Um jornal pessoal:



O jornalismo independente de Lúcio Flávio Pinto

Autora: Maria do Socorro Furtado Veloso - Jornalista, professora dos cursos de Jornalismo do Isca Faculdades (Limeira, SP) e UNIFAE (São João da Boa Vista, SP), mestre em Multimeios pela Unicamp e doutoranda em Comunicação pela ECA/USP.

Resumo

Um ano após ter sido agredido fisicamente por Ronaldo Maiorana, herdeiro de um dos maiores grupos de comunicação do Brasil, o jornalista paraense Lúcio Flavio Pinto, editor do quinzenário Jornal Pessoal, de Belém, sofre uma avalanche de processos judiciais sem precedentes na história da imprensa paraense. Quinze ações em curso põem em risco a sobrevivência do JP, uma das mais importantes publicações alternativas do Brasil na atualidade. Conduzido solitariamente por Lúcio Flávio Pinto há quase 19 anos, o Jornal Pessoal dá espaço a uma agenda sistematicamente recusada pela grande imprensa regional. Reconhecido por seus pares como um dos mais importantes jornalistas brasileiros, e recentemente premiado pelo Comitê de Proteção aos Jornalistas, dos EUA, por sua atuação em favor da liberdade de imprensa, Lúcio Flávio resiste a pressões de toda ordem para manter em curso seu maior projeto de vida: a prática de um jornalismo verdadeiramente independente.

Palavras chave: jornalismo alternativo; imprensa independente; Jornal Pessoal

Considerado a mais importante publicação independente da Amazônia brasileira na atualidade, o Jornal Pessoal – editado em Belém (PA) - completará 19 anos de existência em setembro de 2006. Criado e conduzido solitariamente pelo jornalista Lúcio Flávio Pinto desde 1988, chegou à 366a edição em abril de 2006, registrando longevidade superior à média das publicações alternativas no Brasil.[i]

Lúcio Flávio Pinto atuou na grande imprensa nacional, bem como em importantes veículos regionais. A marca de seu trabalho é a grande reportagem e a profunda análise do cenário amazônico, especialmente no campo da política, do meio ambiente e da economia.

Ao longo de sua história, o JP tem sido uma fonte de incômodos para a elite paraense. Nas páginas do pequeno jornal, editado quinzenalmente em formato ofício e com circulação média de dois mil exemplares, Lúcio Flávio investe prioritariamente em pautas voltadas para o jogo político regional, o impacto dos grandes projetos desenvolvidos na Amazônia por empresas privadas e estatais, narcotráfico e escândalos financeiros; em menor escala, aborda questões culturais e faz crítica de mídia. A especial capacidade de ler nas entrelinhas dos documentos públicos, o acesso a fontes de informação privilegiadas e uma profunda compreensão da cena amazônica transformam as análises de Lúcio em acuradas leituras da realidade.

A história do JP e de seu editor ganhou contornos dramáticos no início da tarde de 21 de janeiro do ano passado, quando Lúcio Flávio Pinto foi agredido dentro de um restaurante, em Belém, pelo empresário Ronaldo Maiorana[ii]. Herdeiro do maior grupo de comunicações do Norte do país, as Organizações Romulo Maiorana, onde ocupa o cargo de diretor-editor corporativo, Ronaldo é também advogado e presidente da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa, da seção paraense da Ordem dos Advogados do Brasil.

O empresário agrediu Lúcio Flávio pelas costas e o ameaçou de morte em represália ao artigo intitulado “O rei da quitanda”, veiculado na edição nº 337 do JP (1a quinzena de janeiro de 2005). O artigo analisa o poder desmesurado que o irmão do Ronaldo, Romulo Maiorana Júnior, exerce no Pará. Afirma Lúcio, no texto:

O poder de Romulo Maiorana Júnior, o principal executivo do maior grupo de comunicação do Norte do país, contrasta com a situação de um Estado destituído de informação, de opinião e de posição.  O grupo Liberal é mais poderoso do que o Estado no qual atua.  Mais do que um título, esse é um epitáfio: o que lhe dá força é o que enfraquece o Pará.

(...)

