Campinas, 25 de abril a 1º de maio de 2016 Rosa despetalada

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Rosa

Campinas, 25 de abril a 1? de maio de 2016

despetalada

PATR?CIA LAURETTI patricia.lauretti@reitoria.unicamp.br

ereza foi assassinada pelo excompanheiro com dois tiros ? queima-roupa. O crime foi no rancho onde morava o casal. Apanhado em flagrante por um homem que passava por perto, o criminoso n?o foi preso, mesmo que o delegado tenha comparecido ? cena do crime. Ao contr?rio, ele pode desabafar e contar sua hist?ria: matou Tereza porque, embora tenha constru?do o local para ambos, ela recusou. N?o quis a felicidade que ele oferecia e preferiu ir embora com outro. A cabocla Tereza deveria ter se portado de outra maneira. Mas foi assassinada, e esta hist?ria vem sendo cantada h? pelo menos 75 anos. No auge do sucesso da m?sica caipira ou sertaneja "de raiz", entre as d?cadas de 1950 e 1970, a m?sica foi uma das mais conhecidas e admiradas.

Nessa ?poca, mulher de verdade (no universo que essas can??es pretendem representar) n?o poderia nunca j? ter sido beijada. Deveria ser uma companheira meiga e carinhosa e precisaria ter "o perfume da rosa", como dizem outras can??es do mesmo per?odo. Assim se casaria, seria uma m?e zelosa, daquelas que deixam a mesa do caf? pronta. De outro modo, certamente ficaria para titia.

Mas a viol?ncia contra a mulher, ou mesmo uma representa??o hoje considerada por muitos como equivocada, n?o est? presente s? neste per?odo cl?ssico da m?sica sertaneja. Outras correntes do mesmo estilo como o sertanejo rom?ntico, entre as d?cadas de 1980 e 1990 e mais recentemente o chamado sertanejo "universit?rio", tamb?m trazem algo de podre no reino do brejeiro, como percebeu Amanda ?gata Contieri quando come?ou a pensar em desenvolver uma disserta??o de mestrado na ?rea de Lingu?stica Aplicada. "Eu parei para ouvir e me dei conta que tinha algo errado ali... O homem estava dizendo que batia na mulher, que a matou porque ela n?o quis ficar com ele, isso em grandes cl?ssicos da m?sica sertaneja. Essas m?sicas s?o uma forma de olhar para algo que todos falam. ? uma quest?o social porque a m?sica retrata algo que acontece na vida. Se a m?sica faz sucesso ? porque aquele discurso ? aceito pelas pessoas".

N?o se trata de demonizar o estilo. Amanda faz quest?o de salientar que exemplos id?nticos ocorrem em outras categorias de can??es. A m?sica sertaneja foi escolhida por ter picos de sucesso ao longo de muitos anos. A complexidade da cultura sertaneja, "que n?o se constitui como um universo un?ssono, mas que, pelo contr?rio, compreende, no seu interior, vis?es de mundo bastante diferenciadas e, por vezes, contradit?rias" n?o ? ignorada. A disserta??o "'As mais tocadas': uma an?lise de representa??es da mulher em letras de can??es sertanejas" faz ent?o uma an?lise de 17 can??es, escolhidas entre uma pr?-sele??o de 80 m?sicas. A autora dividiu o estudo em temas, levando em conta os diferentes per?odos: o primeiro tema foi a mulher idealizada. Depois, o matrim?nio, a maternidade, o corpo feminino e, por ?ltimo, a viol?ncia contra a mulher. "Procurei verificar de que modo os compositores das letras das can??es examinadas fazem uso estrat?gicos de recursos gramaticais e estil?sticos da l?ngua, como por exemplo, a adjetiva??o, a passiva??o, a nominaliza??o e figuras de linguagem, para suscitar interpreta??es sobre o que constituiria a identidade da mulher brasileira".

O objetivo principal da pesquisadora era verificar se essas representa??es se modificaram ao longo dos anos e de que forma isso ocorreu. Al?m disso, ela pretendia contribuir com a educa??o escolar, j? que os resultados da pesquisa podem ser ?teis para os professores de L?ngua Portuguesa que se interessam em abordar o g?nero por uma perspectiva cr?tica. "A m?sica sertaneja costuma ser rejeitada no espa?o escolar e nos materiais did?ticos. ? quase sempre vista como simpl?ria, como desprovida de sofistica??o, em compara??o com outros g?neros musicais. Mas n?o se pode ignorar o poder das representa??es de identidade veiculadas por suas letras. A m?sica sertaneja ? ouvida por uma significativa parcela das fam?lias brasileira", aponta.

A dupla Louren?o e Lourival (? esquerda), que gravou "Meu sonho de amor", e Vadico e Vidoco, int?rpretes do sucesso "M?e amorosa"

Fotos: Reprodu??o

das ainda a colocam em posi??o inferior. A passividade ? sua principal caracter?stica. Em Meu sonho de amor (1970), gravada pela dupla Louren?o e Lourival, o cancioneiro procura algu?m "que tenha o perfume da rosa/ antes de tudo seja meiga e carinhosa/ que sua boca ningu?m tenha beijado". A mulher n?o beija e sim, sua boca ? beijada. Em contrapartida, o homem amou, amou, amou e muito mais haver? de amar: "Se eu encontrar algu?m assim em meu caminho/ Entregarei de corpo e alma o meu carinho/ Terei ent?o o grande amor por mim sonhado/ Esquecerei os desamores do passado."

Para Amanda, os adjetivos usados na can??o sugerem o desejo de que a pessoa a ser amada seja uma mulher sempre d?cil em suas rela??es, disposta a agradar o outro, independentemente da natureza do modo de agir desse outro. A mulher ideal ? aquela que n?o oferece resist?ncia.

