Como se convence os leitores de que eles necessitam da ...



O JORNALISTA E CRONISTA NELSON RODRIGUES[1]

Marcos Francisco Pedrosa Sá Freire de Souza

Doutorando de Ciência da Literatura da UFRJ

Como convencer leitores, e leitores de jornal, de que eles precisam de forma imperiosa da imaginação? Se é verdade que a narrativa é “trans-histórica, transcultural” e “está presente, como a vida”, como diz Barthes (2001: 104), há, porém, o detalhe: como convencer esses leitores de que essa narrativa merece ser conhecida e vivenciada como algo exacerbado como só se encontra em certos nichos literários? Como, então, persuadir o leitor de textos jornalísticos a se filiar ao texto do “escritor” em vez de ao texto do “escrevente”? A distinção é feita por Sartre (1994) retomando observações de Barthes (1999). Para o filósofo, o “escrevente se serve da linguagem para transmitir informação”, enquanto o escritor “é o guardião da linguagem comum, mas ele vai mais longe, e seu material é a linguagem como não-significante ou como desinformação; é um artesão que produz um certo objeto verbal através de um trabalho sobre a materialidade das palavras, tomando como meio as significações e como fim o não-significante”. O que leva o filósofo a concluir que é por isso que se diz com freqüência: “É literatura”, com o intuito de se observar que alguém “fala para não dizer nada” (cf. 1994: 59).

Era esse o desafio que Nelson Rodrigues tinha pela frente: fazer essa literatura, de que fala Sartre, nos jornais. E talvez esse desafio não tenha nem se colocado como uma questão a priori. Talvez tenha nascido de uma contingência. Qualquer um minimamente familiarizado com os escritos do cronista sabe como ele festejava os excessos do jornalismo do começo do século que vivia então sua liberdade literária. E de fato, se nos debruçarmos sobre a pesquisa recentemente concluída de Coelho (2000) que, a partir de um levantamento feito junto a Biblioteca Nacional e a O Globo, procede a um apanhado de 640 textos (alguns deles não assinados) de períodos menos conhecidos da carreira jornalística de Nelson Rodrigues (publicados em A Manhã, Crítica e O Globo entre 1925 e 1936), reconheceremos que havia uma liberdade para o jornalista cruzar as fronteiras entre o fato e a ficção. Vejamos um trecho de uma reportagem que consta da edição do dia 1o. de maio de 1928 à página 7 de A Manhã, jornal de propriedade de Mário Rodrigues (pai de Nelson Rodrigues), sob o título Um Açougueiro Sentimental – Agredido a Faca Quando Recitava Baudelaire que o pesquisador acredita de autoria do jornalista:

O Manoel estava, ontem, sacudido de exaltações frenéticas (...). Embora fosse açougueiro, isso não o impedia de ser um sentimental, um romântico, um artista (...).

O homem foi para o Mangue. Ali chegando, começou a enviar a toda figura feminina que lhe passava ao lado ou à frente um exame meticuloso e penetrante. Chegava ao mais aceso da pesquisa, quando apareceu a figura adequada. Então, Manoel, garboso, elegante, ativo, mostrando a alvura cintilante dos dentes, recitou ao anjo de ternura uma multidão de versos Fleur du Mal" de Baudelaire.

A doce figurinha, que era uma mulata reforçada, dispôs-se a ficar melancólica. Quando, porém, já ia suspirar e fitar o ocaso, apareceu-lhe o "coronel", temível capoeira. O homenzinho apareceu no momento em que Manoel gemia Baudelaire. Vendo o sedutor da pequena, ele se encheu de ira. Ficou terrível. E não conversou... Puxou de uma faca e feriu, no peito, o sentimental açougueiro. Ato contínuo evadiu-se.

Reclamada a assistência, esta socorreu a vítima que é Manoel Ferreira da Silva, português, residente na praça da Igrejinha. O palco do drama foi a rua General Pedra, esquina do Carmo Netto (A Manhã, 1928, apud Coelho, 2000).