Grande parte dos consumidores que acreditam no produto dos veículos Liberal acredita por falta de opção.  O quase-monopólio dos Maiorana cria um estado de inércia difícil de romper: seus clientes não se sentem estimulados a buscar sucedâneos, ou simplesmente essa alternativa não existe para eles.  No caso da TV, em função do domínio arrasador da Globo.  Em relação à mídia impressa, porque nenhum competidor enfrentou-os com o investimento requerido para derrubar uma situação de décadas, nem o Diário do Pará, do deputado federal Jader Barbalho, claudicante na profissionalização e tímido no capital de risco.

(...)

Quando o negócio da informação se reduz a uma quitanda, o poder jornalístico se torna uma fonte de poder pessoal, imenso para quem o exercita e absolutamente vazio para todos os demais, e a informação, uma banana.  É o que, em boa medida, explica o estado de prostração no qual o Pará se encontra, incapaz de entender seu drama, por falta de informações, e submisso à vontade do soba, que o manipula conforme seus caprichos.

O poder enorme de Romulo Maiorana Júnior, solitário e caprichoso, é a contrafação da impotência do Estado no qual esse poder se nutre.[iii]

Na nota ao público divulgada pelo jornal Diário do Pará, concorrente de O Liberal, editado pelos Maiorana, Lúcio Flávio argumenta:

(...) Como Ronaldo Maiorana proclamou, aos brados, que vai me matar para que eu “nunca mais fale” de sua família, a partir de agora ele é o responsável por qualquer violência que me vier a acontecer, seja a praticada pessoalmente por ele, seja a acertada com seus cães de fila, sobre os quais pesa a suspeita de integrarem a corporação de polícia organizada para defender a coletividade [no momento da agressão a Lúcio, dois policiais militares a paisana acompanhavam Ronaldo Maiorana].

Não me intimidarei. Continuarei a fazer o jornalismo que sempre fiz ao longo de quase 40 anos e a reagir a todas as violências, contra mim e contra terceiros. Tomarei também as providências administrativas e judiciais cabíveis contra esse cidadão que se considera acima do bem e do mal, dono do Estado.

Como não estou à venda, não sou covarde e jamais me curvei aos prepotentes, mesmo que esteja ao seu alcance o maior dos poderes, faço minhas as famosas palavras da lendária heroína espanhola, La Pasionária: “No pasarán”. Não passarão sobre mim pessoas indignas como Ronaldo Maiorana. [iv]

No dia 24 de janeiro, três dias após a agressão a Lúcio, o blog do jornalista Ricardo Noblat reproduziu a seguinte nota, enviada pelo empresário Ronaldo Maiorana:

Qualquer tipo de grosseria é um erro, e a cometida no restaurante contra o jornalista Lúcio Flávio Pinto foi um deles. Mas isto foi a conseqüência. A causa provém de longos 17 anos de infâmia, calúnia e difamação contra uma família que trabalha pelo Pará e contra uma pessoa que contribuiu muito para o jornalismo no Estado, que se chamava Romulo Maiorana [fundador do grupo e pai do atual presidente] e que morreu há mais de 18 anos. Esse tinha no jornalismo objetivos claros: a informação e o respeito à dignidade das pessoas. Pena que essa escola não foi seguida no Estado.

Nenhum Instituto Médico-Legal pode quantificar o dano causado à memória e à honra de membros da família, tanto os de ontem como os de hoje, por esses 17 anos de infâmia, calúnia e difamação.

Atenciosamente,

Ronaldo Maiorana - O Liberal - Belém do Pará.[v]

O episódio envolvendo o diretor das Organizações Romulo Maiorana e o editor do JP serviu para chamar atenção da sociedade paraense à luta solitariamente conduzida há quase 19 anos pelo Jornal Pessoal. Certamente destinada a calar a voz de Lúcio Flávio Pinto, a agressão física e a ameaça de morte tiveram efeito radicalmente distinto: foram amplamente noticiadas, ao longo de uma semana, pelo jornal Diário do Pará – ainda que por razões não só de ordem jornalística. O portal IG e os jornais Folha de S. Paulo e O Globo - mesmo que timidamente - também ofereceram cobertura, bem como o blog do jornalista Ricardo Noblat, e os sites especializados Observatório da Imprensa, O Jornalista e Comunique-se. Entidades representativas de vários setores, entre elas a Federação Nacional de Jornalistas, Sindicato dos Jornalistas do Pará - ainda que em nota considerada “pusilânime” pelo próprio Lúcio -, Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal - de onde partiu a reação mais enfática da categoria -, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e Greenpeace também repudiaram o ocorrido.