Em geral as m?sicas do per?odo de 1950 a 1970 retratam a mulher idealizada, linda e limpa. "As m?sicas sempre citam o perfume, e a pureza da mulher, especialmente as mais antigas, quando a virgindade ainda era um tabu e a mulher era encorajada a limpar a casa como se ela pr?pria fosse uma extens?o dela ? quanto mais limpa ela e a casa estivessem, melhor ela seria".

Para o estilo sertanejo rom?ntico, que veio depois, a mulher idealizada ? tratada como um trof?u, uma joia, ? a mulher representada por substantivos. Segundo Amanda, os anos 80 e 90 foram um per?odo de consolida??o dos estudos feministas do Brasil e o olhar da sociedade sobre a produ??o cultural, inclusive, passou a ser cada vez mais cr?tico e contestador, o que explicaria a aus?ncia da categoria viol?ncia nas can??es do ciclo sertanejo rom?ntico.

Na can??o ? o amor (1993), da dupla Zez? di Camargo e Luciano, Amanda chama a aten??o para a quantidade de pronomes possessivos. A mulher ? "meu doce mel/ meu pedacinho de c?u/ minha doce amada/ minha alegria/ meu conto de fada/ minha fantasia". J? o homem, propriet?rio,

? o dono da a??o, "um apaixonado de alma transparente/ louco alucinado meio inconsequente/ um caso complicado de se entender". "As express?es indicam que os predicativos da mulher amada n?o s?o resultados de suas a??es, mas s?o qualidades que `pertencem' ao enunciador".

Mesmo pretendendo exaltar a figura da mulher, ou homenagear a figura da m?e, os autores das letras acabam patinando na quest?o do g?nero. A mel?dica Fog?o de Lenha (1987), gravada por Chit?ozinho e Xoror?, em seu refr?o, dispara uma s?rie de imperativos: "Pegue a viola/ e a sanfona que eu tocava/ Deixe um bule de caf? em cima do fog?o/ Fog?o de lenha, e uma rede na varanda/ Arrume tudo m?e querida, que seu filho vai voltar". H? aqui, acrescenta Amanda, o pressuposto de que cumprir essas ordens seria motivo de felicidade para essa mulher.

Da mesma forma, na can??o M?e Amorosa (1969), gravada por Vadico e Vidoco, "a representa??o da m?e ? a de uma mulher abnegada, que se dedica somente aos filhos, uma figura quase que beatificada". Amanda ressalta na disserta??o que teve dificuldades de encontrar exemplares sobre esse tema nas m?sicas do estilo sertanejo "universit?rio", ou seja, as mais recentes. O motivo, "possivelmente se deve ao fato de o p?blicoalvo para o qual elas se voltam n?o ter ainda, em sua maioria, se casado e experimentado a maternidade, diferentemente do que ocorria na d?cada de 1950", afirma.

O corpo da mulher tamb?m ? abordado na sele??o da pesquisa. Com bastante liberdade j?, o sertanejo "universit?rio" da dupla Fernando e Sorocaba apresenta a ex-namorada na m?sica Minha ex (2013) como "gostosa", "maravilhosa", "del?cia". A letra diz que a ex mudou, colocou silicone e pintou o cabelo, "est? pura mal?cia", mas caracteriza como "charminho" a recusa da mo?a em manter algum tipo de relacionamento. Sinal vermelho para a letra: a recusa da mulher n?o est? sendo levada em conta, o que tamb?m, na opini?o da pesquisadora, se configura como um tipo de viol?ncia.

Ali?s, o que Amanda considera mais impactante no trabalho ? a representa??o da viol?ncia contra a mulher. A cl?ssica Pagode em Bras?lia (1960) gravada por Ti?o Carreiro e Pardinho adverte a mulher namoradeira e a sogra encrenqueira. Na primeira, o homem "passa o couro e manda embora", na segunda "d? de la?o dobrado". Como classificar, sobretudo a can??o Bruto, R?stico e Sistem?tico (2009) de Jo?o Carreiro e Capataz? Na m?sica o homem reclama que a mulher fez topless. "Quando vi me deu um stress/ Perdi minha paci?ncia/ Por mim faltaram respeito/ Na mui? eu dei um jeito/ Corretivo do meu modo/ No quarto deixei trancada/ Quinze dias aprisionada/ E com ela n?o incomodo". No trabalho Amanda descreve que a can??o soma milh?es de visualiza??es no Youtube, contando com coment?rios de pessoas que defendem o "estilo de vida" retratado.

A pesquisadora reitera que a abordagem da representa??o da mulher na m?sica sertaneja n?o pretende "acusar o compositor sertanejo e os apreciadores das can??es de machismo ou de desconsiderar a beleza de muitas can??es do g?nero em quest?o, mas fazer das can??es, g?nero de grande alcance de p?blico, objetos de an?lise e explicitar as rela??es de poder e demandas de mudan?a".

Publica??o

Disserta??o: "As mais tocadas: Uma an?lise de representa??es da mulher em letras de can??es sertanejas" Autora: Amanda ?gata Contieri Orientadora: Terezinha de Jesus Machado Maher Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)

Foto: Antonio Scarpinetti

Amanda ?gata Contieri, autora da disserta??o desenvolvida no IEL:

an?lise de 17 can??es

IDEALIZADA E SUBALTERNA

A pesquisa revelou que, embora algumas mudan?as no discurso de fato ocorreram, especialmente quando se trata da maternidade, do casamento ? virgindade, a imagem constru?da da mulher nas can??es analisa-

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