DISCUTINDO A ESCRITA DE ALUNOS SURDOS



DISCUTINDO A ESCRITA DE ALUNOS SURDOS[1]

Maria Cristina da Cunha Pereira

DERDIC-PUC/SP

A questão do letramento de alunos surdos tem preocupado profissionais e pesquisadores da área da surdez, uma vez que, embora desenvolva habilidades de codificação e de decodificação, a maioria apresenta muita dificuldade para atribuir sentido ao que lê. Essa dificuldade pode ser atribuída não só às concepções de leitura e de escrita que embasam as práticas pedagógicas utilizadas na escola, mas também ao pouco conhecimento do português que a quase totalidade dos surdos apresenta quando chega à escola.

Em relação às concepções de leitura e de escrita, Ferreiro (1995) distingue a que considera a escrita como código de transcrição gráfica das unidades sonoras, e a que a considera como representação da linguagem.

Ao conceber a escrita como código de transcrição gráfica das unidades sonoras, observa-se uma preocupação de se converter unidades sonoras em unidades gráficas e nesse sentido a discriminação perceptiva é colocada em primeiro plano. Segundo Ferreiro, os programas de preparação para a leitura e para a escrita que derivam desta concepção centram-se na exercitação da discriminação. O pressuposto subjacente a estas práticas é o de que, se não há dificuldade para discriminar visual ou auditivamente, não deveria haver dificuldade para aprender a ler, já que se trata de uma simples transcrição do sonoro para o visual.

A adoção dessa concepção à educação de surdos respondeu por exercícios de discriminação auditiva e visual como pré-requisito para a aquisição da escrita. Como exercício, a ênfase era colocada na palavra e não no texto e o resultado foram a decodificação, na leitura, e a codificação, a escrita, e não a atribuição e produção de sentido.

Na concepção de escrita como representação da linguagem, a escrita não é vista como produto escolar, mas sim como objeto cultural. Sua aprendizagem é concebida como apropriação de um novo objeto de conhecimento, com propriedades específicas, e usado como suporte de ações e de intercâmbios sociais. As práticas pedagógicas vão incidir sobre o ensino-aprendizagem da escrita como prática social. Nessa concepção, como refere Ferreiro, as atividades de interpretação e de produção da escrita começam antes da escolarização, e a aprendizagem se insere em um sistema de concepções previamente elaborado.

Letramento e alfabetização –

Soares (1998) define o letramento como o estado ou condição daquele que se apropria dos usos culturais e sociais da escrita, aí incluída a construção de sentidos por meio da interação com e pela escrita. Aprender a língua escrita não é apenas alfabetizar-se; é adquirir um estado ou condição de relação com o mundo, de compreensão da realidade – é tornar-se letrado.

A autora destaca que as pessoas se alfabetizam, aprendem a ler e a escrever, mas não necessariamente incorporam a prática da leitura e da escrita, não necessariamente adquirem competência para usar a leitura e a escrita para se envolverem em práticas sociais de escrita: não lêem livros, jornais, revistas, não sabem preencher um formulário, sentem dificuldade para escrever um telegrama, uma carta; não conseguem encontrar informações num catálogo telefônico, num contrato de trabalho, numa conta de luz ou numa bula de remédio.

Em relação aos surdos, Soares (1998) afirma que, quando o surdo aprende a língua como um exercício, não como uma forma de interação discursiva, a situação de interação não será fundamentalmente uma situação discursiva que estruture formas de pensar a realidade, que configure processos cognitivos; será fundamentalmente um esforço de codificação e de decodificação.

Svartholm, lingüista sueca, defende que, como as crianças ouvintes, as surdas necessitam ser expostas à língua escrita muito antes que possa se esperar que iniciem seu aprendizado real. Devem descobrir a função da mesma no uso diário. Para as crianças ouvintes, se lê coisas em voz alta e, deste modo, desde muito cedo se está mostrando a relação entre a língua escrita e a língua na sua forma falada, a língua que a criança já sabe. Para a criança ouvinte, aprender a ler é penetrar nesta relação. Mas para a criança surda não há tal relação, já que aprender a ler e aprender a língua é um mesmo processo.