Um debate organizado pelo curso de Jornalismo da Universidade Federal do Pará e SBPC, realizado na semana seguinte à agressão, reuniu dezenas de estudantes e profissionais de imprensa no auditório da Justiça Federal, em Belém.

Curiosamente, o jornal O Liberal, que silenciou por completo a respeito do episódio, ainda que nos meses seguintes Ronaldo Maiorana e seu irmão, Romulo, tivessem ajuizado várias ações na Justiça contra Lúcio, viu-se obrigado a reproduzir a seguinte informação, veiculada no dia 6 de fevereiro na coluna de Elio Gaspari, que é assinada pelo jornal paraense:

(...) O nome de Lúcio Flávio Pinto acaba de ser encaminhado à comissão julgadora do prêmio Maria Moors Cabot, da Universidade Columbia. Trata-se do mais conhecido prêmio do jornalismo interamericano. Mais: por sugestão do cientista político Biorn Maybury-Lewis (ex-professor da Universidade Federal do Pará), ele foi convidado para uma passagem pela Universidade Harvard. Lá, contaria suas experiências profissionais. A visita será patrocinada pelo Centro David Rockefeller para Estudos Latino-Americanos (onde o signatário passa este semestre). Lúcio Flávio informou que só poderá viajar aos Estados Unidos em abril.

Para que as pessoas interessadas em azucrinar o jornalista saibam a intensidade da frente fria que têm pela frente, foi-lhe dito que poderá vir quando quiser, inclusive no dia em que achar que sua segurança está ameaçada. [vi]

Ao contrário do que costuma fazer em episódios semelhantes, envolvendo agressão a jornalistas, no caso em questão a Associação Nacional de Jornais (ANJ), que representa o patronato da mídia impressa, silenciou por completo. Assim também procedeu a Unesco, agência das Nações Unidas voltada para a educação e cultura, e que junto com a ANJ instalou no Brasil a “Rede Em Defesa da Liberdade de Imprensa”.

O mutismo da entidade patronal foi questionado em reportagem de Bia Barbosa, publicada na revista eletrônica Carta Maior em 16 de maio de 2005:

Seria uma explicação para tal o fato de o jornal O Liberal, de Ronaldo Maiorana, ser filiado à Associação e também um dos que colaboram financeiramente para o programa da ANJ de Defesa da Liberdade de Imprensa? Se sim, mais um entrave para o bom funcionamento da Rede em Defesa da Liberdade de Imprensa que acaba de ser inaugurada. [vii]

Só em fevereiro de 2006 a ANJ decidiu se posicionar sobre o assunto. Utilizando-se de parecer de sua consultoria jurídica, reduziu o episódio envolvendo Lúcio Flávio e Ronaldo Maiorana a uma “rixa pessoal”, decidindo não tratá-la como um caso de desrespeito à liberdade de informação.[viii]

No âmbito internacional, a agressão foi formalmente condenada pelo Comitê de Proteção aos Jornalistas (CPJ) e grupo Repórteres Sem Fronteiras. Em outubro de 2005 Lúcio foi laureado com o Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa, da CPJ, ao lado de dois jornalistas, um da China e outro do Uzbequistão, e de uma advogada do Zimbábue, por terem enfrentado ameaças e punições em função do trabalho que desenvolvem. O falecido âncora norte-americano Peter Jennings também foi homenageado pela entidade.

A entrega dos prêmios aconteceu no mês de dezembro, em Nova York, mas Lúcio Flávio não pôde comparecer; afogado em processos judiciais, teve de ser representado na cerimônia pela filha, Juliana da Cunha Pinto.

O Jornal Pessoal e a experiência do I.F. Stone’s Weekly

O Jornal Pessoal foi criado com base em experiência similar, desenvolvida entre 1952 e 1971, nos Estados Unidos, pelo jornalista Isidore Feldenstein Stone. Também considerado um dos mais importantes profissionais de sua geração, Stone saiu do New York Times para fundar o I.F. Stone’s Weekly – inicialmente um pequeno semanário, depois quinzenário alternativo, cuja tiragem máxima atingiu 30 mil exemplares.

