final, émuitas vezes sua sina serem encarados como inova??es menores e há muito tempo previstas.Voltemos-nos, portanto, com previs?es como estas, para um exame da ‘organiza??o sexual pré-genital’. (a) O papel extraordinário desempenhado por impulsos de ódio e erotismo anal nasintomatologia da neurose obsessiva já impressionou muitos observadores e foi recentementeenfatizado, com particular clareza, por Ernest Jones (1913). Isto decorre diretamente de nossahipótese, se supomos que, nessa neurose, os instintos componentes em apre?o mais uma vezassumiram a representa??o dos instintos genitais, dos quais foram precursores no processo dedesenvolvimento. Neste ponto, ajunta-se uma parte de nossa história clínica, que até agora havia escondido.196. A vida sexual da paciente come?ou, em sua mais remota inf?ncia, com fantasias deespancamento. Após estas haverem sido suprimidas, estabeleceu-se um período de latênciainusitadamente longo, durante o qual passou por um período de crescimento moral exaltado, semqualquer despertar das sensa??es sexuais femininas. O casamento, que se realizou muito cedo,iniciou uma época de atividade sexual normal. Este período, durante o qual ela foi uma esposafeliz, continuou por vários anos, até que sua primeira grande frustra??o provocou a neurosehistérica. Quando isto foi seguido pela perda de valor de sua vida genital, a vida sexual, como jádisse, retornou ao estádio infantil do sadismo. N?o é difícil determinar a característica que distingue este caso de neurose obsessivadaqueles mais freqüentes que come?am bem cedo e depois seguem um curso cr?nico, comexacerba??es de tipo mais ou menos marcante. Nestes outros casos, uma vez estabelecida aorganiza??o sexual que contém a disposi??o à neurose obsessiva, ela, depois, nunca mais écompletamente superada; em nosso caso, para come?ar, ela foi substituída pelo estádio mais altode desenvolvimento e depois reativada, por regress?o, a partir deste último. (b) Se desejarmos colocar nossa hipótese em contato com linhas biológicas depensamento, n?o devemos esquecer que a antítese entre masculino e feminino, que é introduzidapela fun??o reprodutora, n?o pode ainda estar presente no estádio da escolha objetal pré-genital.Encontramos, em seu lugar, a antítese entre tendências com objetivo ativo e com objetivo passivo,a qual, posteriormente, se torna firmemente ligada à existente entre os sexos. A atividade é supridapelo instinto comum de domínio, que chamamos sadismo quando o encontramos a servi?o dafun??o sexual; e, mesmo na vida sexual normal plenamente desenvolvida, ele tem importantesservi?os subsidiários a desempenhar. A tendência passiva é alimentada pelo erotismo anal, cujazona erógena corresponde à antiga e indiferenciada cloaca. Uma acentua??o deste erotismo analno estádio pré-genital de organiza??o deixa atrás de si uma predisposi??o significante aohomossexualismo, nos homens, quando o estádio seguinte da fun??o sexual, a primazia dosórg?os genitais, é atingido. A maneira pela qual esta última fase é erguida sobre a precedente e aconcomitante remodela??o das catexias libidinais oferecem à pesquisa analítica os maisinteressantes problemas. Pode-se sustentar a opini?o de que todas as dificuldades e complica??es envolvidas nistopodem ser evitadas negando-se que haja qualquer organiza??o pré-genital da vida sexual esustentando que a vida sexual coincide com a fun??o genital e reprodutora e come?a com ela.Afirma-se-ia ent?o, considerando as descobertas inequívocas da pesquisa analítica, que, peloprocesso de repress?o sexual, as neuroses s?o compelidas a dar express?o a tendências sexuaisatravés de outros instintos, n?o sexuais, e assim sexualizam estes últimos à guisa decompensa??o. Mas esta linha de argumento colocar-nos-ia fora da psicanálise. Colocar-nos-áonde nos achávamos antes desta e significaria abandonar a compreens?o que a psicanálise nosdeu das rela??es entre saúde, pervers?o e neurose. A psicanálise sustenta-se ou tomba com oreconhecimento dos instintos componentes sexuais, das zonas erógenas e da amplia??o, que197. assim se torna possível, do conceito de ‘fun??o sexual’, em contraste com a ‘fun??o genital’, maisrestrita. Além disso, a observa??o