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REVISTA DO CENTRO DE PESQUISA E FORMA??O / N? 4, maio 2017 Disseram que eu voltei mexicanizado:

sertanejo raiz e a incorpora??o da can??o rancheira

Disseram que eu voltei mexicanizado: sertanejo raiz e a incorpora??o da can??o rancheira

Danilo Cymrot1

Resumo

O presente artigo tem como objetivo analisar o fen?meno da incorpora??o da can??o rancheira mexicana na m?sica caipira brasileira por duplas das d?cadas de 1950, 1960 e 1970; os fatores hist?ricos, socioecon?micos, culturais e pessoais que podem ter contribu?do para essa incorpora??o; a resist?ncia por parte de artistas e jornalistas a essa incorpora??o e a vis?o de alguns dos cantores caipiras modernizadores sobre o que entendem por sertanejo raiz. Para tanto, foram consultados os acervos dos jornais O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, Folha da Manh?, Folha da Noite, Folha de S. Paulo e do site Recanto Caipira. Foram realizadas entrevistas com cantores caipiras/sertanejos da gera??o dos anos 1960 e 1970.

Palavras-chaves: m?sica sertaneja, m?sica rancheira, r?dio, raiz

Abstract

The present article analyzes the phenomenon of the incorporation of the Mexican ranchera song in Brazilian caipira music by the duos of the 1950s, 1960s and 1970s; the historical, socioeconomic, cultural and personal factors that may have contributed to this incorporation; the resistance of artists and journalists to this incorporation and the vision of some of the modernizing caipira singers about what they mean by the sertanejo raiz. For that, the collections of the newspapers O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, Folha da Manh?, Folha da Noite, Folha de S. Paulo and Recanto Caipira website were consulted. Interviews were conducted among caipira/sertanejos singers from the generation of the 1960s and 1970s.

Keywords: Sertaneja music, music rancheira, radio, roots

Introdu??o

A can??o rancheira mexicana, apesar de ter se tornado um dos s?mbolos da identidade mexicana e ter sido acusada de ter contaminado a m?sica caipira brasileira, tem por si s? uma origem h?brida. No fim do s?culo XVIII, a ?pera e o bel canto come?aram a ganhar popularidade no M?xico.

1 Doutor em Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade de S?o Paulo ? USP. Pesquisador do Centro de Pesquisa e Forma??o do Sesc em S?o Paulo.

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Em 1827, foi revogada uma lei espanhola de 1799 que proibia ?peras no M?xico em qualquer outro idioma que n?o fosse o espanhol. Isso incentivou a contrata??o de companhias de ?pera italianas para se apresentarem no M?xico e fez com que muitos mexicanos entrassem em contato com gostos e estilos europeus contempor?neos.

Outra importa??o musical que teve grande impacto no M?xico a partir do come?o do s?culo XIX, desta vez na esfera da cultura popular, foi a valsa. Ela chegou a ser denunciada pela Igreja como uma importa??o corrupta, obscena e perniciosa da "degenerada" Fran?a. A valsa se espalhou rapidamente pelo M?xico e se tornou o modelo musical mais comum para a composi??o de can??es (GRADANTE, 1982, p. 37-38). As grandes feiras agr?colas da regi?o do Baj?o (prov?ncias de Guanajuato, Jalisco, Quer?taro, Aguascalientes e Michoac?n), por sua vez, tornaram-se ve?culos para a difus?o das can??es sentimentais e rom?nticas para regi?es da rep?blica mexicana que raramente tinham influ?ncia de fontes externas. Assim, a can??o tornou-se crescentemente popular entre a popula??o rural e uma forma mais simples, r?stica, adaptada ao gosto rural, cada vez mais afastada da fonte original italiana, designada posteriormente de can??o rancheira, come?ou a surgir.

