Neste trabalho pretende-se analisar a circulação, as ...



LIVRO, LEITURAS E LEITORES EM BRAILE

Adarzilse Mazzuco Dallabrida

Doutoranda do Programa Educação: História, Política e Sociedade da Pontíficia Universidade Católica de São Paulo e docente da Universidade do Sul de Santa Catarina

Resumo

Este trabalho[1] pretende-se analisar a circulação, as práticas e os usos dos livros em braile disponíveis em uma biblioteca pública que atende pessoas com deficiência visual (cegos e baixa-visão)[2], na perspectiva de Roger Chartier. Os dados foram coletados através de fontes primárias, observação e entrevista com um leitor e com a funcionária do “Setor Braile” da Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina, situada em Florianópolis. Tem como objetivos investigar quais as formas de circulação e as práticas e usos dos livros em braile; qual o acervo disponível; de que maneira os livros são eleitos para a transcrição; qual a demanda de leitores cegos; e, por último, analisar os suportes materiais do livro em braile. Os resultados apontam que o acervo em braile não é representativo dos livros convencionais que circulam nas bibliotecas. Que a materialidade do livro e seus dispositivos diferem do livro a tinta, e os suportes requeridos para a leitura determinam o local de seu uso e suas práticas e consequentemente interferem na apropriação que o leitor faz do texto. Os usuários limitem-se a ler na biblioteca, refletindo na diminuição da retirada das obras. Conclui-se que o “seção braile” não utiliza os mesmos dispositivos de circulação e catalogação que as outras obras da biblioteca, podendo ser considerado um lugar a parte, com regras e normas diferenciadas, embora esteja camuflado no discurso de “integração” pelo fato de dividir o mesmo espaço com as pessoas videntes. Acredita-se que a relevância deste ensaio esteja na constatação de que, apesar do processo de inclusão estar nas ruas, a mudança de atitudes e os retrocessos da legislação, ratificam a representação social construída historicamente que o portador de deficiência é incapaz e, portanto, depende dos videntes.

Livro, Leituras E Leitores em Braile

A nossa sociedade é extremamente visual, diariamente somos bombardeados com estímulos visuais que utilizam a escrita como forma de comunicação, como por exemplo as propagandas comerciais, políticas partidárias espalhadas pelas cidades ou nos anúncios dentro dos meios de transportes. Nesta conjuntura nada mais compreensível que ao evocar as palavras: livro e leitura a nossa imagem mental reporte para o livro e a leitura convencional. Desta maneira, muitos autores de livros e editores ignoram a escrita em braile como forma de expandir o número de leitores, principalmente com a revogação da Lei Federal 009045/18/05/95, que obrigava as editoras disponibilizarem seus livros aos cegos em regime de proporcionalidade. Consequentemente, sem legislação especifica, o atendimento aos pedidos de livros transcritos em braile dependerá da “boa vontade” dos responsáveis pela edição.

Neste trabalho pretende-se analisar a circulação, as práticas e os usos dos livros em braile disponíveis em uma biblioteca pública que atende pessoas com deficiência visual (cegos e baixa-visão)[3], na perspectiva de Roger Chartier. Os dados foram coletados através de fontes primárias, observação e entrevista com um leitor e com a funcionária do “Setor Braile” da Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina, situada em Florianópolis. Tem como objetivos investigar quais as formas de circulação e as práticas e usos dos livros em braile; qual o acervo disponível; de que maneira os livros são eleitos para a transcrição; qual a demanda de leitores cegos; e, por último, analisar os suportes materiais do livro em braile.

Em Santa Catarina, desde 1988, todas as pessoas portadoras de deficiência e inclui-se aqui o portador de deficiência visual, em idade escolar, têm matrícula assegurada na rede regular de ensino, com atendimento no horário oposto nas salas de recursos mantidas pela Secretaria Estadual de Educação, que fornece o material para a escrita e leitura em braile, bem como tem um órgão responsável (Fundação Catarinense de Educação Especial- FCEE) pela transcrição do material didático utilizado na sala regular onde este aluno está inserido. A FCEE exerce seu papel também na distribuição de material em braile para as bibliotecas públicas.