Em suas crônicas o próprio Nelson Rodrigues mencionaria narrativas semelhantes publicadas segundo ele no espírito do jornalismo do começo do século – jornalismo esse que viria a ser suplantado de forma decisiva nas décadas de 50 e 60 pelo tom objetivo da imprensa de inspiração norte-americana, que passaria a marcar o espírito editorial dos jornais de então a partir das renovações iniciadas no Diário Carioca por Danton Jobim, Pompeu de Souza e Luís Paulistano (cf. Sodré, 1998). Estas inovações trariam mudanças às práticas jornalísticas, sendo as mais evidentes o emprego da técnica do lead e a presença do copydesk (Castro, 1993). Dentro de seus textos, que apareceriam na imprensa nas décadas subseqüentes, Nelson Rodrigues se manteria apegado e fazendo valer sua escola jornalística.

Nos textos ficcionais que escreveria para a grande imprensa, faria a fantasia ser freqüentemente assaltada pela realidade ao inserir elementos da vida real em sua ficção. No que diz respeito às crônicas, o cultivo da imaginação buscava suas motivações na realidade e em seguida o autor projetava tais fatos para o espaço ficcional. Um dos traços marcantes da obra de Nelson Rodrigues enquanto jornalista e cronista é essa intenção de lançar a realidade para o espaço do imaginário e buscar a imbricação de ambos. Sempre cobrando do leitor uma certa cumplicidade, o escritor o levava a refletir sobre suas experiências no domínio da vida social de um ponto de vista novo e inusitado. É a partir, portanto, desta constatação que se discute neste ensaio qual o ideário cultural que emerge da militância de Nelson Rodrigues por esse jornalismo inventivo. Falar-se-á principalmente das crônicas e dos textos perpetrados pelo escritor para serem veiculados na imprensa.

Antes de prosseguir, no entanto, faz-se necessário comentar o inventário dos escritos do autor. As informações apresentadas pelo livro biográfico de Ruy Castro (1992) foram de início muito importante pelo número de dados novos que trouxeram à tona e que abriram caminho para a corrida aos escritos esquecidos do autor. As posteriores compilações que Castro já organizou e que continua organizando e editando sob chancela da Companhia das Letras (onze volumes de escritos com a assinatura do autor, uma seleção de máximas rodrigueanas e dois livros sob o pseudônimo de Suzana Flag) têm ajudado também a identificar e por em ordem a produção para jornal do escritor (já que como dramaturgo, Rodrigues está muito bem apresentado pela reunião feita por Sábato Magaldi de suas 17 peças editadas em quatro volumes com o título geral de Teatro Completo de Nelson Rodrigues). Mas uma avaliação mais abrangente e completa dos textos de Nelson Rodrigues veiculados na imprensa ainda está longe de ser concluída, e vai, ao que tudo indica, sempre e inevitavelmente deixar lacunas, dado ao volume de escritos que produziu.

Comecemos por comentar o material que permanece inédito. Os escritos que trazem a rubrica do autor podem ser localizados a partir de 1928 quando Nelson Rodrigues tinha ainda, e para grande surpresa, 16 anos incompletos. Nelson consegue em A Manhã (o primeiro jornal para o qual escreveu) ir além da editoria de polícia, onde vinha trabalhando como repórter desde 1925 (desde os 13 anos, portanto), e passa a marcar presença na página 3 reservada aos textos assinados. Castro (1992) menciona nove artigos assinados e publicados nesta seção tendo início no dia 7 de fevereiro de 1928 e se encerrando no dia 13 de setembro deste mesmo ano. Coelho (2000) acresce outros sete artigos não identificados e nem comentados por Castro. Castro se engana ainda com a data do artigo intitulado Gritos Bárbaros, que aponta como constante da edição do dia 14 de fevereiro de 1928, quando na verdade, e como registra Coelho, ele aparece na edição do dia 15 de fevereiro.

É desta época, em A Manhã, a famosa crônica que se estenderia por duas edições e em que Rodrigues, do alto dos seus 16 anos, dizia querer provar que Rui Barbosa não é um gênio. Essas primeiras observações críticas já trazem a marca da irreverência rodrigueana e sua argumentação até que é bastante convincente. Dizia o pequeno jornalista, com convicção e verve surpreendente, que Rui Barbosa é “grande orador, cultura formidável, inteligência estupenda ... Mas, gênio não” . E na semana seguinte continuava:

Por que Rui Barbosa não é um gênio?