dedesenvolvimento normal das crian?as é, em si própria,suficiente para fazer-nos rejeitar qualquer tenta??o desse tipo. c) No campo do desenvolvimento do caráter, estamos sujeitos a encontrar as mesmasfor?as instituais que encontramos em opera??o nas neuroses. Mas uma nítida distin??o teóricaentre as duas se faz necessária pelo único fato de que o fracasso da repress?o e o retorno doreprimido - peculiares ao mecanismo da neurose - acham-se ausentes na forma??o do caráter.Nesta, a repress?o n?o entra em a??o ou ent?o alcan?a sem dificuldades reativas e sublima??es.Daí os processos da forma??o de caráter serem mais obscuros e menos acessíveis à análise queos neuróticos. Mas é precisamente no campo do desenvolvimento do caráter que deparamos com umaboa analogia com o caso que estivemos descrevendo - isto é, uma confirma??o da ocorrência daorganiza??o sexual pré-genital sádica e anal-erótica. ? fato bem conhecido, e que tem dado muitomotivo para queixas, que após as mulheres perderem a fun??o genital seu caráter, amiúde, sofreuma altera??o peculiar. Tornam-se briguentas, irritantes, despóticas, mesquinhas e sovinas, o queequivale a dizer que apresentam tipicamente tra?os sádicos e anal-eróticos que n?o possuíamantes, durante seu período de feminilidade. Os autores de comédias e os satiristas em todas asépocas dirigiram suas invectivas contra o ‘velho drag?o’ no qual a mo?a encantadora, a esposaamante e a terna m?e se transformaram. Podemos ver que esta altera??o de caráter correspondea uma regress?o da vida sexual ao estádio pré-genital sádico e anal-erótico, na qual descobrimosa disposi??o à neurose obsessiva. Ela parece ser, ent?o, n?o apenas o precursor da fase genital,mas, bastante amiúde, também seu sucessor, seu término, após os órg?os genitais haveremdesempenhado sua fun??o. Uma compara??o entre tal mudan?a de caráter e a neurose obsessiva é muitoimpressionante. Em ambos os casos, o trabalho da regress?o é aparente. Mas enquanto naprimeira encontramos uma regress?o completa a seguir a repress?o (ou supress?o) que ocorreusuavemente, na neurose há conflito, um esfor?o para impedir que a regress?o ocorra, forma??esreativas contra ela e forma??es de sintomas produzidos por concilia??es entre os dois ladosopostos, assim como uma divis?o (splitting) das atividades psíquicas em algumas que s?oadmissíveis à consciência e outras que s?o inconscientes. (d) Nossa hipótese de uma organiza??o sexual pré-genital é incompleta sob dois aspectos.Em primeiro lugar, n?o leva em considera??o o comportamento de outros instintos componentes,com referência aos quais há muita coisa que valeria o exame e a discuss?o, e contenta-se comacentuar a marcante primazia do sadismo e do erotismo anal. Em particular, ficamos sempre com aimpress?o de que o instinto do conhecimento pode realmente tomar o lugar do sadismo nomecanismo da neurose obsessiva. Na verdade, ele é, no fundo, uma ramifica??o sublimada doinstinto de domínio, exaltado em algo intelectual, e seu repúdio sob a forma de dúvidadesempenha grande papel no quadro da neurose obsessiva.198. A segunda lacuna em nossa hipótese é muito mais importante. Como sabemos, adisposi??o desenvolvimental a uma neurose só é completa se a fase do desenvolvimento do egoem que a fixa??o ocorre é levada em considera??o, assim como a da libido. Mas nossa hipótesesó se relacionou com a última, e, portanto, n?o inclui todo o conhecimento que deveríamos exigir.Os estádios de desenvolvimento dos instintos do ego s?o-nos presentemente muito poucoconhecidos; só sei de uma tentativa - a altamente promissora, feita por Ferenczi (1913) - deabordar estas quest?es. N?o posso dizer se pode parecer muito precipitado se, com base nasindica??es que possuímos, sugiro a possibilidade que uma ultrapassagem cronológica dodesenvolvimento libidinal pelo desenvolvimento do ego deve ser incluída na disposi??o à neuroseobsessiva. Uma precocidade deste tipo tornaria necessária a escolha de um objeto sob a influênciados instintos do ego, numa época em que os instintos sexuais ainda n?o assumiram sua formafinal, e uma fixa??o no estádio da organiza??o sexual pré-genital seria assim abandonada. Seconsiderarmos que os neuróticos obsessivos têm