RIO: A RELAÇÃO AMBÍGUA



RIO: A RELAÇÃO AMBÍGUA

Janaina Fernandes Rebello de Moraes Gonçalves

Doutoranda em Literatura Brasileira - UFRJ

Introdução

Para esta comunicação, foram analisados os seguintes poemas que enfocam o Rio de Janeiro: “Coração numeroso” e “Rio de Janeiro”(de “A Lanterna Mágica”), ambos de Alguma Poesia, “A Bruxa”, de José, “Prece de Mineiro no Rio”, de A vida passada a limpo, e “Canto do Rio em sol”, de Lição de Coisas.

Como veremos, a maioria deles, com exceção de “Canto do Rio em Sol”, apresenta uma visão de náusea do Rio de Janeiro, embora “Coração numeroso” possua uma certa ambigüidade quanto a isso.

Análise

Em “Coração numeroso” Drummond mistura símbolos do progresso, a exemplo do movimento de vanguarda futurista, a elementos pertencentes à tradição poética, mas os segundos, embora presentes, não se realizam no Rio.

Como exemplo dos primeiros podemos citar a “avenida” (Eu passeava na avenida – v. 2); bondes (“e bondes tilintavam”, v. 5). Dos elementos da tradição poética, pode-se citar o mar, embora ainda assim, ele seja uma promessa, o que afasta a visão da metrópole do lirismo.

O que, na primeira estrofe, poderia representar esse lirismo, mostra-se artificial, como no caso das estrelas, que na verdade, são bicos de luz (v. 3), do mar, que não se realiza, é “promessa” no poema, como já foi dito, e do vento, que, embora esteja no Rio, vem de Minas. O lirismo e a natureza, portanto, estão na terra natal do eu-lírico e ausentes no Rio. Tais elementos, como o vento, que está no Rio, mas não é daqui, são cabíveis de serem identificados com o próprio eu-lírico, um estrangeiro, de passagem.

A primeira estrofe apresenta, portanto, uma visão negativa. A segunda, representa o elemento modificador. O negativismo chegou ao seu ápice: “a vida para mim é vontade de morrer”, levando o eu-lírico a uma mudança não anunciada: “Acabemos com isso” (v. 14). A terceira estrofe é o início de um retrocesso, de uma transformação da sua visão da cidade. percebe-se logo por ser ela introduzida pela conjunção MAS. O eu-lírico começa a “sentir’ melhor a cidade, os automóveis (que farão chegar ao poético mar ) (Mar esse que é reiterado nas visões do Rio). Na última estrofe, o eu-lírico incorpora-se finalmente à cidade, e perde o ar estrangeiro, distanciado.

O mar, que era apenas uma promessa no início, passou a ser uma possibilidade a partir do momento em que o automóvel faria chegar a ele, e uma realidade interior quando se diz: “O mar batia em meu peito”. Ele resume tudo nos versos “a cidade sou eu/sou eu a cidade”.

No grupo de poemas intitulado “Lanterna Mágica”, CDA canta diversas cidades mineiras, inclusive a natal, e, por fim, Nova Friburgo, Rio de janeiro, e o estado da Bahia. Vamos nos deter na análise apenas do poema referente ao Rio de Janeiro.

A visão do Rio de Janeiro no poema em questão continua seguindo as tendências de vanguarda já citadas, enxergando a metrópole através dos símbolos do chamado progresso: a eletricidade, o asfalto, os automóveis... A ótica é pessimista, já que o eu-lírico vê na cidade a morte das cores (“as cores nascem e morrem”– v. 2), assim como a predominância do cinza, tradicionalmente visto como a falta de vida, a neutralidade (v. 4) e o desfile de adjetivos e substantivos abstratos que conferem um tom pejorativo ao tema: “impudor violento”, “fútil”, “pedante”.

O único momento do poema em que se pode entrever uma certa descontração é no dístico: “Nas praias nu nu nu nu nu / Tu tu tu tu tu meu coração”, porque, como se percebe, o mar, as praias, embora sejam um clichê poético na retratação do Rio de Janeiro, são usadas também por Drummond como ponto positivo da cidade (mesmo quando canta seus aspectos negativos).

A onomatopéia presente no segundo verso confere humor, e mostra o descompasso do eu-lírico com o que vê: a nudez nas praias. O olhar estrangeiro, a falta de costume, são expressas nesse descompasso. Um outro indício de que esses versos representam a descontração, é que, o verso seguinte é introduzido pela conjunção MAS, aliada a coisas negativas, a crimes (assassinatos, adultérios e contos-do-vigário). Como indica adversidade, prova que contra tudo isso está o dístico anterior.