Depois de muito meditar, sempre digo: Ruy não é um gênio porque nada criou, porque não deixou obras. Todos os gênios criaram e deixaram farto legado. Assim aconteceu com Milton, Byron, Dante, Homero e outros.

Rui nada deixou.(...)

Leitor: o único gênio do Brasil foi Euclides da Cunha. Esse sim, esse deixou uma obra verdadeira. Nos Sertões ele criou. Nesse volume admirável enfrentou problemas, discutiu fatos, confrontou e descreveu figuras, previu, pintou com cores fartas e sinceras os cenários deslumbrantes e desoladores de nossa flora, traçou em linhas precisas e fiéis a psicologia do brasileiro (A Manhã, 1928, apud Coelho, 2000).

Dos textos de Crítica, Castro não menciona nenhum em específico (embora informe que Nelson Rodrigues tenha trabalhado como repórter no jornal), mas Coelho (2000) registra um total de nove artigos assinados (e sugere uns outros tantos sem assinatura) entre novembro de 1928 e outubro de 1930. Quando Crítica foi empastelado com a Revolução de 1930, Rodrigues, com o pai morto, se transferiu com seus irmãos para O Globo. Dos textos escritos em O Globo a partir de 1931, Coelho (2000) apurou várias colaborações para a seção O Globo nas Letras (escritos aos quais Castro não faz alusão direta, embora registre que Rodrigues resenhasse livros esporadicamente). Apesar de Nelson Rodrigues se proclamar monoglota e ser apresentado por seus biógrafos como tal, em um de seus artigos para O Globo nas Letras, em 1932, ele comenta a tradução para The Ballad of Reading Gaol, de Oscar Wilde. É admirável que uma resenha literária, se mostre tão literária, farta em impressões e sugestões poéticas:

Nada perdeu a “Balada do Cárcere de Reading”, de Oscar Wilde, na tradução de Godin da Fonseca. Relendo-a não sei porque me veio ao espírito a imagem de um violino em transe. Ignoro se me expressarei bem. Mas, logo depois de iniciado o poema, não nos parece ver e ouvir os arquejos, os relâmpagos, as arestas vermelhas, os reptos bruscos, as rajadas de insânia, o formidável e glorioso desespero do divino histérico que é o violino? (...) Wilde surge, para o nosso assombro, exalçado, sublimado pela dor (O Globo, 1932, apud Coelho, 2000).

No jornal de Roberto Marinho (então uma publicação vespertina, como a maioria dos diários da época), Castro (1992) menciona reportagens corriqueiras feitas por Rodrigues para a seção de esportes do jornal (trabalho que o dramaturgo odiava) e críticas preparadas para a seção O Globo na Arte Lírica, para onde Rodrigues escreveu artigos esporádicos entre 1937 e 1943. Nelson Rodrigues viria a colaborar também com o Jornal dos Sports, que a partir de 1936 começava a ser capitaneado por seu irmão Mário Filho. A maioria dos textos do Jornal dos Sports continua confinada aos arquivos do jornal, embora Marques (2000) tenha feito, para sua dissertação de mestrado, um levantamento de 170 destas crônicas (no período que vai de 1958 até 1966; todas inéditas em livro). No Jornal dos Sports, Rodrigues estreou nos anos 50, e já conhecido como autor teatral e jornalista, a coluna Nelson Rodrigues dá Bom Dia e, posteriormente, nos anos 60, Futebol e Gente (cf. Marques, 2000). Castro (1992) menciona ainda as crônicas esportivas escritas por Nelson Rodrigues para o jornal Última Hora na década de 50, textos estes que nunca foram recenseados e nem comentados por ninguém.

Do material escrito para jornal por Rodrigues, a partir de meados da década de 40, uma amostra significativa pode ser conhecida em livro. Na metade dos anos 40, Nelson Rodrigues passa a trabalhar com Freddy Chateaubriand nos Diários Associados e na década de 50 com Samuel Wainer no Última Hora. É aqui que entram de início os folhetins sob o pseudônimo de Suzana Flag e Myrna. Primeiro Meu Destino é Pecar, depois Escravas do Amor, Minha Vida e Núpcias de Fogo todos publicados em O Jornal sob o pseudônimo de Suzana Flag. Como Myrna, temos o folhetim A Mulher que Amou Demais e a coluna Myrna Escreve (cf. Castro, 1992). Destes escritos, Meu Destino é Pecar e Minha Vida foram editados originalmente pela Empresa Gráfica Cruzeiro em 1944 e 1946, e o primeiro deles foi recentemente relançado pela Ediouro Publicações em 1998. Escravas do Amor e Núpcias de Fogo tiveram lançamento pela Companhia das Letras em 1997 e 2001, respectivamente, com organização de Ruy Castro a partir de pesquisa feita nas edições de O Jornal.

