_Os livros que temos e que envolvem, de maneira descritiva ...



INT?RPRETES DO BRASIL Silviano Santiago“Sob os nossos olhos, uma parte do Terceiro Mundo industrializa-se, mas com uma dificuldade inaudita, com inúmeros fracassos e uma morosidade que parece a priori anormal. Uma vez, é o setor agrícola que n?o acompanhou a moderniza??o; ou há escassez de m?o-de-obra qualificada; ou a demanda do mercado interno revelou-se insuficiente; outra vez, os capitalistas locais preferiram aos investimentos no país colocar o dinheiro no exterior, em negócios mais seguros e mais lucrativos; ou o Estado revelou ser esbanjador ou prevaricador; ou a técnica importada é inadaptada, ou custa muito caro e pesa sobre o pre?o de custo; ou as importa??es necessárias n?o s?o compensadas pelas exporta??es: o mercado internacional, por este ou aquele motivo, revelou-se hostil, e sua hostilidade teve a última palavra. Ora, todas essas transforma??es produzem-se quando a Revolu??o [industrial] já n?o tem de ser inventada, quando os modelos est?o à disposi??o de todo o mundo. Portanto, a priori, tudo deveria ser fácil. E nada funciona facilmente.” Fernand Braudel, A din?mica do capitalismo (1977)Os muitos livros que temos e que envolvem, de maneira descritiva, ensaística ou ficcional, o território chamado Brasil e o povo chamado brasileiro, sempre serviram a nós de farol (e n?o de espelho, como quer uma teoria mimética apegada à rela??o estreita entre realidade e discurso). Com a sua ajuda e facho de luz é que temos caminhado, pois eles iluminam n?o só a vasta e multifacetada regi?o em que vivemos, como também a nós, habitantes que dela somos, alertando-nos tanto para os acertos quanto os desacertos administrativos, tanto para o sentido do progresso moral quanto para o precipício dos atrasos irremediáveis. S?o eles que nos instruem no tocante às categorias de análise e interpreta??o dos valores sociais, políticos, econ?micos e estéticos que -- conservadores, liberais ou revolucionários; pessimistas, entreguistas ou ufanistas – foram, s?o e ser?o determinantes da nossa condi??o no concerto das na??es do Ocidente e, mais recentemente, das na??es do planeta em vias de globaliza??o.O interesse mais profundo e direto que esses livros manifestam n?o é pelo habitante privilegiado desde a primeira hora. Aquele que, ao se transplantar de lá para cá, recebeu benesses, ou aquele outro que foi alvo de ato de nomea??o para ocupar cargo oficial, auferindo altos proventos e jurando obediência irrestrita à Coroa portuguesa. Interessam-se, antes e quase que exclusivamente, pelo habitante que, já nascido nestas terras, buscava construir (ou inventar) um pequeno domínio de que seria proprietário exclusivo, sem reconhecer os limites das amarras políticas e fiscais metropolitanas, ou ainda pelo estrangeiro que, ao adotar a nova pátria, queria colonizá-la à sua própria maneira, dela extraindo o que havia de mais rentável para si próprio e para os seus descendentes. Todos eles procuravam se autodefinirem e definir as várias regi?es do país em palavras, gestos e ordens de independência (sempre relativa, é claro) com rela??o aos países europeus e, a partir do século XIX, com rela??o a todo e qualquer país que questionasse a soberania nacional.Os que queriam se autodenominar brasileiros -- ou por serem autóctones, ou por serem filhos brancos ou mesti?os da terra colonial, ou por viverem em “terra desconhecida”, modo como ela devia se apresentar para muitos imigrantes europeus, ou por serem filhos negros, transplantados contra a própria vontade pela violência dos grilh?es do trabalho servil -- se sentiam desprovidos de um estatuto sócio-econ?mico próprio. Este, quando definido pela metrópole apresentava-se precário e recente, passível de constantes revis?es críticas pelos donos do poder, como é o caso da situa??o entre nós do escravo ou até mesmo do índio, para n?o mencionar o imperativo legal de dar sentido às várias levas de imigrantes brancos que povoaram estas terras do Novo Mundo, em particular a partir da déb?cle do sistema escravocrata.De modo geral, viviam todos os “brasileiros” em pequenas comunidades, rurais na maioria dos casos, n?o de maneira completamente indiferenciada à semelhan?a de animais num conglomerado, mas em situa??o social amorfa, que beirava muitas vezes o caos. Essa situa??o n?o deixava de ser preocupantemente negativa para os que tinham o ideal de na??o.A situa??o confusa e complexa dos habitantes durante os dois primeiros séculos do período colonial propiciava aos que empunhavam a pena abordar, com firmeza e presun??o, as quest?es relativas à identidade colonial da regi?o, à hierarquia fidalga dos poderosos e à lideran?a político-econ?mica subalterna à metrópole. Identidade nacional, hierarquia social e lideran?a político-econ?mica iam sendo reconfiguradas e impostas pelos portugueses-abrasileirados à medida que um projeto de na??o, já no terceiro século colonial, come?ava a iluminar as cabe?as mais revolucionárias, convencendo as elites (n?o tenhamos ilus?es) e, indiretamente, a popula??o das cidades de maior proje??o econ?mica a dar o chute inicial no processo de expuls?o do colonizador metropolitano, o português, ou de qualquer outro povo invasor.Nos três casos levantados (identidade, hierarquia e lideran?a), a palavra escrita, os livros (tanto o descritivo, quanto o ensaístico e o ficcional) servir?o como mecanismo de abordagem dos problemas, defini??o de categorias de análise e estabelecimento dos valores sociais, políticos, econ?micos e estéticos da nova terra e da sua gente. Valores estes que, mal lan?ados no minguado mercado de leitores exigentes, rapidamente serviriam para entronizar a elite nativa como legítima, numa cópia flagrante do modelo metropolitano, vigente nos países europeus, em particular em Portugal ou na Espanha.O fim óbvio dos panfletos mais rebeldes à coloniza??o lusa (e, nas entrelinhas, dos menos rebeldes) era o de apresentar o país colonial como independente e o país independente como na??o. Era o de apresentar o colono (branco ou mesti?o e, bem mais tarde, o africano) como homem livre e o homem livre como cidad?o. Como documentos públicos, esses textos representavam e representam o que se denomina uma for?a nacionalista, ainda que toda a variada e multifacetada bibliografia sobre o assunto ainda tenha dificuldade em definir com clareza o que seja essa for?a. Apesar da falta de defini??es convincentes e definitivas, apesar das críticas feitas pelos pensadores marxistas, grandes especialistas da quest?o, como Benedict Anderson, n?o sabem por que, até os nossos dias, movimentos nacionalistas “inspiram uma legitimidade emocional t?o profunda” .[espa?o]A maioria dos primeiros textos que foram escritos para descrever terra e homem da nova regi?o levam a assinatura de portugueses. Respondem às próprias perguntas que colocam, umas atrás das outras, em termos de violentas afirma??es europeocêntricas. A curiosidade dos primeiros colonizadores é menos uma instiga??o ao saber do que a repeti??o das regras de um jogo cujo resultado é previsível. Os nativos eram de carne-e-osso, mas n?o existiam como seres civilizados, assemelhavam-se a animais. Na Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita a El-Rei D. Manuel, observam-se melhor as obsess?es dos portugueses, intrusos assustados e visitantes temerosos, que desembarcam de inusitadas casas flutuantes, do que as preocupa??es dos indígenas, descritos como meros espectadores passivos do grande feito e do grande evento que é cerim?nia religiosa da missa, realizada em terra. N?o é, pois, por casualidade que a primeira metáfora para descrever a condi??o do indígena recém-visto é a “tabula rasa”, ou o “papel branco” . Eis uma boa descodifica??o das metáforas: eles n?o possuem valores culturais ou religiosos próprios e nós, europeus civilizados, os possuímos; n?o possuem escrita e eu, português que escrevo, possuo.Mas da tabula rasa e do papel branco trazia o selvagem, ainda dentro do raciocínio etnocêntrico, a inocência e a virtude paradisíacas , indicando que, no futuro, aceitariam de bom grado a voz catequética do missionário jesuíta que, ao imp?-los em língua portuguesa, estaria ao mesmo tempo impondo os muitos valores que nela circulam em transparência. Ao fazer extenso levantamento, nas gramáticas renascentistas, do topos da “língua companheira do Império”, o filólogo e crítico espanhol Eugenio Asensio observou agudamente que os gramáticos portugueses Fern?o de Oliveira e Jo?o de Barros -- quando tomaram de empréstimo aquela idéia do colega espanhol, Elio Antonio de Nebrija -- acrescentaram ao significado original do conceito, que era político e nacionalista, matizes afins de assimila??o colonial e de miss?o crist?. Escreve Eugenio Asensio: “Lecturas posteriores me fueron revelando que el concepto [la lengua compa?era del Imperio] derivaba de las Elegantiae, del humanista italiano Lorenzo Valla; había sido resumido en frase muy parecida por el jurista aragonés Geraldo García de Santa María antes de hallar hospedaje en las páginas de Nebrija para definir las ambiciones culturales de la expansión espa?ola; y que, cargado ya con el nuevo sentido que le daban los descubrimientos y conquistas, había sido acogido por los gramáticos portugueses [Fern?o de] Oliveira y [Jo?o de] Barros, que, a su significado político y nacional, habían ido a?adiendo los matices afines de asimilación colonial y de misión cristiana” .Somente uma leitura “sintomal” da Carta, para usar o termo e o método de Louis Althusser , devidamente alicer?ada em um instrumental teórico tomado de empréstimo à Antropologia, é que poderá ir revelando ao leitor contempor?neo nosso todos os valores indígenas que se encontram recalcados no texto do escriv?o português, tendo sido recalcados para todo o sempre no processo de constru??o da nacionalidade. Talvez o aspecto mais instrutivo para o nosso propósito atual seja o de rastrear no texto de Caminha o problema da (ausência de) chefia indígena.As várias e ricas interpreta??es do texto português salientam a encena??o que Cabral faz em seu camarote para passar aos indígenas que o visitam uma imagem concreta da sua superioridade: “Ocapitam quando eles [indígenas] vieram