Vivendo em realidades tão distintas (Belém e Washington), Lúcio Flávio e Isidore Stone partiram da mesma - e incômoda - constatação para abrir o próprio jornal: eles não encontravam nas bancas aquelas que consideravam as notícias mais importantes do dia. “O grande elo entre os dois [Jornal Pessoal e I.F. Stone’s Weekly] está em demonstrar que a utopia é possível, se você está disposto a pagar o preço”, comenta Lúcio Flávio[ix].

Associar as experiências vividas por Lúcio Flávio e Isidore Stone é um desafio tanto pelas razões que moveram os dois jornalistas, como também pelas contradições evidentes em suas condições de trabalho. Enquanto Washington está no centro do poder político mundial, o que deu a Stone o melhor endereço para uma publicação empenhada em contrapor o discurso hegemônico norte-americano, Belém é apenas uma capital provinciana do Norte do Brasil, que funciona como intermediária das ordens despachadas da sede, dentro e fora do país. Como observa Lúcio,

(...) fazer o curso inverso do discurso dominante é terrível, quase impossível. Tentei dar voz aos colonizados amazônicos durante os anos (17) em que trabalhei em O Estado de S. Paulo. O resultado foi bom, mas foi se enfraquecendo com o tempo. A imprensa decidiu assumir completamente a função colonial diante da fronteira amazônica, favorecendo os interesses dos colonizadores. Por isso, deixei a grande imprensa em 1988.[x]

Quando Stone começou seu semanário, teve direito a tarifa postal especial (a diferença em relação à tarifa normal equivalia a seu salário) e acesso a fundos públicos e privados, que garantiam sua independência e a própria vida de seu jornal, ao longo de 19 anos. Isidore Feldenstein Stone morreu em 1989, ocasião em que foi reconhecido pelo New York Times como o mais importante jornalista de sua geração nos Estados Unidos.

A experiência do Stone’s Weekly acabou em 1971. A do Jornal Pessoal prossegue, sob ameaças, processos judiciais e tensão generalizada. Em artigo onde indaga se, de fato, existe liberdade de imprensa no Brasil, Lúcio Flávio informa:

Da volta à democracia até hoje, a partir de 1992, já fui processado 23 vezes na justiça e em três delas condenado (a execução da pena foi suspensa por recurso a instância superior). Dessas ações, 18 estão ativas. São 15 ações com base na famigerada Lei de Imprensa, escrita com a ponta de uma espada pelos militares, em 1967, e três ações cíveis, de indenização por dano moral e material. Todas as ações se referem a assuntos de interesse público. Metade das que tramitam no fórum de Belém dizem respeito à extração ilegal de madeira e grilagem de terras públicas no vale do Xingu, no centro do Pará. [xi]

Além do cenário em que surgiu e se firmou o JP, também é necessário entender as peculiaridades de seu formato editorial. O veículo não aceita publicidade; sua fonte de receita provém exclusivamente da venda em bancas. A esse respeito, comenta Lúcio Flávio:

Quando fiz o Jornal Pessoal já tinha experiências de jornais alternativos. [eram] duas diretrizes básicas. Tinha que fazê-lo sozinho como forma de sobrevivência e não queria publicidade. Amigos até ofereceram apoio, mas eu não quis. Não quero publicidade porque ela é corruptora e sedutora, embora eu saiba que sem publicidade não existe imprensa. A minha é pobre por opção e há quinze anos ela não tem e nem vai ter. Só sobrevive por teimosia, mas às vezes a gente precisa de teimosia. [xii]

A inexistência de espaço publicitário em suas páginas certamente coloca o Jornal Pessoal na condição de único órgão independente da imprensa nortista, hoje. Nacionalmente, até o presente momento não temos notícia de outro veículo com a mesma singularidade.

No Estado do Pará, o JP funciona como peça de resistência à limitada agenda de debates imposta pela grande imprensa local. Passado o período de redemocratização do País, a imprensa amazônica, de modo geral, continua recusando-se a aprofundar o debate em torno de questões vitais para a região – que vão desde agressões ao meio ambiente até as relações perigosas entre empresariado e crime organizado. A recusa a esses temas é freqüentemente associada a interesses privados dos grupos de comunicação.

Na avaliação de seu editor, o jornal resiste por pressão direta de seus leitores, em contraponto às variadas formas de pressão exercidas pelo meio político-empresarial local. Os leitores atuam, na acepção de John D.H. Downing, como “co-arquitetos da produção cultural” [xiii].