O sistema braile nasceu da adaptação feita por Louis Braille (1809-1852), estudante do Instituto Nacional dos Jovens Cegos em Paris em 1829, do código militar de comunicação noturna (écriture nocturne), criado por Charles Barbier para a transmissão de mensagens no campo de batalha, sem utilização da luz (a noite), que consistia em um processo de escrita codificada em pontos salientes que representavam trinta e seis sons básicos da língua francesa. “Até hoje não foi encontrado outro meio, de leitura e escrita, mais eficiente e útil para uso das pessoas cegas”. (Mazzotta, 1996, p.19)

Este sistema é constituído por seis pontos numerados de 1 a 6, inscritos num retângulo, que combinados geometricamente fornecem os diferentes símbolos, possibilitando sessenta e três combinações.

A escrita em braile pode ocorrer de três maneiras: com a “reglete e punção”[4], com a máquina de datilografia Perkins, ou com a impressora em braile. Como os recursos mais utilizados ou mais acessíveis (economicamente) para a escrita em braile são a reglete e o punção, a explicação que segue baseia-se na escrita com estes recursos. Inicia-se a escrita com a reglete na primeira “sela guia” do lado superior da folha na direção da direita para esquerda na folha braile que tem uma espessura superior a do papel ofício, para que as letras (saliências ou relevos ) possam ser lidas no sentido da esquerda para a direita do outro lado da folha. Cabe enfatizar que utiliza-se neste sistema, somente um lado da folha para escrita, deixando o outro para a leitura. As duas mãos deverão estar colocada na folha a ser escrita.

A leitura deverá ocorrer no sentido inverso da leitura ou seja, da esquerda para a direita e necessariamente os dois indicadores deverão estar colocados na folha, o direito percorrerá no sentido horizontal, na leitura propriamente dita e o indicador esquerdo no sentido vertical demarcando as linhas.

Como se pode constatar, a leitura em braile, não possibilita que o leitor possa fazer anotações concomitantemente à leitura. Outro aspecto relevante é que o leitor precisa utilizar ambas as mãos na leitura e, sendo o livro mais volumoso que o livro convencional, pelo fato de serem utilizadas folhas com uma espessura superior da folha comum e também por utilizar somente um lado da folha para a escrita. A posição que o leitor em braile deverá assumir para efetuar a leitura dentro ou fora da biblioteca deverá ser sentado com o livro apoiado em uma mesa. Desta maneira, constata-se que a leitura braile não poderá ser realizada da maneira como usualmente utiliza-se a leitura convencional, ou seja, na cama, em pé ( em filas), sentando em parques, dentro de meios de transportes, limitando muito os leitores em braile, quanto ao espaço e tempo.

Na análise realizada por Chartier do mobiliário do século XVIII destinado à leitura na intimidade, descreve que os “suportes adequados”, implicam no prazer da leitura.

“... a poltrona, dotada de braços e guarnecidas de almofadas, a chaise-longue ou espreguiçadeira cortada com seu tamboreta separado são, igualmente, novos assentos onde o leitor, mais frequentemente a leitora, pode se instalar à vontade e abandonar-se ao prazer do livro... outros móveis implicam uma leitura menos relaxada, como as mesas de base móvel onde se pode colocar o livro...” (Chartier,1996 p.91).

É importante salientar que a leitura em braile impede que o leitor faça as anotações ou sublinhe as passagens interessantes da leitura. Isto lembra a leitura e a escrita feita em “rolo” na Antigüidade. Chartier (1999), afirma que as formas materiais implicam em formas de entendimento do texto. Segundo este autor a leitura em rolo é uma prática diferente da leitura feita em “códice”, referindo-se ao impedimento de ler e escrever ao mesmo tempo.