estaua asentado em huua cadeira e huua alcatifa aos pees por estrado e bem vestido c? huu colar douro muy grande ao pesco?o, e sancho de toar e simam de miranda enycolaao coelho e aires corea e nos outros que aqui na naao c? ele himos asentados no cha?o por esa alcatifa” (p. 89). As interpreta??es menos comprometidas com o europeocentrismo acentuam também o propósito econ?mico do encontro. Através de linguagem gestual (n?o havia língua humana comum entre eles, por isso o código gestual é constantemente verificado e aprimorado pelos dois grupos antag?nicos), os marinheiros desejam obter dos indígenas informa??es sobre as possíveis riquezas da terra a que chegam.As interpreta??es esquecem, no entanto, de assinalar que, um pouco mais tarde, o escrevente Caminha anota – ao perceber que se os selvagens preferem permanecer ao lado do capit?o e n?o em companhia dos marinheiros – que a preferência é fruto único e exclusivo do acaso. Reconhece, sem meias palavras, que os indígenas se aproximam do capit?o “n? polo conhecere por Senhor ca me parece que n? entendem ne tomau? dysso conto” (p.97), mas simplesmente porque os muitos marinheiros que estavam no camarote tinham se distanciado dos selvagens, tinham já atravessado o rio que, agora, os separava. Nesse sentido, aquelas interpreta??es deixam de lado a preocupa??o que tem o grupo de marinheiros portugueses em encontrar um chefe entre os indígenas (ou seja, um correspondente simétrico ao capit?o da esquadra, ou melhor, para se valer do exemplo azteca, um Moctezuma ou um Cuauhtémoc).Diversas vezes os marinheiros portugueses parecem distinguir um líder indígena na multid?o dos seres inominados que os cercam ou os acompanham, mas todas as vezes o indivíduo sobre quem recai o olhar classificador frustra o intento português. Um rebate falso a mais. Logo depois da missa de domingo, um dos selvagens, com seus 50 ou 55 anos, apontava para o altar e depois para o céu, conseguindo atrair em torno de si, com sua gesticula??o, um bom número de companheiros. Caminha n?o é o único que acredita ser ele um “organizador”, para empregar o jarg?o político moderno; também o capit?o da esquadra assim pensa. Este imediatamente faz trazer à sua presen?a o velho indígena, juntamente com o irm?o [sic], e lhe dispensa muita honra, conforme se lê. Cabral chega até a presenteá-lo com uma “camisa mourisca” e ao irm?o, com uma comum, ou seja, “destoutras”, como diz o texto (pp. 107-108). Na qualidade intrínseca aos presentes oferecidos, estabelece-se uma hierarquia entre os dois “irm?os”, possíveis chefes. Eis o primeiro germe de uma estratifica??o política entre os indígenas, que se dá pela diferen?a entre os favores feitos pelo capit?o português. Nem sempre a aparência foi boa conselheira para os olhos lusos. Tomada, no entanto, ao pé da letra pelo colonizador, acaba por suscitar o exercício do poder indiscriminado e eficaz.Em um dos mais polêmicos livros sobre o primeiro século brasileiro, La société contre l’état, Pierre Clastres reabre a possibilidade de uma Antropologia política, aventando a hipótese de haver existido organiza??es sociais que se estruturaram sem a violência inerente ao “poder coercitivo”, isto é, sociedades humanas que n?o conheceram processos de hierarquiza??o impostos pelo alto. Segundo ele, as organiza??es sociais em que o poder é obtido pelo mecanismo e exercício de coer??o por parte de poucos e obediência por parte de muitos s?o apenas um caso particular na história das sociedades, e n?o o geral. Na Antropologia tradicional, em virtude da cegueira etnocêntrica, era impossível vislumbrar uma sociedade onde a organiza??o social n?o dependia do uso da for?a e da violência como causa da aglutina??o. Torna-se importante constatar que Pierre Clastres vai encontrar, nos primeiros documentos descritivos da regi?o recém-descoberta pelos portugueses, os indícios certos de que o modelo político n?o-coercitivo existe nas tribos da América do Sul, sendo possível para ele comprovar a tese de que “il nous est pas évident que coercition et subordinnation constituent l’essence du pouvoir politique partout et toujours” .Tal preocupa??o do colonizador português em detectar o chefe indígena em meio à multid?o inominada pode ser perseguida em outros textos do período colonial. Ainda a favor da tese de Clastres, cite-se esta passagem de Gabriel Soares de Sousa, no Tratado descritivo do Brasil em 1587: “Em cada aldeia dos tupinambás há um principal, a que seguem somente na guerra onde lhe d?o alguma obediência, pela confian?a que têm em seu esfor?o e experiência, que nos tempos de paz cada um faz o a que o obriga o seu apetite" . A obediência ao “principal” (curiosa a ausência da palavra “chefe”) só se evidencia em tempo de guerra; cada indígena segue sua própria vontade em tempo de paz.Pode-se ent?o levantar a hipótese (só hipótese, pois os textos dos indígenas que a comprovariam nos faltam por raz?es óbvias) de que a lideran?a coercitiva só surge entre os selvagens no momento em que os portugueses (ou outros grupos europeus invasores) já n?o se d?o como meros visitantes desconhecidos, assustados e temerosos, mas como verdadeiros inimigos, pois passam a querer transformar o índio em escravo. A violência entra com o propósito da domina??o e da explora??o, vale dizer, com os ideais da coloniza??o renascentista. Como comprova??o dessa hipótese basta perseguir o significante “arcos” no texto da Carta de Caminha.Desde o primeiro encontro entre portugueses e índios, os olhos europeus percebem que os nativos est?o “armados”, mas arcos e flechas s?o imediatamente neutralizados pela esperteza lusa. Acompanhemos o movimento interno ao texto. T?o logo os marinheiros lhes acenam para que depositem os arcos no ch?o, obedecem (p. 87). N?o existe por parte dos indígenas o menor sinal de possível revide armado. Tanto é que, em página posterior, constata Caminha que o depor armas é já algo ensinado pelos marinheiros: “do emsino que dantes tijnham poseram todos os arcos e acenauam que saisemos” (p. 97) E na ter?a-feira, dia 28, quando os navegadores pisam de novo a terra, descobrem que os sessenta ou setenta selvagens já estavam “sem arcos e sem nada” (p. 102). Os conquistadores já se sentem completamente à vontade, isto é, sem medo, para andarem “mesturados” a eles. Duas vezes anota Caminha frases praticamente idênticas. Eis uma delas como exemplo: “e [os indígenas] amdauam ja mais mansos e seguros antre nosdo que nos amdauamos antreles” (p. 105).? medida que recebem dos conquistadores uma imagem cordial e (aparentemente) pacífica e desinteressada, os indígenas v?o também, sintomaticamente, se desarmando. S?o mansos -- eis a conclus?o a que chega o texto. Quanto mais os portugueses procuram detectar um líder no bando, tanto menos necessária é a sua necessidade e premência, tanto mais melíflua teria sido a presen?a de um chefe a demarcar o território dos seus comandados contra os invasores.N?o é nosso interesse exclusivo -- nesta introdu??o geral às interpreta??es do Brasil, posteriores à data da Independência, que est?o coligidas nestes três volumes -- salientar as conseqüências desastrosas da nossa leitura dos textos escritos pelos portugueses para o melhor conhecimento futuro do problema da cordialidade como mediadora, na história do Brasil, entre dois grupos antag?nicos (metropolitanos x nativos, fazendeiros x escravos, colonos x independentistas, brancos x negros, patr?es x operários, etc. etc.), neutralizando tanto manifesta??es abertas de solidariedade comunitária que extravasassem os limites e as regras impostos pelo poderoso cl? fazendeiro, quanto o estouro de conflitos citadinos, propriamente ideológicos, marcados seja pelo clamor contra as injusti?as étnicas ou as de classe social. N?o é nosso interesse exclusivo centrar o raciocínio na quest?o da conquista sem violência, nos primeiros momentos dessa pseudo-história “incruenta”, para retomar a palavra do historiador José Honório Rodrigues , forma que foi se disseminando pelos manuais escolares de história do Brasil, para se tornar dominante ideológica na análise, pelos donos do poder e intelectuais conservadores, de todo e qualquer conflito dentro do devir histórico brasileiro .Nosso interesse maior é o de n?o desprezar, a partir do aprendizado que foi adquirido nos últimos anos pelas metodologias de leitura, os textos que traduzem, como alerta sibilinamente Raymundo Faoro, “o capítulo original da história brasileira, o cenário de outra epopéia [grifo nosso], sem a proje??o da outra [a européia], ornamentada pelos deuses latinos e pelas letras da Renascen?a” .Por enquanto, também passaremos por cima do fato de que, oficialmente, toda e qualquer possível lideran?a indígena foi sendo anulada para todo o sempre, sendo substituída pelo que poderíamos chamar, com a ajuda de historiadores coniventes com a vers?o portuguesa dos fatos, de lideran?a da aristocracia rural, ou seja, dos “chefes de cl?”, para retomar a express?o de Oliveira Vianna . E aqui voltamos ao nosso primeiro parágrafo, n?o sem antes acrescentar que a lideran?a (política, social, econ?mica, estética, etc.) da regi?o estava para sempre em m?os brancas (ou mesti?as) e que se expressava, como previam os gramáticos renascentistas Fern?o de Oliveira e Jo?o de Barros, em língua portuguesa, a companheira do Império. A n?o ser que fosse importante lembrar, galhofeiramente, o projeto de lei, utópico e intempestivo, do funcionário público Policarpo Quaresma, cria??o magistral do romancista Lima Barreto. Por desejo e cren?a dele, o presidente da República decretaria o tupi-guarani como a língua oficial destas terras . Nao é à toa que, na reparti??o pública em que estava lotado, o apelido do personagem romanesco era o nome do pré-cabralino Ubirajara. Já Lima Barreto n?o lhe economiza elogios: “? raro encontrar homens assim, mas os há e, quando se os encontra, mesmo tocados de um gr?o de loucura, a gente sente mais simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais esperan?a na felicidade da ra?a” (p. 63).Esquecendo galhofa e elogio, vale a pena lembrar que, até mesmo entre os letrados, é a língua oral portuguesa que domina entre nós até inícios do século XIX, em virtude de vício básico na Ratio