Na penúltima estrofe, talvez a mais nitidamente negativista (não tem sequer a palavra “amigos” ou a expressão “passou a boa”, da primeira, para amenizar), porque fala dos crimes já citados, o eu-lírico mostra mais uma vez ser exterior à cidade que tematiza, visto que utiliza a expressão distanciadora “este povo” como se não pertencesse realmente a ele. E mais: a impressão é de que o povo está contra ele, já que quer “lhe passar a perna”.

Tudo isso é concluído com um único verso, que fecha o poema, cuja intenção é mostrar que o eu-lírico está em trânsito, talvez com a visão “em transformação”. Isso é dito através de um recurso metafórico: “o coração dentro do táxi”. Mas as impressões iniciais foram, portanto, as piores possíveis.

A linguagem utilizada está bem em sintonia com os ideais modernistas, e é bastante coloquial e popular. As exclamações, reticências, interjeições (“Passou a boa!”, “Peço a palavra!”, “Mas tantos assassinatos, meu Deus”) criam uma atmosfera de discurso direto, que confere ao poema mais informalidade ainda. A expressão popular “passar a perna” (v. 15) e as onomatopéias da segunda estrofe ratificam a coloquialidade e a utilização de um vocabulário apoético.

O primeiro poema de José, “A Bruxa”, tem uma atmosfera de divisão, semelhante a “Coração numeroso”. Os sentimentos presentes no primeiro momento do poema, angustiantes, dão lugar a uma certa serenidade depois. A mesma transformação ocorrida no poema já analisado. Uma recorrência nas poesias que têm como tema o Rio de Janeiro, é a presença de “amigos”. Em “Rio de Janeiro”, da “Lanterna Mágica” (Alguma poesia) há a referência aos “amigos satisfeitos com a vida dos outros” (aliás, do que se pode concluir que talvez não estejam satisfeitos com as suas). “Coração numeroso” é uma exceção nesse aspecto, já que afirma ainda que “não conhece ninguém” e que “os homens são indiferentes”. Tal fato, embora negue o vocábulo “amigos”, reafirma a proximidade com “A bruxa”: neste poema reitera-se a solidão no Rio de Janeiro, a despeito da multidão de transeuntes.

Porém “A bruxa” faz mais do que retratar a cidade. Trata-se de um metapoema em que, como em vários outros de Drummond, o autor refere-se à incomunicabilidade do poema “preso”. Esta seria “a bruxa”, que, no final, é identificado com “a confidência”, algo que se quer contar/cantar, mas que não se consegue (“E sinto a bruxa presa na zona da luz”). Reparem que o eu-lírico está na escuridão, na solidão, sem amigos, mesmo entre dois milhões de habitantes, ou seja, está sem voz, incomunicável, sem poema. (Quando é afirmado que ele está na escuridão, faz-se com base no fato de que a bruxa está presa na zona de luz, portanto, a escuridão é onde ele está; além disso, na 6a estrofe, é dito “o que há é apenas a noite/e uma espantosa solidão”).

O momento em que acena-se com algo positivo sobre a cidade é exatamente a sexta estrofe “Tenho tanta palavra meiga, / conheço vozes de bichos, / sei os beijos mais violentos, / viajei, briguei, aprendi / Estou cercado de olhos, / de mão, afetos, procuras”. Toda a poeticidade ressurge neste trecho, mesmo que seja para reafirmar ao final dele, a incomunicabilidade de toda essa poesia potencial, presente.

O poema “A bruxa” contém certa angústia, já que todo ele mostra uma tentativa de expressão frustrada (o que pode ser até contestado pelo vocábulo “exalando-se” (último verso) que pode significar que, de certa forma, algo consegue vir à tona. O poeta traduz essa angústia do silêncio e da tentativa infrutífera em versos como: “Mas se tento comunicar-me / o que há é apenas a noite / e uma espantosa solidão.”; ou ainda: “Essa presença agitada / querendo romper a noite”. Os verbos querer e tentar já mostram a própria não-realização.

Mas por trás de toda essa estratégia de composição está a Ironia Romântica (alemã), porque confessando a incomunicabilidade, ele já está se comunicando. Em resumo: o Rio de Janeiro, em “A Bruxa”, é apenas um mote para que se desenvolva um metapoema.

Em A vida passada a limpo, desenvolve-se sobre o Rio de Janeiro o poema “Prece de mineiro no Rio”. Na verdade, o poema fala de Minas, sendo o Rio a negação daquilo que a terra natal do poeta é. Mais do que como um estrangeiro, o eu-lírico comporta-se como um exilado, em poemas como esse. Trata-se de uma sensação de estranhamento, mas com uma certa depressão. O Rio é a confusão; Minas é a ordem. Apenas nos quatro primeiros versos, dos 41 do poema, fala-se diretamente do Rio (“Espírito de Minas, me visita,/ e sobre a confusão desta cidade, / lança teu claro raio ordenador.”). Mesmo assim, invocando-se uma certa comparação com Minas.