Deve-se mostrar para a criança surda que a língua escrita realmente significa algo, evocando o significado em outra língua, a de sinais.

Construção inicial da escrita por crianças surdas

Ao analisar a aquisição da leitura e da escrita por crianças surdas, da Educação Infantil, de uma escola especial[2], Pereira (2002) enfatiza a necessidade das mesmas serem inseridas em atividades que envolvam a escrita, assim como a importância da Língua de Sinais nesse processo.

Desde que entram na escola, as crianças são inseridas em atividades discursivas, como diálogos (conversas) e relatos (de histórias, de final de semana, de passeios etc.). Os livros de histórias são portadores de textos privilegiados devido ao interesse que despertam nas crianças. Tanto o instrutor surdo como o professor desenvolvem atividades de contar história usando a língua de sinais, e é geralmente nesta situação que as crianças iniciam seus relatos, primeiramente incorporando fragmentos do relato do adulto ou dos colegas e depois constituindo o seu próprio texto. Além dos livros de histórias, outros portadores de textos são utilizados, como parlendas, receitas, cantigas infantis, versinhos, entre outros.

Embora a escrita esteja presente todo o tempo nas salas de aula, há momentos específicos para a leitura, nos quais todos lêem, inclusive as professoras. O objetivo é propiciar a postura de leitor nos alunos, já que muitos não têm este modelo em casa. Cada aluno escolhe um ou mais livros para ler e a única regra é não incomodar os outros.

Os efeitos desta prática têm sido animadores. As crianças, mesmo as mais agitadas, se envolvem, ainda que por pouco tempo, na atividade. Algumas apenas folheiam os livros, enquanto outras nomeiam figuras e outras, ainda, ensaiam relatos da história, o que acontece com os livros mais conhecidos. Assim como acontece com as crianças ouvintes, alguns livros são eleitos como os favoritos e sempre que possível são lidos pelas crianças.

As crianças são incentivadas a levar livros para casa, bem como dispõem de livros nas salas e, às vezes, enquanto esperam os colegas terminarem uma atividade, pegam um para “ler”.

Por meio de perguntas, as professoras, desde as primeiras classes, incentivam as crianças a produzirem pequenos relatos, os quais são escritos pela professora, em português, na lousa. A professora faz, assim, o papel de escriba, escrevendo em português os relatos que as crianças apresentam em língua de sinais.

Cada professora faz uso de estratégias adequadas ao interesse e nível de desenvolvimento dos alunos, no entanto, o que é comum a todas é que não se trabalha com vocábulos ou frases descontextualizados.

Incentiva-se o registro no papel e nesta atividade observam-se as primeiras formas que se assemelham a vocábulos e pequenos textos.

À guisa de ilustração do efeito que os textos escritos fazem nos alunos da Educação Infantil do IESP, é apresentada abaixo a produção escrita de Ricardo, uma criança de 6;0 anos de idade[3].

Antecedendo a visita ao Zoológico, atividade que os alunos vivenciam todos os anos, a professora recordou com as crianças os nomes dos animais de que lembravam. Os nomes mais lembrados foram leão, tigre, tartaruga e os não lembrados foram veado e esquilo, por exemplo.

A professora realizou joguinhos variados que envolviam os nomes dos animais, como jogo da memória, associação entre o nome e a figura do animal e as crianças procuraram em revistas figuras dos animais que mais gostam; de animais domésticos e selvagens; com pena e sem pena; os lugares em que os animais vivem, o que comem, entre outras coisas.

Após a ida ao Zoológico, a professora propôs aos alunos escreverem um texto. Através de perguntas da professora, as crianças foram construindo o texto em língua de sinais, assim como também acrescentaram alguns fatos que observaram no passeio. A professora escreveu na lousa o seguinte texto:

Passeio ao Zoológico

Nós fomos ao zoológico de ônibus.

Lá nós vimos os patos e os cisnes no lago.

Os macacos brincando na árvore.

Não vimos o gorila.

Vimos o hipopótamo descendo pra água.

A girafa na sua casa alta.

Vimos também o leão, a onça, o tigre, o jacaré, a cobra, o rinoceronte, a tartaruga, a foca, o urso, a zebra e o elefante.