Studiorum dos jesuítas. Leiamos a li??o de Celso Cunha:Sem núcleos culturais capazes de irradiar um padr?o idiomático, sem Universidades, com um número insignificante de escolas de primeiras letras -- as únicas que ensinavam o idioma [português] --, sem imprensa (lembre-se que o primeiro texto impresso no Brasil data de 1808, quando da transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro), com a popula??o realmente produtiva espalhada pelas fazendas e engenhos, a língua oral passou a seguir os seus caminhos sem nenhum controle normativo.Lembra ainda o citado mestre que, até 1759, o sistema pedagógico adotado tanto em Portugal como em suas col?nias, nos níveis que hoje chamaríamos de secundário e superior, “n?o incluía o ensino de português, ensino que se restringia à alfabetiza??o nas escolas menores”. De acordo com as regras de ensino praticadas pelos jesuítas, os alunos “passavam da alfabetiza??o diretamente para o latim da Gramática do Padre Manuel ?lvares, inteiramente escrita nessa língua”. Como se sabe o modelo jesuítico de ensino vai receber condena??o na Reforma Pombalina, em conson?ncia com os ensinamentos de Luís Ant?nio Verney, autor do Verdadeiro método de estudar , para quem ”o primeiro princípio de todos os estudos deve ser a gramática da própria língua” .Se a Reforma pombalina, ao tornar obrigatório o uso oficial da língua portuguesa em todo o território colonial e por todos os brasileiros, por um lado acaba de vez com a possibilidade do ressurgimento das línguas indígenas entre nós como for?a viva de comunica??o entre povos n?o-europeus (como se pode ler nas “coercitivas medidas tomadas pelo Diretório de 3 de maio de 1757, aplicadas primeiro ao Pará e Maranh?o, estendidas em 17 de agosto de 1758 a todo o Brasil” ), por outro lado, é ela que, ainda na col?nia, faculta a um pequeno público alfabetizado, a leitura das tradu??es dos filósofos enciclopedistas, que est?o na base dos primeiros e dos vários movimentos de Independência. Lembra Paulo Prado no Retrato do Brasil: “No Brasil, as primeira tentativas nacionalistas ligaram-se à declara??o da Independência dos Estados Unidos, onde frutificava no campo prático a propaganda iniciada pela Enciclopédia e pelos livros incendiários de Voltaire, de Brissot e de Raynal. precursores da própria Revolu??o Francesa” [espa?o]Detenhamo-nos no cenário dessa outra epopéia, sem deuses latinos e sem sapiência renascentista, de que fala Raymundo Faoro. A defini??o político-social da lideran?a econ?mica nativa é dada, de maneira estruturada e hegem?nica, desde o primeiro parágrafo de Cultura e opulência do Brasil, de André Jo?o Antonil (1711). O recurso estilístico usado pelo autor será, desde ent?o, o que tem determinado o padr?o lingüístico no processo de configura??o da arquitetura do poder brasileiro. Define-se o ser político-social brasileiro (por exemplo: o que é o senhor de engenho?) pela compara??o da figura dele com a figura correspondente na organiza??o social européia, gerando como conseqüência um deslocamento sem?ntico, geográfico e temporal bastante significativos. Seria oportuno abrir antes um parêntese, para lembrar um dos magistrais ensinamentos de Roland Barthes. Lembra-nos ele que toda frase é hierárquica, e continua: “elle implique des sujétions, des subordinnations, des rections internes. De là son achèvement: comment une hiérarchie pourrait-elle rester ouverte?” Voltando ao texto de Antonil, observamos que as duas for?as econ?micas mais fortes no Brasil -- o senhor de engenho e o colono -- s?o dadas como semelhantes, respectivamente, à do fidalgo e à do cidad?o europeus. E, ao mesmo tempo em que compara uma a uma as quatro figuras no tabuleiro da coloniza??o, estabelecem-se dois padr?es de hierarquia. Um que é ditado pelo original e pela cópia, cópia esta que cópia sempre será e que nunca almeje a ser original. E um segundo padr?o, que agora nos interessa mais de perto, que é o que define a hierarquia na sociedade brasileira colonial. Assim como os cidad?os dependem dos fidalgos na Europa, assim também os lavradores, ou homens livres na ordem escravocrata, para retomar a express?o de Maria Sylvia de Carvalho Franco, dependem dos senhores de engenho no Brasil.Na medida em que a pir?mide do poder é estabelecida na col?nia, fácil é compreender a primeira frase de Cultura e opulência do Brasil: “O ser senhor de engenho é título a que muitos aspiram [...]”. No entanto, se na Europa, o título nobiliárquico é concedido pelo Rei, ou pelo próprio status familiar do indivíduo, aqui o título [de nobreza nativa?] é conferido pelo texto (ainda que ele n?o o delegue claramente a fulano e a sicrano mas a um determinado e minguado número de colonos). Ele é conferido a um colono que se afirmou no governo dos homens e no trabalho da terra de que é proprietário, gra?as à capacidade de explorar o trabalho servil, de modo semelhante ao que acontecia no regime feudal europeu.? significativo que o terceiro e o quarto segmentos sociais encontrados na col?nia (o senhor e o homem livre seriam os dois primeiros, pois estamos excluindo da nossa discuss?o o “clero”) se ligam, direta e respectivamente, uns pelas m?os e os outros pelos pés, ao senhor de engenho. Surge uma outra série de compara??es no tratado de Antonil. Só que, neste caso, como é total a dependência do terceiro e quarto segmentos humanos ao senhor de engenho, o campo sem?ntico das defini??es ficará restrito ao vocábulo corpo -- o corpo do senhor de engenho. De resto, desde que estabelecido o vértice superior da pir?mide -- o senhor e, abaixo, o homem livre -- as compara??es com a sociedade européia moderna teriam de desaparecer do texto de Antonil, pois lá na metrópole n?o existe mais a escravid?o negra. Trata-se de quest?o restrita à col?nia, ou seja: uma col?nia dentro de uma col?nia. Retome-se o ponto de partida. Daí o senhor de engenho ser semelhante a um fidalgo, subalterno, mas ainda fidalgo.O terceiro e o quarto segmentos sociais s?o os feitores (governo da fazenda) e os escravos (trabalho servil). Vejamos como os feitores s?o descritos por Antonil: “Os bra?os de que se vale o senhor de engenho para o bom governo da gente e da fazenda, s?o os feitores” (p. 151). Repare-se, no entanto, que s?o “bra?os” que n?o podem aspirar à condi??o de “cabe?as”. O texto n?o deixa dúvidas: “se cada um deles [feitores] quiser ser cabe?a [senhor], será o governo monstruoso e um verdadeiro retrato do c?o Cérbero, a quem os poetas fabulosamente d?o três cabe?as”. E continua: “Eu n?o digo que se n?o dê autoridade aos feitores; digo que esta autoridade há de ser bem ordenada e dependente, n?o absoluta, de sorte que os menores se hajam com subordina??o ao maior, e todos ao senhor a quem servem” (p. 151). Mais claro, impossível.Se entre o primeiro segmento social e o terceiro há dependência e subordina??o à cabe?a do senhor de engenho e a diferen?a reside no uso que um e o outro fazem com o bra?o, entre o terceiro e o quarto segmentos sociais s?o os pés que se ajuntam às m?os, para configurar a figura e o papel, bem como a fun??o do escravo nas terras lucrativas do a?úcar e do tabaco. Apesar de ser o escravo o último na escala hierárquica, reza o texto de Antonil que é o único verdadeiramente indispensável para a empreitada da coloniza??o (v. adiante, nota 44). Leiamos: “Os escravos s?o as m?os e os pés do senhor de engenho, porque sem eles no Brasil n?o é possível fazer, conservar e aumentar fazenda nem ter engenho corrente” (p. 159).Na verdade, a imagem de um “corpo branco” de senhor, com m?os e pés de “escravos negros”, é mais esdrúxula do que aquela imagem do c?o Cérbero. Mas a lógica retórica n?o é o forte dos nossos primeiros e rudimentares pensadores políticos.Sem querer entrar no mérito duma quest?o que seria melhor explicitada por análise e interpreta??o feitas por sociólogos ou economistas, gostaríamos de retomar novamente a import?ncia que tem, nestes textos que estamos lendo, o recurso à compara??o entre os valores europeus, já estabelecidos e consagrados, e os valores brasileiros, indefinidos até o momento da publica??o de cada novo livro interpretativo da nova realidade.A justeza da rela??o entre a realidade européia e a realidade que se lhe ajunta por compara??o, colonialmente, só pode tomada ao pé da letra caso se aceite sem questionar o desígnio do texto, que é o de estabelecer para a terra e o homem brasileiros (índios e escravos y inclus) uma estrutura de poder convincente, paralela e subalterna. Uma estrutura de poder altamente hierarquizada e “justa”, cujo fim é o de dar estatuto social condigno àquele que, por sua situa??o econ?mica extraordinária, por sua posi??o de mando no local de que é único responsável, se situa no alto da pir?mide. Da mesma forma, a possível coerência dentro do sistema estabelecido de compara??es (cabe?a, m?os, pés -- em ordem decrescente de poder, descendo para o ch?o e para o trabalho servil ) dependeria ainda do fato de que tinha de se passar uma imagem verossímil da estrutura social brasileira e da maneira como esta própria estrutura letrada ia, ao mesmo tempo, lendo, interpretando a realidade, fixando de maneira legal e livresca os diversos escal?es.Portanto, toda discuss?o sobre a adequa??o, ou n?o, da realidade comparada portuguesa à realidade brasileira que se lhe ajunta, pode ser exata dentro de uma vis?o europeocêntrica, mas será sempre frustrante como alimento para análises futuras, pois apenas insistirá na falsidade do recurso à compara??o, vale dizer, da interpreta??o, sem indagar o por quê dela. Disso, por exemplo, n?o p?de escapar A. P. Canabrava, lúcida comentadora de Cultura e opulência do Brasil: “Em t?o alta conta [Antonil] tem a qualifica??o de senhor de engenho, que a iguala a um título de nobiliarquia dos fidalgos do Reino. Na América Portuguesa esta nova fidalguia se acomodava aos padr?es de base econ?mica marcadamente mercantil”. E continua mais abaixo: a compara??o é uma “estranha transposi??o de um tipo de rela??o de mundo medieval, para formas de condi??o econ?mico-social de natureza completamente distinta que caracterizaram na Col?nia o uso da terra” (p. 41).Portanto, antes de mais nada a compara??o tem a fun??o precípua e oficiosa de definir a hierarquia de poder no Brasil (ainda que o sistema utilizado e legitimado pela tradi??o histórica seja totalmente equivocado, caso se tome o sentido preciso dos conceitos europeus e o estágio histórico-econ?mico por que passam ambas as regi?es). Se, como diz na nossa época McLuhan, os meios de comunica??o s?o extens?es do homem, naquela época a for?a-trabalho das m?os e pés negros era uma extens?o da “cabe?a” branca do senhor de engenho. A ociosidade das outras m?os e dos outros pés -- os brancos -- do senhor só é possível por ter sido o seu trabalho delegado ao feitor (mando) e ao escravo (obediência e labuta servil). Dentro dessa vis?o ampla e bicolor do corpo do senhor de engenho é que se justifica o seu governo e o seu prestígio enquanto ser sócio-econ?mico junto à Coroa portuguesa e aos pares. De todos os habitantes da col?nia, ele é a cabe?a e é o cabedal.O intento e a reflex?o finais do texto de Antonil visam à singulariza??o do senhor de engenho no topo da escala sócio-econ?mica da col?nia brasileira. Trata-se de ajudar a ele, que realmente o merece, a obter as gra?as do Rei e os favores burocráticos. No último parágrafo de Cultura e opulência do Brasil, lê-se: “Se os senhores de engenhos, e os lavradores de a?