Lúcio edita e administra o JP. O apoio mais próximo vem de parentes – ele pertence a uma família de jornalistas. Para dar suporte a essa tarefa, mantém uma biblioteca de 25 mil volumes, além de milhares de documentos oficiais e uma hemeroteca que remonta à década de 20. “Todo papel que suspeito conter informação valiosa é guardado”, explica.[xiv]

As condições em que o Jornal Pessoal é produzido permitem situá-lo inicialmente na chamada imprensa independente, alternativa ou imprensa do leitor[xv]. Veículos dessa natureza prezam pelo descomprometimento de sua linha editorial, visando operar a revelia de pressões econômicas. Seu objetivo fundamental é defender os interesses do público ao qual se destinam.

Ao analisar as raízes da imprensa independente – chamada de alternativa principalmente nos anos 70 -, vimos que esta surgiu menos como resposta à chamada grande imprensa, e sim “para constituir instrumentos de expressão de grupos sociais que não têm voz nas grandes empresas de comunicação”. [xvi]

Muitos dos meios alternativos foram gestados dentro de um modelo destinado a contestar as estruturas ideológicas dominantes, o que nos remete à noção de contra-hegemonia que se popularizou entre os grupos influenciados pelo pensamento de Antonio Gramsci.

[Gramsci] esperava que os comunicadores intelectuais/ativistas se integrassem organicamente com as classes trabalhadoras para o desenvolvimento de uma ordem social justa e culturalmente superior, ao contrário dos intelectuais organicamente integrados com as classes dominantes, cujos esforços comunicativos fortaleceram a hegemonia do capital. [xvii]

No Brasil, ainda é escassa a literatura destinada a analisar os modelos de jornalismo independente, principalmente no período que sucedeu o fim dos governos militares, em 1985. Uma referência fundamental é a obra de Bernardo Kucinski, Jornalistas e revolucionários, que tem o mérito de abrigar o mais extenso estudo já feito sobre os cerca de 150 periódicos surgidos entre 1964 e 1980 com o objetivo de confrontar o regime. A obra permite contextualizar a fase mais laboriosa da imprensa alternativa no Brasil, aqui incluído o Bandeira 3, lançado por Lúcio Flávio Pinto em 1975.

Em contraste com a complacência da grande imprensa para com a ditadura militar, os jornais alternativos denunciavam sistematicamente as torturas e violações dos direitos humanos e faziam a crítica do modelo econômico. (...) Opunham-se por princípio ao discurso oficial.[xviii]

Em outro trabalho, A síndrome da antena parabólica, Bernardo Kucinski analisa a estrutura de mercado dos jornais brasileiros, vista pelo autor como “a imagem reflexa da estrutura da propriedade agrária, na qual, em cada macrorregião, poder e prestígio são disputados por (...) famílias já envoltas numa cultura de rivalidade e vendeta”[xix]. Kucinski nos ajuda a compreender as razões que levaram ao surgimento do Jornal Pessoal, ao constatar a ausência de pluralidade na cobertura de temas caros à elite dominante. Segundo ele, os jornais são conduzidos

(...) como uma grande propriedade familiar, na qual o gozo pelo exercício do poder é tão importante quanto o lucro capitalista. Mantêm-se os métodos, valores e mentalidades dos mandatários iniciais da colonização brasileira. Num sistema baseado na lealdade do jornalista aos proprietários e no poder discricionário desse proprietário, o favoritismo editorial e as preferências familiares prevalecem freqüentemente sobre o critério abstrato do interesse público, e até do interesse de classe.[xx]

O Jornal Pessoal é citado à página 197 da obra de Kucinski como exemplo de veículo independente surgido após o desaparecimento dos títulos alternativos que se disseminaram pelo País nos anos 70.

O cenário sócio-político em que apareceu o JP era, de fato, outro. O confronto já não se dava propriamente dentro de um regime, mas sim em um sistema midiático que, mesmo com o restabelecimento da democracia, viu na autocensura a chance de perpetuar suas alianças com o poder. Deste modo, o jornal de Lúcio Flávio Pinto busca impor-se como proponente de um modelo de jornalismo que, tendo por base a grande reportagem investigativa, encampa o direito dos cidadãos de se manterem bem informados. Sua iniciativa coincide com o aparecimento do chamado “jornalismo público” nos Estados Unidos, no final dos anos 80.