Com Samuel Wainer, Rodrigues produziu sob sua própria rubrica os contos de A Vida como Ela é..., que estrearam com o jornal em 1951 e se estenderam por dez anos. Escreveu também os romances A Mentira (veiculado de forma seriada no semanário Flan em meados dos anos 50) e Asfalto Selvagem (vendido como folhetim impresso nas páginas do Última Hora no final dos anos 50), e trouxe de volta Suzana Flag com O homem proibido e o correio sentimental Sua Lágrima de Amor (cf. Castro, 1992). A Companhia das Letras, mais uma vez sob orientação de Ruy Castro, editou em livro alguns destes textos. Lançou A vida como ela é ... – O homem infiel e outros contos (1999) e A coroa de orquídeas (1999) que reúnem 95 histórias dentre as duas mil escritas enquanto trabalhou no Última Hora. Foi editado da mesma forma o folhetim Asfalto selvagem (1995), como um romance. A série da Companhia das Letras segue ainda com novos lançamentos a partir do trabalho do pesquisador Caco Coelho com a edição do romance A Mentira (2002) e do consultório sentimental de Myrna em Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo (2002).

É importante assinalar que nos sebos de livro é possível encontrar edições antigas da editora Nova Fronteira para Asfalto selvagem (lançado em dois volumes em 1980) e O homem proibido (distribuído em 1981). E ainda o lançamento de seleções da coluna A vida como ela é... em edição de dois tomos pela J. Ozon Editor com data de 1961 (com mais de vinte histórias que não aparecem nas duas compilações feitas por Castro).

No que diz respeito às crônicas esportivas, temos os textos de Manchete Esportiva. A coleção da Biblioteca Nacional conta 191 edições desta revista semanal (que se iniciou em novembro de 1955 e se encerrou em setembro de 1959). De início a coluna aparece só com uma caricatura e a identificação do cronista, mas a partir de 1957 recebe o título de Meu Personagem da Semana. Uma vez que o cronista era colaborador assíduo da publicação, é de se supor que 191 também seja o total de colunas escritas por ele (ou um número próximo a esse em caso de sua ausência de alguma das edições; os exemplares pertencentes ao acervo da Biblioteca Nacional correspondentes aos primeiros números de Manchete Esportiva, e que aguardam processo de microfilmagem, estão em estado tão precário que não podem sequer ser consultados). Desse somatório, 57 escritos aparecem nos livros À sombra das chuteiras imortais (Rodrigues, 1994) e A pátria em chuteiras (Rodrigues, 1996). Menos, portanto, que um terço do total de colunas perpetradas pelo escritor para este veículo.

Temos também as colaborações para O Globo com a coluna À sombra das chuteiras imortais, que começou a ser publicada em 1962 e se prolongou pelos anos 70. Há duas seleções destes escritos nas já referidas compilações À sombra das chuteiras imortais (1994) e A pátria em chuteiras (1996) que, além dos textos de Manchete Esportiva, trazem algumas das crônicas de O Globo, publicadas entre os dias 5 de junho de 1962 e 22 de junho de 1970.

Além das colaborações para Manchete Esportiva e O Globo, essas duas coletâneas apresentam escritos para as revistas Fatos e Fotos, Manchete e Realidade, o que mostra que Nelson Rodrigues também fazia colaborações esporádicas para outros periódicos impressos (não há, mais uma vez, o levantamento sobre a extensão destas colaborações). Marques (2000) lembra ainda as contribuições para O Cruzeiro e O Globo Esportivo.