úcar e do tabaco s?o os que mais promovem um lucro t?o estimável, parece que merecem mais que outros preferir no favor e achar em todos os tribunais aquela pronta expedi??o que atalha as dila??es dos requerimentos e o enfado e os gastos de prolongadas demandas” (p. 316). Nessa frase n?o encontramos a linguagem do mero tratado descritivo que o livro propunha a ser, mas a voz exigente e possante do lucro colonial e da reivindica??o de favores junto ao poder metropolitano. No possível jogo entre a empresa a?ucareira, que se quer semi-independente, agressiva, lucrativa e esguia, e a burocracia do Estado, que se dá enferrujada e morosa, nesse jogo em que as pedras s?o marcadas pelo próprio texto laudatório de Antonil, o árbitro máximo da partida, o Rei, ou o presidente da República nos dias atuais, n?o poderá ter dúvidas em indicar o privilegiado. Ou as terá?A ratificar a nossa leitura vem em apêndice a Cultura e opulência do Brasil a “Licen?a do Santo Ofício”, assinada na própria Lisboa pelo Fr. Paulo de S?o Boaventura. Ali se lê que, pelo livro em quest?o, “saber?o os que quiserem passar ao Estado do Brasil, o muito que custam as culturas do a?úcar, tabaco e ouro, que s?o mais doces de possuir no reino que de cavar no Brasil” (p. 135). Sintomático é que -- na presen?a do Rei -- a linguagem mais rebelde dos portugueses – aquela que diz que os reinóis devem ser preteridos aos que labutam no Brasil -- cerca-se sempre de um tom humorístico, de onde n?o se exclui até mesmo o trocadilho. Nas palavras do Fr. Paulo de S?o Boaventura, o jogo entre o doce de possuir no reino e o trabalho duro de cavar no Brasil, ligado ao campo sem?ntico da produ??o do a?úcar e do tabaco. No caso do Padre Ant?nio Vieira, no “Serm?o da Sexagésima”, proferido em 1685 na Capela Real (Lisboa), há um trocadilho que n?o só visa a glorificar o trabalho missionário dos jesuítas na col?nia brasileira como também tem sustentado as inumeráveis discuss?es sobre cultismo e conceptismo: “Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-ei com mais Pa?o; os de lá, com mais passos.”[espa?o]Sempre me intrigou a maneira como o rom?ntico José de Alencar escolhia, durante a gesta??o dos seus romances históricos/indianistas, tanto os heróis quanto os vil?os. Por que escolheu D. Ant?nio de Mariz para personagem principal de O Guarani (1855)? Por que abriu a a??o do romance precisamente naquela época, início do século XVII, quando Portugal estava sob o jugo do Rei espanhol? Por que cercou o fidalgo de aventureiros, destituídos de qualquer sentido moral?Retomando a diretiva da nossa leitura dos textos descritivos e ensaísticos do período colonial, mas agora adentrando-se tanto pelo texto ficcional quanto pelo período pós-colonial, percebe-se que o interesse dos brasileiros recém-independentes, primeiros responsáveis por um discurso legitimamente nacional, vai para um líder que seja capaz de montar, de organizar por conta própria, numa determinada zona do território colonial brasileiro (ainda que diminuta), um arremedo de governo, ainda que ele próprio confesse, paradoxalmente, ainda dever obediência a Portugal e n?o à Espanha. Para tal tarefa, Alencar deixa claro, o chefe nativo tem de ter cabedal próprio para conseguir dissociar os seus próprios interesses financeiros dos interesses dos pares no Reino, isto é, ele é um empresário aut?nomo na nova terra, portanto sem dependência econ?mica direta da Coroa portuguesa. E mais importante: ele deve ser fonte de lucro para ela. ? dessa forma, tinha-nos alertado Antonil, que o bom colonizador consegue fazer valer o seu valor na Corte e merecer o título de fidalgo.Sintomaticamente, Alencar, ao elaborar em 1855 o seu primeiro romance histórico, escolhe D. Ant?nio em situa??o bastante exemplar, que se presta a uma interpreta??o complexa e sugestiva da liberdade/fidelidade do colono brasileiro via-à-vis de Portugal. Tanto mais complexa é a situa??o dramatizada porque o país metropolitano, naquela época, vive sob o domínio espanhol. Leiamos os dois primeiros capítulos de O Guarani .D. Ant?nio é um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro. Combateu os inimigos da sua pátria (franceses e selvagens) com o fim de consolidar o “domínio de Portugal nessa capitania”. Com a espada, ajudou a Mem de Sá nas tarefas de coloniza??o e por ele foi recompensado com “uma semaria de uma légua com fundo para o sert?o” (p. 30), onde constrói seu (diz o romance) castelo feudal. ? nessa sesmaria que o leitor vai encontrá-lo, abrindo “a pesada porta de jacarandá que serve de entrada” para o castelo e o romance. O motivo por que abandona a capitania do Rio de Janeiro e se embrenha pelo sert?o é logo explicitado: Portugal tinha caído nas m?os dos Filipes: “Quando, pois, em 1582, foi aclamado no Brasil D. Filipe II como o sucessor da monarquia portuguesa, o velho fidalgo embainhou a espada e retirou-se do servi?o” (p. 30).Tal atitude do fidalgo -- fiel por um lado a Portugal e livre por outro da metrópole no estado lastimável em que está -- abre-lhe a possibilidade de articular, dentro de uma sesmaria, o seu pequeno e próprio poder de mando e exercer plenamente o governo naquele território. Poder de mando e governo desvinculados -- e, ao mesmo tempo, n?o -- de Portugal, num gesto semelhante à futura atitude de D. Jo?o VI, ao transferir o verdadeiro Portugal para o Brasil em 1808. Surge, dessa forma, dentro do romance alencarino, o tema colonial por excelência, o da independência e da liberdade, com toda uma conota??o ambígua que procuraremos analisar. Se o discurso de Antonil é dirigido ao Rei português, o de O Guarani já nos diz que o Rei n?o é mais o bom interlocutor do fidalgo brasileiro, pois aquele que reina sobre Portugal é falso. O verdadeiro Rei é interiorizado no senhor brasileiro (que assim pode desobedecer ao falso, preservando dentro de si a fidelidade ao verdadeiro).A sesmaria de D. Ant?nio é livre com rela??o ao Portugal filipino. Ali está se estabelecendo um senhor (“fidalgo”, se ecoarmos o texto) brasileiro, com plenos poderes. Independência e liberdade aparecem de maneira um tanto implícita, já que o senhor continua disposto a prestar obediência a Portugal. Leiamos, com o cuidado requerido, dois fragmentos de frases, situados em passagens diferentes do romance. Fala D. Ant?nio: “Nesta terra que me foi dada pelo meu rei, e conquistada pelo meu bra?o, nesta terra livre, tu reinarás, Portugal [...]”. A segunda diz: “[...] esse peda?o de sert?o, n?o era sen?o um fragmento de Portugal livre”. Vemos que, jogando com o conceito de independência e liberdade relativas, consegue D. Ant?nio introjetar Portugal, no seu próprio negócio sócio-econ?mico colonial, legitimando-o à moda de D. Jo?o VI. Pode, assim, constituir-se em “senhor de bara?o e cutelo, de alta e baixa justi?a dentro de seus domínios” (p. 32).Torna-se de novo imperioso preocupar-se com as compara??es que o texto alencarino apresenta entre os elementos da metrópole e os da col?nia. Como no tratado de Antonil, elas visam a dar um status social ao colono, no caso, rebelde, e ao grupo de aventureiros que o cercam, bem como à casa que abriga a todos. As compara??es fluem no romance sem nenhum pejo. D. Ant?nio de Mariz, já vimos, é fidalgo. Os aventureiros, vassalos. A casa “fazia as vezes de um castelo feudal na Idade Média”. Percebe-se que, apesar de n?o se tratar de um senhor de engenho, apenas um empresário, no sentido moderno da palavra, as compara??es servem para recobrir o território e os habitantes com o mesmo campo sem?ntico feudal e medieval encontrado em Antonil.E mais ainda: se em Antonil a lógica entre a realidade comparada (Portugal) e a que se lhe compara (Brasil) é totalmente desprovida de justeza histórica, por raz?es que só um especialista pode detectar, tal o mascaramento sutil que o tratado opera quando se refere às verdadeiras rela??es econ?micas que norteavam a empresa a?ucareira na col?nia, em O Guarani já n?o se dá o mesmo. O texto aponta e alerta para o processo de mascaramento e para os desacertos violentos da coloniza??o portuguesa. Os aventureiros s?o primeiramente apresentados como “pobres, desejosos de fazer fortuna rápida e que tinham-se animado a se estabelecer neste lugar, em parcerias de dez e vinte, para mais facilmente praticarem o contrabando de ouro e pedras preciosas que iam vender na costa”. Poucas linhas abaixo já s?o vistos pelo narrador de uma perspectiva oposta: “O fidalgo recebia [os aventureiros] como um rico-homem que devia prote??o e asilo aos seus vassalos [...]” (p. 31). E, em nota, Alencar informa: “Esse costume tinha o que quer que seja dos usos da Média Idade, e a necessidade o fez reviver em nosso país onde faltavam tropas regulares para as conquistas e explora??es”. Aqueles aventureiros pobres, ambiciosos e contrabandistas, e estes vassalos de um rico senhor, funcionando em tropas regulares, ser?o eles os mesmos, ética e judicialmente?A dubiedade da figura (aventureiro e vassalo ao mesmo tempo) só pode ser melhor