Durante a administra??o de Porfirio D?az (1876-1910), o M?xico voltou seus olhos para os padr?es culturais, econ?micos e sociais dos Estados Unidos e da Europa. Nesse per?odo, a can??o rom?ntica e sentimental cantada no estilo bel canto pelas classes m?dias e altas urbanas, muitas com t?tulos em franc?s, pareciam mais europeias do que mexicanas, embora muitas fossem compostas por mexicanos. No come?o do s?culo XX, o desenvolvimento dos meios de transporte e comunica??o aproximaram as ?reas urbanas e rurais. Por sua vez, o fervor nacionalista que teve o seu auge na Revolu??o Mexicana de 1910 mudou a autoimagem da na??o, aumentando o orgulho de ser mexicano. A decis?o do l?der de orquestra Miguel Lerdo de Tejada de vestir seus m?sicos de charro em 1901, para se diferenciar de quem tocava m?sica europeia, foi uma manifesta??o deste novo nacionalismo, embora a can??o popular tocada por essa orquestra continuasse "domesticada pela inspira??o italianizante".

A Revolu??o Mexicana de 1910 foi acompanhada pela glorifica??o cultural do homem comum e sua heran?a musical tradicional, desprezada durante o Porfiriato. Cantores profissionais come?aram a popularizar nos teatros da Cidade do M?xico can??es que eram previamente cantadas somente por trabalhadores das fazendas. Cantadas entre os atos de apresenta??es dram?ticas, essas can??es logo ficaram conhecidas como can??es rancheiras2 (GRADANTE, 1982, p. 42-44).

2 Sobre a inven??o da tradi??o popular e do folclore por movimentos nacionalistas, cf. BURKE, 2010.

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De acordo com Nishi, s?o justamente os trompetes, cujo timbre ? tomado como denotativo do M?xico, que diferenciam as rancheiras dos ritmos paraguaios, tamb?m tern?rios. Outros elementos que caracterizam a rancheira e outros g?neros reconhecidos como vindos do M?xico s?o recursos vocais como os gritos "ui, ui, ui, ui", t?picos dos mariachis, e efeitos de performance, como duplas que cantam vestidas de mariachis. No entanto, em algumas vers?es brasileiras de m?sicas mexicanas, os trompetes caracter?sticos da rancheira s?o substitu?dos pelo acordeon da m?sica sertaneja, o que j? constitui um hibridismo (apud OLIVEIRA, 2009, p. 70).

O objetivo deste artigo consiste justamente em analisar o fen?meno da incorpora??o da can??o rancheira mexicana na m?sica caipira brasileira por duplas das d?cadas de 1950, 1960 e 1970, os fatores hist?ricos, socioecon?micos, culturais e pessoais que podem ter contribu?do para essa incorpora??o e a vis?o de alguns desses cantores modernizadores sobre o que entendem por sertanejo raiz.

Dos filhos de Miguel

Enquanto folcloristas brasileiros queixavam-se da incorpora??o da rancheira pela m?sica caipira, a cantora mexicana de rancheiras Amalia Mendoza queixava-se: "Nossa can??o rancheira ? apreciada mais no estrangeiro. (...) Os mexicanos n?o apreciam suficientemente nosso folclore, nos interessa mais impulsionar os artistas de outras na??es e apoiar movimentos musicais externos. N?o valorizamos o que ? nosso" (apud GRADANTE, 1982, p. 37).

Para Allan de Paula, a mistura da m?sica sertaneja com g?neros musicais estrangeiros ? principalmente o bolero, a rancheira, a guar?nia, o rasqueado e a polca ? iniciou-se na segunda metade dos anos 1930, intensificou-se na d?cada de 1940 e "tornou-se extremamente vis?vel a partir de 1950", a ponto de considerar a m?sica sertaneja historicamente "um dos g?neros da m?sica brasileira mais relacionado com elementos estrangeiros" (OLIVEIRA, 2009, p. 296-297). Rosa Nepomuceno descreve a m?sica sertaneja do final dos anos 1950 como uma "confus?o de mariachis, sanfonas e violas" (NEPOMUCENO, 1999, p. 147-148).