Paralelo as crônicas esportivas, surgem no final da década de 1950 e no começo dos anos 1960, os escritos esparsos para o semanário Brasil em Marcha, para as revistas Manchete e O Cruzeiro. Na segunda metade dos anos 1960 tem-se ainda a passagem de Nelson Rodrigues pelo jornal Correio da Manhã. Neste último jornal Nelson foi incumbido de escrever suas memórias, que iniciou em 18 de fevereiro de 1967 e interrompeu na octogésima coluna, em 31 de maio deste mesmo ano, por desentendimentos no que diz respeito à remuneração (Castro, 1997). Essas oitenta colunas estão em A menina sem estrela – Memórias (1997). As narrativas memorialistas foram posteriormente reiniciadas em O Globo como as Confissões (cf. Castro 1992). O grosso destas confissões, que se estenderiam pela segunda metade da década de 1960 e pela década de 1970, aparecem em O Reacionário (1995), O óbvio ululante (2000), A cabra vadia (1997) e O remador de Ben-Hur (1996).

Toda essa trajetória significou a produção de uma quantidade impressionante de textos. Por isso mesmo, Nelson Rodrigues talvez seja um dos autores mais prolíficos de nossas letras. Os livros mencionados acima e editados recentemente (quatro deles - A menina sem estrela - Memórias, O Reacionário, O óbvio ululante e A cabra vadia - como reedição reordenada de antigos lançamentos) compilam com mais generosidade os textos do escritor como jornalista, mas mesmo assim, e certamente por força editorial, dispõem os escritos com omissões. Mas a conclusão final é a de que talvez o mercado editorial não tenha mesmo fôlego suficiente para esgotar um autor tão prolífero.

Voltemos a nossa análise. E recorramos a Sartre, mais uma vez, para seguirmos nela. Nos diz o filósofo que:

Se a obra de arte tem todas as características de um universal singular, tudo se passa como se o autor tivesse tomado como meio o paradoxo de sua condição humana, e como fim, a objetivação no meio do mundo dessa mesma condição num objeto. Assim, a beleza, hoje em dia, nada mais é que a condição humana, apresentada não como uma facticidade, mas como produto de uma liberdade criadora (a do autor). E, na medida em que essa liberdade criadora visa a comunicação, ela se dirige a liberdade criadora do leitor e incita-o a recompor a obra pela leitura (que é ela também, criação) – em suma, a tomar livremente seu próprio ser-no-mundo como se fosse um produto de sua liberdade.(...).” (1994: 65; grifos do autor)

Um dos traços da obra de Nelson Rodrigues em seus textos preparados para jornal (comentamos aqui os textos editados em livro e assinados como Nelson Rodrigues; ficam excluídos assim os textos inéditos e os escritos sob pseudônimo) é a intenção, como afirmamos no começo deste ensaio, de aniquilamento dos limites entre o real e o ficcional. Tal iniciativa parece ter como objetivo incitar o leitor a viver a liberdade criadora de que fala Sartre.

Se lançarmos os olhos sobre o folhetim Asfalto selvagem (1995), os contos de A vida como ela é ... (1999) e A coroa de orquídeas (1999) e as crônicas, esse aspecto pode ser percebido claramente. Em Asfalto selvagem, Nelson fez entrar em sua trama seus companheiros de redação, bem como personalidades da vida cultural brasileira como Guimarães Rosa, José Carlos de Oliveira, Wilson Figueiredo, Tristão de Athayde, ou mesmo Eduardo Portella, um jovem crítico literário então. Além disso trouxe referências culturais da época para a ficção como a menção recorrente ao filme Les Amants de Louis Malle (a película predileta de um dos protagonistas) e as movimentações políticas com a eleição de Jânio Quadros. Havia portanto a mistura de realidade e ficção: artifício que seria usado também, ainda que de forma discreta e intermitentemente, nos contos de A vida como ela é....

No que tange às crônicas, pouco importava o campo de atuação de Nelson Rodrigues, fosse ele o das crônicas esportivas (como as que apareceram em periódicos como Manchete Esportiva, O Globo ou no Jornal dos Sports), ou das crônicas de tom memorialista-confessional que se iniciariam com artigos esporádicos publicados em Brasil em Marcha, Manchete, O Cruzeiro e O Globo e que disfarçadas de memórias migrariam posteriormente para o Correio da Manhã (como as Memórias) e O Globo (como as Confissões), o escritor estava sempre transitando no ambiente limítrofe entre a realidade e a ficção com a intenção de levar o leitor a viver uma redescoberta da vida cotidiana.