“Leer un rollo implica una práctica completamente distinta a la de leer um códice; es claro que leer un rollo impide escribir y leer al mismo tiempo, ya sea porque el lector lee mientras sus dos manos detienen las reglas de madera en las cuales se enrolla el rollo o bien porque cirra el rollo y tiene en una sola mano los soportes del rollo, y escribe, pero sin poder leer."”( Chartier, 1999 p.58)

Os dados empíricos deste ensaio serão analisados na tentativa de encontrar elementos que demonstrem que a prática da leitura em braile sofre a interferência da materialidade do livro e dos dispositivos que o compõe. Mas, dada a complexibilidade desta questão e a insipiência deste ensaio, seria interessante que novos trabalhos aprofundassem esta investigação sobre a forma de apropriação e a produção de sentidos que a leitura em braile pode proporcionar.

Continuando a análise dos dados coletados através das observações realizadas na biblioteca e na entrevista com a funcionária responsável pelo atendimento destes leitores, contatou-se que a “seção braile” divide o mesmo espaço com outras estantes de livros a tinta destinados aos trabalhos de alunos do ensino fundamental. Embora sejam destinados estantes específicas para este acervo, nota-se que a identificação destes livros não está escrita em braile e sim na escrita convencional[5], dificultando assim, que o leitor encontre sozinho a obra que procura.

No acervo disponível em braile encontra-se um total de 194 títulos, classificados por assunto: diversos (67), religião (28), direito(19), português (16), música (13), pedagogia (8), história (7), ecologia (5), sociologia (5), matemática (5), química (4), biografia (4), biologia (3), psicologia (3), física (3), filosofia (2), informática (1), geografia (1). Também compõe o acervo 6 dicionários ( português/inglês, português/espanhol, português/português).

O espaço ocupado por este acervo é de três estantes de metal, utilizadas de ambos os lado, pois geralmente uma folha em tinta corresponde a três folhas em braile, sendo que no final da transcrição o livro tem o triplo do número de folhas, dividido em vários volumes para permitir seu manuseio.

Analisando os títulos dos livros nesta classificação, pode-se perceber que os livros classificados como “diversos” e que encontram-se em maior número, são majoritariamente livros de literatura infantil (56), e os onze títulos restantes são livros de culinária, tricot , de auto- ajuda.

Os livros classificados como “religião” estão em segundo lugar com relação ao número de títulos. O autor “Trigueirinho” lidera o número de títulos transcritos (21), os títulos são sugestivos de ‘auto-ajuda”, como por exemplo “A cura é simples”, “A função do sofrimento”, “A solução está pronta” “A busca do espiritual”, “A cura”, “ Optar por viver”.

Há outros quatro livros da religião espírita (Alan Kardec) e também “O Novo Testamento” de edição de portuguesa. Uma curiosidade foi encontrar dois livros sobre “Esperanto” (Esperanto conversacional e o Curso relâmpago de Esperanto) nesta classificação de religião. Frente a todas as dificuldades já mencionadas com relação a este acervo, cabe ainda uma reflexão sobre a importância de uma classificação adequada, tendo em vista que a identificação a tinta em muitos destes livros está apagada, e a funcionária não sabe ler em braile.

Os livros de “direito” estão em terceiro lugar com relação ao número de títulos. Encontra-se transcrito o Código Civil, o Código Penal, o Código de Proteção ao Consumidor, a Constituição do Estado de Santa Catarina e outros livros que retratam os direitos e os deveres dos cidadão, principalmente na questão deficiência.

Analisando os livros classificados como “português”, identifica-se que vários são referentes ao ensino da língua portuguesa das séries finais do Ensino Fundamental; um livro sobre literatura em três volumes.

Nos títulos classificados como “música”, encontram-se livros com métodos facilitados de vários instrumentos (piano, cavaquinho, violão, guitarra, flauta doce, órgão eletrônico e saxofone).

Os demais títulos transcritos em braile espelham cartilhas e livros didáticos adotados no Ensino Fundamental e Médio. O que chamou atenção nestes livros é que não estão adaptados, ou seja, que as figuras do livro original foram desconsideradas, o que pode acarretar a perda de sentido para o leitor, haja vista que muitos textos nestes livros remetem a figuras que os acompanham.