compreendida, e com mais rigor, num outro nível, levando em conta determinado padr?o de pensamento de Alencar, que transcende o autor e a sua época. Toda atitude de poder coercitivo por parte do chefe n?o é frontalmente aberta; o gesto explicitamente autoritário só se dá em circunst?ncias excepcionais. Depois de definir D. Ant?nio como “senhor de bara?o e cutelo”, como vimos, acrescenta: “devemos declarar que rara vez se tornara preciso a aplica??o dessa lei rigorosa; a severidade tinha apenas o efeito salutar de conservar a ordem, a disciplina e a harmonia” (p. 32).O chefe alencarino, fidalgo nas terras brasileiras, guarda muito da transparência do “principal” indígena, como o descreveu Gabriel Soares de Sousa e comentou Pierre Clastres. O poder n?o sendo necessariamente coercitivo, ele se manterá como tal porque a hierarquia é freqüentemente marcada de maneira inquestionável no texto. Em outras palavras: a lideran?a é mais conseqüência de uma hierarquiza??o rígida dos diversos integrantes na organiza??o social do que resultado de ordens violentas e repressivas por parte de quem detém o mando. Como a hierarquiza??o é sólida e inquestionável, pois advém de valores categóricos tomados de empréstimo à rigidez da estratifica??o social européia, cada um sabe o lugar que ocupa e que é o certo. O imobilismo social congela todos os elementos da comunidade dos brancos e mesti?os. E o texto literário rom?ntico, pós-colonial, serve exatamente como efeito de coágulo.Dentro da sociedade colonial branca, tal qual retratada por Alencar, apenas uma exce??o é aberta para um n?o-branco. Para o selvagem. Ele foge à regra da ordem escravocrata porque é absolutamente livre . Por efeito de contraste, todos os demais elementos diferentes-do-selvagem est?o presos, fixos e estáticos social e economicamente. Sem dúvida, n?o existe maior elogio social à figura do indígena do que este, maior isen??o de preconceito contra a sua figura durante a coloniza??o portuguesa nos trópicos. Dentro de uma organiza??o sócio-econ?mica hierarquizada, rígida, é o autóctone o único indivíduo que tem o poder de mobilidade. Se for inimigo, é enfrentado na guerra. Caso seja tomado como cativo, é vassalo. Corrobora o texto: “quando [os selvagens] nos respeitam s?o vassalos de uma terra que conquistamos, mas s?o homens”. Quando s?o “nobres” no seu próprio meio, podem se inscrever num escal?o mais alto dentro da hierarquia brasileira europeizada, mas neste caso n?o existe ascens?o social, apenas absor??o digna: “Peri estendeu o bra?o e fez com a m?o um gesto de rei, que rei das florestas ele era, intimando aos cavalheiros que continuassem a sua marcha” (p. 39).O mesmo n?o pode ser dito a respeito do negro, pois em nenhum texto do período, que conhecemos, se tematiza a natureza “nobre” do africano e menos ainda sua mobilidade social . Daí a palavra dura de Joaquim Nabuco, em O Abolicionismo, retomando palavras antigas de José Bonifácio no exílio (“Sem a emancipa??o dos atuais cativos nunca o Brasil firmará a sua independência nacional e segurará e defenderá a sua liberal constitui??o.”), admoestando em 1883 os brasileiros:No processo do Brasil um milh?o de testemunhas h?o de levantar-se contra nós, dos sert?es da ?frica, do fundo do oceano, dos barrac?es da praia, dos cemitérios das fazendas, e esse depoimento mudo há de ser mil vezes mais valioso para a história do que todos os protestos de generosidade e nobreza d’alma da Na??o inteira. [espa?o]Se o romance de José de Alencar tematiza de maneira inequívoca a oscila??o entre a fidelidade a Portugal como sentido da civiliza??o brasileira (o país é o único que, depois da Independência, acata o regime dinástico nas Américas, isso gra?as ao acaso da imigra??o de D. Jo?o VI em 1808, fugindo de Napole?o) e a aspira??o à independência nacional como domínio das riquezas naturais pelos mais bem situados na hierarquia determinada pelo dinheiro e o mando, se o romance se fortalece com a heroicidade tanto do fidalgo/colono, empresário na nova terra, quanto com a do autóctone/selvagem, depositário de todos os valores morais de liberdade, se o romance se fertiliza com a dubiedade da figura do aventureiro/vassalo, lembrando sem dúvida a “dialética da malandragem” que caracteriza a situa??o do homem livre na ordem escravocrata de que Antonio Candido foi o intérprete mais feliz , se o romance esconde por detrás de algum misterioso tel?o ideológico a mancha da escravid?o negra, n?o há dúvida de que ali, naquele conjunto disparatado, está apesar de tudo uma imagem escrita de Brasil que se apresenta como uma “comunidade política imaginada” , para retomar a express?o de Benedict Anderson. A comunidade se organiza, n?o pelos la?os sangüíneos, mas em virtude de todos os seus membros adotarem, consciente ou inconscientemente, a máxima dos gramáticos renascentistas, “a língua companheira do Império”. Esta, por sua vez, foi passando, século após século, e em transparência, os novos valores religiosos . A língua portuguesa dá forma ao Brasil-na??o, fechando-o na sua singularidade, ao mesmo tempo em que serve de instrumento para diferen?á-lo da multid?o dos países-na??es limítrofes e vizinhos que ganham significado através da língua espanhola.“Ela é imaginada” – escreve Anderson – “porque nem mesmo os membros das menores na??es jamais conhecer?o a maioria dos seus compatriotas, nem os encontrar?o, nem sequer ouvir?o falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem da sua comunh?o” (p. 14). Sem dúvida, essas palavras, ao se referirem ao romance de José de Alencar, onde o senso da comunidade se casa com a capacidade de esquecer manchas negras t?o importantes quanto o próprio sentido da nacionalidade, n?o deixam de lembrar outras palavras também pertinentes, agora de Renan: “Or l`essence d`une nation est que tous les individus aient beaucoup de choses en commun, et aussi que tous aient oublié bien des choses”.Para Anderson a na??o é imaginada e, como tal, como uma comunidade limitada e soberana. Citemos as defini??es dos três termos. Primeira: “A na??o é imaginada como limitada, porque até mesmo a maior delas, que abarca talvez um bilh?o de seres humanos, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais encontram-se outras na??es. Nenhuma na??o se imagina coextensiva com a humanidade”. Segunda: “E imaginada como soberana, porque o conceito nasceu numa época em que o Iluminismo e a Revolu??o estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico, divinamente instituído. […] O penhor e o símbolo dessa liberdade é o Estado soberano”. Terceira: “Finalmente, a na??o é imaginada como comunidade porque, sem considerar a desigualdade e explora??o que atualmente prevalecem em todas elas, a na??o é sempre concebida como um companheirismo profundo e horizontal” (pp. 14-16).Fato mais extraordinário vai acontecer no romance Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, especialmente no capítulo que leva por título “Um episódio de 1814” , ou seja, momento em que chega ao Rio de Janeiro a notícia da primeira queda de Napole?o (renúncia à coroa e exílio em Elba). O narrador machadiano, ao se interessar pelas rela??es entre a Europa e o Novo Mundo, entre o país metropolitano e o país col?nia, esquece definitivamente a retórica da compara??o que, como vimos, era utilizada pelos autores precedentes para articular o modo coeso como a cópia era um prolongamento do modelo, instaurando ao final a semelhan?a-com-diferen?as como figura entre as partes envolvidas no processo descritivo. Para Machado, a história se passava num tempo homogêneo e vazio, havendo apenas uma ligeira defasagem temporal entre o lá e o cá, que se explicava pelo atraso social, esperado e justo na vida em col?nia. Para a col?nia, havia uma referência horizontal, tranversal ao tempo histórico -- a metrópole.Ao p?r um fim no recurso retórico da compara??o, o capítulo machadiano toma a forma de uma pedra que ricocheteia sobre a mansid?o das águas de um lago, criando círculos concêntricos cujo significado é simult?neo e sempre relativo. Os eventos históricos e corriqueiros (o narrador se interessa mais pelo espadim que ganhou do padrinho do que pela queda de Napole?o -- “o nosso espadim é sempre maior do que a queda de Napole?o”) s?o paralelos e, aparentemente, destituídos de nexo causal. A pedra fere o centro das aten??es: a primeira queda de Napole?o na Europa e as conseqüências do acontecimento sobre a situa??o ambígua de Portugal, de D. Jo?o VI e o Brasil. O círculo seguinte mostra o modo como “a popula??o [carioca], cordialmente alegre n?o regateou demonstra??es de afeto à real família”. E, por isso, aparecem nas ruas ilumina??es, salvas, Te Deum, cortejo e aclama??es. A alegria reina na Corte transplantada às pressas para o Rio de Janeiro e, indiretamente, também deixa felizes os brasileiros com a sua próxima viagem de volta. A família de Brás Cubas julga “oportuno e indispensável celebrar a destitui??o do imperador com um jantar, e tal jantar que o ruído das aclama??es chegasse aos ouvidos de Sua Alteza, ou quando menos, de seus ministros." Durante o jantar um sujeito dava a outro “notícia recente dos negros novos, que estavam a vir, segundo cartas que recebera de Loanda, uma carta em que o sobrinho lhe dizia ter já negociado cerca de quarenta cabe?as…O que afian?ava é que podíamos contar, só nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos”. Como se n?o bastasse a simultaneidade de tantos eventos, é também nesse dia que o menino Brás Cubas vê o Vila?a tascar, às escondidas, um beijo na dona Eusébia. Anos mais tarde, encontrará a “flor da moita”, agora uma mo?a, infelizmente coxa.Machado estava apontando -- no prenúncio do retorno do Rei português à Corte lisboeta e na proximidade do momento em que o país se tornaria independente -- para um dos tra?os mais fundamentais que marcam a possibilidade de se pensar uma na??o, um dado importante na “gênese obscura do nacionalismo”. Ei-lo: o aparecimento de uma concep??o de “tempo homogêneo e vazio”. Anderson toma de empréstimo a express?o a Walter Benjamin. Come?a a explicá-la com a análise que Erich Auerbach faz do sacrifício de Isaac, que é interpretado como a prefigura??o do sacrifício de Cristo. Interpreta Auerbach: existe uma “conex?o entre dois eventos [sacrifícios de Isaac e Cristo] que n?o se vinculam temporalmente, nem casualmente – conex?o impossível de ser estabelecida pela raz?o na dimens?o horizontal. Ela só pode ser estabelecida se ambas as ocorrências estiverem verticalmente [grifo nosso] vinculadas à Divina Providência, a única capaz de tra?ar um plano de história como esse e fornecer a chave para sua compreens?o”.No caso de Machado de Assis, usado aqui para ilustrar a teoria de Anderson, “a simultaneidade é como se fosse transversal ao tempo, marcada n?o pela prefigura??o e cumprimento, mas por coincidência temporal, e medida pelo relógio e pelo calendário”. De maneira jocosa e séria, comenta Anderson: “essa nova idéia está t?o arraigada que se poderia afirmar que todo conceito fundamental moderno baseia-se num conceito de ‘enquanto isso’ (p. 33)”, conceito de que se vale, é claro, os romances e os jornais da época. Retomemos o capítulo de Brás Cubas. Depois do inverno de 1814, come?a a derrocada de Napole?o na Europa, enquanto isso rejubila-se a família real no Rio de Janeiro e também a popula??o carioca, enquanto isso o pai de Brás Cubas resolve dar um jantar para celebrar a destitui??o do imperador e ser objeto de comentários na corte carioca, enquanto isso navios negreiros continuam a entrar no porto do Rio de Janeiro, enquanto isso um paspalh?o deflora uma senhora que, anos mais tarde, ostentará uma bela filha, produto do amor proibido, uma verdadeira flor da moita. Todos os episódios, tanto a queda de Napole?o quanto os escravos expostos no mercado de Valongo, se passam ao mesmo tempo, est?o encravados em sociedades nacionais. Observa Anderson: “O fato de que todos esses fatos s?o desempenhados no mesmo tempo, medido pelo relógio e pelo calendário, mas por atores que podem estar em grande parte despercebidos uns em rela??o aos outros, demonstra a novidade desse mundo imaginado evocado pelos autores nas mentes de seus leitores” (p. 35). [espa?o]Retomando passagem anterior dessa Introdu??o, em que foram alvo, no tratado de Antonil e no serm?o de Vieira, os jogos retóricos entre o “lá” (terras brasileiras) e o “cá” (terras portuguesas), retomemos também a idéia da valoriza??o emblemática do trabalho que se tem nas terras brasileiras em oposi??o às gostosas facilidades que se encontram nas terras portuguesas, para reencontrar a extraordinária metamorfose que o jogo vai merecer de Gon?alves Dias, no famoso poema “A can??o do exílio”. Nesta, o jogo entre o lá e o cá vai encontrar a sua dignifica??o estética, idealizada, no primeiro hino da nacionalidade brasileira: “As aves, que aqui gorjeiam,/ N?o gorjeiam como lá”.José Guilherme Merquior, em Raz?o do Poema, fez uma notável e ainda atual análise do poema. Dela nos valeremos para dar continuidade ao tema. Afirma ele, em primeiro lugar, que: “Estrelas, várzeas, flores, bosques, vida, amores -- tudo isso existe em Portugal, como existe no Brasil. O que de fato provoca a saudade n?o é portanto a sua simples existência, e sim a qualidade que esta ganha, quando na moldura da pátria. A can??o n?o compara o que o Brasil tem com o que a terra alheia n?o possui; indica, isso sim, o maior valor que as mesmas coisas revestem, uma vez localizadas no Brasil”. E continua, ao final da minuciosa análise dos vários passos do poema: “Profundamente brasileira é a saudade da terra natal, na forma de um desprezo cego pela realidade objetiva do país. Boa ou ruim, promissora ou aflitiva, essa realidade jamais conseguirá demover o saudoso de seu amor obstinado à terra. [...] Hoje, como sempre, reluz nesses versos a vibra??o da certeza consoladora de nos sabermos irremediáveis amantes do Brasil, mesmo do Brasil t?o freqüentemente errado e decepcionante, pobre de fortuna e de projetos, abrigo de vícios e de molezas. ? que o brasileiro será sempre incapaz de adotar o “ubi bene ibi patria” dos que reduzem o amor de sua terra ao prazer que elas lhes possa dar; porque, para nós, será sempre possível esquecer a miséria da pátria presente na sublime teimosia com que a amemos, boa ou má, na for?a de quem faz desse amor uma vontade firme” ? atitude unívoca e radical de Gon?alves Dias, pode-se opor, já entre o fim do século XIX e o início do século seguinte, a ambigüidade cosmopolita de Joaquim Nabuco, tal como se expressa no livro de memórias Minha forma??o, capítulo “Atra??o do mundo” . Neste, fala mais alto o cientista político do que o patriota, fala mais alto o companheiro de Machado de Assis do que o êmulo de Gon?alves Dias. Escreve ele: “Sou antes um espectador do meu século do que do meu país; a pe?a é para mim a civiliza??o, e se está representando em todos os teatros da humanidade, ligados hoje pelo telégrafo”. Morando em país provinciano, o grande estadista da Aboli??o está distante do palco onde a grande pe?a da História se desenrola, mas dela pode ser espectador no conforto do lar em virtude dos meios de comunica??o de massa modernos, no caso o telégrafo.Escreve Nabuco que, em sua vida, viveu “muito da Política, com P grande, isto é, da política que é história”, para logo em seguida afirmar a sua incapacidade para viver plenamente “a política propriamente dita, que é a local, a do país, a dos partidos”. A incapacidade é também o caminho enviesado e, paradoxalmente, mais correto para o cidad?o brasileiro atualizado e consciente participar do projeto nacional em andamento. Equacionando Política com maiúscula à História, história da civiliza??o ocidental, no caso história da Europa na sua expans?o geográfica, econ?mica e social (n?o se pode esperar do pensador monarquista uma postura diferente da eurocêntrica), Nabuco n?o só julga a política com minúscula, a nacional, como inferior, setorizada e dominada por estruturas arcaicas e sentimentos baixos, como também inventa caminhos para que a na??o saia do atraso em que se encontra.? a obra jornalística e ficcional de Joaquim Manuel de Macedo que complementa as observa??es de Nabuco e melhor ilustra a mediocridade da vida política nacional, como o demonstrou recentemente Flora Süssekind. Cite-se, como exemplo, o modo como o narrador de Macedo apresenta um aprendiz de política na segunda metade do século passado: “[...] se é filho, sobrinho ou parente chegado de algum senhor velho, de algum membro daquela classe de privilegiados [...], se é nhonh?, encarta-se logo na presidência de alguma província; da presidência da província salta para a c?mara temporária; da c?mara temporária pula para o ministério: uma quest?o de três pulos dados em alguns meses, e em duas palhetadas e meia, o nhonh?, que n?o foi ouvir as li??es de nenhum mestre, que n?o teve noviciado, nem tempo para ler mais do que os prólogos de alguns livros, é declarado estadista de fama e salvador da pátria” .Pela sua forma??o (e é disso que o livro de memórias trata), a incapacidade que Nabuco sente para viver a medíocre política nacional acaba por guiá-lo para fora do Brasil, ou seja, para “o ponto onde a a??o do drama contempor?neo universal é mais complicada ou mais intensa”. Complica??o política e intensidade moral, na medida em que universais, n?o podem ser para um brasileiro culto matéria de presenciar, mas só de apreciar da sua poltrona na platéia provinciana. O texto exemplifica: “[...] em 1870, o meu maior interesse n?o está na política do Brasil, está em Sedan. No come?o de 1871, n?o está na forma??o do gabinete Rio Branco, está no incêndio de Paris”, e assim por diante. Complica??o política e intensidade moral, na medida em que universais, só por milagre divino podem ser matéria de acontecer no Brasil e, por isso, de ser presenciadas: “Em 1871, durante meses, [o meu maior interesse] está na luta pela emancipa??o [Lei do Ventre Livre] — mas n?o será também nesse ano o Brasil o ponto da terra para o qual está voltado o dedo de Deus?” O atraso político brasileiro é antes de mais nada quest?o de geografia e pode ser corretamente encarado, na falta do dedo de Deus, pela viagem de observa??o e estudo ao estrangeiro e, na falta desta, pelo telégrafo. Como há uma dist?ncia entre o escrever e o representar uma pe?a de teatro, assim também há uma dist?ncia entre a a??o política e a sua representa??o no palco europeu, como ainda há uma dist?ncia entre esta e a sua transmiss?o, pelos meios de comunica??o de massa, para outro e distante arremedo de palco europeu.A forma??o do intelectual brasileiro no século XIX se confunde com outra forma??o: a da sedimenta??o das camadas geológicas do “espírito humano” (a express?o é do texto). Há uma tardia e, por isso, dupla inscri??o do brasileiro, vale dizer, do americano, no processo histórico de esfriamento da crosta da cultura humana. Os americanos pertencem à América pelo sedimento novo, flutuante, do seu espírito, e à Europa, por suas camadas estratificadas. Pé cá, pé lá, em equilíbrio — aparente é claro, pois n?o se pode dar o mesmo peso e valor à busca sentimental do come?o (a história do Novo Mundo) e à investiga??o racional da origem (a história da civiliza??o ocidental). O eurocêntrico Nabuco conclui: “Desde que temos a menor cultura, come?a o predomínio destas [das camadas estratificadas] sobre aquele [o sedimento novo]”. Diz ainda: “o espírito humano, que é um só e terrivelmente centralista, está do outro lado do Atl?ntico [grifo nosso]”. A pesquisa geológica do nacional vai apenas até o marco crist?o da descoberta da regi?o por país europeu, ou seja, até a Primeira Missa rezada pelos padre português no Brasil; dali o geólogo n?o deve partir para recompor as tradi??es dos autóctones; lá chegando, deve se desviar do solo pesquisado, dar meia-volta e, vestido de historiador das idéias, sair em busca de profundidades só encontradas em civiliza??es da humanidade, como a dos europeus. Há um fundo (enrique?o semanticamente a palavra de Nabuco, tomando-a em todos os seus sentidos: geográfico, histórico, econ?mico, social, etc.) europeu comum que tanto define o lá quanto, por forma??o, legitima o cá.A pátria que fascina o cora??o n?o ilude a cabe?a e, por isso, o “grande espetáculo” do mundo é o que “prende e domina a inteligência”. Em política, a “lei do cora??o” só é forte e dominadora no momento em que a raz?o é desclassificada pela idade