Falemos primeiramente das crônicas esportivas e dos temas eleitos pelo escritor para tratar nesses escritos. Apesar de terem o futebol como motivação, tais escritos não se limitavam jamais à dimensão factual do esporte. E não se diferenciavam nem mesmo das outras crônicas comportamentais rodrigueanas no que tange à busca de vislumbrar algo de transcendente no que é cotidiano. Em um texto de Manchete Esportiva, por exemplo, um acontecimento extra-campo levava o escritor a divagar sobre o suicídio. Isso aconteceu quando da morte de Maneco, um esquecido jogador do América que diante do declínio profissional e de uma dívida insolúvel se matou ingerindo formicida. O cronista tomou um ato que ainda hoje é condenado como uma decisão sublime. Escreveu ele à época:

Cada um de nós é um suicida frustrado. E se ainda não estouramos os miolos, ou não pendemos de uma forca, ou não tomamos formicida, é que nos salva, sempre em cima da hora, a nossa incoercível pusilanimidade vital. Mas se cancelamos o nosso suicídio, admiramos e, mais do que isso, invejamos o alheio (1996: 21).

Não havia ainda uma distância grande entre o espírito que orientava a preparação das crônicas esportivas e as outras crônicas memorialistas e confessionais de Rodrigues. E existem mesmo crônicas esportivas que se iniciavam com o tom das crônicas memorialistas e confessionais.

Amigos, ao contrário do que se pensa, o Brasil nem sempre foi um país tropical. No tempo de Machado de Assis, ou de Epitácio Pessoa, ou de Paulo de Frontin, o sujeito andava de fraque, colete, colarinho duro, polainas, o diabo. As santas e abomináveis senhoras da época se cobriam até o pescoço. Em suma:-o brasileiro vestia-se como se isto aqui fosse a Sibéria, o Alasca, sei lá (1994: 117).

Poderiam iniciar-se também com uma de suas máximas famosas: “Amigos, eu aprendi que o ridículo é uma virtude e não um defeito, quando verifiquei o seguinte: - não há canalha ridículo (1996: 86).

Das crônicas esportivas para as crônicas memorialistas e confessionais, portanto, mudaram apenas os motivos originais e os protagonistas, o estilo dos escritos continuou o mesmo. Sobretudo porque as tão faladas metáforas criadas pelo autor permeavam de maneira obsessiva os seus textos jornalísticos em geral. A já citada dissertação de Marques (2000) e também a de Cruz (1997), ambas amparadas no livro de Meyer (1996), dão conta destes aspectos e das proximidades dessas crônicas da narrativa folhetinesca.

O que norteava os textos de Nelson Rodrigues parece ser a busca por expressar um pensamento livre. E por serem tão livres seus escritos escaparam à praga xenofóbica do nacionalismo barato e não se filiaram explicitamente a nenhuma corrente política, o que custou caro ao escritor. Aqui entra o maior debate travado por Nelson Rodrigues com a intelectualidade brasileira durante os anos 1960. O escritor foi ferrenho opositor da esquerda, apesar de conviver diariamente com eminentes representantes dela. A época era de atitudes extremadas e Rodrigues não cansava de se auto-proclamar um anticomunista nato. A esquerda brasileira o tachou de reacionário e ele assumiu o “personagem”.

As crônicas memorialistas e confessionais foram o espaço para Nelson discutir sua opção política, e ainda para falar sobre teatro, cinema, música, televisão e comportamento. Havia nelas, é bom destacar, uma aresta política mais evidente. Falamos tendo como base os textos que aparecem nas novas edições de: O Reacionário (1991), O óbvio ululante (1993), A cabra vadia (1995), e no até o seu lançamento inédito, O remador de Ben-Hur (1995), mencionadas anteriormente. Foi através desses textos que Rodrigues expôs abertamente suas convicções pessoais e martelou suas opiniões. O escritor parecia propenso a uma prática política no estilo da preconizada por Said (1994). Ao tentar definir, como palestrante do ciclo de conferências de Reith de 1993, a atuação dos intelectuais, disse o professor da Universidade de Columbia nos Estados Unidos:

Todo intelectual tem uma audiência e as pessoas para quem fala. A questão é saber se este público está ali para ser satisfeito, e consequentemente como um cliente a ser entretido, ou se ele está ali para ser desafiado, e por conseguinte provocado para a oposição completa ou mobilizado para uma grande participação democrática na sociedade (1994: 83; nossa tradução).