Esta seção destinada aos portadores de deficiência visual conta ainda com um acervo de 84 obras gravadas em fitas cassetes, que são denominadas de “livro falado”. São crônicas, poesias, sonetos e contos, também alguns resumos da literatura universal como, por exemplo, Odisséia, Dom Quixote, Cyrano de Bergerac e poucos títulos da literatura brasileira: “Menino do Engenho”, “Vidas Secas”, “Helena” .

Nota-se que o acervo não é representativo da literatura brasileira, além de contar com um número pequeno de títulos, não se tem, por exemplo, os livros de autores estudados no Ensino Médio e que fazem parte da bibliografia para o vestibular. O que impressiona ainda mais é que a maioria destas obras conta somente de um exemplar. Segundo a funcionária, este tipo de livro é frágil, dependendo do uso, a fita pode ser inutilizada. Afirma que, no início do ano, muitos livros em braile e os livros falados foram descartados, devido a falta de conservação adequada.

As aquisições dos livros são feitas exclusivamente através de doações. Recebem doações da Fundação Dorina Nowill para Cegos[6] ( que é a única editora brasileira de livros em braile que reúne todas as etapas do processo de editoração dos livros), da FCEE e de pessoas físicas. Segundo a funcionária não existe periodicidade para estas aquisições e comenta que desconhece o processo de solicitação a estas instituição das obras em braile ou falada.

Com base na análise desta seção, da escassez de obras atuais, do número de títulos disponíveis e as práticas de leitura até aqui identificadas, inevitavelmente remete-se a uma aproximação com a história das leituras, mais especificamente sobre a passagem da leitura intensiva a leitura extensiva.

“... Nova Inglaterra na primeira metade do século XIX, constata a passagem de uma leitura dita intensiva a leitura extensiva. Um antigo estilo de leitura, característico das sociedades européias até a metade do século XVIII, teria as seguintes propriedades. Inicialmente , o leitor é aí confrontado com um número reduzido de livros (a Bíblia, as obras de piedade, o almanaque), que perpetuam os mesmos textos ou as mesmas formas, que fornecem as gerações sucessivas referências idênticas. Por outro lado, a leitura pessoal encontra-se situada em uma rede de práticas culturais apoiada sobre o livro: a escuta do textos lidos e relidos em voz alta, na família, na igreja, a memorização desses textos ouvidos, mais reconhecidos do que lidos...”(Chartier, 1996 p.86)

A leitura intensiva caracterizava-se por uma prática de ler e reler livros que passavam de geração a geração em número muito reduzido de exemplares. A aproximação desta passagem retomada do século XIII, com a atual situação da comunidade de leitores cegos é na intenção de mostrar que o número de exemplares faz com que eles acabem lendo os mesmos livros conforme aparece na análise a seguir.

Examinando o registro dos usuários de 2002, foi possível identificar cinco leitores que retiram livros, quatro do sexo masculino e um do sexo feminino. Dentre estes encontra-se um leitor[7] (Pedro), o mais assíduo. Desde o mês de abril até agosto, o mesmo retirou 33 obras. Sua preferência foi por livros religiosos ( Novo Testamento, A Gênese), retirou também livros de Graciliano Ramos, Ana Maria Machado, Érico Veríssimo, Monteiro Lobato. Os outros em média retiraram três obras, coincidentemente três pegaram a mesma obra ( Romeu e Julieta de Shakespeare).

Segundo a funcionária, muitos usuários não levam os livros para casa, preferindo ler na biblioteca, aponta vários fatores que na sua opinião são responsáveis para que isto ocorra, destaca que o livro em braile é pesado, e que em dia de chuva eles andam com as mãos ocupadas, uma com a bengala e a outra segurando o guarda-chuva. E relata também, a falta de infra-estrutura em casa para a leitura. Em média diz que recebe por dia dois a três usuários. Comentou que em dias chuvosos muitos usuários, que são ambulantes (vendedores de cartões telefônicos, canetas e chaveiros) no centro da cidade, aproveitam para ler na biblioteca. Este deslocamento para a biblioteca como o objetivo de fazer a leitura naquele local, pode ser considerado uma prática do leitor em braile, haja vista que não existem livros de bolso nesta linguagem e como já foi mencionado a leitura em braile requer outras suportes.