avan?ada ou pela infelicidade da pátria. Escreve o narrador experimentado: “cada vez sou mais servo da gleba brasileira, por essa lei singular do cora??o que prende o homem à pátria com tanto mais for?a quanto mais infeliz ela é e quanto maiores s?o os riscos e incertezas que ele mesmo corre”. Corpo velho numa pátria republicana, dominada por militares jacobinos, s?o dignos de piedade, daí o sentimentalismo do velho narrador de Minha forma??o.Nos anos da juventude e da maturidade, sentado na platéia do palco brasileiro, onde se encena o drama menor da jovem na??o, Nabuco almeja estar na platéia do grande teatro da humanidade, onde se desenrolam as pe?as sedutoras e definitivas do século. Escreve ele: “As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta amaz?nica ou os pampas argentinos, n?o valem para mim um trecho da Via Appia, uma volta da estrada de Salerno a Amalfi, um peda?o do cais do Sena à sombra do velho Louvre. No meio do luxo dos teatros, da moda, da política, somos sempre squatters, como se estivéssemos ainda derribando a mata virgem”. A identidade histórica de jovens na??es, como as americanas, n?o se encontra ali onde esperam encontrá-las os nativistas, isto é, os políticos com p minúsculo. Ela está fora do tempo histórico nacional e fora do espa?o pátrio: por isso é lacunar e eurocêntrica. Em resumo, o seu lugar é a “ausência”, determinada por um movimento de tropismo. Em virtude da ausência de um solo pátrio legítimo, o triste sofrimento por que passa o brasileiro serve de fundamento e justificativa tanto para os v?os da sua imagina??o eurocêntrica quanto para o apego, no exílio londdrino, ao país onde nasceu: “De um lado do mar, sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país”. A quest?o do poder (dos “donos do poder”, para retomar a express?o de Raymundo Faoro) e da cultura brasileira como herdeira da européia se anuncia de maneira extraordinária em Nabuco pela dupla brecha da ausência e se reconforta, como um motor se reconforta ao receber nova carga de combustível, com a dupla (e n?o unívoca, como em Gon?alves Dias) sensa??o de saudade .Avancemos o relógio do tempo e entremos século XX adentro. Vamos encontrar na correspondência entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, um fascinante eco do diálogo entre Gon?alves Dias (via José Guilherme Merquior) e Machado de Assis (via Joaquim Nabuco), eco que, ao ribombar pela cultura brasileira, acaba por ser inteiramente a favor da corrente nacionalista. Ao ler carta de Drummond escrita nos anos 20, Mário observa que o espírito do poeta mineiro se encontrava ent?o completamente tomado pela tristeza e o pessimismo de Joaquim Nabuco e, principalmente, pelo ceticismo finissecular de Anatole France. Mário n?o perdoa as duas influências complementares e, segundo ele, nocivas, e nelas encontra material para enriquecer as suas reflex?es políticas e alimentar os seus petardos certeiros e ir?nicos contra os “mestres do passado”.Mário de Andrade pin?a na carta do recente amigo mineiro frases que indiciam dois momentos reveladores da insuficiência intelectual dele. Destaca primeiro a seguinte passagem: “Pessoalmente acho lastimável essa história de nascer entre paisagens incultas e sob céus pouco civilizados. Acho o Brasil infecto.” E mais adiante na carta, Mário detecta em meio a uma frase a origem da lástima e do nojo cosmopolitas drummondianos. Esses sentimentos s?o justificados, lê Mário, pela “tragédia de Nabuco, de que todos sofremos” .A primeira tarefa didática a que Mário se dedica é a de trabalhar o conceito duplo de saudade, difundido por Nabuco, com vistas a dissociar o privado do público e rejeitar a hierarquiza??o dos significados mascarada pela amgüidade. Em entrevista a um jornal carioca, A Noite, publicada em dezembro de 1925, o autor de Macunaíma constata, repondo o “lá” e o “cá” nos seus devidos lugares: ”O modernista brasileiro matou a saudade pela Europa, a saudade pelos gênios, pelos ideais, pelo passado, pelo futuro, e só sente saudade da amada, do amigo...” Para Mário, a melancolia da separa??o só é passível de ser cultivada no cipoal das rela??es pessoais. Fora disso, traduz o “desacomodamento” do brasileiro com a realidade ambiente. Daí, segundo Mário, a necessidade que o jovem brasileiro tem de “sentir e viver o Brasil n?o só na sua realidade física mas na sua emotividade histórica também” . Mário estava dando os primeiros passos na longa caminhada de “abrasileiramento do Brasil”. Antes de mais nada, pregava ele, era preciso buscar n?o a origem da tragédia de Nabuco, mas o foco da infe??o mazomba.De maneira bem humorada, come?a por propor a Carlos Drummond que considere a “tragédia de Nabuco” como par para a doen?a tropical transmitida pelos insetos conhecidos como barbeiros e que leva o nome do cientista que a descobriu, a doen?a de Chagas. A dita tragédia de Nabuco nada mais seria do que uma outra doen?a tropical, transmitida aos jovens pelo bacilo das ninfas européias. Escreve Mário ao futuro poeta maior: “o Dr. Chagas descobriu que grassava no país uma doen?a que foi chamada de moléstia de Chagas. Eu descobri outra doen?a mais grave, de que todos estamos infeccionados: a moléstia de Nabuco”. Na entrevista acima citada, Mário define: “Moléstia de Nabuco é isso de vocês [brasileiros] andarem sentindo saudade do cais do Sena em plena Quinta de Boa Vista e é isso de você falar dum jeito e escrever covardemente colocando o pronome carolinamichaelismente. Estilize a sua fala, sinta a quinta de Boa Vista pelo que é e foi e estará curado da moléstia de Nabuco”.[espa?o]Ao planejar esta antologia, julgamos que seria importante centrar a aten??o dos leitores nos melhores ensaios escritos por brasileiros sobre o Brasil, depois da Independência do país. Isso n?o excluirá a possibilidade de outras antologias virem a ser publicadas. Antologias em que textos coloniais ou de viajantes estrangeiros sejam selecionados; ou ainda antologias em que histórias pormenorizadas de determinados períodos históricos da nacionalidade, ou contribui??es de caráter descritivo e/ou interpretativo de acontecimentos históricos precisos sejam a dominante; ou, finalmente, antologias em que as interpreta??es seguiriam de perto a evolu??o de uma atividade artística no país (histórias da música, das artes plásticas, da literatura, do cinema, etc.). Falta-nos, sem dúvida, um quadro antológico das atividades dos brasileiros no campo das artes.Tratava-se, no nosso caso, de buscar um princípio organizador que desse a dimens?o da for?a intelectual que desenvolvemos, gera??o após gera??o, de refletir sobre o próprio país a partir do momento em que se tornou independente e a na??o, soberana. O feito, o que está sendo feito e o que deverá ser feito. Pensamento e a??o. Injusti?as e verdades. Fracassos e conquistas. Reflex?o e auto-conhecimento. O particular e o universal. Crítica e autocrítica. Idéias e governabilidade. Ideologias e fanatismos. Eis aí alguns dos pares que se impunham no momento da escolha. Dever?o servir como reservatório infinito de luz para a constitui??o de novas interpreta??es neste momento em que o país comemora quinhentos anos do seu “achamento” (apud Caminha) pelos navegadores portugueses. Queríamos armar uma festa de aniversário, talvez menos trivial do que uma comemora??o onde a pompa e os fogos de artifícios podem dominar e inebriar, mas acabam por escamotear o profundo sentimento de amor e esperan?a por melhores dias que h?o de vir para o país que criaram para nós e continuamos a criar. Mas a festa n?o é frugal, tal a qualidade das iguarias que est?o sendo oferecidas ao leitor ávido de conhecimento.Selecionamos dez ensaios e um romance, onze autores, que nos parecem dignos de representar o melhor do pensamento brasileiro sobre o Brasil. E para acompanhar cada livro, solicitamos a um grande especialista e estudioso da matéria uma introdu??o. Os clássicos dialogam com os seus admiradores. Onze ensaístas, todos contempor?neos nossos. Pertencem eles a escolas e gera??es diferentes. Apresentam abordagens e estilos diferentes. Por isso, dentro da diversidade das grandes interpreta??es selecionadas, a diversidade dos ensaios introdutórios solicitados. O conjunto duplamente rico e complexo deverá convergir para um ponto paradoxal, ainda mais complexo: um exemplo entre outros, talvez o mais ambicioso -- o trabalho de montar uma antologia de textos que mostra como é que pensamos e continuamos a pensar o Brasil. Eis o quadro a que chegamos no final: 1. Joaquim Nabuco, O abolicionismoFrancisco Iglésias 2. Euclides da Cunha, Os Sert?esRoberto Ventura 3. Manuel Bonfim, A América LatinaFlora Sussekind 4. Oliveira Viana, Popula??es meridionais do Brasil (apenas o 1? volume)José Murilo de Carvalho 5. Alc?ntara Machado, Vida e morte do bandeiranteLaura de Melo e Souza 6. Graciliano Ramos, Vidas secasWander Melo Miranda 7. Paulo Prado, Retrato do BrasilRonaldo Vainfas 8. Gilberto Freyre, História da sociedade patriarcal no Brasil (Casa Grande & Senzala, Sobrados e Mocabos e Ordem e Progresso)Eduardo Portella 9. Sérgio Buarque de Hollanda, Raízes do BrasilMaria Odila Leite da Silva Dias10. Caio Prado Júnior, Forma??o do Brasil Contempor?neoFernando Novais 11. Florestan Fernandes, A revolu??o burguesa no BrasilFernando Henrique CardosoA edi??o está a cargo da Editora Nova Aguilar, cuja reputa??o no mundo editorial e acadêmico é inquestionável. Para tornar mais c?moda a consulta a esse ou aquele tópico dos três alentados volumes, tanto por parte de especialistas quanto de estudantes que agora se adentram por matéria t?o densa e complexa, Ana Cláudia Viegas, Ana Cristina Coutinho Viegas e Marília Rothier Cardoso foram convocadas para elaborar (trabalho de inteligência, paciência e minúcia!) o índice onomástico e de idéias de cada um dos livros selecionados. Dessa forma, a consulta a detalhes precisos de cada um dos livros, posterior à sua leitura, poderá ser facilitada por verbetes que servem como marcos de referência na longa caminhada que representa um ensaio interpretativo.