No meio ao poema, o eu-lírico mostra sua insatisfação com o que fazem com Minas Gerais como tema literário: “Outras vezes te invocam, mas negando-se, / como se colhe e se espezinha a rosa.” Na verdade, neste poema, o poeta compõe exatamente assim em relação ao Rio: invocando-o através da negação. O Rio é o que Minas não é.

O poema mais concernente ao Rio de Janeiro é “Canto do Rio em sol”, do livro Lição de coisas. Nele, o Rio é tratado de forma poética, lírica, diferentemente dos analisados anteriormente. Desde o título, que traz em si uma ambigüidade (pode-se falar de cada canto / parte do Rio, ensolarado, ou ainda de um canto (poesia) que tematize sobre o Rio e ‘sol’ referir-se à nota musical) o tratamento é diferente.

O sentimento expresso não é mais a náusea, mas o fascínio da descoberta. É como se nos poemas anteriores o mesmo eu-lírico estivesse na cidade, mas sem percebê-la, e “Canto do Rio em Sol” representasse o olhar de primeira vez, o “ver com novos olhos”.

O eu-lírico admite, enfim, amar o Rio e canta-o pelos pontos geográficos e turísticos (Silvestre, Urca, Maracanã), históricos (a Tijuca de Alencar), ou ainda através das metáforas: “Guanabara, saia clara/estufando em redondel: / que é carne, que é terra e alísio/em teu crisol?” O povo carioca, antes retratado como indiferente, agora é “a gente tão florival”. O que antes era visto como defeito e confusão, agora é o próprio encanto da cidade: “Teu frêmito é teu encanto”.

A última estrofe da primeira parte do poema ratifica a idéia de que o sentimentos nas poesias, é ascendente, sendo este poema o ápice, o reconhecimento do amor pela cidade. Admite agora vê-la com novos olhos: “Agora, que te fitamos / nos olhos, / e que neles pressentimos / o ser telúrico, essencial, / (...)”.

O poema ganha inclusive um tom lúdico com os neologismos (“luminosardentissuavimariposas”), um tom mais leve, como quando brinca com o som das palavras e com o diminutivo afetivo (2a parte, 2a estrofe – Rio em ã / Maracanã / Sacopenapã / Rio em ol em amba em umba sobretudo em inho / de amorzinho / benzinho / dá-se um jeitinho” (27º v., da 2a parte).

Diante de tantas declarações, só o último verso parece constituir uma certa crítica, não ao Rio, mas aos homens do poder: “assistes ao pobre fluir dos homens e de suas glórias pré-fabricadas”.

Conclusão

O que acontece na trajetória desses poemas é semelhante ao que é narrado na música Sampa, de Caetano Veloso. Um estranhamento inicial, que depois leva à aceitação, ao amor, e até à identificação. Os dois últimos presentes apenas na última parte de “Coração numeroso” (“a cidade sou eu”) e em “Canto do Rio em sol”. (“Quando eu te encarei frente a frente não vi o teu rosto” e “Agora, que te fitamos nos olhos”).

Na verdade, pelos símbolos usados, a visão de náusea, se dá não pelo Rio de Janeiro como lugar individual, mas sim pelo fato generalizante de ser uma metrópole, causando desconforto ao eu-lírico, fazendo-o parecer sempre um gauche, só adaptado à nova realidade no último poema, que é, em ordem temporal dos apresentados, do último livro.

É interessante ressaltar também que o olhar mineiro-interiorano sempre se volta, nos poemas enfocados, com admiração para o mar e com desconforto para a correria e para os símbolos do progresso na grande cidade. É a visão “estrangeira” de quem só enxerga os ícones, os símbolos. Tal análise cabe aos poemas das diferentes fases: tanto aqueles que se aproximam mais das tendências da primeira fase do Modernismo (como “Rio de Janeiro” da “Lanterna Mágica”, como também os de tendência mais intimista.

Em quase todas as poesias, além desse olhar interiorano, há uma comparação entre a terra natal e o Rio de Janeiro, e isso fica explícito principalmente em “Prece de Mineiro no Rio”. É como se, para avaliar a realidade do Rio, precisasse fazê-lo sempre com base nas suas raízes.

Se, como foi dito, em quase todos os poemas analisados, Drummond cai no lugar-comum ao falar da metrópole (o cinza, os crimes...), demonstrando o isolamento, o desconforto e a solidão do eu-lírico no Rio de Janeiro, o único em que ele abandona o posicionamento de gauche na cidade, é o mais bem-realizado, por apresentar uma expressão mais original. Trata-se de “Canto do Rio em sol”. (E eu posso garantir que esta crítica não está baseada no fato de eu ser carioca e o poema fazer o elogio do Rio...).

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