Nelson Traquina[xxi] chama atenção para esse movimento classificado por diferentes nomes – jornalismo público, comunitário, de serviço público e cívico – este, o termo usado preferencialmente pelo autor. Esse movimento resultou de mais de um século de observação crítica da mídia, gerando munição suficiente para que os jornalistas desafiassem o status quo. O estopim foi a frustração com a cobertura da campanha presidencial de 1988. Seus fundadores, entre eles o jornalista David Merrit, apontam para a crise que afeta o jornalismo, bem como a democracia. Merrit propõe um novo sentido à “nossa profissão demolida e errante”, dando aos cidadãos a possibilidade de que a vida pública também possa ser reanimada:

Numa sociedade de indivíduos dispersos e abarrotados com informação descontextualizada, uma vida pública efetiva precisa ter uma informação relevante que é partilhada por todos, e um lugar para discutir as suas implicações. Somente jornalistas livres e independentes podem – mas habitualmente não conseguem – providenciar essas coisas. Do mesmo modo, a vida pública efetiva requer a atenção e o envolvimento dos cidadãos, que só eles podem providenciar.[xxii]

Contextualizar a informação parece ser uma das preocupações vitais de Lúcio Flávio Pinto em seu jornal, marcado pela predominância do tom editorializado na produção das reportagens e artigos. Como lembra Chaparro, a natureza do jornalismo guarda propriedades ao mesmo tempo informativas e opinativas:

A apuração e a depuração, indispensáveis ao bom relato, são intervenções valorativas, intencionadas por pressupostos, juízos, interesses e pontos de vista estabelecidos. Como noticiar ou deixar de noticiar algum facto sem a compreensão opinativa? Por outro lado, o comentário – explicativo ou crítico – será ineficaz se não partir de factos e dados confiáveis, rigorosamente apurados.[xxiii]

Considerações finais

Durante passagem pelo Brasil, em setembro de 2003, o pesquisador britânico John D.H. Downing manifestou preocupação com a profusão de pesquisas em comunicação voltadas aos meios hegemônicos, em detrimento das formas alternativas de expressão. Quis chamar atenção para as iniciativas que, no âmbito da mídia, expressam “uma visão alternativa às políticas, prioridades e perspectivas hegemônicas”.[xxiv]

O autor de Mídia radical é especialmente preocupado com veículos alternativos de toda ordem, aqui incluídos os jornais impressos, que são produzidos com poucos recursos e algumas vezes têm pouco reconhecimento da comunidade: “(...) de tempo em tempo [esses veículos] tornam-se alvo da raiva, do medo ou do ridículo de alguma autoridade, ou mesmo do público em geral, ou ambos. Às vezes têm vida curta, como uma espécie de epifenômeno; outras, perduram por muitas décadas (...)”[xxv].

Este trabalho, cujo objetivo principal é a compreensão do tipo de jornalismo produzido na Amazônia brasileira e das relações que o determinam, nasceu da constatação que de ainda são limitadas as contribuições dos programas de pós-graduação em comunicação com foco voltado para o agendamento proposto pela grande imprensa regional (Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins).

O direito à liberdade de imprensa é a justificativa central deste trabalho. Divulgar, no âmbito das pesquisas acadêmicas, iniciativas que associem a prática jornalística e o acesso pleno à informação contribuirá, em nosso modo de ver, para a não proliferação da “cultura do silêncio” de que falava Paulo Freire.

Passado pouco mais de um ano da agressão cometida por Ronaldo Maiorana, Lúcio Flávio Pinto contabiliza 15 ações judiciais em curso contra o Jornal Pessoal – 13 da família Maiorana, uma do desembargador aposentado João Alberto Paiva e outra do empreiteiro Cecílio Rêgo de Almeida. Como observou o jornalista nas páginas de seu alternativo, “o preço que se paga numa perseguição movida por poderosos é muito alto, quando se é vítima. Mas o preço maior é debitado à conta de uma sociedade que se omite em relação às causas desse mal (...)” [xxvi].

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[i] PINTO, Lúcio Flávio. “Debutante”. Jornal Pessoal, Belém, nº 291, p.12, set. 2002.

[ii] Detalhes da agressão, relatada por Lúcio Flávio, podem ser conferidos na nota de esclarecimento ao público distribuída pelo editor do Jornal Pessoal e disponível em .

[iii] _________________. “O rei da quitanda”. Jornal Pessoal, Belém, nº 337, jan 2005. Disponível em . Acesso em 1o fev 2005.