[espa?o]Abrimos a nossa antologia de intérpretes do Brasil com um livro que preenche a grande lacuna deixada pelo romance de José de Alencar: O abolicionismo, de Joaquim Nabuco. O atraso do Brasil em rela??o ao mundo civilizado é moeda corrente nos textos coloniais, e , como temos salientado, os pensadores, nacionais ou estrangeiros de passagem pelo país, o assinalam sob várias modalidades. A partir do momento em que o país ganha a Independência e somos nós mesmos que somos os responsáveis pelo governo da na??o, o tema do atraso (na década de 30 do nosso século expresso pelo conceito de subdesenvolvimento e, em décadas posteriores, em evidente eufemismo corretor, pela express?o em desenvolvimento) passa a ser a quest?o interna por excelência. Nomeá-lo passa a significar que se coloca em xeque o conservadorismo político da máquina administrativa em tempos de progresso material, que se salientam os desmandos de poder, como os regimes de exce??o e desvios ou mal versa??o de verbas públicas e que, finalmente, se ressaltam as dificuldades em dar ao brasileiro o estatuto de cidad?o, tornando-o fomentador exigente das reformas sociais indispensáveis em época de idéias liberais (século XIX) ou de idéias revolucionárias (século XX).Na sua época, Joaquim Nabuco é o mais sensível dos estadistas brasileiros ao sentido corruptor do atraso nacional, assinalando sem meias-palavras a sua causa maior: a escravid?o negra. No exílio em Londres, acusa de maneira peremptória os brasileiros: “N?o basta n?o possuir escravos, para n?o se ter parte no crime. [...] Os brasileiros s?o todos responsáveis pela escravid?o [...] porque a consentem”. Seu livro de memórias, Minha forma??o, revela a sua sensibilidade diante das sensa??es e idéias ambíguas que experimenta. Ao mesmo tempo em que, durante os períodos prolongados em que permanece no exterior, é um espectador consciente dos grandes acontecimentos mundiais que têm lugar na segunda metade do século XIX, é também obrigado a conviver, na própria terra e no dia a dia, com a mesquinharia de uma política menor e interesseira, criminosa. Talvez seja por esse seu lado cosmopolita (n?o se esque?a de que O Abolicionismo foi pesquisado e escrito na biblioteca do Museu Brit?nico, como assinala Francisco Iglésias na Introdu??o) que consiga formular de maneira t?o certeira críticas severas e amargas ao nosso modo de governar. Em 1886, afirma:entre nós as reformas parecem prematuras, quando já s?o tardias. A escravid?o já nos tinha completamente arruinado quando apareceu o abolicionismo. As solu??es patrióticas dos nossos estadistas só têm o defeito de serem póstumas.Aparentemente prematuras, na verdade as reformas já nascem tardias e acabam sendo póstumas para os que as teriam merecido. Dentro desse contexto é que se deve entender a atualidade de uma das suas frases mais famosas: “n?o nos basta acabar com a escravid?o; é preciso destruir a obra da escravid?o”. Frase esta que foi traduzida pelas duas tarefas que Nabuco impunha aos brasileiros: uma imediata e a outra, a do futuro. A tarefa imediata é óbvia: a aboli??o. Acrescenta: “Além dessa, há outra maior, a [tarefa] do futuro: a de apagar todos os efeitos de um regímen que, há três séculos, é uma escola de desmoraliza??o e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores, e que fez do Brasil o Paraguai da escravid?o”. Se o pensamento do estadista guarda a sua atualidade, a argumenta??o que no seu livro clássico dela deriva para justificar o abolicionismo se perde no tempo em virtude das pesquisas feitas nas últimas décadas do nosso século em torno de aspectos negligenciados pela vis?o elitista de Joaquim Nabuco e demais pares , ou seja, a cren?a de que, no Brasil, as reformas sociais só “funcionam” quando feitas “por cima”, para usar o jarg?o.No entanto, é indispensável conhecer os fatores da sua argumenta??o, pois s?o eles destemidos e revolucionários para a sua época, ainda que sobre eles pese o indisfar?ável compromisso do pensador com o sistema monárquico . ? por causa da deteriora??o das melhores qualidades do ser humano negro pela escravid?o que o abolicionismo teria de ser tomado, n?o só como um movimento político de caráter suprapartidário, mas também os seus principais líderes agiriam como advogados que tinham recebido um mandato da ra?a negra, tanto dos escravos quanto dos ingênuos . Neste sentido, os líderes brancos mantinham, nas casas legislativas, um diálogo direto com o poder instituído, tornando-se o Imperador, para usar a express?o de Marco Aurélio Nogueira, “autêntico sujeito da aboli??o”, e um diálogo indireto, nas fazendas e nos quilombos, com os próprios escravos, dispensados que estavam da tarefa de ser for?a de manobra do movimento . Essa dispensa tem de ser matizada, pois Nabuco n?o delega ao futuro ex-escravo a condi??o de estrangeiro, ou de cidad?o de segunda classe. Para ele, em primeiro lugar, “a ra?a negra nos deu um povo”, e, em segundo lugar, “ela construiu o nosso país”. E continua de maneira admirável:Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habita??o e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alf?ndegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo, que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumula??o de riqueza, n?o passa de uma doa??o gratuita [grifo nosso] da ra?a que trabalha à que faz trabalhar (p. 37) .A essa doa??o, Nabuco exige uma contra-doa??o: a alforria. Naquele momento, muito mais um jogo de sorte do que uma esperan?a. E completa, nessa loteria, “quase todos os bilhetes saem brancos”. Excetuados os libertos, no cativeiro morrem todos os demais.[espa?o]?s palavras duras de Joaquim Nabuco em O Abolicionismo se somam as palavras n?o menos ásperas de Euclides da Cunha em Os Sert?es, denunciando “o crime” que estava sendo cometido pelas nossas for?as armadas contra os sertanejos, em nome de um ideário republicano que n?o chegavam a apreender em toda a sua extens?o. Temos as palavras candentes de Manuel do Bomfim que, em A América Latina, revela o modo como a Europa paralisou pelo parasitismo o desejo de luta pela civiliza??o que alicer?ava o ideal de todos os latino-americanos. Temos as anota??es frias de uma leitura moderna de testamentos dos séculos XVI e XVII, onde Alc?ntara Machado, no desconcertante livro Vida e morte do bandeirante, descobre mais a pobreza e a honestidade dos primeiros brasileiros do que o luxo e a pompa de uma sociedade européia transplantada como tal para os trópicos. Temos a palavra desiludida de um aristocrata que, inconformado com o modo como foi constituída a sociedade brasileira, confessa a sua tristeza e a do povo seu compatriota no Retrato do Brasil que esbo?a com eleg?ncia e enfado. Temos a palavra “educada pela pedra” (para retomar a express?o de Jo?o Cabral de Melo Neto) de Graciliano Ramos, pondo a descoberto flagelos que nos perturbam até os nossos dias: a migra??o nordestina para os centros industriais, a seca, os sem-terra. Vidas secas -- pode haver título mais simbólico? Temos a voz macia e acolchoada de um grande estilista que soube, como nenhum outro, compreender a contribui??o cultural dos africanos, os mais sofridos de todos os brasileiros, para a constitui??o de uma sociedade patriarcal híbrida nos trópicos. Temos a voz ríspida e erudita de um pensador que, sem desprezar a tranqüilidade com que o homem brasileiro foi tecendo o seu destino histórico, soube estabelecer os princípios inquestionáveis da nossa identidade política, social e cultural no belo e comovente Raízes do Brasil. Temos a voz doutrinária do nosso primeiro grande pensador marxista que, através de uma interpreta??o econ?mica da situa??o do Brasil no contexto do mercantilismo internacional, formula quest?es que só poderiam ser resolvidas revolucionariamente. Reflitamos sobre a li??o de Forma??o do Brasil contempor?neo. Temos a voz pacífica de um homem humilde que, gra?as aos próprios esfor?os, al?ou-se à condi??o de mestre de mestres e de homem político brilhante e destemido, é essa voz que flagra uma dada realidade brasileira (a revolu??o burguesa) que surge no século XIX, em inevitável decorrência de um processo de transforma??o básico na nossa História, ocasionado pela Independência. E a essas palavras de fogo podem somar palavras mais simpáticas, ternas na sua compreens?o da coloniza??o portuguesa nos trópicos, enraizadas que est?o nos grandes feitos de indivíduos extraordinários que aqui souberam desenvolver, de maneira auto-suficiente, micro-sociedades estáveis e rendosas. ? o caso de Oliveira Viana e do seu livro Popula??es meridionais do Brasil.Temos de acrescentar que s?o poucos os países do Novo Mundo que podem ostentar pensadores com esse conhecimento e erudi??o, livros meditados e escritos com tanta fibra e coragem, com esse transbordante amor pelo país e os brasileiros, de que falou José Guilherme Merquior, amor que n?o se confunde com as declara??es apaixonadas, retóricas e inócuas dos aventureiros da primeira e da última hora, expostas em livrecos que buscam agradar os poderosos do momento e os pouco escrupulosos. Os onze livros que v?o ler colocam o país e os brasileiros n?o como algo já sabido (talvez menos o de Oliveira Vianna, por demais comprometido com os valores transmitidos pelos textos coloniais), mas como problema que n?o se deslinda, como incógnita que atordoa, apesar do esfor?o inédito de apreens?o do seu evoluir histórico. Para melhor compreenderem a na??o e os cidad?os -- nas suas origens, no seu devir colonial e, finalmente, soberano --, nossos pensadores avan?am os olhos por todo o mapa do país, tomam emprestado lunetas para melhor alcan?ar outras épocas e outras civiliza??es, com o intento de chamar a aten??o para as grandes conquistas que foram feitas desde sempre, pelo mais an?nimo dos índios e dos escravos, passando pelos lavradores, faiscadores, trabalhadores, funcionários públicos, profissionais liberais, latifundiários, capit?es de indústria, etc., tornando o país uma das na??es mais adiantadas da América Latina, mas também querem acercar-se das causas das injusti?as sociais, combatê-las pelas armas da palavra, saber o por quê de tanta miséria e sofrimento por parte de um povo, no entanto, trabalhador e sempre disposto a buscar a prosperidade e o progresso moral seja dos seus, seja da na??o. Brasil, o nosso “claro enigma”. ................
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