Conforme aponta Gustavo Alonso, embora fosse um fen?meno que j? ocorria antes, a partir da d?cada de 1950 a mistura da m?sica rural com g?neros estrangeiros, especialmente mexicanos e paraguaios, se acelerou muito, com a populariza??o do compacto simples, do compacto duplo e, mais tarde, dos LPs, bem como do r?dio. A incorpora??o do bolero mexicano teria aberto portas para a rancheira (ALONSO, 2015, p. 35-37).

Allan de Paula aponta, por sua vez, que os charro films "popularizaram por todo o mundo a figura dos mariachis, com sua vestimenta caracter?stica

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e sua forma??o instrumental com viol?es, violinos e trompetes, al?m de toda uma gera??o de cantores mexicanos, tais como Pedro Infante e Miguel Aceves Mej?a" (OLIVEIRA, 2009, p. 301)3. Os g?neros paraguaios e mexicanos foram apropriados pela m?sica sertaneja tamb?m atrav?s da pr?tica comum das vers?es. Em muitos casos, havia apenas a adapta??o de can??es paraguaias e mexicanas para vers?es brasileiras, onde, muitas vezes, mantinha-se o arranjo e mudava-se o idioma da letra ? com tentativas frequentes de tradu??es literais, na medida do poss?vel (OLIVEIRA, 2009, p. 302).4

Wladir Dupont, em artigo de 1991 sobre a influ?ncia da cultura mexicana sobre a brasileira, tamb?m atribui ? popularidade do cinema mexicano das d?cadas de 1940 e 1950 o come?o da presen?a mexicana no "inconsciente brasileiro". Os filmes do g?nero "cine de cabareteiras" trouxeram consigo o bolero, "a express?o musical mexicana maior", e ?dolos como Jorge Negrete, Pedro Infante, To?a la Negra, don Pedro Vargas, Miguel Aceves Mej?a, Trio Los Panchos. Por outro lado, Dupont assinala tamb?m o importante papel das turn?s de Mej?a e do programa do radialista Z? Bettio, campe?o de audi?ncia na d?cada de 1970, para a interioriza??o da rancheira mexicana no Brasil:

Al?m do bolero, forte tamb?m na m?sica popular brasileira ? a influ?ncia de outro g?nero musical tipicamente mexicano, "la ranchera", ou a nossa m?sica sertaneja ou caipira. H? muito tempo, pelo menos h? uns 30 anos, boa parte dessas can??es no Brasil s?o vers?es de composi??es mexicanas, letra e m?sica, com arranjos ? base do mariachi, o conjunto musical t?pico mexicano. No interior de S?o Paulo existem at? conjuntos cujos integrantes se vestem como mariachis para tocar suas m?sicas. Quando vinha ao Brasil nos anos 60, o cantor Miguel Aceves Mej?a, um dos reis da ranchera no M?xico, se apresentava s? no interior de S?o Paulo, onde estava ? e est? at? hoje ? seu grande p?blico. ? por essa raz?o que o veterano radialista paulista Z? B?tio, um apaixonado pelas coisas do M?xico, toca, em seu programa di?rio na R?dio Capital, muita m?sica mexicana, pois sabe que seus ouvintes est?o espalhados pelo interior do Estado (DUPONT, 1991, p. 9).

3 T?rik de Souza atribui ao cowboy campineiro Bob Nelson a origem do "condimento importado para o segmento sertanejo". Posteriormente, "sobreviriam as descabeladas guar?nias, os boleros e os sopros de mariachi de duplas como Pedro Bento e Z? da Estrada, Cascatinha e Inhana, Bi? e Bolinha, Louren?o e Lourival, Milion?rio e Z? Rico, Duduca e Dalvan, muitos deles modelados no sotaque mexicano de Miguel Aceves Mejia". Souza reconheceu nas duplas sertanejas dos anos 1990, Chit?ozinho e Xoror?, Leandro e Leonardo e Zez? Di Camargo e Luciano, o "alinhamento vocal em ter?as, modulado pelo vibrato herdado dos mariachis" (SOUZA, 1998, p. 4). A difus?o do cinema mexicano no Brasil foi impulsionada, em grande parte, pelos Estados Unidos em sua Pol?tica de Boa Vizinhan?a, que tinha como objetivo trazer os pa?ses latino-americanos para a sua esfera de influ?ncia durante a Segunda Guerra Mundial. Para mais informa??es, recomenda-se CASTRO, 2011.