de desenvolver uma supermoralidade a fim deproteger seu amor objetal da hostilidade que espreita por trás dele, ficaremos incl que, na ordemdeinados a considerar um certo grau desta precocidade de desenvolvimento do ego como típico danatureza humana e derivar a condi??o para a origem da moralidade do fato de desenvolvimento, oódio é o precursor do amor. ? este talvez o significado de uma assertiva da autoria de Stekel(1911a, 536), que na ocasi?o achei incompreensível de que o ódio, e n?o o amor, é a rela??oemocional primária entre os homens. (e) Decorre, do que foi dito, que resta para a histeria uma rela??o íntima com a fase finaldo desenvolvimento libidinal, que se caracteriza pela primazia dos órg?os genitais e pelaintrodu??o da fun??o reprodutora. Na neurose histérica, esta aquisi??o acha-se sujeita àrepress?o, que n?o implica regress?o ao estádio pré-genital. A lacuna na determina??o dadisposi??o, devida à nossa ignor?ncia do desenvolvimento do ego, é ainda mais evidente aqui doque na neurose obsessiva. Por outro lado, n?o é difícil demonstrar que uma outra regress?o, a um nível mais primitivo,ocorre também na histeria. A sexualidade das crian?as do sexo feminino é, como sabemos,dominada e dirigida por um órg?o masculino (o clitóris) e amiúde se comporta como a sexualidadedos meninos. Esta sexualidade masculina tem de ser abandonada mediante uma última onda dedesenvolvimento, na puberdade, e a vagina, órg?o derivado da cloaca, tem de ser elevada à zonaerógena dominante. Ora, é muito comum na neurose histérica que esta sexualidade masculinareprimida seja reativada e, ent?o, que a luta defensiva por parte dos instintos egossint?nicos sejadirigida contra ela. Mas parece-me cedo demais para ingressar aqui num debate dos problemas dadisposi??o à histeria.199. INTRODU??O A THE PSYCHO-ANALYTIC METHOD, DE PFISTER (1913) NOTA DO EDITOR INGL?S200. (a) EDI??ES ALEM?S: 1913 Em O. Pfister, Die psychanalytische [sic] Methode (Vol. 1 de P?dagogium), iv- v, Leipzig e Berlim, Klinkhardt. (1921, 2? ed.; 1924, 3? ed.) 1928 G. S., 11, 244-6. 1931 Neurosenlehre und Technik, 315-18. 1946 G. W., 10, 448-50. (b) TRADU??O INGLESA: Introduction to Pfister’s The Psychoanalytic Method 1917 Em Pfister, The Psychoanalytic Method, v-viii, Nova Iorque: Moffat, Yard; Londres: Kegan Paul. (Trad. de C. R. Payne.) A presente tradu??o inglesa é nova, da autoria de James Strachey. O Dr. Oskar Pfister, pastor religioso e educador de Zurique, autor da obra da qual estetrabalho constitui introdu??o, foi por trinta anos amigo íntimo de Freud e inabalável partidário desuas teorias. Foi ele um dos primeiríssimos leigos a praticar a psicanálise e a parte posterior daintrodu??o de Freud é talvez o seu primeiro apelo publicado em favor do reconhecimento dosanalistas n?o médicos. Ele desenvolveu seus argumentos com muito maior amplitude, cerca devinte anos mais tarde, em The Question of Lay Analysis (1926e). A data ao final da introdu??o (que aqui aparece por acordo com os Srs. Routledge e KeganPaul) é omitida nas reimpress?es alem?s. INTRODU??O A THE PSYCHO-ANALYTIC METHOD, DE PFISTER A psicanálise teve sua origem em terreno médico, como um procedimento terapêutico parao tratamento de certas doen?as nervosas que foram denominadas de ‘funcionais’ e consideradas,com crescente certeza, como conseqüências de distúrbios na vida emocional. Ela alcan?a seu fim -de remover as manifesta??es destes distúrbios, os sintomas - ao presumir que eles n?o s?o oúnico e possível resultado final de processos psíquicos específicos. Revela, portanto, a história dodesenvolvimento desses sintomas na memória do paciente, revivifica os processos que osfundamentam e ent?o os conduz, sob a orienta??o do médico, a um escoadouro mais favorável. Apsicanálise estabeleceu para si os mesmos objetivos terapêuticos que o tratamento pelohipnotismo, que foi introduzido por Liébeault e Bernheim e após demoradas e severas lutasalcan?ou lugar na técnica dos neuro-especialistas. Mas ela vai muito mais fundo na estrutura domecanismo da mente e procura ocasionar resultados duradouros e modifica??es viáveis em seusassuntos.201. Em sua época, o tratamento hipnótico por sugest?o muito cedo ultrapassou a esfera