[iv] Idem.

[v] “Dono de jornal se explica”. Disponível em . Acesso em 24 jan 2005.

[vi] GASPARI, Elio. “O jornal Pessoal vai a Harvard”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 6 fev 2005, caderno Brasil. Disponível . Acesso em 6 fev 2005.

[vii] In PINTO, Lúcio Flávio. “ANJ: a liberdade do dono de jornal”. Disponível em . Acesso em 28 fev 2005.

[viii] Parecer disponível em . Acesso em 12 de março de 2006.

[ix] Entrevista concedida por e-mail, à autora, em 05/05/2004.

[x] Entrevista ao boletim eletrônico do Instituto Gutenberg. Edição de out-set. de 2000. Disponível em . Acesso em 12 de jan. de 2003.

[xi] PINTO, Lúcio Flávio. “Há mesmo liberdade de imprensa no Brasil?”. Mensagem enviada por correio eletrônico em 8 maio 2005.

[xii] Entrevista a Maracimoni de Oliveira e Junior Nery em jun. de 2002. Disponível em . Acesso em 04 mar. 2003.

[xiii] DOWNING, John D.H. Mídia radical: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. São Paulo: Editora Senac, 2002. p.33.

[xiv] VELOSO, Maria do Socorro. “Um jornalista como poucos”. Diário do Povo, Campinas ( SP), 5 set 1998, p. 2.

[xv] BARBOSA, Gustavo G.; RABAÇA, Carlos A . Dicionário de comunicação. 2a ed. Rio de Janeiro: Campus, 2001. p. 379

[xvi] Ibid, 2001, p.380

[xvii] DOWNING, 2002, p.48

[xviii] KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Scritta, 1991. p.XIII.

[xix] KUCINSKI, Bernardo. A síndrome da antena parabólica: Ética no jornalismo brasileiro. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 1998. p. 25.

[xx] Ibid, 199, p. 26.

[xxi] TRAQUINA, Nelson. O estudo do jornalismo no século XX. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2001. p.171.

[xxii] MERRIT Jr, Davis B. Public journalism and public life: why telling the news is not enough. Hillsdale, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 1995. Apud TRAQUINA, 2001, p. 177.

[xxiii] CHAPARRO, Manuel C. Sotaques d’aquém e d’além mar: Percursos e gêneros do jornalismo português e brasileiro. Santarém, Portugal: Jortejo Edtora, 1998. p.101.

[xxiv] ASSIS, Diego. “Acadêmico analisa mídia de olho na rua”. Brasil Online, 6 set 2003. Disponível em . Acesso em 10 set 2003.

[xxv] DOWNING, 2002, p. 29

[xxvi] PINTO, Lúcio Flávio. “Causa justa”. Jornal Pessoal: Belém, nº 344, p.1-6, abril 2005.

Referências :

ASSIS, Diego. “Acadêmico analisa mídia de olho na rua”. Brasil Online, 6 set 2003. Disponível em . Acesso em 10 set 2003.

BARBOSA, Gustavo G.; RABAÇA, Carlos A . Dicionário de comunicação. 2a ed. Rio de Janeiro: Campus, 2001.

CHAPARRO, Manuel Carlos. Sotaques d’aquém e d’além mar – Percursos e gêneros do jornalismo português e brasileiro. Santarém, Portugal: Jortejo Editora, 1998.

DANTAS, Audálio (org.). Repórteres. São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 1998.

DOWNING, John D.H. Mídia radical – Rebeldia nas comunicações e movimentos sociais.

São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2002.

GASPARI, Elio. “O jornal Pessoal vai a Harvard”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 6 fev 2005, caderno Brasil. Disponível em . Acesso em 6 fev. 2005.

JORNAL PESSOAL. Edições nº 291 (set 2002), 337 (jan 2005), 344 (abril 2005).

KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Scritta, 1991.

__________________. A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002.

NOBLAT, Ricardo. “Dono de jornal se explica”. Disponível em . Acesso em 24 jan. 2005.

TRAQUINA, Nelson. O estudo do jornalismo no século XX. São Leopoldo (RS), Ed. Unisinos, 2001.

VELOSO, Maria do Socorro. “Um jornalista como poucos”. Diário do Povo, Campinas (SP), 5 set 1998, 1o caderno, p. 2.

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