Apesar de poder ser questionada se a época era pertinente aos ataques e divisões propostos por Rodrigues, o fato é que ele preferiu se prender à liberdade de poder manifestar suas opiniões e afirmar tudo em que acreditava a contemporizar. Nelson Rodrigues passava a viver então sua vida em pólos extremos o que o faria transitar por ambientes antagônicos. Conviveu e viajou de avião com um símbolo da ditadura como o presidente Garrastazu Médice (cf. Rodrigues, 1995) e se encontrou com o filho guerrilheiro (Nelson Rodrigues Filho) na clandestinidade, em “escapulidas cinematográficas” (cf. Castro, 1992). Biógrafos como Castro mantêm o álibi de que Nelson desconhecia as torturas do governo militar e que ele realmente só veio a tomar ciência de perto do lado mais cruel da ditadura quando encontrou o próprio filho preso (cf. Castro, 1992).

É bom lembrar ainda que Nelson Rodrigues ajudou, ao mesmo tempo, e em negociação com os militares que conhecia, intelectuais próximos como Zuenir Ventura e Hélio Pellegrino, a serem liberados pelas forças da repressão (cf. Castro, 1992). Anteriormente a esses episódios, no entanto, Nelson Rodrigues já vinha se desentendendo com um número significativo de intelectuais de esquerda e até mesmo com os próprios amigos. Isso ocorria porque levava até o fim suas posições por mais desagradáveis que fossem e independente do número de desafetos que trouxessem. Em suas crônicas persistia incisivo com a esquerda mais radical para defender a liberdade de expressão como o fez se colocando ao lado de Caetano Veloso, vaiado em um Festival da Canção.

Mas vejamos o sr. Caetano Veloso. A vaia selvagem com que o receberam já me deu uma certa náusea de ser brasileiro. Dirão os idiotas da objetividade que ele estava de salto alto, plumas, peruca, batom etc. etc. Era um artista. De peruca ou não, era um artista. De plumas, mas artista. De salto alto, mas artista. E foi uma monstruosa vaia. A menina, já citada, batia com os saltos dos sapatos, em delírio. Mas era um concorrente que vinha, ali, cantar; simplesmente cantar. Mas os jovens centauros não deixaram. Na minha casa, lembrei-me de uma velha solenidade nazista – a queima de livros (1995: 242-243).

Em uma outra de suas facetas, o escritor, apesar de não ter se posicionado contra o regime militar, soube exibir sutileza suprema ao atacar os atos casuísticos da ditadura que se instalou no Brasil em 1964. Como bem destaca Ruy Castro na apresentação de A Menina sem Estrela - Memórias (1997), na crônica que abre os seus escritos memorialistas para o jornal Correio da Manhã o dramaturgo ataca com refinamento estilístico os arbítrios do governo ditatorial. No texto o cronista-memorialista se vê perseguido no centro do Rio de Janeiro pela voz de um vendedor ambulante que anuncia seu produto: a “Nova Prostituição do Brasil”. Rodrigues estava, portanto, em uma cruzada solitária, e vivendo a contradição de discordar de tudo e de todos e de ao mesmo tempo querer se aproximar dessas mesmas pessoas. Fez por diversas vezes pouco caso da Passeata dos Cem Mil, mas se desmanchou em admirações pelas qualidades de um dos seus líderes e símbolo maior: Vladimir Palmeira.