daaplica??o médica e p?s-se ao servi?o da educa??o de jovens. Se devemos acreditar nos relatórios,ele mostrou ser um meio eficiente para p?r fim a defeitos pueris, hábitos físicos inconvenientes etra?os de caráter doutra maneira irredutíveis. Ninguém nessa época deixou de concordar ousurpreendeu-se com a amplia??o de seus empregos, que, incidentalmente, só se tornaramplenamente compreensíveis mediante as pesquisas da psicanálise. Pois sabemos hoje que ossintomas patológicos amiúde nada mais s?o que substitutos de inclina??es más (isto é, inúteis) eque os determinantes desses sintomas s?o estabelecidos nos anos de inf?ncia e juventude -durante o mesmo período em que os seres humanos s?o objeto da educa??o - quer as própriasdoen?as surjam já na juventude quer somente em época posterior da vida. A educa??o e a terapêutica acham-se em rela??o atribuível, uma com a outra. A educa??oprocura garantir que algumas das disposi??es [inatas] da crian?a n?o causem qualquer prejuízo aoindivíduo ou à sociedade. A terapêutica entra em a??o se essas mesmas disposi??es jáconduziram ao resultado n?o desejado dos sintomas patológicos. O desfecho alternativo - dasdisposi??es inúteis da crian?a, conduzindo, n?o a substitutos sob a forma de sintomas, mas apervers?es diretas de caráter - é quase inacessível à terapêutica e, geralmente, fora da influênciado educador. A educa??o constitui uma profilaxia, que se destina a prevenir ambos os resultados -tanto a neurose quanto a pervers?o; a psicoterapia procura desfazer o menos estável dos doisresultados a instituir uma espécie de pós-educa??o. Em vista desta situa??o, surge imediatamente a quest?o de saber se a psicanálise n?odeveria ser utilizada para fins educativos, tal como a sugest?o hipnótica o foi no passado. Asvantagens seriam óbvias. O educador, por um lado, estaria preparado, por seu conhecimento dasdisposi??es humanas gerais da inf?ncia, para julgar quais dessas disposi??es amea?am conduzira um desfecho indesejável; e, se a psicanálise pode influenciar o curso tomado por taisdesenvolvimentos, poderia aplicá-la antes que os sinais de um desenvolvimento desfavorável seestabele?am. Assim, com o auxílio da análise, ele poderia ter uma influência profilática na crian?a,enquanto esta ainda é sadia. Por outro lado, poderia detectar as primeiras indica??es de umdesenvolvimento, na dire??o da neurose e resguardar a crian?a contra o seu desenvolvimentoulterior, numa época em que, por diversas raz?es, uma crian?a nunca é levada ao médico. N?o sepode deixar de pensar que uma atividade psicanalítica como esta por parte do educador - e doassistente pastoral em posi??o semelhante, nos países protestantes - inevitavelmente seria deinestimável valor e com freqüência poderia tornar desnecessária a interven??o do médico. A única quest?o é saber se a prática da psicanálise pode n?o ter como pré-requisito umtreinamento médico, do qual o educador e o assistente pastoral devem permanecer excluídos, ouse pode haver outras considera??es que se oponham à sugest?o de que a técnica da psicanálisen?o seja confiada a outra m?o que n?o a de um médico. Confesso que n?o posso encontrarfundamento para reservas desse tipo. A prática da psicanálise exige muito menos treinamentomédico que instru??o psicológica e concep??o humana livre. A maioria dos médicos n?o se acha202. preparada para exercer a psicanálise e fracassou completamente em apreender o valor desseprocedimento terapêutico. O educador e o assistente pastoral est?o sujeitos, pelos requisitos desua profiss?o, a exercer a mesma considera??o, cuidado e limita??o que s?o geralmentepraticados pelo médico, e, à parte isso, sua associa??o com jovens talvez os torne mais bemqualificados para compreender a vida mental desses jovens. Em ambos os casos, porém, a únicagarantia da aplica??o inócua do procedimento analítico tem de depender da personalidade doanalista. Onde um caso margina a anormalidade mental, o educador analítico estará obrigado afamiliarizar-se com o conhecimento psiquiátrico mais necessário e, além disso, a consultar ummédico quando o diagnóstico e a prognose do distúrbio parecem duvidosos. Em muitos casos sóserá possível alcan?ar sucesso se houver colabora??o