Constatou-se também que esta seção não possui uma listagem do acervo em braile, bem como não tem um fichário com dados básicos de referências das obras disponíveis e muito menos uma catalogação destas obras que assinale sua localização nas estantes. Aqui pode-se afirmar que, apesar do discurso da funcionária sobre a utilização do espaço deste leitores com os outros leitores videntes, seja uma forma de integração. O que se constata é a perpetuação da dependência do leitor cego em relação às pessoas videntes na localização das obras e o mais complicado, é que o leitor ficará a mercê desta “pessoa vidente” para que lhe informe sobre o acervo, pois os registros das obras são a tinta.

Outros elementos que precisam ser analisados são os dispositivos de produção das transcrições do livro convencional para o braile. Alguns dispositivos diferem muito do livro original, como por exemplo a capa, ficha catalográfica, informação de orelha, etc., de maneira geral estes são resumidos ou subtraídos do livro em braile. Mantêm-se, no entanto, a paginação original do livro no canto a esquerda e no final da página a numeração da transcrição.

Para Chartier (1999,p.127), não existe nenhum texto desvinculado de sua materialidade, que não dependa dos suportes que o fazem chegar ao seu leitor. Descreve dois tipos de dispositivos: “os que decorrem do estabelecimento do texto, das estratégias de escrita, das intenções do ‘autor’; e os dispositivos que resultam na passagem a livro ou a impresso, produzidos pela decisão editorial ou pelo trabalho da oficina...”. Os livros transcritos em braile não obedecem a formatação do livro convencional, pois, analisando a capa de um destes livros da biblioteca e comparando-o com a edição na escrita convencional, constata-se que somente os elementos de identificação, como título, autor, edição e ano foram transcritos. Seriam estes os elementos necessários para estimular o leitor a continuar a leitura? Será que se na capa houvesse um comentário sobre o formato do livro em tinta, com a descrição do desenho e do colorido, faria alguma diferença? As informações sobre o autor, como as obras já publicadas que geralmente acompanham o livro a tinta, não interessariam para o leitor cego, porque ele não poderá contemplar a foto do autor? Será que a redução destas informações são para diminuir custos? E com fica o direito autoral nas transcrições braile? Será que supressão do nome da editora é intencional ou um descuido?

É necessário destacar também que para a leitura em braile, os leitores utilizam na maioria das vezes como suporte a leitura oral. Este fato é confirmado pela funcionária, que relata que muitas vezes tem que pedir silêncio, pois na empolgação da leitura esquecem que dividem o espaço com outros.

Chartier avalia o “iletrismo” nas sociedades contemporâneas, falando das pessoas que precisam ler em voz alta para entender o que estão lendo.

“...Y cuando se habla de ‘iletrismo’ en las sociedades contemporáneas, se habla de personas que en su mayoría no son del todo ajenas a la cultura escrita, que no son analfabetas en el sentido absoluto de la palabra, sino que son personas que deben leer en voz alta o a media voz para entender lo que leen”. (1999, p. 50).

Neste sentido Chartier (1996) relata que a oposição entre visualização e oralização é um indicativo de diferentes maneiras de ler, mas ressalta que a leitura silenciosa não é a única e que as capacidades dos leitores podem variar consideravelmente.

“Trata-se, portanto, de reconstituir, se possível, essas diferenciações mascaradas até hoje pelo emprego da noção necessariamente simplificadora da alfabetização, que opõe, sem nuances, duas populações: a dos leitores alfabetizados e a dos analfabetos iletrados. Uma primeira diferença, a mais exteriormente visível, reside na modalidade física do próprio ato léxico, que distingue uma leitura silenciosa, que é apenas o percurso dos olhos sobre a página, e uma outra, que necessita da oralização, em voz alta ou baixa” (Chartier,1996 p.82).