Um último ponto que gostaríamos de abordar diz respeito a inserção da obra jornalística de Nelson Rodrigues no cenário das pesquisas em literatura comparada. Esse aspecto pode ser tratado a partir das formulações teóricas de Said que afirma:

(...) nunca estivemos tão conscientes como estamos agora de como as experiências culturais e históricas são estranhamente híbridas, de como elas compartilham de muitos e contraditórios domínios e experiências, como cruzam fronteiras nacionais, como desafiam a ação policialesca do simples dogma e do barulhento patriotismo. Longe de serem coisas unitárias ou monolíticas ou autônomas, as culturas na verdade assumem mais elementos “estrangeiros”, alteridades, diferenças, do que conscientemente excluem. (1993: 15; nossa tradução)

Apesar de ter excluído de seus estudos sobre cultura e imperialismo os impérios coloniais de Espanha e Portugal, seus comentários sobre as expansões imperialistas britânica, francesa e americana, podem fornecer aparato teórico-analítico para se aplicar à experiência cultural brasileira. Se fizermos uma leitura da obra de Nelson Rodrigues, tendo como ponto de partida as idéias aventadas por Said, podemos chegar à conclusão de que ela poderia colaborar para reforçar as observações aventadas pelo professor da Universidade de Columbia. Os escritos de Nelson Rodrigues nos apresentam aspectos bastante peculiares para uma avaliação da maneira como a cultura que aparece na “colônia” incorpora elementos da “metrópole”.

Se os textos jornalísticos do escritor se traduzem na afirmação de um produto intelectual com crivo literário evidente como já foi defendido por muitos estudiosos (cf. Rosolem, 1995, Cruz, 1997, Marques, 2000), essa experiência literária é feita operando esse “hibridismo” e essa “alteridade” de que fala Said. Além de ter se formado na escola folhetinesca francesa, como já observado, o universo intelectual trabalhado por Rodrigues em seus escritos se ampara e estabelece uma troca incessante com as obras e as trajetória de escritores portugueses (Pessoa, Queiroz), franceses (Dumas, Hugo, Balzac, Baudelaire, Proust, Gide), alemães (Goethe, Marx, Brecht), ingleses (Byron, Dickens, Shaw, Shakespeare), italianos (Dante, Pirandello, Pound), americanos (Poe, O´Neill) e russos (Pushkin, Dostoievski, Tolstoi). E o curioso é que todas as informações colhidas na literatura e na trajetória destes autores é projetada para a realidade brasileira resultando em um produto cultural de qualidades genuínas. O jornalista é um autor que incorpora o que há de melhor na cultura ocidental sem ser subserviente a ela.

É uma pena assim, e mesmo um crime, que os textos do Nelson Rodrigues cronista ainda sejam tão inéditos no exterior. Apenas os textos teatrais do escritor foram trazidos para outras línguas, permanecendo os escritos do cronista-jornalista desconhecidos do público estrangeiro.

BIBLIOGRAFIA:

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COELHO, Caco. O Baú de Nelson Rodrigues. Pesquisa inédita realizada com apoio do Instituto Rio-Arte, 2000. Cuidadoso levantamento e transcrição dos textos jornalísticos de Nelson Rodrigues, alguns deles assinados pelo autor e outros supostamente de sua autoria. Tem como base as colaborações do escritor para os jornais A Manhã, Crítica e O Globo entre 1925 e 1936. Todos os textos destes periódicos citados neste ensaio têm como base as transcrições contidas nesta pesquisa.

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RODRIGUES, Nelson. A Cabra Vadia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 1a. reimpressão.

RODRIGUES, Nelson. A Vida como Ela é ... - O Homem Infiel e Outros Contos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

RODRIGUES, Nelson. A Coroa de Orquídeas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

RODRIGUES, Nelson. Asfalto Selvagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

RODRIGUES, Nelson. O Óbvio Ululante. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 7a. reimpressão.

RODRIGUES, Nelson (sob o pseudônimo de Myrna). Não Se Pode Amar e Ser Feliz ao Mesmo Tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

RODRIGUES, Nelson. A Mentira. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

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[1] Marcos Francisco Pedrosa Sá Freire de Souza é professor da Universidade Estácio de Sá, da Cultura Inglesa e da Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro.

Resumo: existe uma significativa produção acadêmica tratando da crônica. Discorremos em nosso trabalho sobre a prática do escritor Nelson Rodrigues e suas incursões por esse gênero. Abordamos as particularidades da crônica rodrigueana, sua militância por um jornalismo literariamente inventivo e falamos de como as pesquisas universitárias comentam as investidas do dramaturgo neste filão literário. O estudo procede ainda a uma avaliação da extensão da obra do cronista que é de conhecimento público e a que permanece inédita.

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