O poder do mercado - Federal University of Rio de Janeiro
O poder do mercado
RUBENS RICUPERO
Por que será que, apesar da desvalorização, as exportações brasileiras nos
primeiros meses do ano acusaram queda de 17%, enquanto a China, sem
desvalorizar, aumentou em quase 8% suas exportações, ao menos para os
Estados Unidos?
Uma das explicações é que os investimentos estrangeiros se associaram ao
capital chinês para modernizar radicalmente a pauta exportadora de país que,
até o início dos 80, vendia ao exterior menos de US$ 2 bilhões e hoje se
aproxima de US$ 200 bilhões por ano. Nesse período, coincidente com as
nossas duas décadas perdidas, as vendas brasileiras estagnaram em torno dos
produtos gerados pelo derradeiro ciclo de investimento do país, quase todos
bens intermediários de escasso dinamismo no comércio mundial (aço, minério
de ferro, o complexo soja, celulose, suco de laranja e quejandos).
A China executou estratégia brilhante, que soube casar a atração de
investimentos com a expansão das exportações. O México fez o mesmo,
utilizando sua integração ao gigantesco mercado norte-americano por meio do
Nafta e as vantagens únicas decorrentes da contiguidade física com o
território dos EUA (acabo de estar em San Diego, onde soube que existem mais
de mil "fábricas gêmeas", isto é, metade do prédio do lado americano, metade
em Tijuana, com a fronteira e a alfândega no meio...).
Cingapura chegou lá por outro caminho: localização estratégica do porto,
disciplina, eficiência impecável. A Irlanda, campeã do crescimento na
Europa, lançou mão dos generosos subsídios europeus, combinados aos contatos
com a diáspora irlandesa nos Estados Unidos, a fim de trazer capital para o
setor de software e outras indústrias de ponta.
Assim por diante, poderíamos encher páginas e páginas de exemplos
bem-sucedidos do casamento "investimento estrangeiro - expansão de
exportações": Malásia, Tailândia, Filipinas, os Estados da Califórnia e do
Oregon, o Reino Unido etc., etc. Basta essa enumeração, porém, para mostrar
que cada caso é um caso, que cabe a cada um partir da sua realidade para
alcançar o resultado desejado.
É óbvio que para nós o trunfo principal é o tamanho atual e o potencial de
crescimento do mercado interno. É isso que nas negociações comerciais se
denomina "market power" ou poder de mercado: a capacidade de dosar o acesso
dos outros ao próprio mercado em função das concessões obtidas para a nossa
penetração nos mercados alheios. Isso vale para os investimentos e para o
comércio, em separado, ou, melhor ainda, para os investimentos casados ao
comércio exterior e a seu serviço.
Os americanos são mestres nessa arte de nada conceder de mão beijada e até
de condicionar o acesso já existente a concessões adicionais. Por isso é que
as ameaças de represálias comerciais dos EUA são levadas mais a sério do
que, digamos, as de Bangladesh.
Trata-se de jogo que, como o beisebol ou o estranho futebol praticado na
América do Norte, não conseguimos nem entender, quanto mais praticar. Aliás,
se imprudentemente formos longe demais na liberalização do acesso ao mercado
interno, se de lambuja aceitarmos o acordo que se trama na OCDE a fim de
limitar ainda mais a flexibilidade do governo para influir sobre os
investimentos, não sobrará grande coisa para conceder ou negociar.
Com efeito, no dia em que as transnacionais puderem tranquilamente suprir o
mercado brasileiro a partir de suas matrizes (como as montadoras passaram a
fazer com as autopeças após a venda para estrangeiros da Metal Leve, Cofap e
outras) ou a partir de plataformas de exportação montadas em cidades-estados
ou pequenos países, por que se dariam ao trabalho de produzir no Brasil?
Não se deve demonizar o capital estrangeiro como se fez no passado, mas erro
equivalente é transformá-lo em gente angelical da "mão invisível" do
mercado. As transnacionais seguem estratégias traçadas pelas matrizes e
preferem, é claro, que os governos interfiram o mínimo possível com suas
prioridades, que envolvem às vezes a divisão de mercados entre matriz e
filiais por critérios pouco transparentes, a fixação de preços administrados
ou a prática do "tranfer pricing".
Compete aos governos dos países-hóspedes impedir as ações anticompetitivas e
criar condições para que o interesse nacional de aumentar as exportações
seja visto (e, de fato, assim é) como coincidente com o interesse do
investidor estrangeiro desejoso de dispor de divisas para repatriar
legitimamente seus lucros.
Como disse muito bem o editorial "Privatização sem debate", publicado pela
Folha em 8 de junho: "Se o governo apóia com fundos públicos a privatização,
é aceitável que se discuta também a contribuição, para o projeto nacional,
de grupos beneficiados pelo apoio do Estado (...).
Tal projeto vai desde a defesa competitiva da indústria nacional à promoção
do desenvolvimento tecnológico do país, passando por compromissos com o
ajuste das contas externas".
Peço vênia para ponderar apenas que a necessidade de estratégia para o
capital estrangeiro que o faça coincidir com o interesse nacional não se
justifica somente nas privatizações com a ajuda de fundos públicos, mas em
todo e qualquer caso de acesso ao mercado brasileiro. Com essa ressalva,
implícita de certa forma no editorial, endosso e assino em baixo.
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