entre o educador e o médico. Sob determinado aspecto isolado, a responsabilidade de um educador pode talvez excedera de um médico. Este tem como regra lidar com estruturas psíquicas que já se tornaram rígidas eencontrará na individualidade estabelecida do paciente um limite ao seu próprio êxito, mas, aomesmo tempo, uma garantia da capacidade do paciente de resistir sozinho. O educador, contudo,trabalha com um material que é plástico e aberto a toda impress?o, e tem de observar perante simesmo a obriga??o de n?o moldar a jovem mente de acordo com suas próprias idéias pessoais,mas, antes, segundo as disposi??es e possibilidades do educando. Esperemos que a aplica??o da psicanálise a servi?o da educa??o rapidamente realizará asesperan?as que educadores e médicos podem corretamente ligar a ela. Um livro como este dePfister, que procura familiarizar os educadores com análise, poderá ent?o contar com a gratid?odas gera??es posteriores. VIENA, fevereiro de 1913.203. PREF?CIO A SCATALOGIC RITES OF ALL NATIONS, DE BOURKE (1913) NOTA DO EDITOR INGL?S (a) EDI??ES ALEM?S: 1913 Em J. G. Bourke, Der Unrat in Sitte, Brauch, Glauben und Gewohnheitsrecht der V?lker, traduzido para o alem?o por F. S. Krauss e H. Ihm, Leipzig, Ethnologischer Verlag. 1928 G. S., 11, 249-51. 1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 242-5. 1946 G. W., 10, 453-5. (b) TRADU??ES INGLESAS: Preface to Bourke’s Scatalogic [sic] Rites of All Nations. 1934 Em J. G. Bourke, Scatalogic Rites of All Nations (Nova Edi??o), vii-ix, Nova Iorque, American Anthropological Society. 1950 C. P., 5, 88-91. (Sob o título ‘The Excretory Functions in Psycho-Analysis and Folklore’) (Trad. de J. Strachey.) A presente tradu??o inglesa é a publicada em 1950, ligeiramente revista. O trabalho da autoria do Capit?o John Gregory Bourke (Terceira Cavalaria, E. U. A.), acuja tradu??o Freud contribuiu com este prefácio, foi originalmente publicado em 1891(Washington: Lowdermilk), com as palavras ‘N?o é para Leitura Geral’ na página de rosto. Aaten??o de Freud foi atraída para o livro (sem dúvida pelo Dr. Ernest Jones) no come?o de 1912 eparece provável que a tradu??o alem? tenha sido feita por sua recomenda??o. Ela apareceu comoum dos volumes suplementares lan?ados anualmente pela revista Anthropophyteia, que eraeditada por um dos tradutores, F. S. Krauss. Freud mostrara seu interesse na revista dois ou três204. anos antes, numa carta aberta ao seu editor (1910f). Grande parte do material citado no artigo deFreud e Oppenheim sobre ‘Os Sonhos no Folclore’ (1957a [1911], em [1], anteriores) derivou daAnthropophyteia e trata dos tópicos examinados neste prefácio. PREF?CIO A SCATALOGIC RITES OF ALL NATIONS, DE BOURKE Enquanto vivia em Paris, em 1885, como aluno de Charcot, o que principalmente meatraía, à parte as próprias conferências do grande homem, eram as demonstra??es e prele??esdadas por Brouardel. Ele nos costumava mostrar, de material post-mortem no necrotério, quantohavia que merecia ser conhecido por médicos, mas de que a ciência preferia n?o fazer caso. Certaocasi?o, ele estava discutindo as indica??es que permitiam imaginar a categoria social, o caráter ea origem de um corpo n?o identificado, e ouvi-o dizer: ‘Les genoux sales sont le signe d’une filehonnête‘. Utilizava os joelhos sujos de uma mo?a como prova de sua virtude! A li??o de que a limpeza corporal é muito mais prontamente associada ao vício que àvirtude amiúde me ocorreu posteriormente, quando o trabalho psicanalítico me familiarizou com amaneira pela qual os homens civilizados lidam hoje com o problema de sua natureza física. Ficamclaramente embara?ados com qualquer coisa que os fa?a lembrar demasiadamente sua origemanimal. Tentam emular os ‘anjos mais aperfei?oados’ da última cena de Fausto, que se queixam: Uns bleibt ein Erdenrest zu tragen peinlich, und w?r’er von Asbest, es ist nicht reinlich. Entretanto, desde que devem necessariamente permanecer muito afastados de talperfei??o, os homens decidiram fugir ao dilema, negando, tanto quanto possível, a própriaexistência deste inconveniente ‘resíduo da Terra’, ocultando-o mutuamente e negando-lhe aaten??o e o cuidado que poderia reivindicar como componente