Cabe ressaltar que a prática de leitura em braile necessita de sensibilidade tátil, diferentemente da leitura convencional que utiliza a visão, com isto, acrescenta-se que, sem o estímulo visual, na maioria das vezes o cego pensa estar sozinho. Vários estudos apontam que as estereotipias ou maneirismo (balanceios, falar sozinho) desenvolvidos por algumas pessoas cegas estão relacionadas como uma forma de compensar a falta de estímulo visual.

Um aspecto interessante a ser explorado nesta questão de “apropriação da leitura”, é a dificuldade que a leitura em braile impõe para que o parágrafo ou frase seja relido, tendo em vista que voltar exatamente ao trecho que se pretende reler, é necessário deslocar as mãos do papel e percorrer de modo contrário. Isto requer muita habilidade de orientação espacial. O conceito de “apropriação” que se utiliza nesta análise está considerando que os usos e as interpretações que o leitor faz do escrito, leva em conta a intenção do autor e o contexto no qual foi produzido. Para tanto, sabe-se que para uma verdadeira apropriação da leitura na escrita convencional é necessário, para a maioria das pessoas, releituras ou seja, muitas indas e vindas no texto, bem como ter elementos para contextualizar o autor e seu momento histórico. Vê-se que muitos dos livros em braile disponíveis nesta biblioteca são limitados neste aspecto, por não conter os dispositivos necessários a esta compreensão.

Segundo Chartier, referindo-se à revolução o livro e as práticas de leitura, interroga se o entendimento sobre as práticas de leitura é mais relevantes para entender as transformações ou se é necessário entender a função dada à leitura. Cita estudiosos italianos dizendo que “ el verdadero cambio esencial no lo hemos tocado hasta ahora, no pertenece a ninguno de estos registros de transformación; pertenece a la función que se le da a lo escrito...” (1999, p.51).

A função da leitura como produtora de sentidos é encarada na perspectiva de que exista no leitor um trabalho intelectual, encontrando no texto escrito não somente a função de conservação ou repositório. Claro que Chartier está referindo-se as transformações no período de seus estudos sobre as práticas de leitura e o surgimento do “mercado de leitores”. Mas, ao analisar as práticas de leitura em braile, verifica-se que muitos leitores utilizam-se da biblioteca como forma de exercitar o braile, para não esquecer e ou para atualizar as modificações nos símbolos que as vezes ocorrem.

Na tentativa de entender esta comunidade de leitores, e encontrar alguma relação entre os mesmos, foi realizada a entrevista com Pedro, com o objetivo de entender suas representações sobre o acervo desta biblioteca. Segundo este leitor de 55 anos e que cursou somente o Ensino Fundamental, a funcionária da biblioteca é quem sugere a leitura, baseada no cadastro dos livros que ele já retirou, e afirma que desconhece o acervo. Quando questionado sobre sua preferência de gênero literário, afirmou gostar de ler de tudo, só não gosta de livros infantis. Sobre a utilidade de um cadastro do acervo para que ele mesmo possa fazer sua escolha, achou a idéia ótima e mostrou total desconhecimento de como se utiliza uma biblioteca, da disposição dos livros na prateleira, alegando ser a funcionária que entrega o livro na mão dele. Demonstrou desconhecer a produção e a circulação dos livros a tinta e das limitações do acervo em braile.

Esta dependência da pessoa vidente é muito criticada pelas Associações dos Cegos de todo o Brasil, pois ela não prepara o sujeito para exercer seus direitos na sociedade. Aqui em Florianópolis fica a sede da Associação Catarinense para a Integração dos Cegos (ACIC), que tem o objetivo de reabilitar e profissionalizar o deficiente visual na idade adulta. Busca habilitar o cego para viver independentemente em todas as situação; na escola, na rua, em restaurantes, nos transportes públicos. Trava uma luta diária para quebrar o estigma do cego incapaz que sobrevive da caridade alheia. Mas sabe-se que esta atitude assistencialista é explicada historicamente por todas as fases que marcaram a educação especial na sociedade ocidental. É preciso romper com o descaso por que passa essa minoria de leitores, sem direito de escolher seu próprio livro, é preciso conscientizar os videntes das capacidades das pessoas cegas, mostrar que eles são capazes de administrarem suas vidas sem precisar depender da visão dos outros.