4 ? o caso de Gorrioncillo del Pecho Amarillo, rancheira mexicana dos anos 1940 de muito sucesso, popularizada no Brasil por Miguel Aceves Mej?a, cuja vers?o em portugu?s Passarinho do Peito Amarelo foi gravada por v?rias duplas, incluindo Tibagi e Miltinho e Milion?rio e Jos? Rico (OLVEIRA, 2009, p. 302).

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O programa de Z? Bettio era o mais caro do r?dio brasileiro e chegava a receber dos f?s uma m?dia de cinco mil cartas por semana, inclusive do exterior, principalmente de Portugal. Na ?poca, desejando veicular uma propaganda, uma grande f?brica de caminh?es fez uma pesquisa entre os 465 mil caminhoneiros existentes ent?o no Brasil, para concluir que 68% deles ouviam Z? Bettio religiosamente, mais um ind?cio de que a m?sica que Z? Bettio tocava era levada para o interior de S?o Paulo e que, portanto, o radialista exerceu importante papel de mediador entre a cultura mexicana e a cultura caipira. A sele??o musical do programa ficava a cargo de seu filho Betinho. Al?m dos boleristas Altemar Dutra, Lindomar Castilho e Waldick Soriano, o programa chegava a tocar "meia-hora de Miguel Aceves Mejia, dedicada aos motoristas de t?xi de todo o Brasil" (MONTANDON, 1976, p. 22)5.

Sombrero de palha

De todos os artistas sertanejos comumente apontados como pioneiros da incorpora??o da can??o rancheira, os mais identificados com o g?nero foram Pedro Bento e Z? da Estrada, que gravaram a rancheira Ta?a da dor em um compacto em 19596, passaram a se vestir de mariachis nas capas dos discos e nos shows e ficaram conhecidos como Os amantes da rancheira7. O primeiro disco no qual Pedro Bento e Z? da Estrada aparecem vestidos com trajes t?picos mexicanos ? de 1960: Pedro Bento e Z? da Estrada e suas rancheiras. Pedro Bento, no entanto, aponta Miguel Aceves Mej?a, que ouvia por disco e no r?dio e viu cantar em Ribeir?o Preto em 1963, como sua maior influ?ncia, inclusive para se vestir de mariachi.8

Em sua autobiografia, Pedro Bento relata que um alfaiate confeccionou, a seu pedido, tr?s conjuntos da roupa de mariachi desejada. Entretanto, ficaram faltando os chap?us, que foram confeccionados pelo pr?prio

5 Z? Bettio tamb?m era m?sico e j? em seu segundo compacto, em 1958, pela Chantecler, gravou a rancheira Martim Pescador, de Francisco Prac?nico e Em?lio Magaldi. No ano seguinte, gravou a rancheira Andradas, de Teddy Vieira (PERIPATO, Sandra Peripato. Dipon?vel em: . Acesso em: 15 jan. 2017).

6 Entrevista concedida na casa de Pedro Bento em 24 de agosto de 2015. O compacto 78 rota??es ao qual Pedro Bento faz refer?ncia ? o Continental ? 06/1959 ? n? 17.684, de 1959. A informa??o foi retirada do site Recanto Caipira. No entanto, o mesmo site diz que tal compacto foi gravado em 1957, informa??o reproduzida por Rosa Nepomuceno (NEPOMUCENO, 1999, p. 145).

7 O nome Os amantes da rancheira teria sido dado por um locutor de r?dio, Nassim Filho, que passou a anunciar dessa forma o programa da dupla, na R?dio Tupi, pois j? haviam gravado muitas rancheiras. A alcunha aparece pela primeira vez no disco de 1961, Os amantes da rancheira (Entrevista concedida no apartamento de Pedro Bento em 24 de agosto de 2015).

8 Entrevista concedida no apartamento de Pedro Bento em 24 de agosto de 2015.

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