Este texto foi digitado, reproduzido em xerox, distribuído para as crianças que o levaram para casa. No retorno à escola, o texto foi lido e, após trabalhar a compreensão de alguns vocábulos escritos, o texto foi retirado e a professora propôs que as crianças escrevessem sobre o passeio. Abaixo está o texto escrito por Ricardo.

Quando as crianças acabavam de escrever, a professora pedia a cada uma que lesse o seu texto. A leitura de Ricardo, em sinais, foi a seguinte: passeio zoológico nós ônibus lá pato cisne água lago macaco árvore brinca hipopótamo água girafa alta casa leão onça tigre veado tartaruga foca elefante.

A atribuição de sentido ao seu texto revela que Ricardo entendeu o que escreveu e não simplesmente memorizou o que a professora escreveu na lousa.

Ao ler o seu texto, a criança atribuiu sentido ao que escreveu em um processo bastante semelhante ao vivenciado por crianças ouvintes. No entanto, o faz em língua de sinais.

O efeito deste e de outros textos apresentados à criança podem ser observados na disposição das palavras no papel e no espaço entre cada uma. A forma de alguns vocábulos, como leão e onça, por exemplo, animais preferidos por todas as crianças da sala, parece ter sido incorporada por Ricardo, assim como as letras iniciais de passeio, ônibus, hipopótamo, girafa, tigre, por exemplo. O uso por Ricardo do vocábulo veado, que não aparece no texto da professora, parece ser efeito de outros textos que circularam na sala sobre os animais.

Os dados apresentados mostram que, quando envolvidas em atividades em que a escrita está presente, as crianças surdas vão constituindo seu conhecimento de escrita, em um processo muito semelhante ao observado em crianças ouvintes. Para isto é preciso que vivenciem práticas em que a leitura e a escrita estejam inseridas, como contar história, relatar eventos vivenciados, entre outros.

Diferentemente das crianças ouvintes, no entanto, estas práticas vão se desenvolver na língua de sinais. É ela que vai propiciar às crianças surdas atribuir sentido ao que lêem e escrevem.

BIBLIOGRAFIA

FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. 24ª edição. São Paulo: Cortez Editora, 1995.

KARNOPP, L.B.; PEREIRA, M.C.C. Concepções de leitura e de escrita e educação de surdos. Leitura e escrita no contexto da diversidade. Porto Alegre, R.S.: Editora Mediação, 2004.

PEREIRA, M.C.C. Aquisição da leitura e da escrita por crianças surdas. Anais do Congresso Internacional do INES. Surdez e Pós-Modernidade: Novos rumos para a educação brasileira. Rio de Janeiro: INES, Divisão de estudos e pesquisas, 2002, 29-35.

SOARES, M. Letramento e surdez. In Anais do I Seminário sobre linguagem, leitura e escrita de surdos. Belo Horizonte, MG: Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação de Surdos, 1998, 92-104.

SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 2ª edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

SVARTHOLM, K. Aprendizado de segunda língua por pessoas surdas. In: AHLGREN, I. & HYLTENSTAM, K. (EDS.) Bilingualism in deaf education. Hamburg: Signum-Verlag, 1994, 61-70.

TOVAR, L. A. La Lengua escrita como segunda lengua para el niño sordo. In: Revista El Bilingüismo de los sordos, V. 1, nº 4. Santa Fe de Bogotá: INSOR, 2000.

-----------------------

[1] Muitas das idéias contidas neste texto foram extraídas do trabalho de KARNOPP & PEREIRA, 2003.

[2] O IESP/DERDIC é uma escola, vinculada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que oferece escolaridade para crianças e adolescentes surdos, desde o programa de atendimento a bebês surdos, até à oitava série do Ensino Fundamental, incluindo Educação Infantil e Ensino Fundamental Alternativo, dirigido a adolescentes com acentuada defasagem na relação idade/série escolar.

[3] A explicação do processo, bem como um dos exemplos aqui apresentados fazem parte do artigo de Pereira, 2002.

................
................

In order to avoid copyright disputes, this page is only a partial summary.

Google Online Preview   Download