Enfim, muitos outros elementos carecem de aprofundamento e consequentemente possibilitariam outros olhares, mas acredita-se que a conclusão deste trabalho fornece alguns caminhos para novas investigação. Pode-se concluir que o acervo em braile não é representativo dos livros convencionais que circulam nas bibliotecas. Que a materialidade do livro e seus dispositivos diferem do livro a tinta, e os suportes requeridos para a leitura determinam o local de seu uso e suas práticas e consequentemente interferem na apropriação que o leitor faz do texto. Os usuários limitem-se a ler na biblioteca, refletindo na diminuição da retirada das obras. Conclui-se que o “seção braile” não utiliza os mesmos dispositivos de circulação e catalogação que as outras obras da biblioteca, podendo ser considerado um lugar a parte, com regras e normas diferenciadas, embora esteja camuflado no discurso de “integração” pelo fato de dividir o mesmo espaço com as pessoas videntes. Acredita-se que a relevância deste ensaio esteja na constatação de que, apesar do processo de inclusão estar nas ruas, a mudança de atitudes e os retrocessos da legislação, ratificam a representação social construída historicamente que o portador de deficiência é incapaz e, portanto, depende dos videntes. É necessário que muitos outros trabalhos venham reforçar as investigações das reais condições de atendimento aos portadores de deficiência nos serviços públicos e principalmente nos seus direitos de cidadão.

BIBLIOGRAFIA

CHARTIER, Roger. Práticas da leitura. Tradução Cristiane Nascimento, São Paulo: Estação Liberdade, 1996

________. A história Cultural: entre práticas e representações, Lisboa: Difel, 1990.

________. As revoluções da leitura no ocidente, In: ABREU, Márcia (org) Leituras, História e História da Leitura. Campinas: Mercado das Letras, 2000.

________. El mundo como representación, Barcelona:Gedisa,1996a.

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[1] Trabalho apresentado na disciplina: “Seminário Temático de História da Cultura e da Educação” ministrada pela Professora Doutora Marta M. Chagas de Carvalho no Programa de Pós- Graducação Educação: História, Política e Sociedade da Pontíficia Universidade Católica de São Paulo

[2] O termo deficiência visual pode ser classificado em cegueira ( redução da acuidade visual central desde cegueira total (nenhuma percepção da luz) até acuidade menor que 0,05 em um ou ambos os olhos, ou redução do campo visual ao limite de inferior de 10º; e visão subnormal ( acuidade visual central maior que 0,3 ( de 20/400 até 20/70) (OMS).

[3] O termo deficiência visual pode ser classificado em cegueira ( redução da acuidade visual central desde cegueira total (nenhuma percepção da luz) até acuidade menor que 0,05 em um ou ambos os olhos, ou redução do campo visual ao limite de inferior de 10º; e visão subnormal ( acuidade visual central maior que 0,3 ( de 20/400 até 20/70) (OMS).

[4] Reglete é um instrumento utilizado para a escrita braile que poderá ser usado acoplado a uma prancha (reglete de mesa) ou não (reglete de bolso), que consiste em uma régua com duas partes, a parte que fica no lado superior da folha tem “selas guias” (formada pelos seis pontos do braile, cada sela cabe somente uma letra) e a parte inferior serve para segurar a folha que deverá ficar no meio das duas partes. O punção é um instrumento que serve como um lápis, faz as letras em relevo.

[5] Os termos “escrita convencional” ou “livro convencional”, ou ainda “livro a tinta” será utilizado para diferenciar do livro em braille

[6] A Fundação Dorina Nowil para Cegos é responsável pela edição de 100 mil volumes ao ano, cerca de 400 títulos, impressos e falados, desenvolvido por uma equipe de 60 funcionários e 150 voluntários, que fazem, também a locução de periódicos, como a revista Veja, gravados em fitas-cassetes e oferecidos a pessoas e instituições. (Revista SEASONS S/D p.17)

[7] O nome utilizado é fictício com o objetivo de resguardar a identidade do usuário.

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