integrante de seu ser essencial. Ocaminho mais sábio indubitavelmente teria sido admitir sua existência e dignificá-lo tanto quantosua natureza permitisse. Está longe de ser matéria simples examinar ou descrever as conseqüências envolvidasnesta maneira de tratar o ‘penoso resíduo da Terra’, do que as fun??es sexuais e excretóriaspodem ser consideradas o núcleo. Bastará mencionar uma só destas conseqüências, aquela emque nos achamos mais interessados aqui: o fato de a ciência ser proibida de lidar com estesaspectos proscritos da vida humana, de maneira que quem quer que estude tais coisas é encaradocomo pouco menos ‘impróprio’ do que alguém que realmente faz coisa impróprias. N?o obstante, a psicanálise e o folclore n?o se deixaram impedir de transgredir essasproibi??es e, em resultado, puderam ensinar-nos todo tipo de coisas que s?o indispensáveis a umacompreens?o da natureza humana. Se nos limitarmos aqui ao que foi aprendido sobre as fun??esexcretórias, pode-se dizer que o principal achado da pesquisa psicanalítica foi o fato de que o bebê205. humano é obrigado a recapitular, durante a primeira parte de seu desenvolvimento, as mudan?asna atitude da ra?a humana para com matérias excrementícias que provavelmente tiveram seuinício quando o homo sapiens pela primeira vez ergueu-se da M?e Terra. Nos primeiros anos dainf?ncia, n?o existe ainda nenhum resíduo de vergonha sobre as fun??es excretórias ou de nojopelas excre??es. As crian?as pequenas mostram grande interesse nestas, tal como em outras desuas secre??es corporais; gostam de ocupar-se com elas e podem derivar muitos tipos de prazerdeste procedimento. As excre??es, encaradas como partes do próprio corpo da crian?a e produtosde seu próprio organismo, têm uma cota na estima - a estima narcísica, como deveríamos chamá-la - com que encara tudo que se relaciona ao seu eu (self). As crian?as, em verdade, orgulham-sede suas próprias excre??es e fazem uso delas para ajudar a fazer valer seus direitos contra osadultos. Sob a influência da cria??o, os instintos e inclina??es coprófilas da crian?a sucumbemgradativamente à repress?o; ela aprende a mantê-los secretos, a envergonhar-se deles e a sentirnojo pelos seus objetos. Estritamente falando, contudo, o nojo nunca chega ao ponto de aplicar-seàs próprias excre??es da crian?a, mas contenta-se em repudiá-los quando s?o produtos de outraspessoas. O interesse que até aqui se ligara ao excremento é transferido para outros objetos - porexemplo, das fezes para o dinheiro, que, naturalmente, demora a adquirir significa??o para ascrian?as. Importantes constituintes da forma??o do caráter se desenvolvem ou fortalecem a partirda repress?o das inclina??es coprófilas. A psicanálise mostra ainda que, para come?ar, os intintos excrementais e sexuais n?o s?odistintos uns dos outros, nas crian?as. O divórcio entre eles só ocorre mais tarde e permaneceincompleto. Sua afinidade original, estabelecida pela anatomia do corpo humano, ainda se fazsentir de muitas maneiras em adultos normais. Finalmente, n?o se deve esquecer que n?o se podeesperar que estes desenvolvimentos produzam resultados mais perfeitos que quaisquer outros.Parte das antigas preferências persiste, parte das inclina??es coprófilas continua a operar na vidaposterior e se expressa nas neuroses, pervers?es e maus hábitos dos adultos. O folclore adotou um método inteiramente diferente de pesquisa e, mesmo assim, chegouaos mesmos resultados que a psicanálise. Ele nos mostra qu?o incompletamente a representa??odas inclina??es coprófilas foi efetuada entre diversos povos, em várias épocas, e qu?o de perto,em outros níveis culturais, o tratamento das subst?ncias excretórias se aproxima do usado pelascrian?as. Demonstra também a natureza persistente e em verdade inerradicável dos interessescoprófilos, apresentando a nosso olhar espantado a multiplicidade de aplica??es - no ritual mágico,nos costumes tribais, nas observ?ncias dos cultos religiosos e na arte de curar - mediante as quaisa velha estima pelas excre??es humanas encontrou nova express?o. Também a vincula??o com avida sexual parece ser integralmente preservada. Esta expans?o de nosso conhecimento certamente n?o envolve risco para nossamoralidade. A parte principal do que se conhece sobre o papel desempenhado pelas excre??es navida humana foi reunida em Ritos Escatológicos de Todas as Na??es, de J. G. Bourke. Torná-laacessível aos leitores alem?es é, portanto, n?o apenas um empreendimento corajoso, mas206. também meritório. BREVES ESCRITOS (1911-1913) A SIGNIFICA??O DAS SEQ??NCIAS DE VOGAIS (1911) Indubitavelmente, obje??es foram amiúde levantadas à asser??o feita por Stekel de que,em sonhos e associa??es, nomes que têm de ser encobertos parecem ser substituídos por outrosque se lhes assemelham apenas por conterem a mesma seqüência de vogais. Uma analogianotável, contudo, é proporcionada pela história da religi?o. Entre os antigos hebreus, o nome deDeus era tabu; n?o podia ser falado em voz alta, nem registrado por escrito. (Isto está longe de serum exemplo isolado da significa??o especial dos nomes nas civiliza??es arcaicas.) Esta proibi??ofoi t?o implicitamente obedecida que, até o dia de hoje, a vocaliza??o das quatro consoantes donome de Deus [Y H V H] permanece desconhecida. Ele era, contudo, pronunciado ‘Jehovah’,sendo suprido pelas vogais da palavra ‘Adonai’ (‘Senhor’), contra a qual n?o havia tal proibi??o.(Reinach, 1905-12, 1 1.) ’GRANDE ? DIANA DOS EF?SIOS’(1911)207. A antiga cidade grega de ?feso na ?sia Menor, pela explora??o de cujas ruínas,incidentalmente, tem-se de agradecer à nossa arqueologia austríaca, era especialmente célebre naantigüidade por seu esplêndido templo, dedicado a Artêmis (Diana). Os invasores j?nicos - talvezno século VII antes de Cristo - conquistaram a cidade, que por muito tempo fora habitada porpovos de ra?a asiática, e encontraram nela o culto de uma antiga deusa-m?e que possivelmenteportava o nome de Oupis, e identificaram-na com Artêmis, deidade de sua terra natal. A prova dasescava??es mostra que, no decurso dos séculos, diversos templos foram erguidos no mesmo localem honra da deusa. Foi o quarto destes templos que foi destruído por um incêndio iniciado pelolouco Heróstrato, no ano de 356, durante a noite em que Alexandre, o Grande, nasceu. Ele foireconstruído, mais magnífico que nunca. Com a afluência de sacerdotes, mágicos e peregrinos, ecom suas lojas em que amuletos, lembran?as e oferendas eram vendidas, a metrópole comercialde ?feso poderia ser comparada à moderna Lourdes. Por volta de 54 A. D., o apóstolo Paulo passou diversos anos em ?feso. Pregou, realizoumilagres e encontrou muitos seguidores entre o povo. Foi perseguido e acusado pelos judeus;separou-se deles e fundou uma comunidade crist? independente. Em conseqüência dadissemina??o de sua doutrina, houve uma queda no comércio dos ourives, que costumavam fazerlembran?as do lugar sagrado - figurinhas de Artêmis e modelos do templo - para os fiéis eperegrinos que chegavam de todo o mundo. Paulo era um judeu estrito demais para deixar aantiga deidade sobreviver sob outro nome; rebatizou-a, como os conquistadores j?nicos haviamfeito com a deusa Oupis. Foi assim que os piedosos artes?os e artistas da cidade tornaram-seapreensivos quanto a sua deusa, bem como quanto a seus ganhos. Revoltaram-se e, com gritosinfindavelmente repetidos, de ‘Grande é Diana dos Efésios!’, afluíram pela rua principal, chamada‘Arcádia’, até o teatro, onde seu líder, Demétrio, pronunciou discurso incendiário contra os judeus econtra Paulo. As autoridades tiveram dificuldade em reprimir o tumulto, o que conseguiram pelagarantia de que a majestade da deusa era inatingível e achava-se fora do alcance de qualquerataque. A igreja fundada por Paulo em ?feso n?o lhe permaneceu fiel muito tempo. Caiu sob ainfluência de um homem chamado Jo?o, cuja personalidade apresentou aos críticos alguns difíceisproblemas. Ele pode ter sido o autor do Apocalipse, que abunda em invectivas contra o apóstoloPaulo. A tradi??o o identifica com o apóstolo Jo?o, a quem o quarto evangelho é atribuído.Segundo este evangelho, quando Jesus achava-se na cruz, exclamou para seu discípulo favorito,apontando para Maria; ‘Eis tua m?e!’ E, a partir daquele momento, Jo?o dedicou-se a Maria. Dessemodo, quando Jo?o foi para ?feso, Maria o acompanhou, e, por conseguinte, ao lado da igreja doapóstolo de ?feso, foi construída a primeira basílica em honra da nova deusa-m?e dos crist?os.Sua existência é confirmada a partir do século IV. Agora, mais uma vez, a cidade tinha sua grandedeusa e, fora o nome, pouca modifica??o houve. Também os ourives recuperaram o trabalho defazer modelos do templo e imagens da deusa para os novos peregrinos. A fun??o de Artêmis,208. contudo, expressa pelo atributo de Κουροτροφο?, foi transmitida a um Santo Artemidoro, queassumiu a prote??o das mulheres em trabalho de parto. Depois veio a conquista pelo Isl?, e finalmente, sua ruína e abandono, devido ao rio sobreo qual ficava haver-se tornado entulhado de areia. Mas, mesmo ent?o, a grande deusa de ?feson?o abandonou suas reivindica??es. Em nossos próprios dias, ela apareceu como uma virgemsanta a uma piedosa menina alem?, Katharina Emmerich, em Dülmen. Descreveu a esta suaviagem a ?feso, os móveis da casa em que lá vivera e na qual morrera, o formato de seu leito, eassim por diante. E tanto a casa quanto o leito foram de fato encontrados, exatamente como avirgem os descrevera, e s?o mais uma vez a meta das peregrina??es dos fiéis. PREF?CIO A OS DIST?RBIOS PS?QUICOS DA POT?NCIA MASCULINA, DE MAXIM STEINER (1913) O autor desta pequena monografia, que trata da patologia e tratamento da impotênciapsíquica em indivíduos do sexo masculino, faz parte do pequeno grupo de médicos que cedoreconheceram a import?ncia da psicanálise para o seu ramo especial da medicina e nuncadeixaram de aperfei?oar-se em sua teoria e técnica. Estamos cientes de que apenas uma pequenaparte dos males neuróticos - que agora viemos a conhecer como resultado de distúrbios da fun??osexual - é tratada na própria neuropatologia. O maior número delas encontra lugar entre osdistúrbios do órg?o específico que é vítima de uma perturba??o neurótica. ?, portanto, convenientee próprio que o tratamento desses sintomas ou síndromes seja também assunto do especialista,que, somente ele, é capaz de efetuar um diagnóstico diferencial entre uma doen?a org?nica e umaneurótica, que pode fixar o limite, no caso das formas mistas, entre seus elementos org?nicos eneuróticos, e que em geral nos pode dar informa??es sobre a maneira pela qual os dois fatores dadoen?a refor?am-se mutuamente. Mas se as moléstias org?nicas ‘nervosas’ n?o devem sernegligenciadas, como meros apêndices dos distúrbios materiais do mesmo órg?o - negligênciaesta que, por sua freqüência e import?ncia prática, est?o longe de merecer -, o especialista, queresteja interessado no est?mago, no cora??o ou no sistema urogenital, deve, além de seu sabermédico geral e de seus conhecimentos especializados, ser também capaz de fazer uso, para seupróprio campo de trabalho, das linhas de abordagem, descobertas e técnicas do especialista denervos. Um grande progresso terapêutico será feito quando os especialistas n?o mais dispensaremum paciente que sofra de um mal nervoso com um pronunciamento como ‘Você n?o tem nada; s?osó nervos’, ou com o conselho muito melhor: ‘Vá a um especialista de nervos; ele lhe ordenará umtipo leve de tratamento de água fria’. Indubitavelmente, também exigiremos do especialista emqualquer órg?o que seja capaz de compreender e tratar distúrbios nervosos em seu campo, emvez de esperar que o especialista de nervos seja treinado para ser um especialista universal em209. todos os órg?os em que as neuroses produzem sintomas, E, por conseguinte, pode-se prever quesomente as neuroses com sintomas principalmente psíquicos permanecer?o na esfera doespecialista em nervos. Podemos esperar, portanto, que n?o esteja longe o dia em que se reconhecerá em geralque nenhuma espécie de perturba??o nervosa pode ser compreendida e tratada sem o auxílio dalinha de abordagem e, freqüentemente, da técnica da psicanálise. Uma asser??o assim pode soarhoje como demonstra??o de exagero presun?oso, mas aventuro-me a profetizar que estádestinada a tornar-se um lugar comum. Todavia, será sempre creditado ao autor da presente obran?o ter esperado que isto acontecesse para admitir a psicanálise como tratamento dos malesnervosos dentro de seu próprio e especializado ramo da medicina. VIENA, mar?o de 1913. ................
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